Liberdade e motivações (Parte 2)

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Liberdade e motivações (Parte 2)


Atahualpa Fernandez(

"Mira la vida como un espectador
desinteresado y muchos dramas devendrán
comedias". Henri Bergson



Ser fiel à natureza não é, portanto, recusar em seu nome a liberdade
(pois a liberdade – e a cultura – é, ela própria, um efeito da
natureza); é, ao contrário, prolongar esse gesto, indissociavelmente
natural e histórico, pelo qual nossa espécie, biológica e social, se ergue
desde a natureza que a produz e a restringe. Quero dizer: como seres
neuroplásticos, a natureza humana se plasma em um cérebro plástico e
complexo, que coordena e controla a conduta do indivíduo em função da
informação que recebe do entorno, orientando-se tanto por seus próprios
sentimentos e preferências congênitas como pelas normas culturais
adquiridas.
Todos estes fatores restringem, mas não pré-fixam em todos os seus
detalhes, o que vamos fazer ou a forma como vamos comportar-nos. Sempre há
um instante de manobra, que acabamos de fechar com nossas eleições,
deliberações e decisões (conscientes ou inconscientes). Nisso consiste
nosso "livre-arbítrio" e que a evolução por seleção natural também pode
explicar[1]. Longe de ser um princípio separado ou oposto a nossos genes,
são precisamente nossos genes os que determinam a construção de um cérebro
plástico geneticamente programado para a liberdade (J. Mosterín). Uma
liberdade, enfim, não subtraída ao espaço, ao tempo, à história e à
natureza, como queria Kant, mas inscrita neles, oriunda deles, e com uma
margem de jogo, de indeterminação, de iniciativa e de inibição possível[2].
Somos livres, nesse sentido, não apesar da natureza, mas graças a ela.
É esta ideia de liberdade a que leva a situar o problema das
motivações do complicado atuar humano no contexto das duas grandes
tradições histórico-políticas que servem (e sempre serviram de forma
alternativa ao longo da história) como cenários e fundamento para a
operacionalização do direito: o republicanismo, que fez o mundo moderno; e
o liberalismo, que vem retificando a tradição republicana desde o segundo
terço do século XIX e que poderia acabar por destruir-la[3]. E, neste
particular, se dirá que a principal diferença da tradição republicana com
relação à tradição liberal parece ser a seguinte: os republicanos tendem ao
pluralismo motivacional; os liberais, ao monismo motivacional. Também se
soe dizer que a diferença entre ambas as tradições tem que ver com seus
respectivos otimismo e pessimismo antropológicos. Isso é verdade somente em
parte.
Certamente que o liberalismo é herdeiro do extremo pessimismo
antropológico paulino do cristianismo reformado (o protoliberal Hobbes foi
um devoto da leitura luterana da Epístola aos Romanos; e de tronco
evangélico são os mais genuínos representantes do liberalismo propriamente
dito – do século XIX – até nos países católicos: protestante foi Benjamin
Constant, protestante Guizot). É, em câmbio, falso que a tradição
republicana seja otimista antropologicamente. Daí que, sobre esta questão,
é melhor ver a diferença assim: os liberais tendem a apresentar ao
indivíduo como animado única ou primordialmente por seu próprio interesse
egoísta - ou como se diz agora com feio anglicismo, "autointeresse". E isso
pode fazer-se de dois modos: descritiva ou normativamente.
Pode-se dizer – no plano descritivo – que os indivíduos, de fato, só
ou primordialmente estão motivados por seu próprio interesse, mais ou menos
ilustrado; ou se pode sustentar – no plano normativo –, e sem dúvida com
maior refinamento, que sejam quais forem de fato as motivações dos
indivíduos, à hora de desenhar instituições sociais, jurídicas e políticas
é melhor aceitar, segundo sugeriu Hume em seu dia, o suposto universal de
corrupção e vilania para fazer instituições duradouras e eficazes, ou seja,
à prova de vilões e corruptos.
Quer dizer, à hora de fazer construções jurídico-normativas é melhor
pôr-se no pior e sentar critérios operativos também para o caso de que
todos sejam vilões. Ambos os monismos motivacionais – o descritivo e o
normativo – andam errados. Se isso é pessimismo antropológico, há de dizer
que esse pessimismo é irrealista na consideração dos fatos (e especialmente
de nossa arquitetura cognitiva inata) e irrealisticamente contraproducente
no que se refere ao desenho de um modelo político-institucional e jurídico.
No plano descritivo, a tradição republicana não negou nunca a
importância e ainda a legitimidade do «interesse próprio» como motivação da
ação humana (desde a representação da relação ética do «eu» consigo mesmo
por meio do conceito de «amor próprio» de Aristóteles até o «amour de soi»
rousseauniano e o «selfinterest» de Adam Smith, passando pela «conservatio
sui» spinoziana - ou, para chegar até hoje mesmo, a «ação estratégica» de
Habermas); o que sempre negou, bem realisticamente por certo, é que este
motivo tenha o monopólio da motivação humana. No plano normativo: a
tradição republicana não rechaça a ideia de que se tenha de construir
instituições à prova de vilões e corruptos; o que sempre negou (e nega) é
que isso possa fazer-se realisticamente desenhando-as a partir do suposto
de vilania e corrupção universal (por exemplo, a máxima protoliberal de
Hume vai muito mais que isso: o que recomenda é enfrentar-se ativamente a
todo mundo com "ferro em mão", por se acaso forem vilões).
A tradição republicana partiu sempre, e explicitamente desde
Montesquieu, do suposto de que todos são corruptíveis – e não corruptos ou
depravados inatos[4] –, acreditando, a diferença de Hume, que a mais
realista maneira de desenhar instituições duradouras e à prova de corruptos
é deixar-se guiar pela ideia que o melhor Robespierre – o que reintroduziu,
por vez primeira na Europa moderna, o sufrágio universal característico das
poleis democráticas do mediterrâneo oriental antigo – expressou assim:
"Toute institution qui ne supose pas le peuple bon, et le magistrat
corruptible, est vicieuse".
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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] Uma descrição naturalista de como ocorreu nossa evolução e de nossas
mentes parece ameaçar o conceito tradicional de liberdade, e o medo ante
esta perspectiva acabou por distorcer a investigação científica e
filosófica nesta matéria. Alguns dos que deram à voz de alarma ante os
perigos dos novos descobrimentos sobre a natureza humana apresentaram uma
imagem muito falseada dos mesmos. Uma severa reflexão sobre as implicações
de nosso novo conhecimento sobre nossas origens e nossa natureza servirá de
fundamento para uma doutrina mais sólida e prudente sobre a liberdade que
os mitos aos que está chamada a substituir (D. Dennett). Afinal, de que
liberdade dispõe uma criança violada e golpeada que por sua vez poderá vir
a ser verdugo no dia de amanhã? De que liberdade desfruta um indivíduo que
ganha um salário mínimo mensal para sobreviver? Todo o paradoxo da
liberdade do ser humano está aí.
[2] O próprio autocontrole (a capacidade de esperar, de inibir determinadas
condutas) de que tanto presumimos e nos orgulhamos tampouco nos situa à
margem da natureza. Por quê? Pois pelo simples fato de que se podemos
exercer esse autocontrole é porque temos umas fibras nervosas que vão desde
o córtex cerebral ao sistema límbico e que cumprem uma função inibidora de
nossos instintos básicos (e o controle que temos é só parcial). "Y esas
fibras las ha puesto ahí la selección natural y lo ha hecho por una buena
razón, porque en animales sociales como los humanos inhibir esos instintos
en situaciones grupales hace que pasen más copias de genes a las
generaciones futuras" (P. Malo). Assim que a ideia de livre-arbítrio
fundada na capacidade de autocontrole não se salta as leis da evolução e
nem provém de Céu.
[3] Nas palavras de Antoni Domènech: "Sobre las ruinas de tronos y altares
tardomedievales, e inspirado en los ideales políticos del Mediterráneo
antiguo - como palingénesis, pues, de la Antigüedad clásica —, el
republicanismo ha hecho el mundo moderno; y el liberalismo, que viene
rectificándolo desde el segundo tercio del XIX, podría acabar
deshaciéndolo."
[4] Se a mente é um sistema com muitas partes, uma tendência ou
predisposição inata é apenas um componente entre outros. Algumas faculdades
podem dotar-nos de cobiça, luxúria ou malignidade, mas outras podem dotar-
nos de solidariedade, empatia, altruísmo, desejo de ser respeitado e
capacidade de aprender com nossas experiências e as de nossos semelhantes.
Estes são circuitos físicos situados no cérebro, e não poderes ocultos de
um Poltergeist, e têm base genética e história evolutiva tanto quanto os
impulsos primais. É apenas a tabula rasa que faz com que as pessoas creiam
que os impulsos são "biológicos", mas que o pensamento e a tomada de
decisão são alguma outra coisa (S. Pinker). Dito de outro modo, a natureza
humana é uma mescla complexa de preparações para o egoísmo e para o
altruísmo extremos. O lado de nossa natureza que expressamos depende da
cultura e do contexto. Tanto temos instintos sinistros como instintos
luminosos: os seres humanos têm alguns instintos que fomentam a virtude e o
bem comum e outros que favorecem o comportamento egoísta e antissocial.
Precisamos planejar uma sociedade que estimule aqueles e desencoraje estes
(M. Ridley). Nas palavras de Michael Sandel: na presença de indivíduos
dotados de certas qualidades de caráter, de certas disposições morais que
os levam a identificar com a sorte dos demais e, em definitiva, com os
destinos de sua comunidade, o melhor será deixar de lado a ideia liberal do
Estado neutral para substitui-la por um Estado ativo em matéria moral, e
decidido a "cultivar a virtude" entre seus cidadãos.
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