Liberdade e motivações (Parte 1)

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Liberdade e motivações (Parte 1)


Atahualpa Fernandez(



"La libertad no consiste solo en seguir la propia
voluntad, sino también a veces en huir de ella". Abe Kovo




Há boas razões para sustentar que as motivações, a planificação, a
produção, a compreensão, a coordenação e a avaliação da vida social humana
estão essencialmente baseadas em articulações dos quatro modelos
psicológicos propostos por Alan P. Fiske (Structures of Social Life. The
Four Elementary Forms of Human Relations), que podem considerar-se como
autênticos «universais evolucionários»: toda a vida social – e esta é a
hipótese forte (e demasiada plausível) de Fiske – de todas as sociedades
humanas conhecidas, grandes e pequenas, primitivas e modernas, pode
explicar-se com alguma combinação destes quatro vínculos relacionais.
No modelo de comunidade ('comunal sharing') as pessoas tratam a todos
os membros de uma categoria como equivalentes. No de autoridade ('authority
ranking'), as pessoas tomam consciência de sua posição social de acordo com
uma ordenação linear. No modelo de igualdade recíproca ('equality
matching') as pessoas levam a conta do que se devem uns a outros. No de
proporcionalidade ou mercado ('market pricing'), as pessoas são propensas a
avaliar as relações mediante proporções e decidem interagir socialmente se
resulta racional fazê-lo de acordo com os valores que definem uma métrica
universal (em preço, utilidade ou tempo) com a qual é possível comparar
quantitativamente pessoas e recursos, sejam ou não qualitativamente
semelhantes.[1]
Assim as coisas, não deveriam a filosofia moral, política e jurídica
ter em conta esses modelos à hora de pensar seus desenhos de sistema e/ou
reforma institucional? É possível conceber um modelo político,
institucional e jurídico compatível com o pluralismo motivacional próprio
dos vínculos sociais relacionais (ou da estrutura da vida social) propostos
por Fiske? Continua sendo razoável conceber um direito responsável e
legítimo que não esteja fundado em um tipo empiricamente contrastável de
compreensão da natureza humana, particularmente no que se refere à
concretização das "estruturas da intersubjetividade" que orientam a
experiência relacional, quer dizer, estruturas que se consumam na
"experiência comum compartida"? Está a conduta humana condicionada por
nossa natureza inexoravelmente egoísta, «corrupta e caída»? O que motiva
nossas ações? As causas que levam os indivíduos a atuar coincidem melhor
com o pluralismo motivacional republicano ou com monismo motivacional
liberal?
Os psicólogos distinguem dois tipos diferentes de motivação. Às vezes
o estímulo para fazer algo vem de nós mesmos. Uma criança que com atenção
está absorta em seu livro o faz por impulso próprio. Sua motivação é
intrínseca, isto é: vem de dentro. Uma criança que na escola se vê obrigada
a fazer seus deveres o faz por um motivo que vem de fora, quer dizer,
extrínseco. Sobra dizer que a motivação é muito mais forte intrínseca que
extrinsecamente, que Aristóteles conhecia esta diferença entre motivação
intrínseca e extrínseca e que o maior êxito de sua ética foi uma
conciliação refinada: viver virtuosamente significa exercitar as motivações
externas até convertê-las em motivações internas.
Não de modo muito diferente pensaram Kant e os psicólogos e pedagogos
inspirados por ele como Piaget e Kohlberg: o último degrau da moral se
alcança no momento em que nos observamos em nosso obrar e nossas ações
estão de acordo com o que fundamental e geralmente consideramos bom e
correto. E quanto mais coincida a motivação intrínseca e a extrínseca,
tanto mais maduros seremos moralmente. Para dizer em termos mais
familiares, "somos buenas personas cuando cumplimos con grado nuestras
obligaciones morales; cuando también queremos lo que debemos". (R. D.
Precht)
Até aqui a ideia bonita. É provável, nada obstante, que na vida real
haja muito poucas pessoas que vivam assim. O que chamamos motivação não é a
ilustração de uma única causa que nos leva a atuar, senão um conjunto de
contradições, um "nexus" ou confluência de motivos para a ação dificilmente
discerníveis (incluindo a ausência de motivos que impediriam a conduta). E
dado que o ser humano, sempre complicando a vida, é uma fabulosa máquina de
fabricar motivos, começarei por admitir que o pluralismo motivacional
(republicano, como veremos mais adiante) se harmoniza bem com o
reconhecimento das quatro formas de vida social arraigadas em estruturas
domínio-específico da mente humana, particularmente no que se refere ao
problema das motivações humanas. Me explico.
O ser humano é um animal que nasce em um estado maior de fragilidade
e indigência. Física e psicologicamente se encontra sem defesa frente aos
agentes externos, em uma atitude de dependência radical que não lhe permite
poder sobreviver sem dispor de intensas emoções morais e de rígidos códigos
de ética. Carece de uma base comum que o oriente até umas tarefas
determinadas e o impulse até um modo específico de ser ou de comportar-se.
Sua evolução e progresso devem conseguir-se através de um incessante
aprendizado (por isso digo que somos uma espécie maldita que tem que
aprender tudo, inclusive a amar e a fazer amor).
O comportamento humano, que nos exige atuar de acordo com uns
costumes sociais aceitos e compartidos pela comunidade, tem, portanto, uma
origem externa e outra inata. Nada obstante, a mera instintividade de uma
criança não é suficiente (embora necessária) para regular sua conduta
social. Ao carecer de instintos seguros, e em virtude da complexidade de
seu cérebro, o ser humano não está necessariamente desenhado a dar uma
resposta automática, uniforme e unívoca em muitos aspectos de sua
existência secular. Para acertar com a resposta adequada, o sapiens há de
experimentar e avaliar previamente a realidade, convertendo assim o leque
de estímulos da situação em "possibilidades".
Como estas possibilidades são várias e o ser humano está livre da
necessidade instintiva de dar uma resposta determinada, se segue que deverá
eleger e preferir a possibilidade que há de entrar em jogo na resposta
"adequada" ante o estímulo que a motiva. A realização, com cada ato, da
possibilidade preferida entre as distintas e múltiplas alternativas
surgidas da situação, através do exercício da inteligência e da vontade,
vai ajustando a vida do ser humano, delimitando seu entorno e configurando
seu modo de tratar com a realidade.
A natureza humana (ou a "natureza cultivada", para usar a expressão
de K. A. Appiah) ajusta aos seus modestos limites a liberdade como uma
propriedade biológica (pessoalmente, prefiro falar de «vontade», porque a
evidência aponta que o livre-arbítrio é uma ilusão[2]). Já não a liberdade
como um (misterioso) livre-arbítrio no sentido metafísico do termo, mas sim
como uma capacidade para eleger entre formas alternativas de ação,
incluindo o não fazer nada, no mundo que nos rodeia: uma função do córtex
cerebral, baixo o controle do córtex pré-frontal, em sua interação
recíproca com o entorno e que contém o que Ortega chamava de
«circunstancia» (J. M. Fuster).
Indivíduos que gozam de uma sorte maior de indeterminação (porém
sempre geneticamente condicionada) com respeito a seus genes e sua
arquitetura ontogenética cognitiva poderiam de fato ser beneficiados por
uma "adequação adaptativa", ela própria aumentada, o que equivale a dizer
que, na luta pela vida, teriam maiores chances de sobreviver e reproduzir:
a "liberdade" seria então uma vantagem seletiva, do mesmo modo que as
capacidades linguísticas e intelectuais - o que poderia explicar que ela
tenha se tornado, com o decorrer de milênios, uma característica comum de
nossa espécie.



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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Nota bene: Ao sustentar que estas quatro estruturas vinculantes
elementares e suas variações justificam todas as relações sociais entre
todos os seres humanos de todas as culturas, Fiske sugere, como única
explicação possível deste fato, que estão arraigadas na complexa estrutura
da mente humana, isto é, que vão estreitamente ligadas em nosso programa
ontogenético ao desenvolvimento da faculdade (e ainda da necessidade
emocional) de travar relações sociais. Ademais, além de cada cultura
utilizar diferentes regras para desenvolver os quatro modelos, estes
(modelos) teriam um caráter cognitivo e normativo. Desde um ponto de vista
cognitivo, seriam marcos de referência inatos a partir dos quais
compreendemos e predizemos as relações humanas, sua ontogênese estaria
ligada não aos processos de socialização estritamente, senão ao
desenvolvimento de capacidades vinculadas a relações de ordem matemática
como a correspondência um a um, as relações simétricas, ordinais e de
proporcionalidade. Seu caráter normativo estaria dado pela geração de
regras particulares, a expectativa respeito ao comportamento das pessoas
implicadas e ideais de índole moral. Segundo Fiske, estes modelos básicos
se ligam e interagem mutuamente dando lugar a distintos fenômenos culturais
e institucionais. Fiske compara sua tese com a teoria da gramática
generativa a partir da qual se pode fundar um número infinito de novos, mas
compreensíveis enunciados.
[2] Sobre a questão de se somos ou não livres:
https://www.researchgate.net/publication/306060602_Aspectos_da_experiencia_n
eurojuridica_livre-arbitrio_responsabilidade_e_racionalidade_Parte_1;
https://www.researchgate.net/publication/306893761_Aspectos_da_experiencia_n
eurojuridica_livre-arbitrio_responsabilidade_e_racionalidade_Parte_3;
https://www.researchgate.net/publication/307565847_Aspectos_da_experiencia_n
eurojuridica_livre-arbitrio_responsabilidade_e_racionalidade_Parte_4
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