Lévinas: aquém ou além da questão da existência de Deus?

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187.

LÉVINAS AQUÉM OU ALÉM DA QUESTÃO DA EXISTÊNCIA DE DEUS? Maria Leonor L. O. Xavier

1. Para uma reformulação da questão de Deus Pôr o Bem acima do ser: foi esse, o ensinamento mais profundo e definitivo da filosofia, nomeadamente, da filosofia de Platão. Assim o considerou Lévinas, em Totalité et Infini. Essai sur l’extériorité (1961)1. Tal foi o ensinamento, que determinou a formação de uma teologia negativa, na tradição do pensamento platónico e neoplatónico. Se Deus está acima do ser, à teologia cabe negar de Deus, o ser e todas as correlativas atribuições. A teologia negativa é uma superação por negação da ontologia. Mas a teologia negativa não é o fim do processo, devendo dar lugar à teologia mística, como acontece explicitamente na ordem das teologias, preconizada pelo neoplatónico Dionísio, o Pseudo-Areopagita. Na teologia mística, já não há conhecimento nem a sua negação, mas êxtase supra-mental e entrada na Treva mística. Lévinas, porém, que acolhe o ensinamento de Platão, não segue a via do Pseudo-Dionísio: nem o êxtase é o fim do processo, nem a teologia negativa é suficiente para dar acesso ao Bem. De facto, Lévinas prefere a teoria ao êxtase, para dela aproximar a sua ideia positiva de metafísica, porquanto a teoria mantém aquilo que o êxtase anula: a alteridade do ser cognoscente2. A metafísica levinasiana não visa a anulação dessa alteridade por absorção numa transcendência supra-cognitiva. Tal seria uma redução do Mesmo ao Outro. Ora, a metafísica levinasiana caracteriza-se precisamente pela dupla recusa de redução, não só do Mesmo ao Outro, como também e sobretudo do Outro ao Mesmo. A irredutibilidade recíproca do Mesmo e do Outro é outro ensinamento que Lévinas acolhe de Platão, em especial, da filosofia dos géneros supremos do Sofista. «O Mesmo e o Outro», título da Secção I, de Totalité et Infini, introduz a personalização levinasiana desse ensinamento. É certo que, na metafísica platónica do Sofista, os cinco géneros supremos são inter-participáveis e participáveis pelos géneros subordinados. Contudo, na metafísica levinasiana de Totalité et Infini, nem a generalização nem a participação obtêm primazia: aquela, porque é um processo derivado3; esta, porque é uma relação entre o Mesmo e o Outro, firmada não na independência dos dois termos,

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«La Place du Bien au-dessus de toute essence, est l’enseignement le plus profond – l’enseignement définitif – non pas de la théologie, mais de la philosophie.» TI, Haia, M. Nijhoff, 1961 (4ª ed.: 1971), p.106 (ed. reprod. em Le Livre de Poche, 4120, Paris, Kluwer Academic, sd.). 2 «Le schéma de la théorie, où la métaphysique se retrouverait, la distinguait de tout comportement extatique. La théorie exclut l’implantation de l’être connaissant dans l’être connu, l’entrée dans l’Au-delà, par êxtase. Elle reste connaissance, rapport.» TI, p.39. 3 Da generosidade da linguagem: «Reconnaître autrui, c’est donc l’atteindre à travers le monde des choses possédées, mais, simultanément, instaurer, par le don, la communauté et l’universalité. Le langage est universel parce qu’il est le passage même de l’individuel au général, parce qu’il offre des choses miennes à autrui. Parler c’est rendre le monde commun, créer des lieux communs. Le langage ne se réfère pas à la généralité des concepts, mais jette les bases d’une possession en commun. Il abolit la propriété inaliénable de la jouissance. Le monde dans le discours, n’est plus ce qu’il est dans la séparation – le chez moi où tout m’est donné – il est ce que je donne – le communicable, le pensé, l’universel.» TI, p.74.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. mas na dependência do primeiro relativamente ao segundo4, não sendo, por isso, uma relação imune à redução. É também verdade que, entre os géneros supremos de Platão, figuram o Ser e o Outro. Contudo, Lévinas substitui o Ser pelo Mesmo, nos seus irredutíveis. O Mesmo não é um género nem um universal supra-genérico, mas é a afirmação de um Eu, portanto, de uma liberdade pessoal. Esta conotação levinasiana do Mesmo supõe já a mediação da filosofia moderna do sujeito, e do seu posterior desenvolvimento na corrente fenomenológica. Quanto ao ser, Lévinas não lhe retira a universalidade, mas, por isso mesmo, não lhe reconhece a irredutibilidade. O ser é antes uma forma de redução do Outro ao Mesmo, uma das formas de redução mais criticamente visadas por Lévinas. Daí a necessidade de superar a ontologia, que a metafísica levinasiana partilha com a teologia negativa, embora esta não seja o natural prolongamento daquela, porquanto seria uma via exclusivamente negativa5. A ontologia visa apreender o ente, não respeitando a sua alteridade, mas compreendendo-o na totalidade do ser. A compreensão ontológica é um pensamento de totalidade, redutor da alteridade6. O pensamento de totalidade é, por sua vez, uma afirmação da liberdade e do poder do eu pensante. A compreensão do ente na totalidade do ser é, assim, uma redução da alteridade do ente à liberdade do eu, e ao seu poder de totalização, através da noção universalíssima de ser. A ontologia é, em suma, uma forma de totalização, cujo reverso é a redução do Outro ao Mesmo; é, porventura, a forma mais abusiva de totalização, com a mais exaustiva redução de alteridades. Esta redução não é ética nem politicamente inconsequente: eticamente considerada, ela faz da ontologia uma filosofia do poder e da injustiça7; politicamente, ela legitima a tirania. Assim caracterizada, a ontologia encontra, em Lévinas, um dos seus grandes críticos. Esta crítica levinasiana da ontologia estende-se a toda a história da filosofia, de Sócrates a Heidegger. Sócrates foi, segundo Lévinas, aquele que ensinou o primado do Mesmo, pela recusa do Outro na origem do saber8. A maiêutica e a anamnese são uma herança platónica, que a crítica levinasiana enjeita, e confina ao nome de Sócrates. Heidegger, por sua vez, que se considerava romper com a tradição filosófica, esquecida 4

Como é próprio da religião: «La distance entre moi et Dieu, radicale et nécessaire, se produit dans l’être même. Par là, la transcendance philosophique diffère de la transcendance des religions – au sens courant thaumaturgique et généralement vécu de ce terme – de la transcendance déjà (ou encore) participation, plongée dans l’être vers lequel elle va, lequel tient, comme pour lui faire violence, dans ses filets invisibles, l’être qui transcende.» TI, p.40; «Participer est une façon de se référer à l’Autre: tenir et dérouler son être, sans jamais perdre sur aucun point, contact avec lui.» TI, p.55. 5 «On peut certes chercher à déduire l’altérité métaphysique à partir des êtres qui nous sont familiers et contester, dès lors, le caractère radical de cette altérité. L’altérité métaphysique ne s’obtient pas par l’énoncé superlatif des perfections dont la pâle image remplit l’ici-bas? Mais la négation des imperfections ne suffit pas à la conception de cette altérité.» TI, p.31. 6 «Connaître ontologiquement, c’est surprendre dans l’étant affronté, ce par quoi il n’est pas cet étant-ci, cet étranger-ci, mais ce par quoi il se trahit en quelque manière, se livre, se donne à l’horizon où il se perd et apparaît, donne prise, devient concept. Connaître, revient à saisir l’être à partir de rien, ou à le ramener à rien, lui enlever son altérité.» TI, p.34. 7 «La relation avec l’être, qui se joue comme ontologie, consiste à neutraliser l’étant pour le comprendre ou pour le saisir. Elle n’est donc pas une relation avec l’autre comme tel, mais la réduction de l’Autre au Même. Telle est la definition de la liberté: se maintenir contre l’autre, malgré toute relation avec l’autre, assurer l’autarchie d’un moi. La thématisation et la conceptualisation, d’ailleurs inséparables, ne sont pas paix avec l’Autre, mais suppression ou possession de l’Autre. La possession, en effet, affirme l’Autre, mais au sein d’une negation de son independence. «Je pense» revient à «je peux» – à une appropriation de ce qui est, à une exploitation de la réalité. L’ontologie comme philosophie première, est une philosophie de la puissance.» TI, pp.36-37; «Philosophie du pouvoir, l’ontologie, comme philosophie première qui ne met pas en question le Même, est une philosophie de l’injustice.» TI, p.38. 8 «Cette primauté du Même fut la leçon de Socrate. Ne rien recevoir d’Autrui sinon ce qui est en moi, comme si, de toute éternité, je possédais ce qui me vient du dehors. Ne rien recevoir ou être libre.» TI, p.34.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. do Ser em benefício do ente, e que pretendia refundar a ontologia, representa, para Lévinas, não uma ruptura, mas um expoente maior na continuidade de uma tradição filosófica, que é dominantemente ontológica. A ontologia heideggeriana, entendida como expressão cabal da tendência ontológica da filosofia ocidental, torna-se o alvo mais explícito da crítica levinasiana9. Através da sua crítica, Lévinas também se considera romper com a tradição filosófica, dominadora do Outro em favor do Mesmo. Tanto Heidegger quanto Lévinas julgam criar descontinuidade com a tradição filosófica, mas as respectivas afirmações de ruptura são contraditórias entre si. Não se pode confirmar uma, sem negar a outra. Teremos nós que escolher? Devemos, pelo menos, reconhecer que ambas são generalizações, e, como tais, procedentes da generosidade da linguagem, segundo o próprio Lévinas, pelo que servem para pôr em comum, o que significa, em matéria de ideias, pôr à discussão, ou oferecer à contestação. Generalização igualmente discutível é explicar a origem do pensar dominador da ontologia, pela atitude dominante de posse, de posse da terra antes de mais, que caracteriza os povos sedentários do Ocidente10. A esta generalização levinasiana, podemos nós opor a de Basílio Teles, crítico do teísmo judaico-cristão entre nós, que explica o transcendentalismo semita, isto é, uma visão moral do universo, sob a tutela de um Deus capaz de tirania, pela severidade da vida dos povos nómadas do deserto11. De novo, ambas as generalizações, a de Basílio e a de Lévinas, valem pelo que oferecem à contestação. Entretanto, de Sócrates a Heidegger, há uma longa história da filosofia, que pode ser lida à luz de uma tendência ontológica dominante, culminando em Heidegger, mas esta leitura não deixa de ser totalizante a seu modo, e, consequentemente, redutora. O próprio Lévinas ressalva variações mitigantes dessa tendência, entre as quais as filosofias da analogia, potencialmente pluralistas12. Inscrevendo-se na linhagem filosófica de Aristóteles, é, sobretudo, na Idade Média, que se desenvolvem as filosofias da analogia e, contrapolarmente, as filosofias da univocidade. Umas e outras constituem tendências opostas da ontologia, mas interiores a esta. As filosofias da analogia, entre as quais se destaca a de Tomás de Aquino, enfraquecem o ser comum, como termo análogo, e são, por isso, menos redutoras das alteridades e menos totalizadoras. Elas são, por assim dizer, ontologias fracas, e têm, pois, vantagem para Lévinas. Em contrapartida, as filosofias da univocidade, entre as quais se destaca a de João Duns 9

«L’ontologie heideggerienne qui subordonne le rapport avec Autrui à la relation avec l’être en général – même si elle s’oppose à la passion technique, issue de l’oubli de l’être caché par l’étant – demeure dans l’obédience de l’anonyme et mène, fatalement, à une autre puissance, à la domination impérialiste, à la tyrannie.» TI, p.38; «Pour la tradition philosophique, les conflits entre le Même et l’Autre se résolvent par la théorie où l’Autre se réduit au Même ou, concrètement, par la communauté de l’Etat où sous le pouvoir anonyme, fût-il intelligible, le Moi retrouve la guerre dans l’oppression tyrannique qu’il subit de la part de la totalité.» TI, p.38. 10 «En réunissant la présence sur terre et sous le firmament du ciel, l’attente des dieux et la compagnie des mortels, dans la présence auprès des choses, qui équivaut à bâtir et à cultiver, Heidegger, comme toute l’histoire de occidentale, conçoit la relation avec autrui comme se jouant dans la destinée des peuples sédentaires, possesseurs et bâtisseurs de la terre. La possession est la forme par excellence sous laquelle l’Autre devient le Même en devenant mien.» TI, p.37. 11 Cf. Basílio Teles, “O Livro de Job (Estudo)”, in O Livro de Job, Porto, Livraria Chardron, 1912, pp.212-214. 12 «L’impossibilité pour l’être transcendant et l’être qui en est séparé, de participer au même concept, cette description négative de la transcendance est encore de Descartes. Il affirme en effet le sens equivoque dans lequel le terme d’être s’applique à Dieu et à la créature. A travers la théologie des attributs analogiques au Moyen Age, cette thèse remonte à la conception de l’unité seulement analogique de l’être chez Aristote. Elle est chez Platon, dans la transcendance du Bien par rapport à l’être. Elle aurait dû servir de fondement à une philosophie pluraliste où la pluralité de l’être ne s’évanouirait pas dans l’unité du nombre, ni ne s’intégrerait en une totalité.» TI, p.79.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. Escoto, robustecem o ser comum, como termo unívoco, e constituem, por conseguinte, ontologias fortes. Ora, são estas que mais propiciam a produção de argumentos ontológicos, entre os quais se destaca o argumento pioneiro de Anselmo. É um facto que a definição e a crítica kantianas de toda a prova ontológica, como prova a priori, geraram o lugar comum, que faz do argumento ontológico, um salto ilegítimo da ideia da perfeição divina para a existência de Deus. Mas tanto a definição kantiana de prova ontológica quanto o lugar comum da crítica, a que deu origem, descaracterizam por completo a índole do argumento em causa, como se a ideia da perfeição divina fosse uma ideia avulsa, caprichosamente criada pela razão, fora de contexto. Com efeito, o género de argumentos, que podemos designar com propriedade de «ontológicos», parte de noções de Deus em contexto, que é o contexto da ontologia. Justamente, o argumento anselmiano do Proslogion é um argumento ontológico, porquanto parte da noção de Deus, como insuperável na ordem do ser pensável (aliquid quo nihil maius cogitari possit)13, elaborada no contexto de uma noção comum de ser pensável, que se rege por princípios universalíssimos. Anselmo não desenvolveu sistematicamente a sua ontologia, mas tornou-a explícita sempre que o exigia a tematização da sua teologia ontologicamente integrada. Esta teologia, incluindo o argumento ontológico do Proslogion, cai certeiramente no alvo da crítica levinasiana da ontologia. De acordo com esta crítica, toda a teologia ontologicamente integrada é uma total redução da alteridade divina. Assim entendida, a teologia não se adivinha ser um desenvolvimento natural da metafísica levinasiana. Ainda que por razões diversas, Lévinas junta-se a Kant e a Heidegger, na recusa da ontoteologia14. Em vez de qualquer redução ontoteológica, Lévinas prefere defender o sentido positivo do ateísmo, como exercício de separação extrema do eu, e, desse modo, como propedêutica adequada à metafísica15. Na verdade, Lévinas começa Totalité et Infini, com a expressão de um desejo: o desejo metafísico. Este desejo, porém, não é uma necessidade a satisfazer, e, desse modo, a suprimir. O desejo metafísico, pelo contrário, é um desejo essencialmente insatisfazível, que nunca encurta distância entre o desejante e o desejado, mas a aumenta sempre, porque é o desejo do absolutamente outro16. O destino deste desejo

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Cf. Proslogion 2 (Schmitt: I, p.101). Kant critica a ontoteologia, identificando-a com a parte da teologia transcendental que constitui a prova a priori da existência de Deus. Heidegger rejeita a ontoteologia, que faz proceder todo o ser, de um ente supremo, e que é o desenvolvimento próprio da tradicional metafísica do ente, não da sua ontologia. Lévinas, por seu turno, não pode senão recusar a ontoteologia, como teologia ontologicamente integrada, em conformidade com a sua crítica da ontologia. 15 «L’athéisme du metaphysicien – signifie positivement que notre rapport avec le Métaphysique est un comportement éthique et non pas la théologie, non pas une thématisation, fût-elle connaissance par analogie des attributs de Dieu. […]. L’intelligence directe de Dieu est impossible à un regard sur lui dirigé, non pas parce que notre intelligence est limitée, mais parce que la relation avec l’infini, respecte la Transcendance totale de l’Autre sans en être ensorcelée et que notre possibilité de l’accueillir dans l’homme, va plus loin que la compréhension qui thématise et englobe son objet.» TI, p.76. 16 «Aucun voyage, aucun changement de climat et de décor ne sauraient satisfaire le désir qui y tend. L’Autre métaphysiquement desiré n’est pas «autre» comme le pain que mange, comme le pays que j’habite, comme le paysage que je contemple, comme, parfois, moi-même à moi-même, ce «je», cet «autre». De ces réalités, je peux «me repaître» et, dans une três large mesure, me satisfaire, comme si elles m’avaient simplement manqué. Par là même, leur altérité se résorbe dans mon identité de pensant ou de possédant. Le désir métaphysique tend vers tout autre chose, vers l’absolument autre.» TI, p.21; «Désir qu’on ne saurait satisfaire. […].Le désir métaphysique a une autre intention – il désire l’au-delà de tout ce qui peut simplement le compléter.» TI, p.22; «Il est comme la bonté – le Désiré ne le comble pas, mais le creuse. – Générosité nourrie par le Désiré et, dans ce sens, relation qui n’est pas disparition de la distance, qui n’est pas rapprochement, ou, pour serrer de plus près l’essence de la générosité et de la 14

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. não pode, pois, ser o repouso da contemplação, que seria uma forma de apropriação, logo, de redução, mas sim uma incessante intensificação. Ora, quais são, por assim dizer, os lugares desta intensificação do desejo metafísico? A experiência moral e a linguagem: ambas não seriam possíveis sem uma alteridade irredutível. A experiência moral é o lugar da descoberta de uma «assimetria metafísica» entre mim e o outro, a saber, a da incomensurabilidade entre a exigência moral que eu posso fazer a mim e aquela que eu tenho o direito de fazer a outro, de modo que o outro não é redutível a um outro eu17. A experiência moral é, assim, uma experiência da irredutibilidade de mim e do outro a uma mesma totalidade, o que faz da ética um dos caminhos privilegiados da metafísica levinasiana. Para além da experiência moral, também a linguagem é uma experiência irredutivelmente plural, insubsumível numa totalidade, como a que engloba a relação entre sujeito e objecto. A linguagem constitui uma relação, que Lévinas designa «a revelação do Outro»18. Trata-se de uma relação na qual o outro tem primazia, como fonte de conhecimento, e a palavra ganha capacidade de ensinar. Trata-se mesmo da relação que molda o conhecimento, segundo Lévinas. Deste modo, a filosofia levinasiana da linguagem e do conhecimento afasta-se da orientação quer de Platão, no Ménon, quer de Agostinho, em De Magistro, que desvalorizam a palavra do outro no conhecimento, porquanto este é, sobretudo, um processo heurístico do sujeito19. No entanto, que outro encontro eu na assimetria da experiência moral, ou na da mestria da palavra? Sempre um outro humano. Lévinas sublinha mesmo a necessidade de encontrar o outro homem, na relação metafísica, porquanto, só como homem, o outro é livre, e, com a liberdade, torna-se irredutível a sua alteridade20. Mas não é a humanidade, que garante a liberdade do outro, uma forma de totalidade, e, desde logo, de redução do outro? Será que a humanidade do outro permite o distanciamento solicitado pelo desejo metafísico, como desejo do absolutamente outro? Como pode ser absolutamente outro, invisível, rosto, estrangeiro, um outro ser humano? Não supõe sempre, a relação entre mim e outro ser humano, algum pré-conhecimento dele em mim,

bonté, rapport dont la positivité vient de l’éloignement, de la séparation, car elle se nourrit, pourrait-on dire, de sa faim.» TI, p.22. 17 «Une séparation du Moi qui n’est pas la réciproque de la transcendance de l’Autre à l’égard de moi, n’est pas une éventualité à laquelle ne pensent que les abstracteurs de quintessence. Elle s’impose à la méditation au nom d’une expérience morale concrète – ce que je me permets d’exiger de moi-même, ne se compare pas à ce que je suis en droit d’exiger d’Autrui. Cette expérience morale, si banale, indique une asymétrie métaphysique: l’impossibilité radicale de se voir du dehors et de parler dans le même sens de soi et des autres; par conséquent aussi l’impossibilité de la totalisation.» TI, p.46. 18 «Or, dans sa fonction d’expression, le langage maintient précisément l’autre à qui il s’adresse, qu’il interpelle ou invoque. Certes, le langage ne consiste pas à l’invoquer comme être représenté et pensé. Mais c’est pourquoi le langage instaure une relation irréductible à la relation sujet-objet: la révélation de l’Autre. C’est dans cette révélation que le langage, comme système de signes, peut seulement se constituer. L’Autre interpellé n’est pas un représenté, n’est pas un donné, n’est pas un particulier, par un côté déjà offert à la généralisation. Le langage, loin de supposer universalité et généralité, les rend seulement possibles. Le langage suppose des interlocuteurs, une pluralité. » TI, p.70. 19 «L’actualité unique de la parole l’arrache à la situation où elle paraît et qu’elle semble prolonger. Elle apporte ce dont la parole écrite est déjà privée: la maîtrise. La parole, mieux qu’un simple signe, est essentiellement magistrale. Elle enseigne avant tout cet enseignement même, grâce auquel elle peut seulement enseigner (et non pas, comme la maïeutique éveiller en moi) choses et idées. Les idées m’instruisent à partir du maître qui me les présente: qui les met en cause; l’objectivation et le thème, auxquels accède la connaissance objective, reposent déjà sur l’enseignement.» TI, pp.65-66. 20 «L’absolument étranger seul peut nous instruire. Et il n’y a que l’homme qui puisse m’être absolument étranger – réfractaire à toute typologie, à tout genre, à toute caractérologie, à toute classification – et, par conséquent, terme d’une «connaissance» pénétrant au-delà de l’objet. L’étrangeté d’autrui, sa liberté même! Seuls les êtres libres peuvent être étrangers les uns aux autres.» TI, p.71.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. pelo menos quanto à sua humanidade? Donde a necessidade do salto teísta, no pensamento de Lévinas? Tratar-se-á de um passo ainda filosófico? O próprio Lévinas esclarece que esse passo não é confessional21, e que o desejo metafísico do absolutamente outro não é desprovido de entendimento22. Quer isto dizer que Lévinas não esqueceu a lição dos filósofos clássicos, que se confrontaram com o paradoxo da procura, pelo qual foram conduzidos a concluir que não é possível procurar, logo também não desejar, algo absolutamente ignoto. O outro metafisicamente desejado não pode, pois, subtrair-se a todo e qualquer entendimento. Mas de que entendimento se trata? Sabemos já, por um lado, que não pode tratar-se de uma compreensão ontológica, que tipifica o pensamento de totalidade, invariavelmente redutor das alteridades. Vimos, por outro lado, que a compreensão ontológica é o contexto em que tradicionalmente se tem colocado a questão da existência de Deus, possibilitando os procedimentos de prova das filosofias teístas. Ora, se a metafísica levinasiana reivindica estar para além da ontologia, Lévinas deve também situar-se para além da questão da existência de Deus. Todavia, esta questão não pode deixar de colocar-se de algum modo a Lévinas, cujo pensamento não é injustificadamente teísta. Deve, no entanto, colocar-se de outro modo, menos como uma questão de existência do que como a questão da necessidade de uma alteridade divina para além de todas as alteridades. Esta reformulação da questão de Deus conduzirá Lévinas a recuperar os tradicionais procedimentos de prova, reformulando-os crítica e selectivamente, ou a rejeitá-los por inteiro? Tal é o que nos propomos averiguar de seguida. 2. Vias de admissão de Deus 2.1. A via da ideia de infinito Não é por acaso que Lévinas emprega o verbo entendre, para tratar do tipo de conhecimento, que o desejo metafísico necessariamente supõe. É que entendre significa concomitantemente ouvir, não ver. A visão é conotada com um conhecimento por adequação, não da ideia à coisa mas da coisa à ideia, logo, com uma forma de compreensão que comporta redução. Em contrapartida, o desejo metafísico é também caracterizado como um desejo do invisível, porquanto a invisibilidade significa a irredutível inadequação da coisa à ideia23. O desejo metafísico é, assim, o desejo de algo irredutivelmente inadequado à sua ideia em nós. A própria condição de desejo conota já essa inadequabilidade. Do que pode tratar-se? De acordo com o ensinamento que 21

«Vouloir échapper à la dissolution dans le Neutre, poser le savoir comme un accueil d’Autrui, ce n’est pas une pieuse tentative de maintenir le spiritualisme d’un Dieu personnel, mais la condition du langage sans laquelle le discours philosophique lui-même n’est qu’un acte manqué, prétexte à une psychanalyse ou à une philologie ou à une sociologie ininterrompues où l’apparence d’un discours s’évanouit dans le Tout. » TI, p.87. 22 «Désir sans satisfaction qui, précisément, entend l’éloignement, l’altérité et l’extériorité de l’Autre. Pour le Désir, cette altérité, inadéquate à l’idée, a un sens. Elle est entendue comme altérité d’Autrui et comme celle du Très-Haut. La dimension même de la hauteur (Platon, République, 529 b) est ouverte par le Désir métaphysique. Que cette hauteur ne soit plus le ciel, mais l’Invisible, est l’élévation même de la hauteur et sa noblesse.» TI, p.23. 23 «L’invisibilité n’indique pas une absence de rapport; elle implique des rapports avec ce qui n’est pas donné, dont il n’y a pas idée. La vision est une adéquation entre l’idée et la chose: comphréhension qui englobe. L’inadéquation ne désigne pas une simple négation ou une obscurité de l’idée, mais en dehors de la lumière et de la nuit, en dehors de la connaissance mesurant les êtres, la démesure du Désir. Le Désir est désir de l’absolument Autre.» TI, pp.22-23.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. Lévinas colhe de Descartes, trata-se da ideia de infinito24. O infinito é aquilo que ultrapassa infinitamente a sua ideia em nós, e que, por isso, se exprime pertinentemente através de um desejo insatisfazível, como o desejo metafísico25. Neste, o desejado não é passível de formar uma totalidade com o eu desejante, bem como, na ideia de infinito, o ideado não é passível de formar uma totalidade com a ideia, mas é-lhe irredutivelmente exterior. O desejo metafísico não é, pois, uma inclinação do eu, que não excederia a esfera do seu poder, bem como a ideia de infinito não é uma ficção totalizante do eu pensante, mas uma relação: relação com uma alteridade exterior a toda a totalidade, e, por isso, uma relação de transcendência26. Uma forma de concretização desta relação de transcendência é a religião. Em Totalité et Infini, emergem duas acepções distintas de religião. Numa primeira e principal acepção, a religião define-se como uma relação entre o Mesmo e o Outro, que não constitui uma totalidade27, mas antes uma sociedade, que não anula a distância entre o Mesmo e o Outro28. Assim, por um lado, a religião define-se por negação daquilo que se afirma na ontologia, isto é, a constituição de uma totalidade; por outro lado, a religião define-se positivamente pelo tipo de relação que constitui, isto é, uma sociedade da criatura com Deus. Nesta medida, a religião apresenta-se como uma via alternativa à ontologia, e, desse modo, convergente com a metafísica levinasiana. Poderá, então, considerar-se que esta metafísica é uma apologia da religião? Independentemente do uso apologético que possa ser feito de uma filosofia que tem apreço pela religião, nós inclinamo-nos a pensar que a acepção positiva de religião, segundo Lévinas, é moldada pela sua metafísica, ainda que esta, por seu lado, não se possa considerar imune à influência da confissão religiosa do filósofo. No entanto, Lévinas apresenta-nos uma outra acepção de religião, que diverge da sua metafísica, e que mostra, talvez, por que razão não será a religião, uma inequívoca realização da sua metafísica. Referimo-nos agora à religião, como uma relação de participação, potencialmente redutora de um dos membros da relação, e associada ao mito, que é também uma forma de totalização, que não favorece a responsabilidade do indivíduo pelo seu destino. Esta é a acepção de 24

Embora Descartes não tenha sido propriamente um pioneiro a pensar a ideia de Infinito, atendendo a antecedentes tão relevantes como o de João Duns Escoto. 25 «L’infini dans le fini, le plus dans le moins qui s’accomplit par l’idée de l’Infini, se produit comme Désir. Non pas comme un Désir qu’apaise la possession du Désirable, mais comme le Désir de l’Infini que le désirable suscite, au lieu de satisfaire.» TI, p.42; «C’est le Désir qui mesure l’infinité de l’infini, car il est mesure par impossibilité même de mesure. La démesure mesurée par le Désir est visage. Mais par là nous retrouvons aussi la distinction entre Désir et besoin. Le Désir est une aspiration que le Désirable anime; il naît à partir de son «object», il est révélation. Alors que le besoin est un vide de l’Ame, il part du sujet.» TI, p.56. 26 «La notion cartésienne de l’idée de l’Infini désigne une relation avec un être qui conserve son extériorité totale par rapport à celui qui le pense.» TI, p.42; «Or, l’idée de l’Infini, c’est la transcendance même, le débordement d’une idée adéquate. Si la totalité ne peut se constituer, c’est que l’Infini ne se laisse pas intégrer. Ce n’est pas l’insuffisance du Moi qui empêche la totalisation, mais l’Infini d’Autrui.» TI, p.78. 27 «Nous proposons d’appeler religion le lien qui s’établit entre le Même et l’Autre, sans constituer une totalité.» TI, p.30; «Nous réservons à la relation entre l’être ici-bas et l’être transcendant qui n’aboutit à aucune communauté de concept ni à aucune totalité – relation sans relation – le terme de religion.» TI, pp.78-79; «La religion, où le rapport subsiste entre le Même et l’Autre en dépit de l’impossibilité du Tout – l’idée de l’Infini – est la structure ultime.» TI, p.79. 28 «Un infini qui ne se ferme pas circulairement sur lui-même, mais qui se retire de l’étendue ontologique pour laisser une place à un être séparé, existe divinement. Il inaugure au-dessus de la totalité une société. Les rapports qui s’établissent entre l’être séparé et l’Infini, rachètent ce qu’il y avait de diminution dans la contraction créatrice de l’Infini. L’homme rachète la création. La société avec Dieu n’est pas une addition à Dieu, ni un évanouissement de l’intervalle qui sépare Dieu de la créature. Par opposition à la totalisation, nous l’avons appelée religion.» TI, p.107.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. religião, que convém habitualmente com a adesão dos crentes às religões instituídas. Ora, a esta acepção de religião, e à teologia, como vimos acima, Lévinas prefere o ateísmo, como propedêutica adequada à sua metafísica29. Se a ideia de infinito estrutura a religião, na sua acepção metafisicamente mais apurada, o ateísmo impõe-se, antes de mais, como condição da própria ideia de infinito. Vejamos como. O ateísmo significa, para Lévinas, a extrema separação do eu, desligado de toda e qualquer relação de participação e dependência, com a alteridade divina. Essa extrema separação começa por ser um momento constituinte da formação da identidade do eu, e, como tal, recebe a qualificação de ateísmo natural, sendo permutável com o egoísmo. O eu egoísta ou naturalmente ateu está disposto de igual modo para crer e para descrer30. Para além deste ateísmo natural, que é condição da identidade do eu, Lévinas considera uma outra acepção de ateísmo, que é condição da própria ideia de infinito, entendida como relação do eu com o infinito, isto é, com o absolutamente outro ou o infinitamente distante. Trata-se do ateísmo metafísico, que é, por sua vez, um momento constituinte do teísmo metafísico. Na verdade, a relação subentendida na ideia de infinito não é possível senão mediante a extrema separação do eu e a infinita distância do infinito. Por um lado, a extrema separação do eu, no ateísmo metafísico, significa ruptura com a participação religiosa, e capacidade de desobrigar-se da relação com a alteridade divina31. Por outro lado, na ideia de infinito, não se dá a essência do infinito, mas a infinita distância que separa o infinito do eu pensante. Ora, esta distância não seria infinita, mas encontraria um limite, se o eu pensante não fosse desobrigado de se referir ao infinitamente distante. A ideia levinasiana de infinito é, assim, a relação entre dois extremos absolutamente separados, de modo que a nenhum deles se impõe necessidade alguma de se referir ao outro32. Só assim, a ideia de infinito constitui, na peculiar perspectiva de Lévinas, uma relação face a face33. Mas, se nenhuma das faces necessita

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«La transcendance se distingue d’une union avec le transcendant, par participation. La relation métaphysique – l’idée de l’infini – relie au noumène qui n’est pas un numen. Ce noumène se distingue du concept de Dieu que possèdent les croyants des religions positives, mal dégagés des liens de la participation et qui s’acceptent comme plongés à leur insu, dans un mythe. L’idée de l’infini, la relation métaphysique est l’aube d’une humanité sans mythes. Mais, la foi épurée des mythes, la foi monothéiste, suppose elle-même l’athéisme métaphysique.» TI, p.75. 30 «On peut appeler athéisme cette séparation si complète que l’être séparé se maintient tout seul dans l’existence sans participer à l’Etre dont il est séparé – capable éventuellement d’y adhérer par la croyance. La rupture avec la participation est impliquée dans cette capacité. On vit en dehors de Dieu, chez soi, on est moi, égoïsme. L’âme – la dimension du psychique – accomplissement de la séparation, est naturellement athée. Par athéisme, nous comprenons ainsi une position antérieure à la négation comme à l’affirmation du divin, la rupture de la participation à partir de laquelle le moi se pose comme le même et comme moi.» TI, p.52. 31 «Se rapporter à l’absolu en athée, c’est accueillir l’absolu épuré de la violence du sacré. Dans la dimension de hauteur où se présente sa sainteté – c’est-à-dire sa séparation – l’infini ne brûle pas les yeux qui se portent vers lui. Il parle, il n’a pas le format mythique impossible à affronter et qui tiendrait le moi dans ses filets invisibles. Il n’est pas numineux: le moi qui l’aborde n’est ni anéanti à son contact, ni transporte hors de soi, mais demeure séparé et garde son quant-à-soi. Seul un être athée peut se rapporter à l’Autre et déjà s’absoudre de cette relation.» TI, p.75. 32 «Le Même et l’Autre à la fois se tiennent en rapport et s’absolvent de ce rapport, demeurant absolument séparés. L’idée de l’Infini demande cette séparation. Elle fut posée comme la structure ultime de l’être, comme la production de son infinitude même. La société l’accomplit concrètement.» TI, p.104. 33 «Mais l’indépendance athée de l’être séparé – sans se poser par opposition à l’idée de l’infini, laquelle indique une relation, rend seule possible cette relation. La séparation athée est exigée par l’idée de l’Infini qui ne suscite pas cependant dialectiquement, l’être séparé. L’idée de l’Infini – la relation entre le Même et l’Autre – n’annule pas la séparation. Celle-ci s’atteste dans la transcendance.» TI, p.54; «L’athéisme du moi marque, certes, la rupture de la participation et, par conséquent, la possibilité de se chercher une justification, c’est-à-dire une dépendance à l’égard d’une extériorité sans que cette dépendance absorbe

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. da relação, como é que esta se dá e se dá a entender? Terá de ser por iniciativa de alguma das faces. Assim se desenham duas principais linhas de entendimento da relação que acontece na ideia de infinito: uma que parte da separação extrema do eu; outra que parte da separação extrema do infinito. A linha que parte da separação extrema do eu, isto é, da sua independência ateia, e passa pelo seu auto-questionamento, é a via da consciência moral, que nós abordaremos em último lugar na ordem da nossa exposição. A linha que parte da separação extrema do infinito, isto é, da sua infinita distância, é aquela que designamos por «via da ideia de infinito», e que por ora nos ocupa. Dissemos há pouco que, na ideia de infinito, não se dá a essência do infinito. No entanto, Lévinas não prescinde de um dos atributos divinos tradicionais, o da perfeição, para falar do infinito. Rejeitada, como vimos, a via da teologia negativa, ou seja, a da pura negatividade, Lévinas retoma o «primado cartesiano da ideia de perfeição», para tratar discursivamente da alteridade divina: não são as negações de perfeição, as imperfeições, que dão acesso à ideia de perfeição, mas é esta ideia que nos permite conhecer as imperfeições34. À luz deste primado da ideia de perfeição, é possível falar de Deus a partir dele próprio. Será, então, também possível inferir da perfeição divina, que é indefectível, e que totalmente excede, segundo Lévinas, a ideia que dela temos, a necessidade da existência de Deus, como um dado inseparável da sua perfeição? Para Descartes, era possível, como atesta a sua versão do argumento ontológico. Lévinas, porém, não segue aqui o mestre, e não dá esse passo. Não há argumento ontológico com base na apropriação levinasiana do primado cartesiano da ideia de perfeição. Mas, tanto em Descartes como em Lévinas, a ideia de infinito é uma via de admissão de Deus. Descartes, aplicando às ideias a ordem de causalidade, observa que a ideia de infinito é excessiva para ser causada pela mente humana, pelo que a mesma ideia postula a necessidade de uma causa superior, proporcionada com a grandeza do ideado. Assim se desenha a via cartesiana de demonstração da existência de Deus, com base na ideia de infinito. Lévinas, porém e mais uma vez, não segue aqui o mestre. Por um lado, a via cartesiana parte da finitude do eu, isto é, da sua insuficiência para criar a ideia de infinito. Ora, uma via levinasiana, que parta do eu, não parte de um eu diminuído, mas de um eu maximamente separado ou auto-suficiente, como vimos pela consideração do ateísmo como condição da ideia de infinito. Por outro lado, esta ideia é, para Lévinas, uma relação, mas não uma relação de causalidade, na qual o parentesco entre a causa e o efeito permite transitar dedutivamente de uma para o outro e vice-versa, mas não assegura a separação extrema da alteridade divina, que se afirma na ideia de infinito. A dedução, como processo cognitivo, é ainda uma forma de redução do Outro ao Mesmo, e, portanto, em última análise, uma arbitrariedade do eu pensante. Em contrapartida, o verdadeiro conhecimento, que respeita e dá o primado à alteridade do Outro, é revelação, o modelo cognitivo, que a palavra anuncia, e que é sempre um conhecimento do outro, por iniciativa do outro35. Ora, a ideia de infinito, em Lévinas é uma revelação do infinito, por iniciativa do infinito; um movimento do pensado, não do eu pensante; um movimento do ideado, que não cabe na ideia, que a excede infinitamente. A ideia levinasiana de infinito é uma ideia revelada, e, como tal, l’être dépendant, tenu dans des filets invisibles. Dépendance, par conséquent, qui, à la fois, maintient l’indépendance. Telle est la relation du face à face.» TI, p.88. 34 «Le primat cartésien de l’idée du parfait par rapport à l’idée de l’imparfait, conserve ainsi toute valeur. L’idée du parfait et de l’infini ne se réduit pas à la négation de l’imparfait. La négativité est incapable de transcendance.» TI, p.31; «Il faut avoir l’idée de l’infini, l’idée du parfait, comme dirait Descartes, pour connaître sa propre imperfection. L’idée du parfait n’est pas idée, mais désir.» TI, p.82. 35 «La révélation, par rapport à la connaissance objectivante, constitue une véritable inversion.» TI, p.63.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. entendida partir da sua fonte exterior. O excesso da ideia de infinito é o que acusa o seu carácter revelado. A via levinasiana da ideia de infinito é, por isso, uma via, que parte, não do eu, mas do infinito, o absolutamente Outro36. Assim entendida, esta via é uma via de admissão de Deus por revelação, mas não uma via dedutiva de prova. Lévinas entendeu assim a lição de Platão, que não só pôs o Bem acima do ser como não deduziu o ser do Bem37. A ideia levinasiana de infinito revela mesmo uma situação anterior aos processos de prova e aos problemas de existência, que se colocam pertinentemente a propósito de coisas38. Esta anterioridade não é, obviamente, uma forma de apriorismo. Pelo contrário, mais facilmente a via levinasiana da ideia de infinito receberia a classificação de a posteriori do que a de a priori, desde que a noção de experiência se alargue a essa revelação primitiva da alteridade divina, como infinito, como absolutamente Outro. A fortiori, desde que a noção de experiência se estenda à moral. Com efeito, Lévinas qualifica a ideia de infinito, como uma ideia moral39. Ter a ideia de infinito é experimentar a transcendência do Outro à ideia que temos dele; é acolher a manifestação do rosto, como aquilo que infinitamente excede a imagem ou a ideia que formamos do Outro40. Mas, assim sendo, a ideia levinasiana de infinito tanto pode ser revelação do Outro divino como do Outro humano, tanto pode ser manifestação do rosto do Outro divino como do rosto do Outro humano. O que é que obriga ao passo teísta? Não descortinamos o que obrigue. A infinita distância do infinito, a sua extrema separação, é a medida da irredutibilidade entre o Eu e o Outro na relação ética. Essa irredutibilidade não postula o teísmo metafísico.

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«La conversion de l’âme à l’extériorité ou à l’absolument autre ou à l’Infini n’est pas déductible de l’identité même de cette âme, car elle n’est pas à la mesure de cette âme. L’idée de l’Infini ne part donc pas de Moi, ni d’un besoin dans le Moi mesurant exactement ses vides. En elle le mouvement part du pensé et non pas du penseur. C’est l’unique connaissance qui présente cette inversion – connaissance sans a priori. L’idée de l’Infini se révèle, au sens fort du terme.» TI, p.56. 37 «Platon ne déduit en aucune façon l’être du Bien: il pose la transcendance comme dépassant la totalité» TI, p.106. 38 «Sans rien décider pour le moment de la véritable signification de la présence en nous des idées des choses, sans adhérer à l’argumentation cartésienne qui prouve l’existence séparée de l’Infini par la finitude de l’être ayant une idée de l’infini (car il n’y a peut-être pas grand sens à prouver une existence en décrivant une situation antérieure à la preuve et aux problèmes d’existence), il importe de souligner que la transcendance de l’Infini par rapport au moi qui en est séparé et qui le pense, mesure, si l’on peut dire, son infinitude même. La distance qui sépare ideatum et idée, constitue ici le contenu de l’ideatum même. L’infini est le propre d’un être transcendant en tant que transcendant, l’infini est l’absolument autre. Le transcendant est le seul ideatum dont il ne peut y avoir qu’une idée en nous; il est infiniment éloigné de son idée – c’est-à-dire extérieur – parce qu’il est infini.» TI, pp.40-41. 39 «L’idée de totalité et l’idée de l’infini, diffèrent précisément par cela: la première est purement théorétique, l’autre est morale.» TI, p.82. 40 «Aborder Autrui dans le discours, c’est accueillir son expression où il déborde à tout instant l’idée qu’emporterait une pensée. C’est donc recevoir d’Autrui au-delà de la capacité du Moi; ce qui signifie exactement: avoir l’idée de l’infini. Mais cela signifie aussi être enseigné. Le rapport avec Autrui ou le Discours, est un rapport non-allergique, un rapport éthique, mais ce discours accueilli est un enseignement. Mais l’enseignement ne revient pas à la maïeutique. Il vient de l’extérieur et m’apporte plus que je ne contiens. Dans sa transitivité non-violente se produit l’épiphanie même du visage.» TI, p.43; «La manière dont se présente l’Autre, dépassant l’idée de l’Autre en moi, nous l’appelons, en effet, visage. Cette façon ne consiste pas à figurer comme thème sous mon regard, à s’étaler comme un ensemble de qualités formant une image. Le visage d’Autrui détruit à tout moment, et déborde l’image plastique qu’il me laisse, l’idée à ma mesure et à la mesure de son ideatum – l’idée adéquate.» TI, p.43; «Autrui dont la présence exceptionnelle s’inscrit dans l’impossibilité éthique où je suis de le tuer, indique la fin des pouvoirs. Si je ne peux plus pouvoir sur lui, c’est qu’il déborde absolument toute idée que je peux avoir de lui.» TI, p.86.

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2.2. A crítica do argumento ontológico Lévinas faz, entretanto, uma alusão crítica ao argumento ontológico, que dá conta do seu próprio entendimento desta via, e que é também uma interpretação do apriorismo kantiano. Na verdade, Lévinas toma o argumento ontológico, não directamente por um desenvolvimento próprio da ontologia, como nós acima o caracterizámos, mas sim à luz da definição de prova a priori no âmbito da filosofia crítica de Kant. A prova a priori parte de uma noção de Deus, que é uma ideia da razão pura. Esta é a razão de um sujeito transcendental, e, portanto, é uma razão universal. Ora, é sobre esta razão universal que incide a crítica levinasiana. Segundo esta crítica, a razão universal não é senão uma forma de totalização, que provê à compreensão do eu numa totalidade, mas que supõe o sacrifício da vontade, pela sua redução a uma razão impessoal, auto-sustentada, como o Deus do argumento ontológico41. A noção de Deus, que preside a este argumento, cai assim debaixo da mesma crítica da razão universal, como expressão da mesma forma de totalização, que esta razão veicula. Ao criticar, em paralelo, a razão universal e o Deus do argumento ontológico, Lévinas faz uma crítica desta via, que é simultaneamente uma crítica da razão crítica de Kant. Todavia, a crítica da crítica não conduz Lévinas a recuperar a via do argumento ontológico. A crítica levinasiana apenas coloca Kant em linha de continuidade com a tendência de redução das alteridades, que domina a tradição filosófica42. Em vez de ter efectuado uma revolução copernicana na história da teoria do conhecimento, Kant apenas se junta aos defensores da razão universal, redutora das alteridades à neutralidade, senão do ser, da ideia ou do conceito. Lévinas é que procede como que a uma inversão da teoria kantiana do conhecimento, colocando a irredutibilidade das alteridades como exigência do conhecimento, e fazendo do númeno, não o incognoscível de Kant, mas a fonte do conhecimento por revelação. O apriorismo kantiano não pode, pois, ter acolhimento algum na filosofia de Lévinas. 2.3. A via do cogito cartesiano Das duas linhas principais de entendimento da relação que se dá na ideia levinasiana de infinito, importa considerar agora aquela que parte da separação extrema do eu. Para que esta separação extrema se produza, como independência ateia, é preciso que se constitua a identidade do eu, cuja existência consiste precisamente em 41

«Pour se justifier, le moi peut, certes, s’engager dans une autre voie; chercher à se saisir dans une totalité. Telle nous semble être la justification de la liberté à laquelle aspire la philosophie qui, de Spinoza à Hegel, identifie volonté et raison, qui, contre Descartes, enlève à la vérité son caractère d’oeuvre libre, pour la situer là où l’opposition du moi et du non-moi sévanouit, au sein d’une raison impersonnelle. La liberté ne se trouve pas maintenue, mais se ramène au reflet d’un ordre universel, lequel se soutient et se justifie tout seul, comme le Dieu de l’argument ontologique. Ce privilège de l’ordre universel de se soutenir et de se justifier, qui le situe au-delà de l’oeuvre encore subjective de la volonté cartésienne, constitue la dignité divine de cet ordre. Le savoir serait la voie où la liberté dénoncerait sa propre contingence, où elle s’évanouirait dans la totalité. Cette voie dissimule en réalité l’antique triomphe du Même sur l’Autre.» TI, pp. 86-87. 42 «Pour la tradition philosophique de l’Occident, toute relation entre le Même et l’Autre, quand elle n’est plus l’affirmation de la suprématie du Même, se ramène à une relation impersonnelle dans un ordre universel. La philosophie elle-même s’identifie avec la substitution d’idées aux personnes, du thème à l’interlocuteur, de l’intériorité du rapport logique à l’extériorité de l’interpellation. Les étants se ramènent au Neutre de l’idée, de l’être, du concept.» TI, p.87.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. identificar-se43. A constituição da identidade do eu, isto é, a absolutização do Mesmo como Eu, é condição de possibilidade da alteridade radical do Outro. O Outro não é absolutamente outro senão em relação ao absolutamente Mesmo, a Mim. A constituição da identidade do Eu, com a concomitante eclosão de vida interior e de pensamento, é, nas palavras de Lévinas, a quebra do ser, que dá entrada na relação com o Outro44. Por isso, a separação do eu é também ponto de partida para vias possíveis de admissão de Deus, entre as quais e antes de mais, a do cogito cartesiano. Com efeito, entre as vias levinasianas de admissão de Deus, pode contar-se a via do cogito cartesiano, como uma via que percorre, em sentido inverso, a relação constituinte da ideia de infinito, portanto, como uma via ainda inclusa no entendimento desta ideia. Segundo Lévinas, há, na certeza do cogito cartesiano, uma paragem arbitrária, que não começa nem conclui o processo da dúvida, surgindo a meio deste processo sem aparente justificação. Por um lado, trata-se de uma evidência precedida já pelo exercício da dúvida a respeito quer dos objectos exteriores quer do próprio acto de duvidar, que obriga, no entanto, à confirmação deste acto. Por outro lado, não se trata de uma evidência última, dado que pode, por sua vez, ser posta em dúvida45. Antes de Descartes, Anselmo havia já reconhecido a dubitabilidade da existência do eu, mediante a possibilidade de pensá-lo como não existente46. Então, por que razão é que Descartes pára na afirmação de uma existência que é, reconhecidamente, dubitável? Porque, conforme explica Lévinas, Descartes tem a ideia de infinito. Sem esta ideia, ou seja, sem a relação que a constitui, o processo de dúvida seria interminável47. Descartes pára na certeza da existência do eu, porque sabe medir o caminho de retorno do processo da dúvida, que prossegue até dar com a incontornável afirmação da alteridade absoluta do infinito. É esta afirmação desta alteridade absoluta do infinito, que sustenta a certeza do cogito. Segundo as palavras de Lévinas, é do Outro, não de mim, que procede a afirmação48. Assim entendida, a via do cogito cartesiano é uma via dependente e 43

«Etre moi, c’est, par-delà toute individuation qu’on peut tenir d’un système de références, avoir l’identité comme contenu. Le moi, ce n’est pas un être qui reste toujours le même, mais l’être dont l’exister consiste à s’identifier, à retrouver son identité à travers tout ce qui lui arrive. Il est l’identité par excellence, l’oeuvre originelle de l’identification.» TI, p.25. 44 «C’est pour que l’altérité se produise dans l’être qu’il faut une «pensée» et qu’il faut un Moi. […]. La «pensée», l’«intériorité», sont la brisure même de l’être et la production (non pas le reflet) de la transcendance. Nous ne connaissons cette relation – par cela même remarquable – que dans la mesure où nous l’effectuons. L’altérité n’est possible qu’à partir de moi.» TI, p.29; «L’altérité, l’hétérogénéité radicale de l’Autre, n’est possible que si l’Autre est autre par rapport à un terme dont l’essence est de demeurer au point de départ, de servir d’entrée dans la relation, d’être le Même non pas relativement, mais absolument. Un terme ne peut demeurer absolument au point de départ de la relation que comme Moi.» TI, p.25. 45 «Il y a dans le cogito cartésien, certitude première (mais qui, pour Descartes, repose déjà sur l’existence de Dieu), un arrêt arbitraire, qui ne se justifie pas par lui-même. Le doute au sujet des objets, implique l’évidence de l’exercice même du doute. Nier cet exercice, serait encore affirmer cet exercice. En réalité, dans le cogito, le sujet pensant qui nie ses évidences, aboutit à l’évidence de cette oeuvre de négation, mais à un niveau différent de celui où il a nié. Mais, surtout, il aboutit à l’affirmation d’une évidence qui n’est point affirmation dernière ou initiale, car à son tour, elle peut être mise en doute.» TI, p.93. 46 Como atesta o texto de resposta à crítica gauniliana do Proslogion: «Scito igitur quia potes cogitare te non esse, quamdiu esse certissime scis» Quid ad haec respondeat editor ipsius libelli (Schmitt: I, p.134). 47 « C’est un mouvement de descente vers un abîme toujours plus profond et que nous avons appelé ailleurs il y a, par-delà l’affirmation et la négation.» TI, p.94. 48 «Le moi dans la négativité se manifestant par le doute, rompt la participation, mais ne trouve pas dans le cogito tout seul un arrêt. Ce n’est pas moi – c’est l’Autre, qui peut dire oui. De lui vient l’affirmation. Il est au commencement de l’expérience. Descartes cherche une certitude et s’arrête dès le premier changement de niveau dans cette descente vertigineuse. C’est qu’en fait il possède l’idée de l’infini, peut mesurer à l’avance le retour de l’affirmation derrière la négation. Mais posséder l’idée de l’infini, c’est déjà avoir accueilli Autrui.» TI, p.94.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. complementar da via da ideia de infinito. Por consequência, como via de admissão de Deus, aquela fica sujeita às mesmas restrições críticas, que anotámos acerca desta. Por um lado, a via do cogito cartesiano é reconduzida à revelação, que constitui a ideia de infinito, portanto, a uma forma de conhecimento, que parte da exterioridade do Outro para dar conta da sua alteridade, mas que, por isso mesmo, se opõe ao processo construtivo da demonstração, que caracteriza tradicionalmente as vias de prova. Por outro lado, na medida em que é reconduzida à ideia de infinito, cuja plena significação ética não obriga a dar o passo teísta, também a via do cogito cartesiano, em Lévinas, não obriga a dar este passo. 2.4. A via da consciência moral Das vias que partem da separação do eu, a via mais peculiarmente levinasiana não é, porém, a do cogito cartesiano, mas é a da consciência moral. Esta é a via do auto-questionamento radical do eu. Este auto-questionamento não é expressão da liberdade do eu, é questionamento da própria liberdade. Com efeito, esta não é, para Lévinas, uma instância eticamente positiva, caso em que seria responsabilidade, nem sequer uma matéria passível de determinação ética, caso em que seria puro poder discricionário. A liberdade, na sua acepção levinasiana, é o poder de negar a alteridade do Outro, reduzindo-a sob uma totalidade; é o poder de totalização ou a totalidade em potência. A liberdade é potencialmente totalitária. Daí a sua negatividade ética. O melhor da liberdade é poder auto-questionar-se, mas este poder, por sua vez, não procede dela. A liberdade não se auto-questiona por si mesma, mas pelo poder da crítica, que provém da consciência moral. A crítica, pela qual a liberdade se auto-questiona, e sem a qual não há saber, é o processo de remontar à origem e aquém da origem49. Pela crítica, a liberdade precede-se até à sua origem e aquém da sua origem, descobrindo que não é origem de si mesma, mas que é criada. O auto-questionamento da liberdade conduz, assim, à descoberta da sua condição de criatura. Esta define-se, aliás, segundo Lévinas, como o composto da liberdade e da crítica: a criatura é a liberdade consciente da alteridade que precede a sua origem50. Esta definição levinasiana de criatura é, evidentemente, antropocêntrica. A ideia de criação respeita muito mais à liberdade humana do que ao mundo. Podemos mesmo dizer que o descentramento do mundo é uma característica da personalização levinasiana da ideia de criação, senão mesmo da própria metafísica de Lévinas. Retomando a dualidade do Mesmo e do Outro, estruturante da metafísica levinasiana, recorde-se que só os seres livres podem relacionar-se entre si como o Mesmo e o Outro, na sua recíproca irredutibilidade. Esta restrição acusa uma orientação marcadamente personalista. O mundo nunca pode ser o Mesmo ou o Outro, não tem a densidade de um ser livre, nem oferece a resistência de uma verdadeira alteridade. O mundo é o lugar de 49

«La théorie où surgit la vérité, est l’attitude d’un être qui se méfie de soi. Le savoir ne devient savoir d’un fait que si, en même temps, il est critique, s’il se met en question, remonte au-delà de son origine (mouvement contre nature, qui consiste à quérir plus haut que son origine et qui atteste ou décrit une liberté créée).» TI, p.81; «Le savoir comme critique, comme remontée en deçà de la liberté – ne peut surgir que dans un être qui a une origine en deçà de son origine – qui est créé.» TI, p.83. 50 «L’unité de la liberté spontanée oeuvrant droit devant elle et de la critique où la liberté est capable de se mettre en cause et, ainsi de se précéder – s’appelle créature. La merveille de la création ne consiste pas seulement à être création ex nihilo, mais à aboutir à un être capable de recevoir une révélation, d’apprendre qu’il est créé et à se mettre en question. Le miracle de la création consiste à créer un être moral. Et cela suppose précisément, l’athéisme, mais à la fois, par-delà l’athéisme, la honte pour l’arbitraire de la liberté qui le constitue.» TI, p.88.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. habitação do Mesmo, como Eu, e, nessa medida, é por este apropriável51. Através desta apropriação, o mundo torna-se um meio do exercício da liberdade do eu, um meio de totalização, que concorre para a redução da alteridade do Outro. Daí certa negatividade do mundo, enquanto é instrumentalizado pela liberdade do eu. O mundo não obtém a sua positividade, segundo Lévinas, senão através da linguagem, como um dado do discurso, convertível em tema e objecto de ciência. Mas, então, não poderá também o saber crítico do mundo reconduzi-lo à sua origem e à alteridade que a precede? Caso o concedesse, Lévinas viria reforçar a tradição das vias a posteriori de demonstração da existência de Deus, como causa criadora? Todavia, não é esta, a sua opção. Mais uma vez, Lévinas recusa a via dedutiva e a causalidade, que se adequam ao tratamento de objectos dados, mas não servem para pensar a alteridade do Outro, que precede o mundo52. É certo que o mundo, como um dado do discurso, reenvia para um dador, que é um interlocutor do discurso, mas, antes de mais, um interlocutor humano. O passo teísta não é imediato, nem porventura é para ser dado a partir do mundo, segundo Lévinas. Aliás, a própria consciência de criatura, a liberdade conjunta com a crítica, não constitui por si só uma via de admissão de Deus, como criador. A criatura é já a consciência de uma alteridade precedente, mas não é ainda o ápice crítico da consciência moral. Esse ápice crítico atinge-se ao nível da consciência de indignidade moral, de injustiça, de culpa, ou de vergonha. É esta consciência de vergonha que põe sumamente em causa a liberdade do eu. Tal consciência não procede, porém, de queda alguma, divina ou humana. Lévinas anuncia, desde logo, a orientação anti-gnóstica da sua filosofia, ao distinguir o seu desejo metafísico de qualquer carência ou necessidade, que aspirasse à restituição de uma unidade originária, que se teria quebrado de forma filosoficamente inexplicável, ainda que consignada nos mitos de queda divina53. O desejo metafísico, que supõe o 51

«La manière du Moi contre l’«autre» du monde, consiste à séjourner, à s’identifier en y existant chez soi.» TI, p.26; «Le lieu, milieu, offre des moyens. Tout est ici, tout m’appartient; tout à l’avance est pris avec la prise originelle du lieu, tout est com-pris. La possibilité de posséder, c’est-à-dire de suspendre l’altérité même de ce qui n’est autre que de prime abord et autre par rapport à moi – est la manière du Même.» TI, p.27. 52 «Recevoir le donné – c’est déjà le recevoir comme enseigné – comme expression d’Autrui. Non pas qu’il faille supposer mythiquement un dieu qui se signale par son monde: le monde devient notre thème – et par là notre objet – comme proposé à nous, il vient d’un enseignement originel au sein duquel le travail scientifique lui-même s’installe et qu’il requiert. Le monde est offert dans le langage d’autrui, des propositions l’apportent. Autrui est principe du phénomène. Le phénomène ne se déduit pas de lui; on ne le retrouve pas en remontant du signe que serait la chose, vers l’interlocuteur donnant ce signe, dans un mouvement analogue à la marche qui conduirait de l’apparence vers les choses en soi. Car la déduction est une manière de penser qui s’applique à des objets déjà donnés. L’interlocuteur ne saurait être déduit, car la relation entre lui et moi, est présupposée par toute preuve. Elle est présupposée par tout symbolisme, non seulement parce qu’il faut s’entendre sur ce symbolisme, en établir les conventions, qui ne peuvent s’instituer arbitrairement, d’après Platon dans le Cratyle. Cette relation est déjà nécessaire pour qu’une donnée apparaisse comme signe, comme signe signalant un parleur quel que soit le signifié de ce signe et fût-il à jamais indéchiffrable. Et il faut que le donné fonctionne comme signe pour qu’il soit seulement donné. Celui qui se signale par un signe comme signifiant ce signe, n’est pas un signifié du signe, mais délivre le signe et le donne. La donnée renvoie au donneur, mais ce renvoi n’est pas la causalité comme il n’est pas le rapport du signe à sa signification.» TI, p.93. 53 «Mais aborder l’être au niveau de la séparation, n’est-ce pas l’aborder dans sa déchéance? Les positions que l’on vient de résumer contredisent l’antique privilège de l’unité qui s’affirme de Parménide à Spinoza et Hegel. La séparation et l’intériorité seraient incompréhensibles et irrationnelles. La connaissance métaphysique reliant le Même à l’Autre, refléterait alors cette déchéance. La métaphysique s’efforcerait de supprimer la séparation, d’unir. L’être métaphysique devrait absorber l’être métaphysicien. La séparation de fait où la métaphysique commence, résulterait d’une illusion ou d’une faute. Etape que parcourt l’être séparé sur le chemin de retour vers sa source métaphysique, moment d’une histoire qui

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. auto-questionamento da liberdade, e, portanto, a consciência de vergonha, não é, pois, um efeito diferido de uma mítica queda divina. Mas a consciência de vergonha não se explica também negativamente por uma queda humana. A relativização humana da ideia mítica de queda também não podia seduzir o pensamento ético de Lévinas, pois tornaria o eu, refém de uma decisão originária, sobre a qual não teve palavra a dizer. A consciência moral, como consciência de vergonha, é o acolhimento de outrem, isto é, de outro alguém, não o conhecimento a priori ou a posteriori de alguma coisa54. Daí a sua máxima positividade ética e metafísica. A consciência de vergonha é aquela que acompanha a liberdade, quando esta descobre a sua injustificada arbitrariedade, a sua potencial violência e injustiça. Mas liberdade não pode fazer esta incómoda descoberta sem a resistência de outrem ao seu poder. A resistência de outrem é que provoca vergonha, isto é, a auto-crítica da liberdade ou a consciência moral. Por isso, o poder da crítica não procede da própria liberdade do eu, nem serve para justificá-la por si mesma. O poder da crítica advém à liberdade da resistência revelada por outrem. Esta revelação é o que constitui o acolhimento de outrem, que define, segundo Lévinas, a consciência moral. Desta recebe a liberdade a sua justificação, na medida em que é pela consciência moral que a liberdade se torna justa55. Concomitantemente, a mesma consciência moral revela a existência justificada do infinito, como facto primeiro e sinónimo da sua perfeição. Sendo acolhimento de outrem, a consciência moral não pode deixar de ser acolhimento do infinito, entendido como o Outro enquanto Outro, irredutível à ideia em mim de um outro eu. O infinito é, então, o Outro, cuja existência é primordialmente conforme com a justiça, como condição primeira da emergência da consciência moral, e, portanto, da auto-crítica da liberdade56. A perfeição do infinito é a sua existência justificada, isto é, a sua existência em conformidade com a justiça. Esta antiga virtude cardeal é o critério de perfeição e o atributo divino dominante na metafísica levinasiana. A afirmação da justiça da s’achèvera par l’union, la métaphysique serait une Odyssée et son inquiétude, la nostalgie. Mais la philosophie de l’unité n’a jamais su dire d’où venait cette illusion et cette chute accidentelles, inconcevables dans l’Infini, l’Absolu et le Parfait. – Concevoir la séparation comme déchéance ou privation ou rupture provisoire de la totalité, c’est ne pas connaître d’autre séparation que celle dont témoigne le besoin.» TI, pp.104-105. 54 «Accueil d’autrui – le terme exprime une simultanéité d’activité et de passivité – qui place la relation avec l’autre en dehors des dichotomies valables pour les choses: de l’a priori et de l’a posteriori, de l’activité et de la passivité.» TI, p.89. 55 «Cette critique de soi peut se comprendre, soit comme une découverte de sa faiblesse, soit comme une découverte de son indignité: c’est-à-dire, soit comme une conscience de l’échec, soit comme une conscience de la culpabilité. Dans le dernier cas, justifier la liberté, ce n’est pas la prouver, mais la rendre juste.» TI, p.81; «C’est l’accueil d’Autrui, le commencement de la conscience morale, qui met en question ma liberté. Cette façon de se mesurer à la perfection de l’infini, n’est donc pas une considération théorétique. Elle s’accomplit comme honte où la liberté se découvre meurtrière dans son exercice même.» TI, p.82; «La conscience morale accueille autrui. C’est la révélation d’une résistance à mes pouvoirs, qui ne les met pas, comme force plus grande, en échec, mais qui met en question le droit naïf de mes pouvoirs, ma glorieuse spontanéité de vivant. La morale commence lorsque la liberté, au lieu de se justifier par elle-même, se sent arbitraire et violente.» TI, p.83; «L’accueil d’autrui est ipso facto la conscience de mon injustice – la honte que la liberté éprouve pour elle-même.» TI, p.85; «Si nous appelons conscience morale une situation où ma liberté est mise en question, l’association ou l’accueil d’Autrui, est la conscience morale.» TI, p.103. 56 «La honte n’a pas la structure de la conscience et de la clarté, mais est orientée à l’envers. Son sujet m’est extérieur. Le discours et le Désir où autrui se présente comme interlocuteur, comme celui sur qui je ne peux pas pouvoir, que je ne peux pas tuer, conditionnent cette honte où, en tant que moi, je ne suis pas innocente spontanéité, mais usurpateur et meurtrier. Par contre l’infini, l’Autre en tant Autre, n’est pas adéquat à une idée théorique d’un autre moi-même, déjà pour cette simple raison qu’il provoque ma honte et qu’il se présente, comme me dominant. Son existence justifiée est le fait premier, le synonyme de sa perfection même.» TI, pp.82-83.

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Cristina BECKERT (Coord.), Lévinas entre nós, Lisboa, CFUL, 2006, pp.167-187. existência do infinito, em função da sua perfeição, e como condição da consciência moral, parece-nos ser a via mais genuinamente levinasiana de admissão de Deus. Trata-se de uma via de justificação, isto é, de aferição pela justiça, não de dedução, sempre circunscrita à solidão da liberdade do eu57. O teísmo de Lévinas não pode ser deduzido, mas pode ser justificado, isto é, eticamente fundado. De novo, porém, até que ponto também esta via dá verdadeiramente o passo teísta? O infinito, cuja existência é um imperativo de justiça, é o Outro enquanto Outro, que infinitamente excede a ideia de um outro eu e provê à justificação da minha liberdade, terá de ser Deus? Não poderá ser o outro humano? Na verdade, basta a humanidade, para assegurar liberdade, e, desde logo, para conferir a outrem, a infinita distância que o torna irredutível a mim, e inadequado à ideia de um outro eu. Julgamos, por isso, que a via mais levinasiana de todas as vias analisadas não obriga a dar o passo teísta. Esta via estabelece a necessidade da existência do Outro em função da justificação da liberdade do Eu, através da consciência moral, mas aquilo que caracteriza a irredutível alteridade do Outro, nomeadamente, a sua inadequação à ideia de um outro eu, tanto se aplica à alteridade divina quanto à humana. Por conseguinte, julgamos que esta via, a via mais levinasiana de admissão de Deus, tal como as demais, não é uma via necessitante. Todas as vias adoptadas por Lévinas são, aliás, vias não necessitantes de admissão de Deus, como o Outro. Este carácter não necessitante parece-nos mesmo ser a marca singularmente levinasiana de todas as vias contempladas pela análise, como que preservando uma reserva de liberdade no Eu para a admissão do Outro, como Deus.

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«La certitude repose, en effet, sur ma liberté et, dans ce sens est solitaire. Que ce soit par des concepts a priori qui me permettent d’assumer le donné, que ce soit par adhésion de la volonté (comme chez Descartes), c’est ma liberté finalement seule, qui prend la responsabilité du vrai.» TI, p.103.

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