Linha, novelo e leque: algumas sinuosidades no relacionamento entre história e memória

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Mesa-redonda: O que é memória? O que significa lembrar? O que é esquecer? Primeiro bloco: Memórias, culturas, diversidades

LINHA, NOVELO E LEQUE: ALGUMAS SINUOSIDADES NO RELACIONAMENTO ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA

Alfredo Bronzato da Costa Cruz1

Uma questão com a qual se deparou todo professor de História, especialmente aquele chamado a falar diante de um público de não historiadores, é a seguinte: como você, que não estava lá, pode me dizer que isto aconteceu? Eu mesmo, quando criança, fiz muitas vezes esta pergunta, algumas vezes em voz alta; em última instância, é ela que determina o cuidado todo particular que este tipo de estudioso normalmente tem com as referências bibliográficas e documentais que integra e questiona em sua pesquisa. Tal pergunta, só aparentemente simples, conduz em um átimo ao cerne da distinção entre história e estória, entre o relato não apenas verossímil, mas verídico, e a invencionice, a ficção e a mentira. Uma resposta que se pode dar a esta questão é a seguinte: o historiador conta a história, não a estória, porque seu relato não é arbitrário. Ele reconstrói as tramas do passado a partir de seus escombros, daqueles seus restos, sobreviventes a seu próprio tempo, que elege como indícios e integra em uma narrativa verídica. A verdade com a qual trabalham os historiadores, portanto, seria de tipo diagnóstico e jurídico: semelhante aos médicos, eles falam de processos e de tendências, eventualmente amplos, nem sempre claros, a partir de alguns poucos sintomas, emergentes quase ao acaso; semelhantes aos detetives ou aos promotores, eles reconstituem cenas que não presenciaram a partir de seus vestígios, de provas materiais e de uma análise criteriosa dos testemunhos disponíveis (GINZBURG, 1989; GINZBURG, 1993). Semelhantes analogias podem fazer vir à superfície do pensamento uma imagem mitológica clássica: a do herói que, para sair do labirinto no qual confrontou ou irá confrontar o minotauro, reencontra e segue uma linha, que lhe serve de guia, que o conduz incólume através do mistério, levando-o da obscuridade à luz, do perigo à segurança

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Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História do Centro de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGH-CCHS/UNIRIO). Professor assistente das Pós-Graduações lato sensu em História Antiga e Medieval – Religião e Cultura e em Ciências da Religião da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7356386509536437

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Figura 1: Jean-Baptiste Regnault (1754-1829), Ariadne e Teseu, s. d. Museu de Belas Artes, Rouen, França.

(GINZBURG, 2007, pp. 7-14) [FIGURA 1]. Nesta compreensão do trabalho do historiador, o real estaria praticamente em repouso bidimensional, à espera do sujeito que reencontraria o fio da meada para dizer-lhe e, fazendo-o, solucioná-lo. Essa história que se propõe dizer o passado de forma mais ou menos inequívoca é marcada por uma série de relações ambíguas, sinuosas com a memória. Ao mesmo tempo em que se propõe estar acima e além das idiossincrasias das lembranças das pessoas e das coletividades, ela positivamente afirma uma versão do passado que se supõe fiel ao acontecido; digamos, jogando com a ambiguidade dos termos, uma Memória com maiúscula, dotada de maior consistência que o emaranhado novelo das memórias que se abrigam em nossas mentes, corpos, práticas, símbolos, afetos, textos e espaços de sociabilidade. Para citar um exemplo mais do que ilustre, Heródoto de Halicarnasso, que a tradição ocidental justamente elegeu como pai da História, escreveu sua famosa investigação para “evitar que os vestígios das ações praticadas pelos homens se apagassem com o tempo e que as grandes e maravilhosas explorações dos Gregos, assim como as dos Bárbaros, permanecessem ignoradas; desejava ainda, sobretudo, expor os motivos que os levaram a fazer guerra uns contra os outros” (História, t. 1, prólogo). No início de seu trabalho, após listar em resumo as 2

estórias pelas quais Fenícios, Persas, Troianos e Gregos explicavam e justificavam suas belicosas inimizades, ele passa a narrar sua própria versão dos fatos, constituída a partir do que viu e mensurou. A partir de – e contra um – novelo de distintas memórias, Heródoto propõe a sua história, linear, que se quer uma versão fiel, não mítica dos fatos, certo de que ela, por seu próprio peso de realidade, teria condições de instaurar uma memória mais densa, brônzea, em lugar da rarefação dos contos tradicionais. Outro exemplo, quase um milênio posterior, ajuda-nos a esboçar uma tendência, a ver de relance os liames da constituição multissecular de um campo de conhecimento, de uma forma propriamente histórica de se enquadrar a experiência humana no mundo. Eusébio de Cesareia, bispo cristão, escreveu sua obra magna tendo como “(...) propósito consignar as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus; e também quantos, quais e quando, absorvidos do erro e levando aos extremos suas fantasias, proclamaram publicamente a si mesmos introdutores de um mal chamado conhecimento e devastaram sem piedades, como lobos cruéis, o rebanho” (História Eclesiástica, t. 1, §1). Para realizar este alto propósito, Eusébio, depois de reunir o que achava de “aproveitável nos velhos autores”, procurou “dar corpo a uma trama histórica” que preservasse “do esquecimento as sucessões, se não de todos os apóstolos de nosso Salvador, ao menos dos mais importantes nas Igrejas mais ilustres, que ainda hoje são lembradas” (t. 1, §4). Novamente aqui uma relação sinuosa entre história e memória: o bispo de Cesareia pretendeu partir das diversas memórias que conviviam e conflitavam no interior da comunidade cristã a respeito do desenvolvimento e da natureza deste movimento para estabelecer uma história, um relato unívoco que colocasse cada coisa no lugar que considerava devido – aos seus santos correligionários, a lembrança honrada; aos heréticos, aos competidores, não o esquecimento, do qual poderiam vir a ser resgatados pela curiosidade ou erudição de algum incauto, mas a infâmia. É outra a base cultural sobre a qual se assenta o relato de Eusébio em relação ao de Heródoto, mas a mesma pretensão de agir ao mesmo tempo como juiz das memórias e demiurgo de uma nova Memória, com maiúscula, não apenas verossímil, mas verídica. Neste ponto, entretanto, validamente se pode questionar: se os historiadores pretendem dizer o real, o passado para além da memória, o passado não como lembrado, mas como 3

acontecido, como explicar que as histórias que eles contam sobre os mesmos períodos, os mesmos personagens, os mesmos objetos, para usar uma palavra fatal, são tão diferentes entre si, eventualmente até mesmo opostas, inconciliáveis? Em primeiro lugar, deve-se admitir não se trata apenas do contraste de ênfases diversas, talvez complementares, mas que há necessariamente um forte elemento construtivo na narração da história – não apenas na sua redação, onde convergem também as referências literárias, as adesões e afinidades, os interesses, conscientes ou não, e as possibilidades e limites da criatividade do sujeito que escreve, mas em todas as etapas da pesquisa histórica, este grande esforço de imaginar como outras pessoas perceberam e fizeram a experiência de tempos e locais também outros. Em segundo lugar, impõe-se admitir que a história está fundada neste paradoxo que é uma violência fundadora: quer estabelecer uma Memória pela violação de outras. O historiador saqueia as memórias alheias, escritas ou orais, individuais ou grupais, para gestar sua própria versão dos fatos. É um necessário manipulador, no sentido estrito do termo; sem este roubo, nada lhe seria possível conhecer, nada lhe seria possível falar, de modo que o que conta depende não apenas de si mesmo, mas das características do espólio que pôde reunir (ALBUQUERQUE JR, 2007, pp. 199-207). Que isso não nos pareça demasiado chocante, porque descreve um procedimento que, de fato, é bastante corriqueiro. As lembranças possuem um direito próprio com o qual só é possível discutir em termos atuais e, de forma estrita, em termos de seu lugar e pertinência políticos. Os que se lembram, honestamente só podem lembrar da forma que o fazem: tentando pôr-se no lugar que ocupavam na época do fato lembrado e, simultaneamente, narrando este esforço de memória a partir de uma perspectiva explicitamente incapaz de desvincular-se do presente a partir do qual se lembra. Tanto a matéria da recordação que atualizam como o viés inevitavelmente anacrônico que as condições do agora impõem têm um grande interesse; pois há texturas do vivido que, mesmo que se saiba de antemão que estarão saturadas pelo presente em que se recorda, somente se podem recuperar nestes empreendimentos de memória (SARLO, 2005, p. 136). A história, compreendida enquanto campo de conhecimento mais ou menos sistemático, não como acúmulo de experiências, entretanto, pretende fazer outra coisa: consumir, digerir e regurgitar estas memórias em um relato estruturalmente distinto delas, relato que pretende a ver o passado com os olhos do próprio passado – não de fato, mas como propósito ideal. Aqui se impõe uma distinção entre historiografia e memória histórica, tênue, talvez até inexistente na ordem das coisas práticas, para fora do círculo dos teóricos, mas ainda assim 4

importante como elemento bom para se pensar. A memória instaura um passado projetando nele dados e tensionamentos fornecidos pelo presente, agrupando fatos convencionados como históricos porque aconteceram no ontem e porque têm repercussões nas lembranças e nas definições pessoais e coletivas daqueles para os quais têm significado; trata-se daquela parte da história escrita e não escrita que parece “romance que os meninos barbados folheiam, largam, retomam, deturpam” (RAMOS, 2006, p. 58). Já a historiografia é uma reinvenção do passado feita por especialistas, idealmente orientados não apenas pelos pré-conceitos do imaginário coletivo, mas deles apartados por um aparato teórico e metodológico mais sofisticado, que tenta dar conta deste passado com suas significações várias. A história instaura um tempo abstrato, resumo de múltiplas experiências das quais busca captar o sentido e o significado mais geral, em oposição à memória, sempre particularizada, tanto ao nível do coletivo quanto do individual. A tentativa de esboçar um processo se opõe aqui às constelações de lembranças, de passados diferentes entre si; a história busca ir além da imagem que os próprios grupos fazem de suas ações, da natureza que esculpiram para si mesmos e se puseram a venerar e defender. Não que era seja neutra, muito ao contrário; é transpassada inteira pela imaginação e pela política de forma tão ou mais intensa que os aglomerados de memórias. Mas o é de forma significativamente diversa, na medida em que se pretende guarnecida a sério por uma instrumentação crítica que permite rever permanentemente seus pressupostos, de modo que é discurso em movimento, em mutação. De outro lado, a memória cristaliza e pontifica, alicerçada na autoridade do olhar ou da tradição, serva e fundamento da constituição das identidades (ALBUQUERQUE JR, 2007, pp. 205206). A História, sobretudo, pretende-se conceitualização, ou seja, intervenção de categorias abstratas que permitam a reelaboração de um passado que coexista com o presente do historiador não em contínuo, mas em sua especificidade, em sua diferença inalienável. Daí que a relação da história com a memória é um balé, mas um balé violento, onde a violência se pratica com as armas dos conceitos, do pensamento, da razão [FIGURA 2]. Violência não apenas contra os idílios das épocas de ouro, daquelas infâncias nas quais tudo se fez, na qual tudo era melhor, mas também contra os preconceitos, contra os imobilismos, contra as pretensões de naturalidade e permanência de olhares e enquadramentos que, humanamente instaurados, podem vir a ser desfeitos. Violência que retorce as temporalidades das memórias, geralmente curtas, que falam das experiências dos indivíduos ou dos grupos, e força-as ao cotejo com outras versões dos mesmos fatos, com os quais talvez nunca quiseram se medir. 5

Figura 2: Kylli Sparre, s.n., s.d. (Extraída de http://www.sparrek.org/).

Não à toa a história moderna, história-problema, tem uma relação genética com uma historicidade marcada pela noção de progresso, do qual acabou, afinal, por rejeitar ou expurgar o juízo de valor só para reter a noção de que o mundo sublunar é o mundo do inexorável devir, daquilo que está em permanente mutação; desconfiando de uma memória que crê inevitavelmente maculada por uma corrosão interna, rompe com o tempo cíclico do camponês e com o tempo sacro do clérigo, para reorganizar de maneira que supõe mais conveniente os restolhos do passado; assim sendo, projeto clássico e neoclássico, faz-se prima-irmã apolínea da literatura de terror, da tradição gótica. Enquanto a memória incorpora os outros apenas no caminho da reiteração da identidade, a história, caso se livre deste viés iluminista que é sua marca de nascença no mundo contemporâneo, tem a possibilidade de 6

abrir-se ao outro, interpretá-lo, cotejar seus olhares. A memória surge de uma relação consigo mesmo, enquanto a história surge de uma constatação da alteridade e da necessidade de se lidar com ela de alguma forma (ARAÚJO, 1988, p. 39-42; ALBUQUERQUE JR, 2007, pp. 206-207). Mas longe está o tempo em que se podia contar com a luz do passado para iluminar o presente, em que se considerava a história como um relato por definição mais confiável, além e acima, de outras versões do ocorrido. As contraditórias lembranças da multiplicidade das experiências, disparatadas e sem roteiro prévio, que tornaram possível ser quem somos agrupam-se em textos, em práticas, em símbolos, em afetos, formando monturos, que, ao se acumularem, como o cisco se acumula nos pés de parede, produzem um desenho do passado, dão a ele consistência da rocha, que o tempo vai polindo, dificultando a percepção dos múltiplos e pequenos grãos que o constituíram como unidade de sentido. Assim se apresentam os fatos de memória: como ilhas de entulho no curso das trajetórias dos grupos e dos indivíduos, como formações geológicas que se erguem do lodo da sucessão dos instantes (ALBUQUERQUE JR, 2007, ps. 87 e 90). Diante deles, podem os historiadores se apresentar como servos-juízes, como porta-vozes autorizados das grandes ou pequenos coletividades, da hegemonia ou da contra-hegemonia, empenhados em reiterar ou corrigir certas narrativas em prejuízos de outras. Ou podem se apresentar como escavadores, dispostos a abrir os materiais que nos chegam do passado para novos sentidos, novas convivências com o presente, irrompendo e irrigando as memórias já petrificadas, multiplicando os olhares e desinventando as certezas, as naturalizações, os sempre-foi-assim. Neste esforço, passo a passo abrem mão de estabelecer a Verdade, com maiúscula, para apenas recordar e anunciar a contingência de todas as verdades; partindo do novelo das memórias, tecem não uma corda resistente com o auxílio da qual se pode encontrar o caminho através do labirinto escuro e perigoso do real, mas as delicadas bordas de um leque chinês que, ao ser aberto ou fechado, forma, na sua respiração, diferentes figuras; que risca múltiplas e animadas imagens do passado em suas trepidações aéreas; imagens que, no entanto, tem como consistência apenas este aparecer, este emergir, marcado, no mesmo momento em que devêm, pela ruína próxima, pelo desaparecimento iminente, tão logo o leque for agitado em outro instante, por outra mão a espantar os mosquitos, o calor ou a poeira (ALBUQUERQUE JR, 2007, p. 149).

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Referências bibliográficas:

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da História. Bauru: Ed. USC, 2007. ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Ronda noturna: narrativa, crítica e verdade em Capistrano de Abreu. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, CPDOC/FGV, n. 1, 1988. BLOCH, Marc. Apologia da história, ou o ofício de historiador. Tradução de André Telles refácio de Jacques Le Goff; apresentação à edição brasileira de Lilia Moritz Schwarcz. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. Tradução de Wolfgang Fischer. São Paulo: Fonte, 2005. GINZBURG, Carlo. El juez y el historiador: consideraciones al margen del processo Sofri. Tradução de Alberto Claveria. Madri: Anaya & Mario Muchnik, 1993. GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Tradução de Franco Carotti. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. HERÓDOTO. História. Tradução de J. Brito Broca; estudo crítico de Vítor de Azevedo. 2ª ed. São Paulo: Ediouro, 2001. LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão et alli. Campinas: Ed. UNICAMP, 1990. MARROU, Henri-Irénée. Do conhecimento histórico. Tradução de Ruy Belo. 4ª ed. rev. Lisboa / São Paulo: ASTER / Martins Fontes, s. d. RAMOS, Graciliano. Infância. 38ª ed. São Paulo: Record, 2006. SARLO, Beatriz. A paixão e a exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros. Tradução de Rosa Freire d'Aguiar et alli. São Paulo / Belo Horizonte: Companhia das Letras / Ed. UFMG, 2005.

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