«Liberalidade do príncipe, bem comum e circulação do dinheiro n’ ‘O Escritório Avarento\' de D. Francisco Manuel de Melo», Elvas/Caia. Revista Internacional de Cultura e Ciência, vol. 2, Edições Colibri | Câmara Municipal de Elvas, 2004, 109-130.

July 31, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Literatura Portuguesa, Literatura española del Siglo de Oro, Barroco
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LIBERALIDADE DO PRÍNCIPE, BEM COMUM E CIRCULAÇÃO DO DINHEIRO n’O Escritório Avarento de D. Francisco Manuel de Melo PEDRO SERRA

No «Prólogo» d’O Escritório Avarento, apólogo dialogal de D. Francisco Manuel de Melo1, diz-se da «eloquência» do dinheiro. Não sem alguma surpresa e advertência se considera o facto de as moedas falarem: «Porque nada lhe faltasse ao dinheiro, já lhe não faltava mais que falar»2. Não deve estranhar-nos a estranheza manifestada, pois na verdade ela reverbera um quadro epistémico em que a loquacidade é medida da própria moeda, e não o metal que a particulariza. O apólogo vai jogar-se num cenário de conhecimento a que Foucault se referiu

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O conjunto dos quatro apólogos de D. Francisco Manuel de Melo é contituído por: Os Relógios Falantes, A Visita das Fontes, O Escritório Avarento e O Hospital das Letras. Ao longo deste ensaio as referências a estes diálogos melianos remetem para a minha edição, reunida em dois volumes: Apólogos Dialogais, vol. I, Os Relógios Falantes, A Visita das Fontes, Braga-Coimbra, Angelus Novus, 1998; vol. II, O Escritório Avarento e O Hospital das Letras, Braga–Coimbra, Angelus Novus, 1999. A redacção dos apólogos foi, ao que tudo indica, um processo iniciado à volta de 1650 e concluído antes do fim da década. O autógrafo de A Visita das Fontes data de 1657. Sabemos, ainda, que em 1655 já tinha escrito Os Relógios Falantes, e que a data da dedicatória de O Hospital das Letras é de 1657. Cfr. Jean Colmès, Le dialogue ‘Hospital das Letras’ de D. Francisco Manuel de Melo, texte établi d’après l’édition princeps et les manuscrits, variantes et notes de -, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian-Centro Cultural Português, 1970, p. XII-XVI. O lugar onde terão sido escritos tão-pouco é claro. D. Francisco vai para o exílio no Brasil em 1655 pelo que se supõe que trabalhou neles dentro e fora de Portugal. A editio princeps é póstuma: Apologos dialogaes, Lisboa, Na Officina de Mathias Pereyra da Sylva e Joam Antunes Pedrozo, 1721. O ms. L (ms. 8577 da BNL), a partir do qual fixei O Escritório Avarento, conclui o «Prólogo» deste apólogo indicando a seguinte data e lugar de redacção: «Baía, em 13 de Novembro de 1655». O Escritório, p. 3.

como «análise das riquezas»3. Assim, a riqueza, no ideário meliano, comuta a matéria amoedada pelo seu valor de circulação. Tão rico é o metal cunhado como o é o zimbo para os Cafres, o libongo para os Etíopes ou o algodão para os Maranhões: «porque não consiste o valor do dinheiro em que ele seja de qualidade realmente intrínseca, que essa também não alcança a prata e o ouro, pois por bem fino da estimação é bem avaliado»4. O valor do dinheiro provém do facto de significar – voltando ao início, de falar – isto é, de ser signo. Um valor relacional, ou seja, que depende da «estimação» e da «avaliação». Coevos do autor dos Apólogos Dialogais como Scipion de Grammont5, orbitam nestas coordenadas mentais. São interlocutores no colóquio um português, um dobrão castelhano, um cruzado moderno6 e um vintém.7 Ao longo dele, não

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Las palabras y las cosas, Madrid, Siglo XXI, 1997, pp. 164 e ss. O Escritório, p. 35. Cfr. Foucault, op. cit., p. 173. Esclarece Bluteau sobre esta moeda: «Moeda de Portugal. O cruzado antigo era de ouro. El-Rey D. Affonso, quando aceytou a Cruzada, para hir com outros Principes da Europa à conquista da terra Santa, mandou lavrar de ouro subido de toda a perfeyção a moeda dos cruzados, a qual mandou subir em peso, & não em preço dous grãos sobre todos os Ducados da Christandade, para assi poderem correr em todas as partes por onde elle fosse. Destes cruzados há ainda hoje muytos, & são buscados para dourar com elles pela sua muyta fineza. No seu livro das Noticias de Portugal, pag. 182. diz Manoel Severim, que alguns lhe forão à mão, tem de huma parte huma Cruz, como a de S. Jorge, com letras, que dizem, Adjutorium nostrum in nomine Domini, & da outra o escudo Real coroado, metido ainda na Cruz de Avîs, com estas letras, Cruzatus Alphonsi Quinti R. De sorte que teve esta moeda o nome de cruzado, por ser feyta para a empreza da Cruzada, que o dito Rey aceytara. Hoje o cruzado de Portugal he moeda de prata, que val quatrocentos, & outenta reis» (vol. 3, s.u. Cruzado). Informa o Bluteau sobre esta moeda: «Moeda de prata, no Reyno de Portugal. Segundo D. Rodrigo da Cunha, 2. part. da Histor. dos Bispos de Lisboa, el-Rey D. Afonso V. lavrou os primeiros. Tem de hũa parte hum grande Gothico, que he a primeira letra do seu nome, & em cima hũa Coroa, & à roda, Adjutorium nostrum in nomine Domini. Da outra parte o Escudo Real com letras, que dizem assim mesmo el-Rey Dom João II. Delle diz Manoel Severim de Faria, pag. 184. Fez tambem

havendo nisto paradoxo em relação ao já dito, pesa fantasmaticamente a noção de valor de algo como uma «qualidade realmente intrínseca». Outro sentido não tem o facto de as moedas exibirem origens. Os primeiros compassos da conversa prendem-se precisamente com a questão da nação do dinheiro. Neste sentido, o perfil mais definido é o do português, que tem linhagem nobre, tem nascimento, como tal manifestado no próprio nome. De resto, a origem aristocrática devolvenos, ainda, uma dialéctica de afirmação identitária anti-castelhanizante. O sentido «histórico» de um português bem nascido passa também por aqui. D. João II amoedara um português que valesse sete castelhanos, tendo-o para tanto cunhado em ouro de lei de 24 quilates, e num peso que septuplica os «25 reales» do valor facial de cada moeda castelhana. Batidos com ouro africano da Mina, o P. Raphael Bluteau colige um lugar da Exortação Militar de Fr. Timotheo de Ciabra, quem «diz com galantaria que os Soldados Portuguezes saõ como as moedas de ouro, cujo valor intrinseco de huma só, prepondèra a muitas de prata, cobre, & outros metaes, & que não sem muita providencia, & estimação de seu valor mandárão os Reys de Portugal lavrar moedas de ouro, & às demais subido preço puzerão por nome Portuguezes, para mostrar a ventajem, que o valor destes faz a todas as naçoens»8. Como podemos observar, verifica-se um deslocamento metonímico recíproco entre o valor militar (e o pendor «nacionalista» dele) e o valor da moeda. Esta questão é importante, pois vincula a noção de valor aqui implicada a um quadro mental, digamos, pré-moderno – ou prémercantil, como veremos. O valor do nascimento é vinculado ao valor material da moeda, que é de ouro, graduado ainda por um peso maior ou menor. Neste sentido, o que o português evoca – e a evocação dá-nos o

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meyos reaes de prata de ley de onze dinheyros, a que depois chamàrão Vintens, por valerem vinte reis; & fez meyos vintens, &c.» (vol. 10, s.u. Vintem). Vocabulario Portuguez & Latino, Lisboa Occidental, Na Officina de Pascoal da Sylva, MDCCXXI. Vol. 3, s.u. Portuguez.

lugar anacrónico que é o seu no tempo histórico da conversa – é um mundo áureo perdido: o português é apenas resto desse pretérito em que a moeda é um valor em si e não um signo que representa riquezas outras. Esse português de antanho é um valor apessoado, por isso se surpreende, circulando num tempo que já não é o seu, nos seguintes termos: «vi[-me] com a vida em balança e o corpo nas balanças de um ourives, a quem se demandava o valor da minha pessoa»9. Como tal pessoa, este velho português bem-nascido é um máximo de particularidade. Toda a litania que vai entoar ao longo da conversa se prende com o pasmo de se ver, ele próprio, ele que era tão próprio, trocado como mercadoria. Valor prémoderno, o anacronismo a que antes me referia reside aqui: o tempo em que circula faz dele capital. Mais adiante retomo estas considerações. A numismática de nação portuguesa é, entretanto, completada com o cruzado e o vintém. Ambas supõem, todavia, o debilitamento do ethos aristocrático do português. O cruzado é cavaleiro «africano», «nobre assaz, posto que de linhagem moderna»10. O vintém, por seu turno, sendo de inferior valor «substancial», que está em proporção inversa ao curso e ao valor da sua efectiva circualação, é dado como um velho criado do cruzado. A ficção das origens mantém ambos, por conseguinte, na órbita do vínculo enfitêutico pré-moderno. Refiro, entretanto, nestas reflexões iniciais, que o dobrão castelhano modula a consideração das origens de diferente modo. Resumidamente, oscila numa aporética: é dito simultaneamente castelhano e sem nação específica. O círculo identitário que representa é supra-nacional, uma vez que se actualiza num território de circulação para além de fronteiras nacionais. Representa não uma nação mas um império, estou em crer: «tão conhecido e nomeado de todas as nações entre quem vivo como natural de todas, donde procede meu enleio, sem

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O Escritório, p. 10. O Escritório, p. 6.

que ao certo possa afirmar qual é minha nação própria»11. Sendo de um todo que reagrupa todas as nações, des-territorializa o nacional, apenas para o re-territorializar numa outra geografia política: a do império. De resto, é possível configurar um mapa mundi a partir das moedas mencionadas no apólogo. Portugueses, cruzados, vinténs (portugueses) e dobrões (castelhanos), mas também ostendes (da Flandres), inclusas (da Holanda), brisaques (do Tirol), zantes (de Veneza), pistolas (de França), jacobos (da Inglaterra), maticais (barberiscos), zequins (da Turquia), venezianos (do Levante), S. Tomés e S. Vicentes (portugueses), e os já referidos zimbo (dos Cafres), libongo (da Etiópia) e algodão (do Maranhão).12 Trata-se, digamos, de uma geografia do dinheiro eurocêntrica, que nos devolve também a extensão transcontinental dos seus domínios coloniais. Este é, noutro sentido, o mundo todo, i.e., o mundo onde o dinheiro é o céu e a terra13, de que apenas se exclui o fundo dos mares: o português, pelos caprichos da fortuna, chega a conhecer esse pouco crível «lugar donde do dinheiro não se fazia caso. Mas não sei que seja outro senão este»14. O possível universo terrenal é exclusiva jurisdição do dinheiro. É sobre este absoluto que nos fala o algo complexo tropo numismático desenvolvido ao longo do apólogo. As diferentes espécies amoedadas têm a vantagem de sensibilizar tanto a História como, ainda, os seus fins últimos. São testemunhas e padecentes de um tempo esquecido da escatologia – de uma espacio-temporalidade que diría, em certa medida, pícara – mas também transporte da assinatura divina e das bondades que ela promete. Vejamos, pois. O modo picaresco não está ausente dos Apólogos Dialogais de D. Francisco Manuel de Melo, sobretudo, de forma mais destacada, nos

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Ibidem, p. 6. Cfr. O Escritório, pp. 13, 17 e 35. Cfr. ibidem, p. 32. Ibidem, p. 14.

dois primeiros – Os Relógios Falantes e O Escritório Avarento –, ainda que, como argumentam Ulla Trullemans e João Palma-Ferreira, estejamos diante de um pícaro «frio e elegante»15. Sugiro, ainda assim, dizer, num primeiro momento, de cães cervantinos e moedas melianas. Para além de diferenças substanciais, um traço comum une diálogos imaginários como O Escritório Avarento e El coloquio de perros: a ficção da retrospecção autobiográfica como modo de expor os males da sociedade. Simultaneamente, os relatos autobiográficos funcionam em ambos os textos como macro-narrativas que contêm vários exempla. De cada possuidor da moeda ou de cada dono do cão se extrai uma lição moral. A rememoração das deambulações passadas quer-se, por conseguinte, como história de proveito e exemplo16. O relato autobiográfico do português, uma das moedas que intervêm n’O Escritório, resume-se em poucas palavras. É ele o primeiro

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Cfr. João Palma-Ferreira, Do Pícaro na Literatura Portuguesa, Lisboa, ICLP, 1981, p. 34. Resume este último: «Tem motivos de sobeja razão Ulla Trullemans para afirmar que nos apólogos de D. Francisco Manuel de Melo o pícaro, a que aliás o autor alude directamente, se converte numa forma de conceito frio e elegante, muitas vezes alegórico (o dinheiro como amo do amo mesmo). As aventuras das moedas dão-nos, ainda que subtilmente, o percurso convencional da picaria, mormente no que recordam do Lazarillo e acabam num tom de moralismo irónico e céptico, profundamente timbrado pela época». Cfr. Ulla Trullemans, 1968. D. Francisco pôde ler em El coloquio de perros a sistematização dos diferentes tipos de «conto» que Cervantes pôs na boca de Cipión: «Y quiérote advertir de una cosa, de la cual verás la experiencia cuando te cuente los sucesos de mi vida; y es que los cuentos unos encierran y tienen la gracia en ellos mismos; otros, en el modo de contarlos, quiero decir que algunos hay que aunque se cuenten sin prámbulos y ornamentos de palabras, dan contento; otros hay que es menester vestirlos de palabras, y con demostraciones del rostro y de las manos y con mudar la voz se hacen algo de nonada, y de flojos y desmayados se vuelven agudos y gustosos; y no se te olvide este advertimiento, para aprovecharte dél en lo que te queda por decir» (op. cit., p. 304). A referência aos aspectos prosódicos é extremamente importante. Não há suficiente informação sobre a expressividade da voz das moedas. Contudo, podemos encontrar esporádicas referências ao estado emocional dos interlocutores. É o caso do final do relato feito pelo vintém que sugere o seguinte comentário por parte do português: «Furioso estais, Deus nos livre!» (p. 28).

a falar, em virtude da maior idade, factor que lhe confere autoridade sobre os demais. Começa por servir um nobre (um «grande»), passando depois às mãos de um seu filho «moço». O jovem depressa o quer trocar por «miúdos», a fim de satisfazer os seus apetites. Finalmente, acaba nas mãos de uma dama. Depois cairá em poder de um «pretendente» que o utiliza, juntamente com outros três ou quatro como ele, para presentear um «ministraz». D. Francisco aproveita, então, para denunciar esta prática de roubo à luz do dia. O português, em poder do ministro, ganha valor. Não vale apenas pelo que vale em ouro, mas sim pelo que permite especular: com ele, o amo não tem de pagar dívidas de jogo nem tem de dar esmola. Todas estas peripécias próprias de um universo pícar nos mostram como o vínculo nostalgicamente evocado pelo português se perdeu. O peculiar dele não residia apenas no valor metálico – o peso do ouro – mas também na exemplaridade «moral» dessa marca de preciosidade, isto é, no facto de ela cifrar uma Origem linhagística que participa de uma ordo social baseada numa noção de bem comum que naturaliza os desiguais (de classe) num corpo político estável. O universo pícaro rememorado é aquele, precisamente, em que a subordinação ao bem comum é comutada por um social que soma apetites desenfreados auto-complacentes. Quer dizer, num mundo que perdeu o metron que controla a «estimação» e a «avaliação». O destino determinará que uma criada da casa do «ministraz», cortejada por um «rescão músico», dê um novo rumo à vida do português. Inadvertidamente, cai em poder do cantor de «xácaras e seguidilhas». Perdido ao jogo, a seguinte etapa da vida da moeda é no bolso de um militar, um alferes. As peripécias de tempo de paz cedem lugar, momentaneamente, às de tempo de guerra. Num enfrentamento com a frota holandesa no Canal da Mancha, o alferes morre afogado. A moeda, que deste modo conhece os «abismos das águas», é recuperada do fundo do mar por um italiano, que leva uma vida de «vinho, jogo e tabaco». Roubado por um «vagamundo», suposto «pirigrino», cairá em mãos de uns «bandoleiros» salteadores de caminhos. A seguinte etapa na vida da moeda leva a moeda a cair em posse de um «dizimeiro» que

deseja que a filha case com um nobre. Por um novo golpe de fortuna – o «dizimeiro» é preso por «contas ruins» – chega ao Paço Real de uma terra de que esqueceu o nome. Surpreende-se, então, o português de ser tão cobiçado e tão bem tratado pelos cortesãos. Necessitando a coroa real de ser consertada, pensam em fundi-lo. É, finalmente, encastoado por um ourives na coroa do monarca desse reino inominado. Um novo imponderado da fortuna faz com que caia «pela coroa abaxo», sendo discretamente recolhido por um oficial do rei. Vendido em leilão aquando da morte do novo dono, é comprado por um clérigo a quem os médicos tinham receitado «água cozida com ouro» e que, por ser avaro, prefere morrer a «gastar» a moeda. O relato autobiográfico conclui, pois, com uma lição: a de que a avarícia é «vício oposto a todo o bem fazer»17. O trajecto existencial do português é determinado pelos caprichos da Fortuna, de «vidro» como ensina a lição estóica18. A moeda revela-se completamente impotente na condução do seu destino. Algo que a afasta de Berganza. De facto, o canino exibe um voluntarismo que não é atributo das moedas19. Decide mudar de amo, por exemplo: depois de viver um tempo com pastores, diz a Cipión que «determiné dejar aquel oficio, aunque parecía tan bueno, y escoger otro donde por hacerle

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O Escritório, p. 20. A máxima fortuna vitrea est, que está presente nos diferentes tratados de educação do príncipe – por exemplo nas Empresas de Saavedra Fajardo –, faz de Lípsio um «mestre» de D. Francisco, e irmana o autor português a Quevedo. Este rasgo distintivo dos dois textos é concomitante do diferente estatuto, enquanto narradores, de moedas e cães. Neste sentido, como ensina João Palma-Ferreira, esta diferença entre moedas e cães é também a diferença no modo pícaro dos dois textos. Referindo-se a Os Relógios Falantes e a O Escritório Avarento, afirma: «Mas o que relógios e moedas contam tem de ser, necessariamente, as histórias alheias e não as dos narradores. Aí se nota, mais do que a presença do pícaro, preocupação de observação social» (op. cit., p. 33).

bien, ya que no fuese remunerado, no fuese castigado. Volvíme a Sevilla, y entré a servir a un mercader muy rico»20. Uma outra diferença substancial distingue os relatos de Berganza e do português. Referimo-nos aos universos sociológicos em que se movem. O da moeda oscila entre a Corte – o espaço do nobre, do ministraz, etc. –, o Paço Real de que «esqueceu» o nome, e o mundo mais propriamente pícaro do «pirigrino» e dos «bandoleiros». Ora, o périplo de Berganza não alcança círculos tão próximos e íntimos do poder. Os sucessivos donos repartem-se por diferentes tipos sócio-profissionais da fauna urbana e do universo campesino. Evidentemente, há uma razão de peso para que isto seja assim. O português é uma moeda de valor que, idealmente, circula no espaço mais restrito da vida cortesã. Neste sentido, o que sobressai do relato é a mobilidade vertical da moeda, explicável por um golpe da Fortuna, que a lança nos antípodas morais do seu espaço. A moeda de ouro português de lei não é factor de distinção exclusivo de um topos social. Digamos que o ser manuseado por «vagamundos» e «bandoleiros» lhe retira prestígio. Mais próximo de Berganza temos o périplo do vintém, a outra das personae amoedadas do apólogo cuja intervenção na ficção dialógica se concretiza pela rememoração autobiográfica. O universo social que, nesta ocasião, será retratado, como seria de esperar, diz respeito a classes baixas. O primeiro possuidor desta moeda é um cego, que ostensivamente a exibe. Nas mãos de uma beata torna-se um «vintém dos milagres», um sortilégio com que pretende ganhar dinheiro. Assim, chega às mãos da filha de um mercador rico que utiliza a moeda, guiada pela «madre», em todo o tipo de superstições. Depois de descoberta por esse mercador, a moeda vai conhecer nova sorte. Chega às mãos de uma «regateira» que a devolve ao cego ao pagar uma dívida contraída.

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Novelas ejemplares, ed. cit., p. 311.

Segue-se um período de grande rodopio por feiras, tendas, tabernas, boticas, açougues, pastelarias, confeitarias, etc. Chega, mesmo, às mãos de um «fidalgo honrado, que ficava para se enforcar por um vintém que lhe faltava»21, uma «dona velha de casa», falidos, mesquinhos, hipócritas, culminando o vaivém no bolso do próprio rei: «Os Almazéns d'el-Rei, sua Casa dos Contos, sua Alfândega, Sete Casas e a Casa da Índia, sei melhor que as minhas mãos. Tudo hei andado e cruzado, de tudo vi meus dois dedos; e até do bolsinho real (se apertam comigo) me atrevo a dar rezão!»22. A rememoração do vintém é exemplar em dois sentidos. Por um lado, a lição de desengano que a vida lhe proporciona passa pela constatação de que a avareza, a ambição, a cobiça são as formas viciosas que toma o excessivo apetite humano pelo dinheiro. Por outro lado, o périplo existencial mostra-lhe como escasseia a virtude cristã da caridade em Portugal. Globalmente considerado, o quadro que pinta do reino está marcado pelo negócio desonesto, pela compra e venda de testemunhas, pelo roubo generalizado, tema que, como bem sabemos, serviu de argumento à coeva Arte de Furtar.23 A apetência auto-complacente tanto é negativa no que se refere ao dinheiro como no que se refere à conversação. Assim, na primeira parte do apólogo, a conversação das moedas joga-se entre o ócio e a sua negação – o neg-ócio –, isto é, entre o ter tempo para conversar e a

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O Escritório, p. 25. Ibidem, p. 26. Cfr. Anónimo, Arte de Furtar, Lisboa, Ed. Estampa, 1970. Dedicada a D. João IV, para a ‘conservação do Império’, esta obra não pretende, claro está, ensinar a roubar, antes a reconhecer os ladrões: «A maior dificuldade está no conhecimento deles, porque, como o ofício é infame e reprovado por Deus e pela natureza, não querem ser tidos por tais, e, por isso, andam todos disfarçados; mas será fácil dar-lhes alcance, se o dermos a suas máscaras, que são as artes de que usam. Destas faço aqui praça e lhas descubro todas, mostrando seus enganos como em espelho e minhas verdades como em teatro, para fazer de tudo um mostrador certíssimo das horas, momentos e pontos em que a gazua destes piratas faz seu ofício» (pp. 14-15).

urgência de tirar proveito do dom ou prodígio24. Otium e negotium são os modos em tensão de um mundo – a corte como mundo – onde impera a pressão do tempo-que-já-é-dinheiro – mas que escasseia – e que é incapaz de resolver essa in-tensidade. Ou que o faz pela via de uma interrogação moral – o que é o dinheiro e para que serve – trespassada pela litania de um mundo perdido – digamos em que o dinossauro português era rei –, a visão céptica de uma realidade presente pulverizada «em vinténs», e um futuro apologético do dinheiro que se formaliza no e pelo cruzado moderno, que mais não é do que a transposição prospectiva, eminentemente conservadora, do mundo perdido do português a cuja linhagem pertence. Na segunda parte do apólogo aduzem-se argumentos pró e contra o dinheiro, facto que o afasta do diálogo de El coloquio de los perros. A ficção conversacional cervantina centra-se exclusivamente na exemplaridade da vida de Berganza. É a partir deste relato que se vão enunciando diferentes lições morais. Não temos, pois, como no texto de D. Francisco Manuel de Melo, as extensas intervenções expositivo-argumentativas que protagonizarão o dobrão castelhano e o

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Ainda que obrigue a um citação extensa, tenham-se presentes as seguintes reflexões de Olga Zorzi Pugliese sobre o tempo do diálogo: «L'organizzazione spaziale della scena nei testi letterari ha necessariamente un correlativo temporale, a volte chiaramenten individuato a volte indeterminato. Certe discussioni nei dialoghi dell'epoca si riallacciano rigorosamente a un preciso momento storico ed altre, al contrario, hanno luogo quasi fuori del tempo. Talvolta il contesto ricreato, simile a quello del luogo appartato rispetto allo spazio frequentato normalmente dai protagonisti, è di un tempo festivo di otium che, como c'insegna la antropologia, indica l'uscita dalla duratan normale e una sospensione temporale, o un rivivere un tempo mitico che viene riattualizzato dalla ricorrenza di una festa» (op. cit., pp. 18-19). Consideramos extremamente seminal este modo de perspectivar a temporalidade dialógica. A conversação entre as moedas – como de resto entre os relógios ou as fontes – ocorre num tempo fora do tempo. Contudo, esta como que suspensão da temporalidade pela a-temporalidade festiva é marcada pela urgência da utilidade. Há uma ociosidade negativa – que a preceptística de índole moralizante ataca de forma veemente. O ócio da conversação é marcado positivamente quando orientado para um fim moral.

cruzado moderno, as duas últimas moedas que dão réplica no apólogo. A disputatio, como já dissemos, é sugerida pelo português, que vacila entre os aspectos positivos e negativos do dinheiro sem se inclinar, a priori, por nenhum deles. Cabe ao dobrão castelhano pronunciar-se em primeiro lugar. Toda a sua argumentação vai no sentido de considerar que o mundo seria muito melhor sem a idolatria que o dinheiro estimula. Os termos que utiliza são essencialmente morais: o vil metal é «ũa sombra escurecedora das virtudes»25, dirá. O dinheiro, nas mãos do homem, criou um universo alternativo que é, na verdade, o mundo al revés terrenal. Assim, a única saída para o «dinheiro cristão» é o lançar-se ao mar26. Esta é, todavia, uma conclusão «em falso», digamos. Na lógica providencialista da História, a invenção divina do dinheiro não legitima a opção suicidária. Daí que a disputatio não acabe por enfrentar posições irredutíveis. E isto porque o dinheiro é epifania da Providência e do Poder e da polis nele sustentada, marco mental sem um exterior que permitisse cooptação. Na sublunaridade terrena o dinheiro é tudo; o fundo do mar onde o dinheiro é objecto de descaso não é lugar habitável. Vejamos, pois, como a réplica do cruzado nos diz deste valor apriorístico do dinheiro, o que convenhamos configura também o modo dialéctico do apólogo. A intervenção do cruzado é, globalmente considerada, mais extensa e complexa que a do dobrão. Começa por recordar a criação divina de todos os metais preciosos para «cómodo» do homem; contudo, este, mais não fez do que perverter o seu uso «lícito». Assim, a prata e o ouro, criados para «esplendor, conveniência e adorno do mundo», vêem comutada a sua função pela «falsidade», «guarda», «risco», «dispêndio» e «cautela». Chega, então, ao fundo da sua argumentação: «Pelo que

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O Escritório, p. 32. O vintém discorda, com veemência, desta opinião.

haveis de saber, amigos, que, deste mau uso em fora, eu sinto em mi que nós samos a melhor invenção do mundo»27. É verdade que, como reconhe a própria moeda, o «cidadão», o «senhor», o «mercador» ou o «príncipe», a troco de dinheiro e para assegurar todas as comodidades de que disfrutam, necessitam de homens de inferior condição – que a Natureza e Deus, ainda assim, fez iguais –, homens que lutem com a morte ou sofram impertinências. Ora, o âmago da questão reside precisamente aqui. Sem o dinheiro toda a ordem da sociedade humana cairia no caos e na confusão: «Como se conservaria a nobreza dos nobres, a justiça dos justos, a fortaleza dos fortes, a humildade dos humildes?». Mais adiante dirá, ainda: «Os tratos e comércios da gente, que são nervos da República, que fim haviam de ter? Oh, que depressa afroxariam em seu movimento»28. A universalidade da necessidade do dinheiro é, então, constatada recorrendo a um apontamento antropológico que já referi: Cafres, Etíopes ou Maranhões fazem uso de diferentes materiais com valor de moeda de troca. Mas o verdadeiramente importante é que este apontamento mas não faz do que corroborar o providencialismo numismático. Note-se que D. Francisco parte da premissa de que a comunidade de bens, uma comunidade de bens primordial, se tornou impossível a partir do momento em que o número de almas aumentou, aumentando também as «tão diversas vontades e apetites»29. No mundo «terrenal» pós-lapsário a demografia impõe uma economia, i.e., um controle (uma jurisprudência) à reprodução exponencial da «apetência» anímica. Ora, na mundividência meliana o maior número de «míseros» que de «prósperos» é intrinsecamente benéfico na medida em que a falta de dinheiro torna os indivíduos «comedidos». Em nenhum momento, pois,

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O Escritório, p. 34. Ibidem, p. 35. Ibidem.

questiona o autor da Carta de Guia de Casados – nem se esperaria que o fizesse – a ordo social assente na desigualdade. Esta, na verdade, depende da harmonia e consonância entre os que têm mais e os que têm menos e na ratio anteriormente referida. Essa racionalidade é a naturalização da ordem social, toda ela doméstica. É, então, que recorre à «nora» como imagem da sociedade humana perfeita: «Mal se tirará água de um profundo poço se os alcatruzes da nora se não comunicarem uns aos outros. Porque, se o cheio não lançar água no vazio e aquele, depois de cheio, a não despejar no outro, que está vazio ainda, como ele há pouco que estava, a água jamais poderá chegar arriba»30. Os males do mundo provêm, pois, de um mau funcionamento da «nora». Note-se como D. Francisco aproveita para fazer um trocadilho de recorte misógamo e misógino, que nos devolve a continuidade que existe entre o patriarcalismo do âmbito doméstico e do âmbito político: «Porém nestas malditas noras (ou sogras...) que hoje se costumam no mundo, cada hora se nos amuam e anteparam os alcatruzes, sem que um queira ser bom a outro, querendo antes esperdiçar o seu cabedal que valer com ele a seu vezinho. Aquele que tem água lá a bebe, lá a come consigo mesmo, e o coitado que a não tem, nem quem lha alcance, dá quarenta mil voltas e no cabo fica vazio»31. Conclui, então, afirmando a necessidade do dinheiro, que deve ser usado como meio e não como fim. O problema, pois, não reside no dinheiro em si mesmo mas no uso que dele se faz. Com música de esferas, argumenta que o dinheiro deve circular segundo uma lógica de caridade, e não ser entesourado como o é pelo avarento em cujo escritório se encontram as quatro moedas que participam no diálogo. Façamos, neste momento, um balanço do já dito, ainda que desenvolvendo algumas reflexões esboçadas. Na primeira parte do

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Ibidem, p. 36. Ibidem.

apólogo O Escritório Avarento a rememoração funciona como narrativização da experiência. Isto é, trata-se do vivido como estória de que extrai um valor moral. É este o sentido que têm em D. Francisco Manuel de Melo a experiência. Tal como a História é moralizante pela exemplaridade das biografias dos heróis, anti-heróis e suas façanhas, também o vivido ganha um sentido moral quando tornado discurso. O modo pedagógico de O Escritório Avarento assenta, pois, no auto-retrato biográfico. Mas não apenas. A mise-en-scène, na segunda parte da conversa, da disputa sobre o valor do dinheiro propõe um diferente pacto didáctico. Vejamos. A disponiblidade para o outro fundamenta o dialogismo32. O diálogo encena, pois, uma tensão entre a ipseidade e a alteridade e, deste modo, no arranque da modernidade e do pensamento crítico, o género ensina a pensar33. Se pensarmos na segunda parte de O Escritório Avarento, por seu turno, em que, como vimos, se opõem duas diferentes teses sobre o valor, função e natureza do dinheiro, constataremos que não temos o carácter formativo dos diálogos platónico-socráticos. Também a O Hospital das Letras falta claramente o carácter formativo in fieri desse modelo34, que podemos vislumbrar, contudo, em A Visita das Fontes. O quarto apólogo atenua francamente o cariz dialético e

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Cfr. Olga Zorzi Pugliese, op. cit., p. 9. Recordando Habermas, Gadamer, Bachtin, Kushner, entre outros, a autora encontra um denominador comum de conceitos como o de «intersubjectividade» ou «dialogismo»: «Il comune denominatore che emerge dalle varie asserzioni di questi autori si può enucleare in due nozioni bailari: (1) l'insistenza su un'apertura mentale, su una plurivocità che respinga tutti i dogmi monologici, e (2) il rilievo dato all'elemento umano e all'interazione fra le persone nello sviluppo delle idee» (ibidem). Cfr. Victoria Kahn, Rhetoric, Prudence and Skepticism in Renaissance, Londres, Cornell University Press, 1985, p. 11. Cfr. Olga Zorzi Pugliese, op. cit., p. 12.

maêutico que está na base da relação fonte velha/fonte nova e que, em última instância, fundamenta o terceiro colóquio35. O modelo, no caso de O Escritório, é, melhor, o proposto pelo diálogo ciceroniano em que as ideias em confronto, já formadas anteriormente à conversação, conduzem mais do que a uma transformação, a uma solução de compromisso36. As intervenções, longas refira-se, dos contendores – isto é, o dobrão castelhano e o cruzado –, são peças que visam, mais do que o confronto de ideias, produzir um efeito persuasivo. Significativamente, o português anticipa o final da contenda ao dar a palavra ao cruzado, depois da intervenção do dobrão, dizendo: «Mas ouviremos primeiro o nosso Cruzado, que eu

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A conflitualidade presente no diálogo pode conduzir a duas situações finais diferentes. Recorda Olga Zorzi Pugliese: «La forma chiusa del finale è quella in cui si arriva a una sintesi, mentre nella forma veramente e non solo apparentemente aperta, si evitano accordi artificiali per permettere che prevalga la plurivocità dei diversi punti di vista» (op. cit., p. 23). Uma classificação dos diálogos em função do nível de conflitualidade que apresentam foi levada a cabo por Michel Le Guern. Distingue, então, diálogos didácticos, polémicos e dialécticos. Cfr. «Sur le genre du dialogue», in AA. VV., L'Automne de la Renaissance (1580-1630), Paris, Vrin, pp. 141-148. A componente narrativa do diálogo ciceroniano, por outro lado, está ausente dos apólogos de D. Francisco. Sobre o paradigma o autor de De Oratore instaura no Renascimento, recorda Olga Zorzi Pugliese: «Più narrativo, adoperante una cornice, e sorretto dalle tecniche della persuasione retorica con disquisizioni o esposizioni pronunciate dagli interlocutori oratoriamente ed in sequenza, il dialogo ciceroniano, massimo fra tutti il De Oratore, mette a confronto dei pensieri già interamente formati in precedenza. Il dibattito fra essi tende a risolversi in un accordo eclettico dei punti di vista divergenti.» (op. cit., p. 13). Seja como for, podemos ainda constatar a convergência dos Apólogos com os diálogos lucianescos, irmãos no sentido satírico, na comicidade e na crítica dos mais variados aspectos da vida social. Resume Asunción Rallo Gruss, de forma exemplar, as características distintivas do diálogo lucianesco: «A pesar de que en Platón existen ejemplos, fue Luciano el gran artífice del diálogo cómico con su findalidad de sátira social y de costumbres, con la utilización de personajes que funcionan, al igual que en la comedia, como arquétipos psicológicos. Suele definirse como diálogo lucianesco aquel que combinando otros sistemas para penetrar la realidad (visión de ultratumba, subida a los cielos, etc.) se encamina, en una perspectiva reformista, a satirizar, a criticar la sociedad y sus prejuicios morales, políticos, incluso lilterarios» (La escritura dialéctica, p. 11).

fio dele lhe não faltem boas rezões para provar [i.e., por à prova] o pensamento que seguis»37. O lapsus linguae denuncia-nos que a sorte estava já lançada a priori. Como dizia anteriormente, a disputatio entre o dobrão castelhano e o cruzado moderno não enfrente irredutíveis. O saldo de tudo isto diz-se assim: n’O Escritório Avarento, o colóquio sobre o dinheiro faz-se tendo como cenário de fundo o binómio vício/virtude actualizado no par avareza/liberalidade. A beneficência e a liberalidade são virtudes do Príncipe - e, por extensão, de toda a comunidade de corte - que se actualizam no texto. Umas virtudes que são determinadas pela lógica doméstica que deve caracterizar o governo da res publica. O rei é um pater familias, como recorda António Manuel Hespanha: «[O] futuro da ‘casa’ vivia da capacidade do pai para gerir a ‘amizade’ e a ‘reputação’. O mesmo se passava com o rei, ainda em mais alto grau. A liberalidade era, para ele, um dever central, do mesmo modo que a avareza era o seu principal defeito»38. A pun misógama e misógina para que antes chamei a atenção tem sentido num universo de valores patriarcais. O dinheiro providencialmente fundador e garante do bem comum é um dinheiro em constante mobilidade, como o ininterrupto fluxo líquido conjurado pela imagem da «nora»: cinética apenas aparente de uma ordem social imobilizada nas suas assimetrias morais e sociais. Gostaría, neste sentido, de aproximar a imago da «nora» que temos n’O Escritório Avarento ao emblema Fluunt & Refluunt que podemos encontrar nos livros de emblemática de seiscentos, por exemplo no de Juan de Solórzano Pereira (1651), obra que seria glosada, ainda no século seguinte, por Francisco António de Novaes Campos no Príncipe Perfeito que dedica ao príncipe D. João em 179039. Convoco, neste

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O Escritório, p. 33. Cfr. «A teoria financeira», p. 211. Príncipe Perfeito. Emblemas de D. João de Solórzano, edição fac-similada do manuscrito da Biblioteca do Rio de Janeiro oferecido ao Príncipe D. João em 1790,

particular, a produtividade da emblemática fora do seu âmbito próprio, questão tratada por Fernando R. de la Flor no seu Emblemas. Lecturas de la imagen simbólica.40 O emblema Fluunt & Refluunt é precisamente imagem da liberalidade que se quer no Príncipe, um fluxo e um refluxo inesgotáveis. Em clave mitológica, a generosidade de Neptuno é dita assim pelo soneto de Novaes Campos que acompanha o emblema: «Toda a agoa que do Már liberalmente, / Extrahe de si Neptuno generozo, / Em tributo recîproco gostôzo, / Recebela em si torna em grossa enchente». O mar é ainda recurso inesgotável, permite uma «perenne extração sem conta, ingente». Nos tercetos, então, compara-se a generosidade do deus marinho à que deve exercer o Rei, estimulando-lhe, deste modo, a beneficência: «A maõ do Rey Augusto, simelhante, / Se faça á de Neptuno, repartindo, / Hum Már de beneficios abundante; // Que quanto for com huma diffundindo, / Logo em doce tributo em breve instante, / Com outra, o tornará hir atrahindo»41. A eficácia pedagógica da emblemática na cultura barroca, como modo de socialização de conhecimentos, permite-nos colocar a hipótese de D. Francisco querer para a sua «nora» uma funcionalidade idêntica. Da água como imago dos negócios dissera já o autor d’A Visita das Fontes. Vejam-se os seguintes lugares respigados do acervo epistolográfico que nos deixou: «De ordinário sucede aos negócios o que às águas, que tomam o sabor dos canos por onde passam»42. Todavia, se

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prefácio, introdução, comentário e índices por Maria Helena de Teves Costa Ureña Prieto, Lisboa, ICLP, 1985. Maria Helena de Teves Costa Ureña Prieto refere outros livros de emblemas em que a liberalidade é dada como luz ou água inesgotáveis. Entre eles, refere a Empresa LVIII de Saavedra Fajardo (cfr. ibidem, p. 79). Cfr., sobretudo, o capítulo intitulado «La emblemática más allá de los libros de emblemas», Emblemas. Lecturas de la imagen simbólica, Madrid, Alianza Editorial, 1995, pp. 73-78. Cfr. Príncipe Perfeito. Emblemas de D. João de Solórzano, ed. cit., Emblema LXXXVI. Carta nº 294, datada de 24 de Dezembro de 1649, in D. Francisco Manuel de Melo, Cartas Familiares, pref. e notas de Maria da Conceição Morais Sarmento, Lisboa,

o emblema Fluunt & Refluunt diz globalmente de benefícios, a imago meliana especifica o fluxo: a circulação do dinheiro. O modelo, pensamos, tem simultaneamente um cariz conservador – o emblema, como o aforismo, serve a antropologia moral barroca da prudência43 – pela via da representação de um futuro pensável à luz do organon herdado do passado e que faz também a inteligência do presente. Um organon que permite enquadrar as próprias contradições do presente porque, precisamente, o tempo histórico de D. Francisco é o de uma prática financeira pautada pelo entesouramento44, certamente também favorecida por uma corte cujos cabedais são canalizados para a guerra. Podemos inclusivamente especular sobre se na própria Carta de Guia de Casados, de 1650-51, não teremos já um apelo à patrimonialização – i.e., à acumulação de capital – como modo de assegurar a continuidade da família45.

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IN-CM, 1981, p. 301. Numa outra missiva, supomos que ao mesmo destinatário – um ministro não identificado –, de 14 de Dezembro, utilizara já a imagem: os negócios «sem dúvida (com a água do chafariz), tomam o sabor dos canos de enxofre por onde correm» (ibidem, p. 297). Cfr. Asunción Rallo Gruss, La prosa didáctica, p. 12. Cfr. Antonio Domínguez Ortiz, Esplendor y decadencia. De Felipe III a Carlos II, vol. VII da Historia de España de Historia 16, nº extraordinário, Outubro de 1981, pp. 62-72. António José Saraiva e Óscar Lopes fazem a seguinte observação seminal a propósito da «teoria» económica contida em O Escritório Avarento: «A seu ver [i.e., de D. Francisco], os bens cairiam do alto da escala social, em vez de subirem até lá do trabalho da massa humana. Mas a teoria feudal das benfeitorias, que o infante D. Pedro expusera, aburguesa-se: a cascata das benfeitorias transforma-se na cascata do dinheiro fecundante. Já não se fala (como o fazia D. Pedro) na origem divina das riquezas. Para D. Francisco Manuel de Melo, o único mal consistiria na avareza, que interrompe essa queda fecundante, transformando o dinheiro de meio legítimo em fim vicioso». Na base da reflexão dos autores da História da Literatura Portuguesa está o alargamento do significado do dinheiro: «Repare-se que o dinheiro está aqui justificado, não apenas como meio de troca e padrão de valor, mas também na sua função de capital, isto é, naquela sua acumulação que permite comprar também o trabalho alheio; e D. Francisco mostra-se optimista quanto ao equilíbrio necessário entre a oferta e a procura, extensivo a esta mercadoria especial que é a força de

Ora, a futuração do social em Melo – é assim que entendo a apologia do dinheiro, feita em nome de uma sociedade que deve estruturar-se em torno da virtude, e que deve a essa estrutura a possibilidade de futuro, i.e., que deve a essa estrutura a sua perpetuação é um moralismo que, contudo, não deixa de ser permeável a um certo apelo pragmático em matéria de condução da res publica, apelo que o é pela rentabilidade que supõe para a manutenção do statu quo. Vejamos. António Manuel Hespanha, num ensaio intitulado «A teoria financeira do Antigo Regime»46, remete para um texto de Baltasar de Faria Severim, de princípios do século XVII, onde se considera francamente obsoleta a tratadística coeva sobre «governo político». A crítica dirige-se, fundamentalmente, ao facto de esses trabalhos proporem «hũas theoricas tão especulativas e espirituaes, que vem a ser de mui pouco momento, e utilidade para a Republica, pela difficuldade que tem de se porem em pratica»47. Aponta-se, pois, o serem muito «especulativos» e «difusos» quanto a soluções pragmáticas. Espelhos de príncipes e afins dedicam-se, sobretudo, a enumerar as já muito enumeradas virtudes do príncipe: «Porque ordinariamente fasem hũa descripção das grandes virtudes e partes que hade ter o Principe, o Governador: como hade ser justo, temente a Deus, mizericordioso, liberal, afavel, prudente, e valeroso»48.

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trabalho, desde que a circulação monetária não pare». A questão é vista ainda, pelos dois ilustres historiadores, desde o prisma pessoal de D. Francisco: «Esta simbiose da exaltação aristocrática do gasto ou liberalidade com a apologia do capital mostra como D. Francisco Manuel, fidalgo e negociante de açúcar ao escrever disto, se adaptava bem às novas condições sociais» (História da Literatura Portuguesa, 11ª edição, Porto, Porto Editora, 1979, p. 487-488). António José Saraiva e Óscar Lopes referem-se ao facto de, durante a seu exílio brasileiro – de que pouco se sabe – ter entrado no negócio açucareiro. Cfr. Jean Colomès, «Introduction», p. XVI. In José Mattoso, História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, p. 203 e segs. Citado por António Manuel Hespanha, «A teoria financeira», p. 203. Idem, ibidem.

Ora, no ideário de D. Francisco reverberam alguns dos termos esta crítica. Encontramo-los, por exemplo, na seguinte advertência de Lípsio, personagem d’O Hospital das Letras: «O mundo já hoje não recebe algum benefício por um livro mais que nele haja, nem perda de que o não haja. É necessário que advirtam os que hoje escrevem livros e, com mais especialidade, os que compõem para os Reis, se lhes oferecem matérias graves, que nenhum merece algũa aceitação ou reverência, por só lhe dizer a um Príncipe que castigue, que dê prémio, que ame a clemência, a liberalidade, a fortaleza, que seja igual, humano, prudente, forte, sábio, inteiro, calado, advertido, diligente, horrível aos maus, agradável aos bons, pai da pátria e dos vassalos, amor e medo, que, com mais ou menos palavras, menos ou mais lugares das letras humanas, tais falsos, tais verdadeiros, vem a montar todos os livros de política do mundo»49. Por outras palavras, quando, em O Hospital das Letras, se trata dos livros «políticos» veicula-se a ideia de se ter chegado a um cúmulo de erudição que se esgota em si mesma e que, consequentemente, deveria ser compensada com uma literatura mais pragmática, i.e., próxima do ofício concreto de governar50. O excesso bibliográfico mais não significa que se considera existir um cânone – apriorístico – cuja repetição, por isso que se trata de um imutável ontológico, é em grande medida excusada. Contudo, a reverberação da via progressista – como a reclamada por Baltasar de Faria Severim – é débil. A falência do modelo moral é vista apenas como produto de um excesso gargantuesco de livros. E, se a

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O Hospital, p. 127. No fundo, temos aqui um exemplo mais da tendência para o realismo atinge a prosa «ensaística» do século XVII globalmente considerada. Como condensa Asunción Rallo Gruss: «Es lógico entonces que la prosa ensayística del siglo XVII se configure por una obsesión hacia la realidad inmediata en la doble perspectiva de historia y de política; mientras, las cuestiones ofrecidas antes se analizan hasta la saciedad en reiteración erudita, entendiendo sabiduría como acumulación detallista y exacta de datos en su inmensa mayoría librescos» (La prosa didáctica, p. 14).

litania em que assenta O Escritório Avarento é o corolário de que algo não está bem nas finanças públicas, a verdadeira «culpa» deve ser procurada no afastamento global da sociedade em relação às próprias filosofia e moralidade em que se fazem assentar as condutas governativas. Sublinha-se, assim, uma filosofia política subordinada à moralidade num texto que, ainda que crítico, se perfila como mais um daqueles «constrangimentos» ao efectivo e eficiente exercício governativo de que nos fala António Manuel Hespanha51. Não se pense, pois, que o autor das Segundas Três Musas apela para um pragmatismo em moldes de uma «razão de estado». D. Francisco, pelo contrário, revela-se pouco amável para com o moderno Maquiavel52, inserindo-se assim numa larga lista de anti-maquiavelistas, entre os que precisamente há que incluir Líspio, Bocalino ou Quevedo. Maquiavel legitimara a avareza, contrariando a preceptística «clássica» que fazia da «liberalidade» e da «magnificência» as virtudes básicas dos monarcas53. Ora, também a política que subtraímos dos Apólogos Dialogais é uma política sobredeterminada pela moral. O anti-maquiavelismo patente em D. Francisco Manuel de Melo concretiza-se, precisamente – como se compreende e espera de um nobre católico –, na dependência da

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«A teoria financeira», pp. 205-206. Leia-se o seguinte passo: «'Constrangimentos morais e religiosos' que excluíam todas as medidas financeiras que atentassem contra a deontologia do governo ou contra a liberdade da Igreja. 'Constrangimentos intelectuais', correspondentes à evidência de certos modelos de gestão do património, como o modelo da 'casa', que se impunha desde Xenofonte e Aristóteles, à administração pública e privada europeia. 'Constrangimentos políticos', que sobrepunham, por exemplo, a reputação ou a política dinástica do príncipe à sua solvabilidade. A que se acrescentavam, naturalmente, 'constrangimentos técnicos e institucionais'». Embora não tenha utilizado o termo «razão de estado», Maquiavel separa a praxis política da moral cristã. Cfr. El Príncipe, Barcelona, Burguera, 1978, p. 153. A «liberalidade» desempenhou uma função determinante no complexo de virtudes que configuram a imagem do monarca perfeito no ancien régime. Cfr. António Manuel Hespanha, «A teoria financeira», p. 209.

«razão política» em relação à «razão moral». O Príncipe, ao contrário da cisão levada a cabo pelo autor de El Príncipe, deve governar segundo ditames morais. Em Melo, pelo contrário, os fins ainda não justificam os meios54. O seu tacitismo, integrado na ampla adesão católica contrarreformista ao pensamento do historiador romano, é a doutrina alternativa às ideias de Maquiavel. A preeminência da moral é visível, também, na Carta de Guia de Casados. Quando lemos este texto não lemos apenas um «tratado» – o termo é do impressor da princeps – de filosofia económica. A óikos, na verdade, é um círculo de uma espiral em que temos também duas outras instâncias: o indivíduo socialmente considerado, i.e. subordinado à jurisprudência do corpo social, e a pólis ou Reino. Assim, a filosofia moral é um modo de conhecimento «universal de todas as coisas» que se reparte pela ética, a económica e a política. Explicita-o de forma lapidar António Craesbeek, editor da obra: «Também esta [filosofia] Moral se divide em três partes que chamam Ética, Económica e Política. A Ética cuida dos costumes do homem. A Economia tem por fim o regimento das casas e famílias. A Política entende sobre o governo das cidades, reinos e impérios. Mas de tal maneira que a Económica requer Política, e

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Cfr. Enrique Tierno Galván, «Introducción», in Baltasar Gracián, El Político, ed. de E. Correa Calderón, Salamanca, Anaya, 1961, pp. 5-14. Tierno Galván recorda que a expressão «razão de estado» não aparece nas obras de Maquiavel, ainda que a ideia nelas esteja contida. Reeditando e glosando os emblemas do seiscentista Juan de Solórzano, Francisco António de Novaes Campos, em 1790, oferecia ao príncepe D. João um speculum onde a conduta do príncipe se subordina à moral. Resume, neste sentido, Maria Helena de Teves Costa Ureña Prieto: «A concepção do poder como um fim em si, sem limitações morais, rompe o equilíbrio entre o religioso e o político, entre a ética e a ciência do Estado. O escritor católico não pode admitir este maquiavelismo da 'razão de estado'. A razão de estado cristã supõe que a separação entre a religião e o império é prejudicial ao Estado, isto é, que o príncipe deve proceder sempre de acordo com a fé e com a moral, o que não significa que o príncipe católico deva usurpar o poder sob o pretexto de piedade e de religião» («Fontes da filosofia política da obra: os livros de regimentos de príncipes», in Francisco António de Novaes Campos, op. cit., p. 91).

a Política Económica, porque o reino é casa grande e a casa reino pequeno. E a Ética necessita da Política e da Económica, porque o homem é um mundo inteiro»55. D. Francisco propõe, com a Carta, um «modelo organizativo» da casa que é, como já dissemos, a base do modelo organizativo da sociedade de corte56. Quando D. Francisco classifica os apólogos, como o faz em O Hospital das Letras, como sendo «diálogos morais», este segundo termo deve ser entendido tendo em conta que podemos traçar tangentes e secantes semânticas com esse modo de conhecimento «geral» que é a filosofia moral. Os apólogos são «morais» na medida em que tocam questões de ética (costumes sociais) e de política (governo da pólis). A económica – i.e. de governo doméstico – encontramo-la menos explicitada nos Apólogos Dialogais, precisamente porque a ela reservou D. Francisco a Carta de Guia de Casados. Estas premissas orientam-nos a interpretação do escritório de um «avarento» como cenário da conversa no segundo apólogo. Do meu ponto de vista, trata-se de um recurso que denuncia uma visão da história coeva. Por outras palavras, o escritório avarento é imago da realidade histórica repassada pelo olho moral meliano. Ora, o conceito da política como moral que a «nora» diz, ganha fôlego conservador, i.e., de reacção a uma res publica que se afasta reconhecidamente da jurisprudência do bem comum. A circularidade e o movimento incessante da nora são uma boa imago da harmonia social que assenta na hierarquia e no bem comum57.

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D. Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados, edição de Pedro Serra, Braga-Coimbra, Angelus Novus, 1996, p. 85. Cfr. António Manuel Hespanha, La gracia del derecho. Economia de la cultura en la edad moderna, trad. Ana Cañellas Haurie, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 184. Maria Helena de Teves Costa Ureña Prieto chama a atenção para o facto de que a conciliação de ambos termos está na base de toda a organização política: «A ideia do bem comum serve de nexo entre todas as classes sociais organizadas

Já em A Visita das Fontes tivéramos a crítica ao estipêndio tendo na base o facto de atentar contra o bem comum. Em O Escritório Avarento, contudo, trata-se do outro excesso vicioso que o ameaça: a avarícia. O entesouramento significa a paragem desse motor da res publica que é a nora. Como «emblema» que conclui e se projecta sobre todo o significado do apólogo, diz do cariz estático da lição que o texto pretende veicular58. O diálogo meliano reitera um conhecimento ideológico que visa a conservação de uma ordo social59. Por outras palavras, a própria conversação sublinha a prospecção de um futuro antecipado (e infinitamente pretérito, pois vinculado à Origem divina) solapado na imagem da «nora»: o espaço onde se desenrola a conversa – uma conversa que expõe os males da sociedade produzidos pelo dinheiro – é um escritório avarento, isto é, uma como que cifra alegórica da realidade histórica. O mundo al revés que um escritório avarento

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hierarquicamente, segundo a ordem imposta pela natureza. Do jogo dos dois conceitos (hierarquia e bem comum) nascerá todo o sistema de servidões pessoais consideradas como instituição política e em geral toda a teoria da sujeição política» (op. cit., p. 89). José António Maravall enunciou exemplarmente a relação entre o emblema e a pedagogia barroca «conservadora»: «Este es el problema de la cultura barroca que suscita la amplia utilización de la literatura emblemática: recursos nuevos adaptados al número y calidad de nuevos destinatarios, eficaces para mover los resortes psicológicos predominantes en aquellos. Pero todo ello a fin de comunicar e socializar unos conocimientos o modos de pensar de carácter estático en correspondencia con la estructura tradicional de la sociedad que se pretende salvaguardar» (Teatro y literatura en la sociedad barroca, Madrid, 1972, p. 188). Temos aqui um outro exemplo da evolução do género dialógico e, neste sentido, a possibilidade de pensar a forma dialógica meliana na sua radicação histórica. Se podemos falar de continuidade dos géneros humanísticos como o diálogo no século XVII, contudo, pelo que acabámos de expor, podemos concluir que didactismo e o reformismo que pautavam o dialogismo humanista é diferente: «La prosa barroca sigue siendo didáctica, pero desde la desilusión o la asunción de unos avatares adversos. El didactismo se somete a una utilidad más inmediata (acoplarse a la realidad), lo cual supone un recurrido uso de los resortes lucianescos en combinación con la alegoría no para cambiar el mundo humano, sino para poderlo navegar (religiosa, ética o políticamente)» (Asunción Rallo Gruss, La prosa didáctica, p. 12).

alegoriza é o excesso de História em que os homens vivem, mas em que ainda pode tilintar o vento providencial, ainda que, do meu ponto de vista, Melo conceba muito cepticamente esse possível rentabilizando-o, sobretudo, como jurisprudência que dá um sentido à negação da História. A crítica à avarícia n’O Escritório Avarento, do meu ponto de vista, devolve-nos um D. Francisco Manuel de Melo que resiste ao tempo Moderno que é já o seu. Uma Modernidade do capital que, como virá a argumentar Simmel em Das Philosophie des geldes, produz comportamentos vitais (reificados) como a acumulação de capital e o consumo. O dinheiro, a fenomenologia do dinheiro que propõe, é o operador do trânsito da pré-Modernidade – com vínculos fortes, resumíveis na noção de gemeinschaft – à Modernidade, isto é, à gesellschaft, que liberta o indivíduo da dominação forte dos anteriores vínculos, mas que o perde como «pessoa» no mesmo lance. O indivíduo perde peculiaridade (em detrimento do pecúlio), por outras palavras, é assimilado à própria racionalidade e objectivação do dinheiro: «Money whose peculiarity lies in a lack of peculiarity»60. Para Simmel, o dinheiro, essência da Modernidade, é esse inespecífico totalmente objectivado como absoluta mobilidade de troca61. Neste processo que conduz da pré-Modernidade à Modernidade o dinheiro deveio, neste sentido, mais ele próprio. Propriedade que assenta, na verdade, em ser o extremo do impróprio: ela significa, precisamente, a «impessoalidade» Moderna. Se aqui convoco estes termos é porque eles me permitem contrastar o universo cultural e material que se refracta n’O Escritório Avarento. A consideração do dinheiro, aí, não é levada a cabo em função

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Philosophy of Money, 2nd. ed., London, Routledge, 1990, p. 470. Ibidem, p. 24: «Money is not only the absolutely interchangeable object, each quantity of which can be replaced without distinction by any other; it is, so to speak, interchangeability personified». Temos, nesta noção, o dinheiro completamente realizado como signo, pura abstracção da troca, contrastando com a noção implicada no português, que é a do dinheiro como peculiaridade extrema.

de noções como «produção», «trabalho» ou «consumo». O quadro epistémico subjacente, como dizia no início, é outro, há que tê-lo presente para poder pensar o sentido do económico considerado no texto62. O anacronismo do português mostra-nos a comutação do dinheiro apessoado pelo dinheiro impessoal, de um dinheiro que é absoluto metron a um dinheiro mercadoria. Um anacronismo consequente e complacente com uma sociedade cortesã pós-Restauração que continuava predominantemente feudal mas que deve adaptar-se à lógica mercantil da economia63. Na verdade é na complacência deste anacronismo que devemos entender a produtividade com que D. Francisco Manuel de Melo investe ainda a «liberalidade» do Príncipe, equacionada no emblema da «nora», e esta como figuração do bem comum. Como absoluto valor do Príncipe, serve ainda a autorepresentação de uma sociedade de corte que rentabiliza um módico de dinheiro – efectivamente, como se sabe, é necessário que as famílias nobres nestes idos disponham apenas de algum capital, como propõe D. Francisco na Carta de Guia de Casados, execrando-se assim um excesso pouco ético – precisamente através do indefinido do seu valor simbólico. Não esqueçamos, neste sentido, que a «economia do dom» sustenta esta sociedade. O «dom» não se reduz à métrica, ou à balança: é sempre suplementado pelo afecto, que une benfeitor e beneficiado64.

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Cfr. Foucault, op. cit., p. 164. Sobre este enquadramento conjuntural da sociedade portuguesa pós-Restauração, cfr. Luís Reis Torgal, Ideologia e Teoria do Estado na Restauração, vol. I, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1981, pp. 99 e segs. Cfr. António Manuel Hespanha, «A economia do dom. Amizades e clientela na acção política», in José Mattoso, História de Portugal, quarto volume, O Antigo Regime (1620-1807), coord. António Manuel Hespanha, Lisboa, Editorial Estampa, 1993. Lemos aí: «Usualmente, o benefício não possuía uma dimensão meramente económica. Daí que fosse difícil definir os limites exactos do seu montante. Este carácter incerto do montante da dádiva instituía um campo indefinido de possibilidades de retribuição. Esta, para equilibrar o elemento liberal da dádiva, tendia a acrescentar também algo ao presumível valor do recebido. E assim

O dinheiro de que se faz apologia é cifra do próprio bem comum como sistema objectivado que subordina os indivíduos (aliás cifráveis apenas por essa subordinação), assim integráveis num corpo social harmónico. A imagem do corpo, neste sentido, eclode de modo pregante n’O Escritório Avarento. Ela concorre tanto pela boca do português, que lamenta ser um corpo subsumido à métrica da balança65 - i.e., que lamenta o correr como mercadoria – e, sobretudo, na expositio do dobrão castelhano. Aí, desenvolve-se ainda mais a imagem corporal: «Feito o interesse contraste, achou em sua conciência quanto valia i braço, a mão, o dedo, quanto os olhos, as pernas e os pés dos míseros humanos, de cuja perda, oferecendo infame sacrifício à maldita mamona, se dão por restaurados do pedido com valor de pouca prata e menos ouro»66. Notese que o que aqui temos é o desmembramento de um todo orgânico – de um corpo, precisamente – em, digamos, disjecta membra. A imagem devolve-nos, no âmago, um social excedido pelos apetites. O desenfreio de um apetite autónomo, multiplicado por apetências individuais todas eles visando apenas a auto-satisfação, é o que perde o corpo social como harmónico e naturalizado bem comum. É neste sentido que devemos, pois, entender a tópica proposicional da inteligência numismática que reverbera no colóquio. Em primeiro lugar, temos a noção de que o dinheiro não é o estimulador mas sim o «moderador» do apetite: «O dinheiro modera o apetite»67. Por outro lado, o dinheiro, e como consequência dessa primeira proposição, é o garante da ordo social, sem o qual a «confusão» toma conta da sociedade – daí que um mundo sem dinheiro, não pensável, seja a negação do mundo: «Considerai agora

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sucessivamente. O que provocava um contínuo reforço económico e afectivo dos laços que uniam, no início, os actores, numa crescente espiral de poder, subordinada a uma estratégia de ganhos simbólicos, que se estruturava sobre os actos de gratidão e serviço» (p. 382). Cfr. O Escritório Avarento, p. 10. Ibidem, p. 32. Ibidem, p. 36.

qual seria a confusão da gente [se não existisse dinheiro]»68. Por último, o dinheiro oscila entre o ser «meio» e o ser «fim» em si mesmo, lectio primeira e última do apólogo. Como as duas primeiras proposições, esta derradeira é enunciada pela boca do cruzado: «Tudo isto vem de que não acabem de entender os homens que do dinheiro se deve usar como meio e não como fim. É o dinheiro o meio universal de todas as cousas temporais porque por ele todas se alcançam e facilitam. Mas, sendo tão bom por ser meio, é muito mau para ser fim»69. Dinheiro que fale deste modo quer-se homologado pela falação entre moedas. Une-os o serem mediadores universais do social: os falantes amoedados não falam só por falar.

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Ibidem, p. 35. Ibidem, p. 36.

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