Linchamentos e “Escrachos”: Ponderações sobre certa tendência punitivista nos novíssimos movimentos sociais

July 8, 2017 | Autor: Pablo Rosa | Categoria: Violence, Political Violence, Gender And Violence, Linchamentos, Escracho, Linchamientos
Share Embed


Descrição do Produto





Realizou Estágio Pós-Doutoral em Sociologia pna Universidade Federal do Paraná – UFPR, Doutorado em Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestrado em Sociologia Política e Bacharel em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Atualmente é professor nos Programas de Mestrado em Sociologia Política e em Segurança Pública da Universidade Vila Velha – UVV e coordenador do Grupo de Pesquisa Subjetividade, Poder e Resistências. (http://lattes.cnpq.br/1908091180713668)
Richard Day (2005) sugere tratar-se de Novíssimos Movimentos Sociais, que se configuram não necessariamente como anarquistas, mas anárquicos, pois se posicionam a favor de reformas nas políticas e instituições do Estado. Claro que estamos diante de ampla multiplicidade de práticas coletivas, cada uma encontrando em sua singularidade mais proximidade ou distanciamento aos ideais anarquistas. Interessante notar a tendência a intervenções na vida cotidiana, em hábitos e percepções sociais, que extravasam demandas que possam ter em relação ao Estado. Neles, a maneira como se luta é tão decisiva quanto a definição do objetivo ao qual se luta, recusando a clássica distinção do príncipe moderno entre meios e fins.
Texto acessado do site http://passapalavra.info/2014/08/98495 no dia 13 de março de 2015.
Material extraído do site https://www.youtube.com/watch?v=IUF3z7Df5X0, acessado no dia 30 de março de 2015.
Texto acessado do site http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/05/mp-acompanha-investigacao-sobre-linchamento-em-guaruja.html, no dia 13 de março de 2015.
Linchamentos e "Escrachos": Ponderações sobre certa tendência punitivista nos novíssimos movimentos sociais

Pablo Ornelas Rosa

Contextualizando
Na última década vimos emergir no Brasil e no mundo movimentos sociais que questionam e recusam a institucionalização das lutas sociais. Muitos deles, que passaram a ser chamados também de novíssimos movimentos sociais, adotaram distintas estratégias de caráter libertário amparadas, por exemplo, na ação direta, recusando, portanto, ao reformismo das demais tradições socialistas que visam uma suposta humanização ou "melhoria" do Estado no intuito de garantir e ampliar direitos a população. Dentre esses grupos, é possível localizar os mais distintos posicionamentos que podem, inclusive, perpassar a adesão de elementos punitivistas na condução de suas ações.
Nessa apresentação proponho um debate acerca das consequências da adesão a defesa de ações de afirmações identitárias a partir de premissas punitivistas decorrentes da aproximação entre linchamentos e "escrachos". Contudo, não visarei denunciar pessoas nem grupos. Ao contrário, proporei reflexões sobre certas tendências emergentes em grupos que se afirmam como anarquistas, antifascistas e/ou libertárixs, mas que agem por meio de estratégias amparadas em punições, opressões e, principalmente, produções e difusões de denúncias através de redes sociais virtuais.
A ascensão de técnicas de exposição pública de condutas privadas reprováveis por meio dos sites de relacionamento no intuito de denunciar supostos agressores tem sido uma prática bastante comum em movimentos sociais e/ou grupos organizados brasileiros que se afirmam como marxistas, libertários, antifascistas, anarquistas, feministas radicais, dentre outros. Ao partirem do pressuposto de que a exposição amparada na denúncia possibilitaria um conforto para a vítima, esses grupos acabam fundamentando suas ações em uma perspectiva punitivista com base apenas na verdade apresentada pela suposta vítima, negando a possibilidade de defesa do suposto agressor.
Assim como ocorrem nos linchamentos, os sujeitos denunciados, julgados e condenados por esses grupos acabam não possuindo possibilidade de defesa diante das exposições e difusões decorrentes desse tipo de conduta, uma vez que os acusadores partem da premissa de que a acusação pressupõe a culpa, independente da existência de um julgamento pela justiça comum. Portanto, trata-se de uma perspectiva parcial de justiça privada fundamentada exclusivamente na exposição de uma única verdade, a do acusador, negando o direito de defesa ao acusado.
Segundo parte de seus defensores, o "escracho", "detonação" ou trashing não se trata de castigar ou punir os supostos agressores, mas de expô-los no intuito de evitar que ele agrida novas vítimas. Entretanto, se verificarmos de maneira mais aprofundada, constataremos que esse olhar se fundamenta na mesma leitura que Foucault (1997) faz acerca das prisões e das justificativas para a privação de liberdade e contenção dos sujeitos tidos pela sociedade como perigosos. Sendo assim, tanto o linchamento quanto o "escracho" operam a partir de uma racionalidade punitivista que visa excluir certos sujeitos do convívio social e/ou destruir sua reputação, impossibilitando de defenderem-se.
Outro ponto que merece certa atenção refere-se ao deslocamento dos debates que parte de uma perspectiva teórica e política para acusações e denuncias operadas de um ponto de vista pessoal, amparados em fortes emoções por parte de quem acusa. Ao transformarem um debate teórico e político em um problema pessoal, esses indivíduos ou grupos não se furtam em ficar do lado dos acusadores, independente de verificar se as denúncias precedem ou não. Assim, as acusações se transformam em denúncias, as denúncias em julgamentos e as consequentes condenações resultam, no caso dos linchamentos, em agressões físicas ou mortes e, no caso das "detonações", "escrachos" ou trashings, em agressões simbólicas decorrentes de exposições públicas de conflitos privados que são difundidos por meio de redes de relacionamento visando desqualificar o outro e, no limite, eliminá-lo da convivência no grupo. Segundo Jo Freeman (2014),
A detonação é uma forma particularmente cruel de assassinato de reputação que equivale a um estupro psicológico. É manipulador, desonesto e excessivo. É ocasionalmente disfarçado pela retórica do conflito honesto ou acobertado pela negação de que exista qualquer reprovação. Mas ele não é feito para expor desacordos ou resolver diferenças. É feito para desacreditar e destruir. Os meios variam. A detonação pode ser feita de forma privada ou num ambiente de grupo; na cara ou pelas costas; através de ostracismo ou por meio de denúncia aberta. A detonadora pode dar-lhe informações falsas sobre o que as outras pensam de você (coisas horríveis); pode contar a suas amigas falsas histórias do que você acha delas; pode interpretar o que quer que você diga ou faça da maneira mais negativa; pode projetar expectativas irreais sobre você de modo que, quando não conseguir atingir essas expectativas, você se transforma num alvo "legítimo" para a raiva; pode negar suas percepções da realidade; ou pode fingir que você absolutamente não existe. A queimação de filme pode até ocorrer de forma velada por meio das novas técnicas grupais de crítica/autocrítica, mediação e terapia. Qualquer que seja o método utilizado, a detonação envolve violação de integridade, declaração de inutilidade e contestação da motivação da própria pessoa. Com efeito, o que é atacado não são ações ou ideias, mas o próprio indivíduo. Esse ataque é executado fazendo com que você sinta que a sua mera existência é prejudicial ao Movimento e que não há nada que se possa fazer para mudá-lo (FREEMAN, 2014).

A autora dessa definição de trashing, "detonação" ou "escracho" foi Jo Freeman, militante feminista do final dos anos 1960 e uma das primeiras mulheres dos Estados Unidos a ter sua reputação, a sua vida privada e seu comprometimento político atacados pelo movimento de mulheres do qual fazia parte, deixando marcas irreparáveis em sua vida. Ao constatar que esse tipo de conduta passou a corroer movimentos sociais internamente, Jo Freeman acabou revelando de que forma essa prática opera.
Os meios variam. A detonação pode ser feita de forma privada ou num ambiente de grupo; na cara ou pelas costas; através de ostracismo ou por meio de denúncia aberta. A detonadora pode dar-lhe informações falsas sobre o que as outras pensam de você (coisas horríveis); pode contar a suas amigas falsas histórias do que você acha delas; pode interpretar o que quer que você diga ou faça da maneira mais negativa; pode projetar expectativas irreais sobre você de modo que, quando não conseguir atingir essas expectativas, você se transforma num alvo "legítimo" para a raiva; pode negar suas percepções da realidade; ou pode fingir que você absolutamente não existe. A queimação de filme pode até ocorrer de forma velada por meio das novas técnicas grupais de crítica/autocrítica, mediação e terapia. Qualquer que seja o método utilizado, a detonação envolve violação de integridade, declaração de inutilidade e contestação da motivação da própria pessoa. Com efeito, o que é atacado não são ações ou ideias, mas o próprio indivíduo. Esse ataque é executado fazendo com que você sinta que a sua mera existência é prejudicial ao Movimento e que não há nada que se possa fazer para mudá-lo. Esses sentimentos são reforçados quando você fica isolada das suas amigas, enquanto elas se convencem de que a associação com você é também prejudicial para o Movimento e para elas mesmas. Qualquer apoio a você irá manchá-las. Eventualmente, todas as suas colegas se juntarão num coro acusatório que não pode ser silenciado, e você se verá reduzida a uma mera paródia de quem outrora havia sido. (FREEMAN, 2014).

O relato de Jo Freeman apresentado no final dos anos 1960 pode nos possibilitar verificar como esse tipo de conduta opera de maneira coletiva visando unicamente a aniquilação da reputação dos sujeitos estabelecidos como alvo. Geralmente essa prática se inicia a partir de um conflito de ideias, sobretudo, políticas, mas que acabam sendo levadas para o campo pessoal visando afirmar uma verdade na medida em que nega a possibilidade de diálogo com o outro. Na maioria das vezes, o acusador se coloca no papel de vítima responsabilizando um suposto violador, simplesmente por que discordou dos seus argumentos. Nesses casos, a vaidade e a paixão pelo suposto exercício do poder, que para alguns precisa ser alimentada, faz com que alguns militantes ultrapassem os limites do campo das ideias passando a agredir exclusivamente os sujeitos que discordam dos seus pontos de vista.
A possibilidade de ganhar força se dá com o enfraquecimento daqueles tratados como opressores e que precisam ser "detonados" para mostrar quem detêm o monopólio do exercício da verdade em uma estrutura de poder que se afirma discursivamente como horizontalizada, mas que opera de maneira verticalizada e punitivista. Nesse caso, a verdade que fundamentou a desqualificação constante daquele que foi detonado possibilita a afirmação da vaidade na conquista do poder. Aqueles que agem dessa forma são tratados por Foucault como ao menos um dos três adversários aos quais O Anti-Édipo se vê confrontado, exatamente por que opera a partir de microfascismos.
1) Os ascetas políticos, os militantes carrancudos, os terroristas da teoria, aqueles que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da Verdade. 2) Os lamentáveis técnicos do desejo — os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta. 3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (quando a oposição de O anti-Édipo a seus outros inimigos constitui, antes, um engajamento tático): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e Mussolini — que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas —, mas também o fascismo que está em todos nós, que persegue nossos espíritos e nossas condutas cotidiana, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar essa coisa que nos domina e nos explora. Diria que O anti-Édipo (possam seus autores perdoar-me) é um livro ético, o primeiro livro ético que se escreveu na França há bastante tempo (é, talvez, a razão pela qual seu sucesso não se limitou a um "leitorado" particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensamento e de vida). Quando fazer para se tornar fascista, mesmo quando (sobretudo quando) se crê ser um militante revolucionário? Como desembaraçar nosso discurso e atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como desalojar o fascismo que se incrustou no nosso comportamento? Os moralistas cristãos procuravam vestígios da carne que tinham se alojado nas dobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua vez, espreitam os vestígios os mais íntimos do fascismo no corpo. Rendendo uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, poderíamos dizer que O anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista (FOUCAULT, 2010b: 104-105).

Outro exemplo recente sobre esse tipo de conduta pode ser localizado no episódio de trashing, "escracho" ou "detonação" vivenciada por Lília Azevedo e demais estudantes de Ciências Sociais no XXIX Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Sociais – ENECS, que ocorreu em São Luiz do Maranhão de 27 de julho à 03 de agosto de 2014, relatado no site Passa Palavra, levando-a concluir que
O que vemos aqui é o desvirtuar de uma luta de séculos, pela qual mulheres ao longo da história morreram, foram espancadas, lutaram arduamente por cada mínimo espaço e direito conquistado. Mulheres que ainda hoje sofrem com salários menores, com companheiros violentos, assédios e outras formas de opressão. Utilizar esta luta de forma deturpada, como ferramenta para protagonismo, autopromoção e "carta-na-manga" quando não se tem argumentos em discussões políticas que dizem respeito aos posicionamentos políticos divergentes de outra ordem é transformar a luta feminina legítima em ferramenta para interesses próprios que de nada servem para a real emancipação feminina; é contraproducente e caricatura de forma negativa uma causa deveras importante (AZEVEDO, 2014).

A constatação de que certos grupos que atuam nos novíssimos movimentos sociais brasileiros, assim como o grupo feminista estadunidense do final dos anos 1960 que "detonou" Jo Freeman, acabou me fazendo reconhecer as consequências danosas geradas aos demais movimentos sociais pelos quais militam, uma vez que esse tipo de conduta visa a sua desarticulação e, consequentemente, sua fragilização. Pois, ao se afirmarem com veemência como grupo (e as vezes como gang), estabelecendo alvos para os seus ataques, geralmente sujeitos que participam ativamente desse movimentos sociais não institucionalizados, eles passam a fomentar certa desarticulação. Segundo Holloway (2013),
A identificação, ou a reificação, é uma força enormemente destrutiva na luta cotidiana. Damos aos nossos protestos um nome, um rótulo, um limite. Nossa luta é a luta das mulheres, dos gays, dos trabalhadores, dos desempregados, é a luta pelos direitos indígenas, por comida não contaminada, por paz. Pode ser que estejamos pelo menos vagamente conscientes de que nossas lutas são parte de uma totalidade maior, é possível mesmo que elas sejam o produto da maneira pela qual o fazer humano é organizado no mundo, mas, precisamente porque esta forma de organização parece permanente ("é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo"), encerramos as nossas lutas dentro de limites, dentro de uma identidade. E então temos um mundo cheio de protestos, um mundo de pessoas de alguma forma conscientes de que há algo fundamentalmente errado na maneira que a sociedade é organizada, e mesmo assim tantos muros separam estas lutas, tantos diques as impedem de fluírem umas nas outras. E todos esses muros são edificações, e grande moldura de identificação do capitalismo-que-é-e-sempre-será, e as identificações menores de "nós somos gays, nós somos mulheres, nós somos indígenas, nós somos bascos, nós somos zapatistas, nós somos anarquistas, nós somos comunistas". E todas estas identidades se tornam facilmente a base para o sectarismo, a perene autodestruição da esquerda que torna a vida fácil para a polícia. Muito mais severa do que qualquer sistema de polícia secreta, a identidade é a reprodução do capital dentro da luta anticapitalista (HOLLOWAY, 2013: 110).

Essa característica fundamentada na denúncia, perseguição e punição envolvendo grupos formados por sujeitos que se reconhecem como de esquerda, marxistas, anarquistas, dentre outros, foi chamada por Karam (1996) de "esquerda punitiva". Segundo a autora, o primeiro momento em que a esquerda optou pela repressão à criminalidade ocorreu com a emergência de reivindicações de extensão da reação punitiva a condutas tradicionalmente imunes à intervenção do sistema penal, surgindo principalmente com a atuação de movimentos populares, portadores de aspirações de grupos sociais específicos, como os movimentos feministas que, a partir dos anos 1970, passaram a incluir em suas plataformas e pautas de luta uma busca desenfreada por punições exemplares para autores de atos violentos contra mulheres, conduta repressora que rapidamente acabou se estendendo aos movimentos ecológicos, reivindicando também a intervenção do sistema penal no combate aos atentados ao meio ambiente.

Proximidade racional entre linchamento e "escracho"
Tem sido bastante comum esse tipo de grupo justificar suas condutas amparadas no "escracho", "detonação", trashing, fundamentando-se na ideia de que essa prática seria um ato de resistência feito por mulheres e para mulheres, pois ao escrachar e expor um agressor, além de empoderar a vítima e consequente sua desculpabilização, outras mulheres poderiam ser alertadas de um comportamento do qual querem distância. Ainda argumentam que não seria correto comparar o "escracho" com os linchamentos populares. Contudo, ao verificar a etimologia da palavra linchamentos e os elementos que os compõem, é possível localizar a enorme proximidade com o "escracho", "detonação" ou trashing conduzido por grupos que se afirmam como de esquerda, marxistas, libertários, antifascistas, feministas radicais, anarquistas, dentre outros.
Segundo Oliveira (2010) e Benevides (1982), a palavra "linchamento" nasceu da história de Charles Lynch, um fazendeiro da Virgínia que atuou como coronel da Revolução Americana e que perseguia veementemente de maneira odiosa os negros e índios em virtude de sua raça. Contudo, ao verificar de maneira mais aprofundada os elementos que compõem tanto o linchamento quanto o "escracho", é possível localizar a sua enorme proximidade, pois ambas as condutas são praticados por pessoas que se encontram influenciados por multidões (reais/virtuais), contra um indivíduo ou grupo pequeno da sociedade, visando eliminá-lo do ponto de vista simbólico e/ou material. Além disso, tanto o linchamento quanto o "escracho" não podem ser praticados por apenas um sujeito, mas por uma pluralidade de pessoas, conforme apontou Cerqueira e Noronha (2004).
Outra proximidade se dá pelo fato de que não apenas o linchamento, como o "escracho" são atos que devem ser praticados por mais de um agressor em locais públicos (reais ou virtuais), em que seria supostamente correto aplicar essas agressões no intuito da dar exemplos a população, como se a punição resultasse, de maneira mecanicista, na redução das violências. Assim, em decorrência desses dois tipos de condutas, se procuraria mostrar qual seria o modelo de comportamento adequado e qual deveria ser combatido veementemente.
A definição de linchamento apresentada por Ferreira (2004), mostra nitidamente a proximidade com o "escracho", uma vez que parte da premissa de que essa ação pressuporia justiçar ou executar sumariamente um sujeito, sem qualquer espécie de julgamento. Sendo assim, tanto o linchamento quanto o "escracho" seriam formas de fazer de justiça que não operariam de maneira imparcial ou racional, mas exclusivamente a partir da emoção, conforme apresentou Oliveira (2010) e dos supostos medos que, ao se aglutinarem em um alvo específico, podem se transformar em ódio, conforme mostrou Slavoj Zizek, em seu vídeo "Ideologia do ódio".
Embora o termo linchamento tenha passado a ser empregado no Brasil através da imprensa somente a partir do século XIX, o primeiro linchamento registrado no Brasil ocorreu em 1585, em Salvador, Bahia, conforme apontou Martins (1996). O alvo foi Antônio Tamandaré, um índio que liderava um movimento messiânico e que acabou encontrando um grande número de adeptos entre brancos, sobretudo, ricos. Contudo, foram os próprios índios que o perseguiram, queimando o seu templo, prendendo-lhe, torturando-lhe, arrancado-lhe a língua e o estrangulando. "Um comportamento completamente estranho as tradições tribais e claramente referido a uma cultura punitiva branca, católica e inquisitorial, de acordo com a concepção de castigo e os valores da época" (MARTINS, 1996:12).
Provavelmente a definição mais usual de linchamentos nas ciências sociais brasileiras pode ser localizada principalmente nos escritos de José de Souza Martins (1996), que nos possibilita uma interpretação fundamentada em uma aproximação ainda maior com o "escracho":
(...) julgamentos frequentes súbitos, carregados da emoção do ódio ou do medo, em que os acusadores são quase sempre anônimos, que se sentem dispensados da necessidade de apresentação de provas que fundamentem suas suspeitas, em que a vítima não tem tempo nem oportunidade de provar sua inocência. Trata-se de julgamento sem participação de um terceiro, isento e neutro, o juiz, que julga segundo critérios objetivos e impessoais, segundo a razão e não segundo a paixão. Sobretudo, trata-se de julgamento sem a possibilidade de apelação (MARTINS, 1996: 12).

Assim, tanto os praticantes do linchamento quanto do "escracho" substituem o poder estatal do judiciário e sua função exclusiva de julgar e punir os supostos autores de condutas sancionáveis, aplicando a eles a punição sem um julgamento prévio que os possibilite alguma forma de defesa diante da suposta acusação. O lado cruel desse tipo de conduta que nega a possibilidade do diálogo pode ser localizado nos muitos casos em que fica comprovado que o sujeito linchado não tinha nenhum envolvimento com o ato que lhe foi atribuído, conforme o exemplo ocorrido recentemente no Guarujá/SP.
Se partirmos da premissa apontada por Benevides (1982) de que a expressão linchamento pode ser utilizada para classificar qualquer ação de violência de uma determinada coletividade visando punir sem julgamento aqueles que supostamente praticaram um crime ou infração, entendido como um fenômeno espontâneo e imprevisível, entenderemos o "escracho" como um tipo de linchamento exatamente porque opera por meio da mesma racionalidade punitivista.
Ao propor que os linchamentos possuem um paralelo com o período da inquisição e das caças às bruxas, já que a maioria das ocorrências pressupõe a ausência da ação policial que resulta na execução pública nos mesmos moldes da Idade Média, Souza (1999) localiza uma fundamentação para esse tipo de conduta a partir de sua suposta função pedagógica visando suprir os meios legais para combater a criminalidade. Contudo, esse tipo de prática pode ser localizada historicamente desde a fehmgerichte na Alemanha medieval, a gibbet law e a justiça Cowper na Inglaterra, as sociedades de Santa Hermandad em pequenas comunidades da Espanha medieval, os pogrons na Rússia e na Polônia a até mesmo a peregrinação aos judeus na Alemanha nazista de Hitler.
Portanto, esse tipo de estratégia não é uma novidade ou uma conduta que apareceu nas últimas décadas. Trata-se de uma prática que pode ser localizada em diferentes momentos da história, podendo ser pensada inclusive a partir daquilo que Foucault (2010a) chamou de racismo de Estado, na medida em que a sua fundamentação se dá visando a eliminação real ou simbólica do outro, entendido como o inimigo.
Para trazer mais um elemento empírico ao nosso debate acerca desse tipo de racionalidade punitivista, podemos refletir sobre o exemplo a "solução final" apresentada por Hitler e aplicada por Eichmann na Alemanha do período nazista. Creio que esse exemplo nos possibilite interpretar esse tipo de conduta a partir daquilo que Agamben (2004) chamou de Estado de exceção.
Para compreender a forma com que ocorreu a governamentalização do racismo de Estado pela população alemã através de intensas propagandas do Partido Nazista, proponho utilizar noção de estado de exceção elaborado por Agamben (2004), uma vez que a incorporação e reprodução daquelas verdades genocidas estavam fortemente relacionadas com o processo de higienização social, fundamentado no extermínio dos judeus, vistos não apenas como inimigos do Estado, mas como perigo biológico que deveria ser eliminado através da solução final.
Não é possível compreender a biopolítica nacional-socialista (e, com ela, boa parte da política moderna, mesmo para além do Terceiro Reich), se não se perceber que ela implica o desaparecimento da distinção entre os dois termos: a polícia torna-se agora política e os cuidados em relação à vida coincidem com a luta contra o inimigo. A revolução nacional-socialista – lê-se na introdução a État et santé - quer fazer apelo às forças que tendem para a exclusão dos factos de degeneração biológica e para a manutenção da saúde hereditária do povo. Ela visa, assim, a fortificação da saúde de todo o povo e a eliminação das influências nocivas ao desenvolvimento biológico da nação (...) Só nesta perspectiva adquire todo o seu sentido o extermínio de judeus, em que polícia e política, razões eugênicas e razões ideológicas, preocupação pela saúde e luta contra o inimigo se tornam absolutamente indiscerníveis (AGAMBEN, 1998: 140-141).

No caso da experiência nazista, o alvo das políticas punitivistas eram, sobretudo, os judeus, tratados como bode expiatório pelo governo alemão que os estigmatizava como manipuladores das finanças do mundo. Ou seja, em todos os exemplos citados ou apresentados nesse texto há sempre a figura do inimigo que aparece como um sujeito perigoso que desestrutura a organização social e que, em decorrência disso, deve ser afastado do convívio social. Essa figura pode ser desde o judeu linchado e isolado visando um trabalho produtivo até mesmo o machista "escrachado" que deve retirar-se do convívio no grupo, ambas ação proferidas de maneira pública visando a destruição da reputação e, no limite, da vida. Contudo, embora não seja possível a destruição de todos os medos focalizados na figura do inimigo, adota-se a estratégia de selecionar o bode expiatório que representaria a junção de todos esses medos transformados em ódio. Segundo Oliveira ( 2010),
(...) não podemos nos limitar em analisar os linchamentos e percebê-los como ações de reivindicação por uma melhor qualidade da justiça ou então um desejo de maior participação na construção das leis, como algumas pesquisas apontam, fechar a análise nesta perspectiva prejudica que percebamos os significados envolvidos nessas ações, que muitas das vezes não querem promover justiça alguma, já que não importam se o linchado de fato era o responsável pelo crime que lhe foi acusado, o que valoriza essa ação e a torna específica é que o ato de matar alguém que encarne os maiores problemas daquela localidade, um bode expiatório, por si só já serve como justificativa e aceitação desse ato (OLIVEIRA, 2010: 16).

Ao partir da constatação apresentada por Oliveira (2010) de que não importa se o linchado tenha sido responsável pela conduta que lhe foi atribuída, é possível localizarmos certa condição de culpa intrínseca ao acusado, mas sem a necessidade de um julgamento, conforme agem esses grupos motivados pelo punitivismo. Assim, ao afirmar que todo homem é machista, por exemplo, esses grupos possibilitam a aglutinação de diferentes supostos machismos que vão desde homens que agridem fisicamente e/ou simbolicamente mulheres quanto aqueles que simplesmente discordam das premissas apresentadas por mulheres, tornando a condição do suposto machismo difusa e dispersa, mas justificando o estabelecimento dos bodes expiatórios, conforme mostrou Oliveira (2010) ao tratar dos linchamentos.

Considerações Finais
Os benefícios atribuídos tanto aos linchamentos quanto aos "escrachos" por servir como uma lição aqueles que agem de maneira violenta, se dá na prática não a partir de uma premissa pedagógica, mas a partir de uma racionalidade voltada para a vingança, o isolamento e, no limite, extermínio do outro. Ao invés do ódio ao machismo, fundamentado no medo das violências físicas e simbólicas cometidas pela representação da masculinidade, por exemplo, o ódio volta-se aos homens, independente do fato de serem violentos ou não. Contudo, esses devem ser tratados como bode expiatórios nessa nova empreitada fundamentada na antiga caça às bruxas em busca da criação e perseguição do inimigo.
A busca pela desqualificação ou extermínio do outro, presente na leitura punitivista de certos novíssimos movimentos sociais que se afirmam a partir da negação das institucionalidades, presente em certas tradições libertárias, passou a operar como erva daninha, destruindo internamente distintas organizações sociais. Assim, a procura pela atribuição de culpa aos escolhidos como bodes expiatórios e de vítima aqueles que visam escolher os seus agressores, independente de o serem de fato, tem resultado na adoção de mecanismos de poder que operam a partir de uma racionalidade punitivista que tem no linchamento e no "escracho" condutas a serem adotadas a partir de um discurso pedagógico operado a partir da exceção as normas que já operam de maneira repressiva e punitivista, mas que diferentemente ainda garantem o direito de defesa.
Como as vítimas de linchamentos são descritas como "irrecuperáveis" e indignas de qualquer comoção pública, devendo ser afastados de quaisquer possibilidades de convívio social, embora não tenham sido sequer julgadas; com os "escrachos" essa possibilidade de defesa também é deixada de lado, valendo somente as acusações. Quando o grupo afirma que se uma mulher aponta o machismo o sujeito acusado de machismo não possui possibilidade de defesa diante do "escracho", a condição descrita ocorre de maneira bastante próxima a do linchamento. Entretanto, os prejuízos causados operam por meio de outros tipos de violências que, no limite, também podem perpassar violências físicas.
Ao justificar o "escracho" argumentando que ele operaria a partir de um caráter pedagógico que ocorre pela impossibilidade de defesa do sujeito, esse movimento se coloca ao lado de todos os exemplos apresentados anteriormente que visam a punição, independente da apuração das questões que envolvem o conflito, apresentando como saída não apenas a negação do Estado – algo que seria coerente dentro de uma perspectiva anarquista e libertária -, mas a negação de uma concepção de justiça que inclua a possibilidade de defesa daqueles que estão sendo acusados e que muitas vezes encontram-se nessa condição por serem tratados como bodes expiatórios ou como os leprosos afastados da sociedade, conforme ocorria na Idade Média. Isso sem falar dos casos em que as pessoas linchadas e/ou "escrachadas" são inocentadas. É necessário que os grupos que se afirmam como libertários, marxistas, antifascistas, anarquistas, feministas radicais, dentre outros, revejam sua racionalidade punitivista. E creio que a única saída para esse impasse se encontra na adesão ao abolicionismo penal.

Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. O Poder Soberano e a Vida Nua. Lisboa: Ed. Presença, 1998.
__________________ Estado de Exceção. São Paulo: Ed. Boitempo, 2004.
AZEVEDO, L. EMAC – UFG Relato. In PASSAPALAVRA. @s títeres pervers@s de uma luta antimachista. 06 de agosto de 2014. Acesso no dia 13 de março de 2015. (http://passapalavra.info/2014/08/98495).
BENEVIDES, M. V. Linchamentos no Brasil: Violência e Justiça Popular. In: DA MATTA, R. (org.). Violência Brasileira. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982.
CERQUEIRA, R. T.; NORONHA, C. V. Cenas de Linchamento: Reconstruções dramáticas da violência coletiva. In: Psicol. Estud. [on line]. Vol. 29. N 01. P. 30-39. 2009.
DAY, R. Gramsci is Dead: Anarchist currents in the newest social movements. Londres: Pluto Press, 2005.
ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 1997.
FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2010a.
FOUCAULT, M. Repensar a Política. Ditos & Escritos VI. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2010b.
FREEMAN, J. Trashing: O lado sombrio da sororidade (1976). In: PASSAPALAVRA, 11 de dezembro de 2014. Acesso no dia 13 de março de 2015. (http://passapalavra.info/2014/12/101362).
HOLLOWAY, J. Fissurar o Capitalismo. São Paulo: Publisher Brasil, 2013.
KARAM, M. L. A Esquerda Punitiva. In: Revista Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade. Nº 1. Ano 1. 1º semestre. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
OLIVEIRA, D. R. Quando "pessoas de bem" matam: um estudo sociológico sobre os linchamentos. In: 35 Encontro Annual da ANPOCS. GT 34 – Sociologia e Antropologia da Moral. Caxambu/MG, 2011.
SOUZA, L. Judiciário e Exclusão: O linchamento como mecanismo de reafirmação de poder. In: Análise Psicológica. Vol. 17. N. 02. Lisboa, 1999.
ZIZEK, S. Ideologia do ódio. In https://www.youtube.com/watch?v=IUF3z7Df5X0, acessado no dia 30 de março de 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.