Literatura, filosofia e formação em Northanger Abbey

June 30, 2017 | Autor: Marcos Balieiro | Categoria: Jane Austen, Bildungsroman, British Enlightenment, English litterature
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Ensaios sobre Filosofia, Literatura e Cinema

(IM) POSSÍVEIS (TRANS) POSIÇÕES Coordenação de:

Maria Celeste Natário Cícero Cunha Bezerra Renato Epifânio

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E   CÂNTICO DOS CÂNTICOS ANDIÑACH, P.R. Cantar de los cantares, el fuego y la ternura. Buenos Aires: Lumen, 1997

LITERATURA, FILOSOFIA E FORMAÇÃO EM NORTHANGER ABBEY

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orthanger Abbey é, certamente, um dos livros de Jane Austen menos conhecidos do público brasileiro. Talvez isso se deva, ao menos em parte, ao fato de ele ser algo como uma paródia de um gênero que não se tornou tão popular por aqui, a saber, a gothic novel. Ora, ainda que os leitores destas bandas tenham alguma ideia, que pode ou não ser baseada na leitura de romances originais, de figuras como Drácula ou o monstro de Frankenstein, são poucos aqueles que sequer ouviram falar de obras como O Castelo de Otranto (que inaugurou o gênero) ou Os Mistérios de Udolfo, para mencionar apenas duas delas. Além disso, o fato de o livro se propor como uma paródia de gênero faz com que ele seja menos, por assim dizer, palatável para o leitor que vê em Jane Austen apenas a escritora de histórias espirituosas sobre heroínas independentes e homens que, independentemente de suas aparências iniciais, mostrar-se-ão, no fim das contas, perfeitos para elas. Não que Catherine Morland, protagonista do livro, não tenha, a exemplo de outras protagonistas de obras de Austen, boa dose de espírito e de independência (ainda que talvez não seja, a esse respeito, uma Elizabeth ou uma Elinor), e não que a trama principal não diga respeito à série de eventos que, no fim das contas, tratará de levá-la a se casar com Henry Tilney, seu interesse amoroso desde o início da história. O caso é que Austen trata, ao longo de Northanger Abbey, de uma série de outros temas que se desenvolvem, digamos, em dois planos: o primeiro deles é mais específico e diz respeito principalmente às gothic novels, submetidas a uma sátira bastante eficiente justamente por conta de seu tom bastante leve. O segundo, que é desenvolvido a partir do primeiro, diz respeito às regras que devem ser observadas na própria literatura e à relação que devemos guardar com ela enquanto leitores (e, consequentemente, aos perigos de se supor que os acontecimentos da vida real transcorrerão como os dos livros). Trataremos, ao longo deste trabalho, exatamente do último tema que mencionamos no parágrafo anterior. Investigaremos, portanto, as considerações que Austen realiza, em Northanger Abbey, acerca do tipo de relação que se deve estabelecer entre leitor e obra literária, e quais os critérios que esta última deve satisfazer enquanto ferramenta de formação. Devemos deixar claro que, se o fazemos, é porque esse parece ser um dos temas principais da obra: de certo modo, Northanger Abbey é um livro sobre como a literatura deve nos influenciar e sobre como a leitura pode colaborar para moldar o caráter do leitor. 211

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Talvez a passagem em que esse aspecto fica mais claro esteja no Capítulo V. A essa altura, o leitor já foi informado que a protagonista foi passar algumas semanas em Bath a passeio, em companhia de dois amigos de sua família. Lá, ela conhece Isabella, personagem que, nesse ponto da história, parece dedicar-lhe grande amizade e que constitui um verdadeiro alívio do tédio a que, até então, a pobre Catherine vinha sendo submetida. De qualquer modo, o mais importante é que ressaltemos que, nesse capítulo, Austen empreende uma discussão relativamente longa não apenas sobre as gothic novels, mas sobre novelas de maneira geral. Depois de afirmar que Catherine e Isabella passavam boa parte de seu tempo lendo obras desse tipo juntas, a autora nos informa que não adotará

escrita. Ler novelas não era, então, como sabemos, algo que se esperava de pessoas que fossem reconhecidas por seu bom senso. Austen, porém, opõe a essa concepção a ideia de que é nesses trabalhos que “os maiores poderes da mente são mostrados”, e que eles são escritos em que “o conhecimento mais detalhado da natureza humana, em que a melhor delineação de suas variedades, as efusões mais vívidas de espírito e humor são transmitidas ao mundo na linguagem mais bem escolhida”2 (Austen 2007, p. 1092). O tipo de literatura que ela pretende criticar, por sua vez, é apresentado da seguinte maneira: Agora, se a mesma senhorita estivesse envolvida com um volume de The Spectator, ao invés de uma tal obra, quão orgulhosamente ela mostraria o livro, e diria seu nome, ainda que as chances fossem contra ela se interessar por qualquer parte dessa volumosa publicação, da qual tanto o conteúdo quanto o estilo não desagradariam um jovem de bom gosto, já que a substância de suas folhas consiste tão frequentemente em afirmações de circunstâncias improváveis, caracteres não naturais e tópicos de conversação que não mais dizem respeito a ninguém que ainda esteja vivo, e sua linguagem, também, é grosseira a ponto de dar uma ideia não muito favorável da época que podia suportá-la3. (Austen 2007, p. 1092)

[...] aquele costume mesquinho e imprudente, tão comum entre escritores de novelas, de degradar, por sua censura repleta de desprezo, as performances mesmas a cujo número eles próprios acrescentam – unindo-se a seus maiores inimigos ao atribuir os epítetos mais duros a tais obras, e mal permitindo que sejam lidas por sua própria heroína, a qual, se acidentalmente tomar posse de uma novela, certamente virará suas páginas insípidas com desgosto1. (Austen 2007, p. 1091)

A mensagem parece suficientemente clara e, se Austen interrompesse nesse ponto sua explicação do motivo pelo qual não tentará denegrir a forma novela, já teríamos, aí, uma acusação curiosa, já que não é difícil lembrar uma série de escritores que apresentaram heroínas que, de acordo com suas descrições, teriam sido transformadas em verdadeiras idiotas pela leitura de obras literárias como novelas ou romances. É bastante natural, assim, que nos perguntemos o que um escritor de novelas ou de romances pretende quando nos mostra exatamente uma personagem idiotizada pela leitura do próprio tipo de obra com que o autor busca ganhar nossa atenção. Entretanto, a passagem a que nos referimos há pouco não é apenas a denúncia de algo como uma contradição performativa. Austen apresenta outros motivos pelos quais defende que sua heroína seja uma leitora de novelas. A discussão sobre esse tipo de obra aparece justamente em um contexto em que ela é tratada como oposta a toda uma outra forma de conceber a atividade literária. É verdade que, logo em seguida à passagem supracitada, vemos um ataque bastante ferrenho aos preconceitos que a novela sofria à época em que Northanger Abbey foi “[...] that ungenerous and impolitic custom so common with novel writers, of degrading by their contemptuous censure the very performances, to the number of which they are themselves adding – joining with their greatest enemies in bestowing the harshest epithets on such works, and scarcely ever permitting them to be read by their own heroine, Who, if she accidentally take up a novel, is sure to turn over its insipid pages with disgust.”

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Não temos por que questionar, aqui, a sinceridade da autora quando ataca uma forma de literatura que é, evidentemente, associada a The Spectator. Mais do que isso, devemos admitir que a crítica realizada na passagem que acabamos de mostrar não é apenas a certa forma literária, mas a todo um tipo de formação: as qualidades atribuídas ao The Spectator não dizem respeito apenas à própria publicação, ou a outras que se lhe assemelhem, mas a toda uma maneira de conceber a formação apropriada dos jovens. Aquele que se envolve com escritos que representam “circunstâncias improváveis” e “caracteres não naturais”, além de oferecerem tópicos de conversação aparentemente ultrapassados, é precisamente considerado o jovem “de bom gosto”. Não se trata, portanto, apenas de criticar “[...] the greatest powers of the mind are displayed, in which the most thorough knowledge of human nature, the happiest delineation of its varieties, the liveliest effusions of with and humour, are conveyed to the world in the best-chosen language.” 3 “Now, had the same young lady been engaged with a volume of The Spectator, instead of such a work, how proudly would she have produced the book, and told its name; though the chances must be against her being occupied by any part of that voluminous publication, of which either the matter or manner would not disgust a young person of taste: the substance of its papers so often consisting in the statement of improbable circumstances, unnatural characters, and topics of conversation which no longer concern anyone living; and their language, too, frequently os coarse as to give no very favourable Idea of the age that could endure it. 2

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uma publicação, mas também uma concepção de formação do caráter. E também não é por acaso que Austen emprega a expressão “jovem de bom gosto” [young person of taste]: temos aí uma provável referência a uma forma de filosofia (entendida também como literatura) que considera a formação moral como sendo praticamente igual à formação de um gosto e, portanto, a formação de um conjunto de características que poderiam ser positivamente influenciadas pelo ato de frequentar boas obras literárias. Esse aspecto, que pode parecer curioso para o leitor contemporâneo, era, à época, senão um lugar comum, uma característica importante de um tipo de filosofia que gozava de razoável prestígio. Temos, certamente, um representante dele em The Spectator, que Jane Austen atacou tão ferrenhamente. Esse propósito de formação é explicitado de maneira bastante clara quando vemos, no número 10 do periódico, que seu propósito era “avivar a moralidade com espírito4 e temperar o espírito com moralidade”, além de “trazer a filosofia para fora dos gabinetes e das bibliotecas, das escolas e das universidades, para habitar clubes e assembleias, mesas de chá e cafés”5 (Addison & Steele, 2004). Um propósito bastante semelhante é abraçado também por Hume, que afirma, no ensaio “Of Essay Writing”, que se considera algo como um “embaixador” do mundo letrado no mundo da conversação (Hume 1985, p. 535), além de deixar claro, em sua Investigação sobre o Entendimento Humano, que pretende conciliar uma filosofia mais fácil, que tem por propósito falar diretamente aos homens comuns para incitá-los à virtude, com uma mais difícil, que consiste em uma anatomia precisa da natureza humana (Hume 1999, pp. 87-95). Tanto os autores de The Spectator quanto Hume parecem ter estado conscientes de que a filosofia que ofereciam ao homem comum não deveria convencê-los apenas por meio de argumentos longos e enfadonhos6. Os autores que

pretendessem atingir o público não-filósofo e colaborar para a formação moral de todos deveriam, também, buscar se expressar de um modo que pudesse atingir também as paixões de seus leitores e, nesse sentido, a filosofia não estaria tão distante de outras formas de literatura, ainda que tivesse, evidentemente, suas particularidades. É pertinente, então, que nos perguntemos por que escritos como The Spectator (e quem sabe também os Ensaios de Hume, que, como se sabe, foram influenciados, no que diz respeito a seu estilo, pelo periódico de Addison e Steele) estão longe de serem considerados por Austen como particularmente recomendáveis. A passagem do Capítulo 5 de Northanger Abbey em que a autora expressa suas opiniões sobre esse tipo de escrito já nos dá algumas pistas. Como vimos, The Spectator é apresentado nessa passagem como uma obra que trata de circunstâncias improváveis, delineia caracteres que carecem de naturalidade e trata de assuntos que não dizem respeito a pessoas que “ainda estejam vivas”. Parece, então, que Austen estabelece, nessa passagem, algumas características que deveriam estar presentes em boas obras literárias, além de atacar aqueles que escolheu como alvos. Um bom livro deve, para ela, tratar de situações e caracteres verossímeis, o que possibilitaria uma verdadeira identificação dos leitores “ainda vivos” com as situações que observam nos textos que leem. Os “jovens de bom gosto”, que leem obras como The Spectator, seriam formados, para ela, não para conhecer o mundo e lidar com ele de maneira sensata e proveitosa, mas se tornariam pessoas que, além de não terem em suas leituras contato real com ele, provavelmente seriam bastante enfadonhas, já que não teriam acesso à melhor delineação possível da natureza humana em todas as suas variedades. Podemos dizer, então, que, se Austen parece tão incomodada pelos autores que critica, é por considerar que eles se dedicaram a um propósito que é bastante caro a ela, mas que eles, no fim das contas, prejudicaram consideravelmente. O que está em questão não é apenas declarar que The Spectator, como toda a filosofia que Austen faz com que ele represente, está ultrapassado: a época que valorizou esse tipo de texto, vale a pena lembrarmos, não tem, por parte de Austen, imagem das mais favoráveis. Parece que o propósito é, então, que a novela possa, ao menos em parte, cumprir um papel formador que os moralistas anteriores, na visão da autora, estiveram longe de desempenhar a contento. Isso pode parecer um tanto estranho para aqueles que estão familiarizados com Northanger Abbey. Os motivos para tal estranheza, afinal, não são poucos. O primeiro é que, como já dissemos mais de uma vez, essa obra é algo como uma paródia e, desse modo, trata de rejeitar, ainda que de maneira bem humorada, os

Devemos observar que o termo wit é de tradução bastante complicada, ainda mais se levarmos em conta o caráter quase técnico que ele assume quando aplicado pelos moralistas britânicos do Século XVIII. Boa parte dos estudiosos brasileiros que se dedicam a esses autores defendem que a melhor tradução para esse termo seria “espírito”, e concordamos com essa sugestão. Gostaríamos apenas de observar que o termo é empregado com o sentido que ele tem quando afirmamos, por exemplo, que alguém é “espirituoso”, não com o sentido que ele normalmente adquire em textos de caráter essencialmente metafísico. 5 “[...] to enliven morality with wit, and to temper wit with morality... To bring philosophy out of the closets and libraries, schools and colleges, to dwell in clubs and assemblies, at teatables and coffeehouses.” 6 Hume, é verdade, talvez tenha pretendido que sua filosofia só se tornasse mais acessível a partir de certo ponto de sua carreira. Sua obra de estreia, o Tratado da Natureza Humana, parece ter sido dirigida principalmente ao público erudito das universidades. Posteriormente, entretanto, ele teria buscado atingir também o homem comum, como fica evidente nas passagens a que nos 4

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referimos, além de ter passado a considerar que a filosofia, como obra literária, deve, também, falar às paixões dos leitores e colaborar, assim, para a formação de seu gosto moral, como fica evidente, por exemplo, no ensaio “Of the Delicacy of Taste and Passion”.

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clichês do gênero. Alguns deles são ridicularizados já no início, quando Catherine é apresentada como sendo praticamente o oposto do que se esperaria de uma heroína de gothic novel. Não tem grandes dramas em sua família, tem uma figura bastante insossa, é afeita às “brincadeiras de meninos”, preferindo jogar críquete a brincar com bonecas, entre outras características. Aos quinze anos, ela parece ter não apenas uma aparência melhor, como também troca seu “amor pela sujeira” por um gosto pela fineza. E se entre os quinze e os dezessete ela adquire parte (e apenas parte) das características que comporiam uma heroína pálida, doce e propensa a se envolver em situações lúgubres, tal situação também é apresentada de maneira satírica, quando a autora nos informa que Catherine está “treinando para ser heroína” (Austen 2007, p. 1078). Esse mesmo espírito permanece até o fim do texto: a poucos parágrafos do fim, Austen informa ao leitor que este, ao notar que o livro está perto do fim, perceberá também que “estamos todos nos apressando juntos rumo à felicidade perfeita”7 (Austen 2007, p. 1222). Parece que, mesmo quando os clichês são aceitos em Northanger Abbey, não é sem uma observação bem humorada com a qual a autora nos informa de maneira bastante clara que estamos diante de um deles. O fato de eles serem usados não é, portanto, algo como uma rendição às convenções de gênero, mas um artifício para denunciá-las, de maneira mais contundente por ser bem humorada. Outro motivo que poderia levar o leitor a desconfiar da “defesa da novela” que nos é apresentada no Capítulo 5 é que uma das mensagens do livro parece ser justamente que pelo menos boa parte dessas obras não é nada apropriada para a formação do caráter. Ora, Isabella, que até então parecia ser a amiga mais fiel que Catherine poderia desejar, termina por difamá-la, fazendo com que seja praticamente expulsa da abadia que dá título ao livro e, o que talvez seja mais importante, complicando gigantescamente as relações da protagonista com a família de seu interesse amoroso. Além disso, em uma passagem anterior à tal expulsão, Catherine, cuja imaginação facilmente excitável de leitora inveterada de gothic novels a deixa demasiadamente impressionada com o ambiente lúgubre da abadia, passa a acreditar, sem motivos, que o General Tilney, proprietário do lugar e pai do rapaz por quem ela está apaixonada, assassinou a própria esposa. Henry, que termina por saber disso, fica inicialmente indignado e, por fim, ridiculariza as fantasias mórbidas de Catherine. Parece suficientemente claro, então, que não estamos diante de uma defesa irrestrita de uma determinada forma literária. De qualquer modo, Austen nos apresenta algumas outras pistas acerca do tipo de literatura que ela considera, ao menos no contexto de Northanger Abbey, ser proveitosa para a formação dos

jovens. Algumas delas constam da conversa que Catherine tem, no Capítulo 14, com Henry e Eleanor, irmã deste último. Nessa ocasião, Henry deixa claro que não considera Os Mistérios de Udolfo, que é a gothic novel preferida de Catherine, um livro agradável [nice]. Eleanor, por outro lado, afirma que aprecia o livro e diz à amiga que o problema é não apenas o fato de Henry não ter apreciado o livro, mas também a palavra que ela empregou para se referir a ele: para Eleanor, a discordância manifestada por Henry diria respeito justamente ao modo como Catherine adjetivou o livro. O adjetivo empregado teria incomodado Henry por não ter sido utilizado no sentido que lhe fora atribuído por autores como Blair e Johnson8 (Austen 2007, p. 1136). Essa passagem é relevante porque faz eco a outras em que Henry faz uso de tiradas sarcásticas ou um tanto pretensiosas que Catherine parece incapaz de compreender. Desse modo, ainda que Henry seja o herói da trama e tenha um caráter apropriado para fazer dele o grande interesse amoroso da protagonista, isso certamente não se dá pela recusa que ele faz da novela enquanto entretenimento ou como meio de formação. É importante lembrarmos, ainda, para reforçar essa consideração, que John Thorpe, irmão de Isabella que é apresentado como um rapaz dos mais desagradáveis, a certa altura declara com empáfia que não lê novelas. A conversa no Capítulo 14 a que acabamos de nos referir fornece, ainda, outra pista importante. Pouco depois da passagem em que Henry mostra sua insatisfação com Udolfo, ele e a irmã defendem obras históricas contra as reclamações que Catherine (que considera que a história, além de não ser interessante, é, possivelmente, em grande parte fantasiosa) faz contra ela. Eleanor, por sua vez, afirma que considera confiáveis os fatos principais expostos por historiadores e, se eles fazem alguns “embelezamentos”, isso é motivo para que ela os leia com grande prazer, de modo que ela prefere “a produção do Sr. Hume ou a do Sr. Robertson” às “palavras genuínas de Caractato, Agricola ou Alfred, O Grande”9 (Austen 2007, p. 1137). É importante notarmos, aqui, o fato de Hume figurar entre os historiadores mencionados por Eleanor, a cujo caráter Austen sempre se refere como digno de elogios. Ora, ainda que Hume tenha sido um moralista que trabalhou em moldes que poderiam desagradar à autora, a história escrita por ele parece ser digna de atenção. Isso nos faz pensar que o problema visto por Austen nos textos que ela considera reprováveis é bastante simples e já havia sido exposto

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“[...] we are all hastening together to perfect felicity”.

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É importante observarmos, aqui, que o adjetivo nice, no contexto da obra desses autores, além de querer dizer “agradável” em um sentido mais próximo do convencional (de modo que uma gothic novel, com os horrores que muitas vezes retrata, não seria exatamente agradável) está ligado, ao menos em alguma medida, à ideia de decoro. 9 “[...] the production of Mr. Hume or Mr. Robertson, than if the genuine words of Caractatus, Agricola or Alfred the Great”. 8

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no Capítulo 5. Os moralistas se tornam dignos de censura quando se expressam em linguagem que ela consideraria grosseira, ou quando retratam caracteres artificiais. Quando Hume escreve como historiador, retratando eventos reais em linguagem suficientemente “embelezada”, merece não apenas a aprovação da personagem Eleanor, mas também, ao que parece, da autora. Fica, assim, a impressão de que ao menos parte do motivo pelo qual Austen critica certo tipo de textos morais é justamente o fato de eles serem, por assim dizer, filosóficos demais. Ora, ensaios como os de Addison e Steele, bem como presumivelmente escritos influenciados por eles, são vistos como desprovidos de mérito, mas a história é mais do que aceitável. É possível que a autora queira dizer justamente que a literatura, ao menos enquanto formação, não poderá ter sucesso enquanto se dispuser a receitar preceitos. As obras que se pretenderem bem sucedidas para o fim de formar o caráter dos jovens deverão, ao invés disso, ilustrar os modos pelos quais a natureza humana se desenrola no mundo. Isso não quer dizer, é claro, que as discordâncias de Austen com relação aos moralistas que escreveram não muito tempo antes dela se limitem à forma: os próprios preceitos expostos por eles talvez não fossem considerados por ela como exatamente satisfatórios e, como tratamos de mostrar, o próprio caráter que eles gostariam de poder formar seria típico de uma época que ela não vê com bons olhos. De qualquer modo, seria precipitado atribuir diretamente aos escritos que a autora desmerece resultados como, por exemplo, o caráter desagradável de John Thorpe. Além disso, extrair de uma obra como Northanger Abbey algo como uma “teoria do caráter” talvez seja impossível e, mesmo que não o seja, uma tarefa como essa certamente exigiria de nós um outro trabalho, de porte muito maior. Basta, por ora, que tenhamos verificado em alguma medida alguns dos aspectos literários que nossa autora consideraria apropriados para contribuir com a formação de pessoas diferentes dos tais “jovens de bom gosto” que ela se empenhou em criticar. A partir do que foi dito, podemos concluir que, ao fim e ao cabo, o que Austen espera da literatura, ao menos enquanto formação, é que seja verossímil e retrate a natureza humana tal como ela é, em linguagem que permita que o leitor se identifique com as obras a que se dedicar. Nesse contexto, podemos, inclusive, compreender ao menos parte do propósito de se escrever uma novela que é, ela mesma, uma paródia de ao menos um tipo de novela: os caracteres perturbados e as monstruosidades com que nos deparamos nas gothic novels precisa ser satirizado porque interessa mostrar que, apesar de divertidas, elas não nos ensinam nada. É preciso que leiamos novelas, mas é preciso, também, que elas nos mostrem pessoas com as quais poderíamos, quem sabe, ter que interagir. Não se trata, evidentemente, de realizar descrições simplesmente jornalísticas ou de fazer de toda a literatura uma série infindável de fábulas morais (o que algumas gothic novels certamente são), mas de oferecer entretenimento que contribua, em

alguma medida, para a nossa formação10. A paródia apresentada em Northanger Abbey pode, portanto, ser vista como uma conclamação para que os novelistas se dessem conta disso para que pudessem ter sucesso no território em que The Spectator falhou. Assim, esperava Austen, poderiam colaborar para que fossem superados os dias em que uma jovem qualquer, ao ser questionada sobre o livro que tinha em mãos, deveria dizer que era “apenas uma novela”.

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10 Esse é um ponto que parece ter sido importante em obras posteriores de Austen. Devemos lembrar que a sátira social desenvolvida pela autora vem acompanhada do que poderiam ser esforços no sentido de apresentar ao leitor situações que levam à constatação de que os amores da vida real não obedecem a lógica das novelas. Os enormes esforços que Elizabeth e Mr. Darcy devem fazer para lidar com as próprias qualidades que os definem em Pride and Prejudice e o fato de Maryanne encontrar a felicidade, ao fim de Sense and Sensibility, em um casamento com o Coronel Brandon, homem mais velho, mas, ainda assim, bastante afeito a ela. Esse evento marca o crescimento de Maryanne, que deixa de sofrer por um pretendente que ela havia sido forçada a admitir que não correspondia a suas idealizações.

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