Linguagens políticas e legitimação do poder imperial nos escritos de Eusébio de Cesareia

October 6, 2017 | Autor: Jefferson Ramalho | Categoria: Historia Antiga, Historia Cultural, Antiguidade Tardia
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LINGUAGENS POLÍTICAS E LEGITIMAÇÃO DO PODER IMPERIAL NOS ESCRITOS DE EUSÉBIO DE CESAREIA

Jefferson Ramalho1

Resumo Este artigo pretende apresentar algumas relações entre o modo como Eusébio de Cesareia, escritor do século IV de nossa era, tratou da figura do imperador romano Constantino I e as questões sobre legitimação de poder e linguagens do ideário político tratadas por John Greville Agard Pocock e Elías José Palti. Palavras chave: Constantino, Eusébio, linguagens políticas, legitimação de poder. Introdução Nosso objeto de pesquisa é o imperador romano Constantino I – que a aqui chamaremos apenas de Constantino – segundo a obra de seu contemporâneo Eusébio de Cesareia, intelectual e bispo cristão do início do século IV da nossa era. Assim, optamos por relacionar algumas características da discursiva de Eusébio em favor de Constantino, com o que compreendemos das leituras que fizemos de alguns textos que compuseram o nosso curso. Por razões didáticas, estruturaremos esta breve exposição em três momentos: 1) Constantino, um imperador a partir de diferentes olhares: será neste momento que conheceremos um pouco de algumas fontes escritas, tanto aquelas atribuídas a Eusébio como de outros autores e épocas, que tratam desta personagem política da Antiguidade; 2) Linguagens políticas em John Greville Agard Pocock e Elías José Palti: aqui, de maneira sintética, destacaremos alguns pontos importantes destes dois autores, sobretudo, aqueles nos quais estão claras as suas relações com o nosso objeto de pesquisa; 3) Linguagens políticas e legitimação do poder imperial nos escritos de Eusébio: finalmente, verificaremos de maneira breve um exemplo do modo como a discursiva de Eusébio se preocupava em legitimar o poder imperial de Constantino.

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Doutorando em História no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Licenciado em História pelo Centro Universitário Assunção (UNIFAI) e Bacharel em Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Contato: [email protected]

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1. Constantino, um imperador a partir de diferentes olhares Para conhecermos acerca do imperador romano Constantino é importante mencionarmos tanto alguns dos seus traços biográficos mais conhecidos como as fontes que o protagonizam. Logo, é fundamental citar seu biógrafo Eusébio. A este escritor somos devedores por deixar a maior parte das informações que conhecemos acerca de Constantino. Não parece possível pensar nos traços biográficos mais conhecidos deste imperador sem considerar a contribuição de Eusébio, que escreveu utilizando-se de uma linguagem e de uma discursiva não apenas religiosas, mas claramente políticas. O grande problema, porém, está no fato de que este intelectual entendia que a história de Constantino por ele escrita era uma espécie de reprodução fiel daquilo que o imperador vivera e, mais do que isso, daquilo que a divindade dos cristãos lhe providenciara a viver. É por esse motivo que na história da historiografia, textos como os de Eusébio são considerados escritos que seguem uma tendência providencialista e teleológica da história, ou seja, além do escritor relatar o que aconteceu, sua discursiva reproduzia o que aconteceu porque Deus quis que acontecesse, salientando, inclusive, uma finalidade por trás de todo aquele enredo. Eusébio, por ser um escritor religioso, não conseguia conceber uma história que estivesse fora ou desconectada da chamada providência divina. Assim, apresentará um Constantino que se tornou piedoso e generoso para com os cristãos pela simples razão de ter sido ele o governante escolhido por Deus para livrá-los da repressão romana que sofriam havia cerca de duzentos e cinquenta anos. Constantino, segundo a historiografia tradicional, nasceu entre 272 e 274 em Naissus, situada ao sul da atual Sérvia, na divisa com a Bulgária. Há pouco informado acerca da sua infância, da sua formação educacional, do seu cotidiano na juventude. Mesmo as informações sobre a sua atuação no exército antes de se tornar imperador não passam de conjecturas. No entanto, o Constantino que nos interessa é aquele que a partir de 306 se tornou um dos imperadores da Tetrarquia romana, instituída por Diocleciano alguns anos antes e que empreenderia uma política de restauração da Monarquia, o que só aconteceria em 324. Assim, Constantino se tornará monarca do Império Romano a partir daquele ano até sua morte, em 337. Uma sucessão de conflitos se estabelecera para que Constantino conseguisse seu objetivo de se tornar monarca. A morte de Galério, as vitórias sobre Maxêncio e Licínio, o rompimento com a religião tradicional de Roma e a adesão à religião dos cristãos são alguns fatores que se destacam na sua biografia tradicional. No entanto, não

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é nosso objetivo reproduzi-los e detalhá-los neste artigo, pois o que pretendemos é pensar nas fontes mais comuns a seu respeito que, ora coincidem ora se chocam nas informações que fornecem. Também é nosso interesse observar o modo como os referenciais teóricos do nosso curso nos permitem fazer uma releitura da discursiva de Eusébio, e, se possível uma releitura crítica que nos possibilite identificar a linguagem política de seus escritos como formas de legitimação do poder imperial de Constantino. Em primeiro lugar e de maneira inevitável, a documentação sobre Constantino a ser mencionada é aquela que chamaremos de corpus eusebianus, ou seja, todo o conjunto de obras atribuídas a Eusébio que tratam de maneira direta da figura do imperador que estamos investigando. São elas: a História eclesiástica2, a Vida de Constantino3 e os Elogios a Constantino4. A partir de uma leitura crítica dessas narrativas, pretendemos demonstrar que Eusébio não só inaugura um gênero literário, mas o faz de maneira panegírica, referindo-se ao imperador como sendo um herói que, graças à providência divina, foi escolhido para libertar os cristãos da opressão romana. A leitura que pretendemos desenvolver das obras atribuídas a Eusébio se justifica no fato de que são elas as representações da primeira e mais conhecida versão literária acerca de Constantino. Problematizando-as, poderemos, além de encontrar os seus percalços em matéria de conteúdo e de gênero literário, comparar com aquelas miragens de Constantino que se mostram em outros momentos através de textos divergentes a Eusébio e nas fontes materiais datadas do próprio século IV. Estas nos permitirão encontrar outros perfis da mesma personagem. Ressaltamos que faremos as leituras dessas três obras atribuídas a Eusébio a partir de suas versões em língua grega. Em segundo lugar, nos colocaremos em contato com obras historiográficas que trataram do mesmo caso, ou seja, a figura de Constantino, porém, não sob a perspectiva cristã, eusebiana, teleológica, mas amparadas na pretendida objetividade iluminista, racionalista, historicista e, de certo modo, científica. Foram estudiosos desse período que, ecoando, mesmo que de maneira parcial, as críticas de um Zózimo5, viram em

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cf. EUSEBIO DE CESAREA. Historia eclesiástica; [version, introduccion y notas: Argimiro VelascoDelgado, O.P.]. – Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2001. Texto blilingüe. 3 cf. EUSEBIO DI CESAREA. Vita di Costantino; [Introduzione, traduzione e note di Laura Franco / testo greco a fronte]. Milano: BUR Rizzoli, 2009. 4 cf. EUSEBIO DI CESAREA. Elogio di Costantino – discorso per il trentennale e discorso regale; [Introduzione, traduzione e note di Marilena Amerise]. Milano: Paoline, 2005. 5 Opositor pagão veemente da política constantiniana, que viveu no final do século V e início do século VI. Sua grande obra historiográfica que é marcada pelas críticas à figura de Constantino é intitulada Nova História. cf. Zosime. Histoire nouvelle. Tome I, livres I et II. Texte établi et traduit par François Paschoud. Paris: Belles lettres 1971.

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Constantino um político inescrupuloso e calculista, mas que na pena de Eusébio terá recebido todas as honras, além de uma imagem quase incorruptível de herói e salvador da cristandade. O suíço Jacob Burckhardt (1818-1897), a exemplo de outros do seu tempo que na certeza de que poderiam reproduzir fatos reais, entendia que o Constantino de Eusébio não passava de uma invenção do escritor cristão a fim de favorecer a sua religião e a sua visão providencialista e teleológica da História. Para esses historiadores, historicistas nos moldes de um Leopold von Ranke (1795-1886), seria possível por meio de outros textos oficiais, chegar à imagem real do imperador. O próprio Burckhardt entendia que Constantino estava longe de ter sido um líder público escolhido pela providência divina para promover a paz e a liberdade nos territórios sob seu domínio, mas que terá sido um político que se utilizou da religião para, tal qual o príncipe de Maquiavel, se garantir a todo custo no poder6. A obra Die Zeit Constantins des Großen, de Burckhardt, parte de uma exposição do contexto político-imperial no século III, detalha o governo de Diocleciano, discorre acerca de aspectos geográficos e sociais do Ocidente e do Oriente, apresenta o pano de fundo religioso sincrético, expõe os diferentes conceitos de imortalidade e o processo de rejeição dos cultos politeístas por parte dos cristãos, trata dos aspectos culturais do mundo antigo e se encerra com três capítulos nos quais detalha a ascensão de Constantino, sua trajetória política, seus embates militares, seus empreendimentos culturais, políticos e econômicos, sua relação com a religião cristã e sua morte. 2. Linguagens políticas em John Greville Agard Pocock e Elías José Palti Neste tópico iniciaremos com uma breve apresentação das trajetórias de John Greville Agard Pocock e de Elías José Palti, antes de tratarmos dos seus textos. O argentino Elías José Palti é um dos historiadores mais atuais e profícuos nos estudos da história intelectual da América Latina. A profundidade de suas pesquisas sobre a história política, literária e cultural, tem atualizado as discussões sobre os avanços políticos desta região e as releituras de conceitos como democracia.7 6

A obra de Burckhardt acerca de Constantino é a famosa A era de Constantino, o Grande. cf. (reedição da versão original em alemão de 1852) BURCKHARDT, Jacob. Die Zeit Constantins des Großen, C.H. Beck, München, 2013 ou (versão italiana) BURCKHARDT, J. L’età di Constantino il Grande. Roma: Sansoni Firenze, 1957. Segundo Antonio Edmilson Martins Rodrigues, neste livro de Burckhardt “é possível notar a atenção do autor para as ideias formadoras das ações e mesmo discutindo as ações políticas, esmera-se em destacar o ambiente cultural como decisivo para os resultados obtidos.” Jacob Burckhardt (1818-1897). In: PARADA, Maurício (org.). Os historiadores clássicos da História vol. 2 – de Tocqueville a Thompson. Petrópolis, RJ: Vozes, PUC-Rio, 2013, p. 96. 7 Disponível em: . Acesso em 24 jul. 2014.

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O inglês John Greville Agard Pocock, nascido em 1924, residente nos Estados Unidos desde 1966, se especializou em história do pensamento político. É conhecido por suas pesquisas sobre o republicanismo no início da Modernidade, sobretudo na GrãBretanha, na Europa e na América, e, tem contribuído significativamente com seus estudos e publicações acerca da história do discurso político.8 Embora Palti e Pocock sejam intelectuais preocupados com contexto históricos e geográficos muito distantes daquele que estudamos, em seus textos há formas de trabalhar com certas expressões como teleologismo, ideias políticas, revisionismo, usos da linguagem, discursiva, entre outras, que em vários momentos se aproximaram das questões teóricas que têm sido importantes em nossas leituras e interpretações da obra de Eusébio e, em particular, do modo como ele elaborara sua narrativa em defesa do imperador Constantino. Palti, por exemplo, está interessado em verificar certos usos, não do passado, mas de termos que compõem esse grande arcabouço chamado de linguagens políticas. Para isso, segundo ele, é necessário que se faça uma revisão que seja tanto historiográfica como bibliográfica. É neste sentido que Palti pensa no processo de múltiplas interpretações do processo de Independência dos Estados Unidos. Uma vez interessado em compreender os usos e o conceito de termos como “nação”, por exemplo, sua grande questão será: como aconteceu essa mudança conceitual que norteou o processo de Independência? Há que considerar que para ele essa mudança conceitual é, ao mesmo tempo, um giro político conceitual. Não se trata, portanto, de uma questão meramente filológica ou linguística, pois há um ideal político por trás dos usos de determinadas expressões em certas construções narrativas. É o que pretendemos ver nos escritos de Eusébio acerca do imperador Constantino. Conforme concluíamos em nossas discussões sobre a leitura de Palti, em especial quando o comparamos com Fernando Catroga, havia antes de tudo, além de um ideal emancipatório, uma luta política e uma ideia de nação que havia sido imposta. Catroga é um historiador que leva em consideração a historicidade das palavras, buscando uma reflexão sobre antigos conceitos. Esse processo é chamado pelo próprio Catroga de “evolução semântica”. Para ele, pensar em evolução política é muito complexo, pois a palavra “evolução” vem carregada de sentidos. Por exemplo, ela está por muitas vezes próxima da ideia de teleologia, ou seja, finalidade, o que não pode ser 8

Disponível em: < http://www.history.ac.uk/makinghistory/historians/pocock_john.html>. Acesso em 24 jul. 2014.

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praticado por um historiador, embora Eusébio o tenha feito dezessete séculos atrás. A nossa questão talvez seja se Eusébio pode efetivamente ser considerado um historiador ou se, em sua época, era comum que um historiador, religioso ou não, escrevesse a história sob uma perspectiva teleológica. Com tantas correntes historiográficas, hoje parece unânime a opinião de que há duas práticas com as quais todo historiador deve tomar cuidado: uma é o anacronismo e a outra é a teleologia. O próprio Palti parece praticar certo anacronismo, ainda que controlado, pois ele sabe que é impossível olhar, por exemplo, para os séculos XVIII e XIX sem expectativas prévias. Isso porque, neste caso, um historiador ou mesmo um leitor estarão sempre em um tempo diferente do tempo do documento em análise. Nos seus estudos sobre a América Latina, Palti defende a necessidade de uma reconstrução das condições que tornaram possível a emergência de certos postulados de que, por exemplo, a soberania passaria para o povo se a monarquia fosse derrubada. Porém, ele não discorda que as chamadas “críticas revisionistas" dão espaço a um novo universo de dúvidas que, desde o início, todos sabem que não têm respostas. Perguntamos: é possível pensar desta maneira, se for questionado o enredo de Eusébio acerca do início da derrubada da tetrarquia romana por meio do conflito entre Constantino e Maxêncio, em 312? Estaria mesmo Constantino tão próximo e em favor do povo romano quando derrubara este seu adversário caracterizado por Eusébio como um terrível tirano? E se pensarmos na restauração da monarquia romana, em 324? Não desconsiderando as devidas proporções, ou seja, todas as diferenças e distâncias de tempo histórico e elementos culturais, muito do que foi comentado acerca da crítica revisionista na historiografia também nos fez levar em conta muitas questões que devem ser repensadas em nossa leitura da obra de Eusébio. No primeiro capítulo da sua obra Linguagens do ideário político, Pocock apresenta uma espécie de história sobre o discurso político. Deixa claro que, em sua opinião, o ato de escrever é aberto, assim como as intenções de quem escreve. Perguntase, portanto, se é possível identificar um autor em seu tempo e se é possível resgatar as intenções deste autor. Para Pocock, por trás dessa passagem do discurso político existe um avanço das linguagens. Cabe ao historiador a análise da funcionalidade e da retórica do discurso político. É o que faremos com os panegíricos de Eusébio a Constantino e com os discursos políticos deste imperador registrados pelo próprio Eusébio. Nesse trabalho analítico inclui a identificação do idioma usado na época, mas sempre considerando que linguagem e língua são categorias diferentes, embora

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interligadas quando pensamos em discursiva política, pois há códigos que possibilitam a comunicação. Por isso que o idioma é indiscutivelmente um fator de suma importância para a análise semântica que o historiador fará de determinado discurso político. O historiador, segundo Pocock, também perceberá a própria historiografia como discurso ou, às vezes, o contrário, o discurso se torna trabalho historiográfico. Qual será o caso de Eusébio? São aplicadas em uma discussão historiográfica as mesmas técnicas utilizadas em um trabalho de investigação de fontes. Pensando na discursiva política, o idioma funciona em um sentido preciso de apropriação da linguagem e como forma de legitimação do próprio discurso. O idioma é, neste caso, uma espécie de dialeto político, no qual conceitos são apropriados, transformando toda a linguagem, mesmo que algumas terminologias sejam utilizadas de maneira metafórica. Os idiomas são, para Pocock, argumentos sócioculturais com uma função específica, uma retórica própria e um vocabulário bem peculiar, ligando atividades e práticas institucionais. Uma atividade linguística, por exemplo, poderá ser composta por diferentes idiomas, assim como pode gerar “novos idiomas” no contexto de um mesmo discurso. (cf. POCOCK, 2003: 63-70) Há que salientar que no trabalho do historiador, uma coisa é aprender algo sobre o texto a ser analisado, outra é aprender algo sobre o contexto histórico desse texto. É sempre importante conhecer o cenário em que o texto está inserido, para que sejam acompanhadas as inovações ocorridas em uma discussão política já existente. Burckhardt, por exemplo, ao criticar a política constantiniana, possivelmente seguia a mesma linha que adotou ao criticar os tiranos absolutistas em sua pesquisa sobre a cultura do Renascimento italiano publicada originalmente em 1860. É importante se preocupar com as categorias disponíveis ou não para os autores do período estudado; o historiador também deverá identificar os indícios de quando as palavras foram usadas de novas formas, resultando de novas experiências. Isso porque as linguagens políticas são sempre instrumentais, tendo a intenção de convencer quem as recebe, seja por meio da audição ou da leitura. Esta era a intenção da narrativa de Eusébio, dos discursos de Constantino, mas também de seus críticos, como Burckhardt. O historiador, ao analisar determinado texto caracterizado pelo uso de linguagens políticas, perceberá que algumas vezes certas expressões ganham diferentes significados em um mesmo discurso. Há contextos sincrônicos e diacrônicos nesse processo de usos da linguagem no discurso político. Pensemos, por exemplo, na palavra “tradição” que, dependendo dos tempos históricos, será lida e relida de diferentes

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maneiras. Por isso não é difícil perceber o quanto que um discurso político é flutuante e um trabalho historiográfico pode também ser e acaba sendo um discurso político. 3. Linguagens políticas e legitimação do poder imperial nos escritos de Eusébio A obra de Eusébio, em particular ao tratar de Constantino, embora tenha sido escrita no século IV, é um bom exemplo daquilo que Pocock trata em seu texto sobre linguagens políticas. Segundo ele, instituições políticas e religiosas podem ser tanto justificadas como atacadas por meio do discurso político. Obviamente, Eusébio utilizouse de um discurso político no sentido de defender Constantino e criticar seus oponentes. O objetivo dessa discursiva, segundo Pocock, é o de estabelecer possibilidades para o próprio discurso e se amoldar ao fluxo dos acontecimentos. Temos estudado Eusébio como exemplo de uma discursiva de legitimação política e também religiosa, mas também como pioneiro dessa tendência. Outros intelectuais, historiadores, pensadores políticos, ao longo da história, escreverão seguindo o modelo de Eusébio. Quando fala sobre as relações e tensões entre Igreja nacional e Parlamento, na Inglaterra do século XVII, Pocock nos mostra que um fenômeno semelhante àquele dos tempos de Eusébio e Constantino voltava a ocorrer. E, da mesma maneira, houve aqueles que, por exemplo, no intuito de legitimar todo o processo, defendiam a queda da Monarquia e a subida ao poder por parte dos membros do Parlamento, o que automaticamente significava o triunfo dos chamados “puritanos”. Por outro lado também havia um grupo de intelectuais que estavam comprometidos com a elaboração e propagação de outro discurso político, ou seja, aquele que visava justificar o poder monárquico e preeminência da Igreja nacional que, desde Henrique VIII e Elizabeth I não era mais a Católica Romana, mas a Anglicana. De qualquer maneira, em meio às alianças e rupturas, integridade e corrupção, que possam ter existido em todo aquele processo envolvendo Rei, Parlamento e Igreja nacional, Pocock que nos apresentar um cenário histórico que tinha como elemento determinante a legitimação de poderes institucionais através de discursos políticos. A obra de Eusébio, nosso objeto de pesquisa, não foi diferente, e é isso que nos tem interessado explorar com maior cuidado. Por essa razão, encerramos nossa tentativa de relacionar as leituras que fizemos de Palti e Pocock com um pouco do que temos estudado. A seguir, no sentido de exemplificar como a discursiva de Eusébio foi elaborada, seguem alguns fragmentos de seu texto carregado de uma linguagem política,

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mais que religiosa, que demonstra de maneira explícita o seu intento de promover a figura do imperador Constantino utilizando-se, inclusive, de argumentos religiosos. A discursiva abaixo, distribuída em cinco parágrafos, foi extraída do décimo terceiro capítulo do Livro VIII da obra de Eusébio intitulada História eclesiástica: §11. Efetivamente, tendo uma infausta enfermidade abatido o primeiro e principal dos que temos mencionado [Diocleciano], transtornandolhe a mente até aliená-lo, retirou-se à vida corrente e privada juntamente com o que ocupava o segundo posto nas honras [Maximiano]. Mas, isso ainda não havia acontecido, e todo o Império dividia-se em dois, coisa que jamais, ao que se recorda, ocorrera anteriormente. §12. Porém, depois de um breve intervalo, o imperador Constâncio, que por toda a sua vida havia tratado os seus súditos com a maior suavidade e benevolência e para com a doutrina de Deus com a melhor amizade, terminou sua vida conforme a lei comum da natureza, deixando a seu filho legítimo Constantino como imperador e Augusto em seu lugar. Clemente e suave mais que os outros imperadores, ele foi o primeiro a quem proclamaram deus, sendo considerado digno de toda a honra que se deve a um imperador após a sua morte. §13. Ele foi também o único dos nossos contemporâneos que em todo o tempo de seu mandato se comportou de um modo digno do Império. Além do mais, a todos se mostrou o maior acolhedor e benfeitor, não participando da menor guerra contra nós, antes até, preservou livres de dano e de constrangimento aos fiéis que eram seus súditos. Tampouco derrubou os edifícios das igrejas nem admitiu inovação alguma contra nós, tendo para a sua vida um final triplamente abençoado, pois foi o único que morreu como querido e glorioso, junto ao seu sucessor, seu filho legítimo, prudentíssimo e muito piedoso em tudo. §14. Seu filho Constantino, proclamado imediatamente desde o começo imperador absoluto e Augusto pelas legiões, e muito antes destas, pelo próprio Deus, imperador universal, mostrou-se sucessor de seu pai na piedade para com a nossa doutrina. Assim era este homem. Porém, além deles, foi proclamado a Licínio como imperador e Augusto por voto comum dos imperadores. §15. Este fato irritou terrivelmente a Maximino, que até então ainda seguia para todos como o único com o título de César. Em consequência, como era um grande tirano, fraudulentamente atribuiu para si a dignidade de Augusto, declarando-se como tal por si mesmo. Neste tempo, foi surpreendido [Maximiano] tramando um atentado contra a vida de Constantino a aquele que, segundo se tem demonstrado, após sua abdicação voltou ao cargo e morreu com a mais vergonhosa morte. Foi o primeiro do qual destruíram as inscrições honoríficas, as estátuas e tudo o que se costumava oferecer, como de um homem por demais infame e ímpio.

Podemos perceber neste discurso de Eusébio uma nítida defesa à figura do imperador Constantino. Além dos elogios ao imperador, é usada de maneira explícita uma linguagem típica de um olhar providencialista da História. A linguagem política, e

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não apenas religiosa, de Eusébio, começa mencionando o imperador Diocleciano, responsável por promover aquela que depois será chamada de “última grande perseguição” contra os cristãos, prossegue citando de forma honrosa o imperador Constâncio, pai de Constantino, e, encerra fazendo referência a Licínio, que se tornará adversário de Constantino na batalha de 324 e aos “tiranos” Maximino e Maximiano, ambos opositores em momentos distintos da política constantiniana, que segundo Eusébio era a mais adequada, a mais tolerante e, sobretudo, a escolhida por Deus. Considerações finais É importante ressaltar novamente que no presente artigo nos preocupamos apenas em pontuar breves relações do nosso objeto de pesquisa com algumas das leituras que fizemos das obras de Palti e Pocock. Haveria, portanto, muito a ser percebido e, consequentemente, escrito. No entanto, em função das delimitações de espaço para um artigo dessa natureza, da nossa pouca familiaridade com esses autores e dos objetivos que tínhamos para este texto, consideramos que tenhamos atingido o que pretendíamos. Podemos concluir que várias ideias sobre discurso e linguagens políticas em Palti e em Pocock serão muito úteis à nossa pesquisa e, sem dúvida, serão referenciais que não deixaremos de aproveitar no prosseguimento do nosso trabalho. Referências BURCKHARDT, J. L’età di Constantino il Grande. Roma: Sansoni Firenze, 1957. BURCKHARDT, J. A cultura do renascimento na Itália – um ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. EUSEBIO DE CESAREA. Historia eclesiástica. Madrid: BAC, 2001. Texto blilingüe. EUSEBIO DI CESAREA. Elogio di Costantino – discorso per il trentennale e discorso regale. Milano: Paoline, 2005. EUSEBIO DI CESAREA. Vita di Costantino. Milano: BUR Rizzoli, 2009. Testo greco a fronte. PALTI, Elías José. Historia de ideas e historia de lenguajes políticas – acerca del debate en torno a los usos de los términos "pueblo" y "pueblos". Varia Historia, Belo Horizonte, Jul 2005, vol.21, nº 34, p. 325-343. PALTI, Elías José. El tiempo de la política – el siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: siglo XXI Editores, 2007. PARADA, Maurício (org.). Os historiadores clássicos da História vol. 2 – de Tocqueville a Thompson. Petrópolis, RJ: Vozes, PUC-Rio, 2013. POCOCK, J. G. A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Editora da Universidade de São. Paulo, 2003. (Clássicos; 25) ZOSIME. Histoire nouvelle. Tome I, livres I et II. Texte établi et traduit par François Paschoud. Paris: Belles lettres 1971.

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