Literatura infantil, brincadeiras e experiências narrativas

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Literatura infantil, brincadeiras e experiências narrativas A brincadeira letrada pode transformar-se em uma rica oportunidade para a exploração e a compreensão da linguagem1 Gisela Wajskop e Shelley Stagg Peterson

É de longa data que se conhece as vantagens emocionais, afetivas, cognitivas, culturais e sociais das brincadeiras de faz-de-conta para as crianças. Atividade que se constitui por e na linguagem infantil, é uma oportunidade sem igual das crianças, sozinhas ou em grupo, experimentarem e usarem suas capacidades de transformar, por meio das palavras, os significados de objetos, gestos e ações. Ao usarem um apoio concreto – objeto, brinquedo ou gesto - para imaginarem na brincadeira, as crianças agem pela primeira vez dissociadas do significado literal da palavra, criando novas relações semânticas entre o que veem e o que significam para agir. Nesse processo, para alguns autores, desenvolve-se uma rica relação entre a brincadeira e a construção das narrativas infantis.(Pelegrini & Galda, 2000). Na brincadeira as crianças podem compreender novos conhecimentos e crenças (representações da realidade) assumindo diferentes papéis ou personagens. Para adaptar o uso de objetos para o faz-de-conta (um sabugo de milho pode tornar-se um bebê) as crianças necessitam de algumas habilidades cognitivas metarepresentacionais (quando um objeto é representado como algo mais, na mente de cada um) que se constroem ao longo de trocas sociais espontâneas e improvisadas, próprias da brincadeira. (Smith, 2009, p. 10). Fazendo uso de objetos, brinquedos ou ações com significados transformados, as crianças podem se colocar no lugar de outros e criar diálogos imaginativos que permitem emergir uma narrativa improvisada e colaborativa entre elas. Durante uma brincadeira, cada um e todos combinam, em consenso, apenas o começo do enredo e os personagens iniciais (Eu era o pai [...] Não! médico dá injeção, não passeia!!, etc.) a partir dos quais uma nova narrativa é criada progressivamente em um elevado processo cognitivo e linguístico no qual as crianças acrescentam e mudam as falas e os próprios papéis em um contínuo desenrolar indeterminado. Reiteramos, em nossas observações, a ideia de alguns autores (Pelegrini & Galda, 2000) que afirmam que quando as crianças brincam com brinquedos abertos (sem forma explícita) elas desenvolvem alto grau de letramento pois tem de pensar, comunicar e negociar com os pares as palavras usadas para modificar os objetos para brincar (quando as crianças divergem do uso de um dicionário como banquinho). Em outra direção, quando brincam com brinquedos realísticos (que imitam o real) constatamos que as trocas se dão pelo consenso semântico, demandando pouca negociação em torno do significado de seu uso na brincadeira (um telefone de plástico, em geral, será sempre um 1

Citar como: Wajskop, Gisela; Peterson, Shelley. Literatura infantil, brincadeiras e experiências narrativas. In: Pátio Revista de Educação Infantil. Porto Alegre: Artmed editora, Jan. 2016, no 46.

2 telefone). Esses brinquedos realísticos, porém, facilitam a construção de narrativas nas quais as crianças desenvolvem personagens, temas, enredos, diálogos e conflitos em brincadeiras nas quais tomam consciência de como a linguagem narrativa se constrói. Nossa investigação tem demonstrado que, do mesmo modo que os brinquedos realísticos, a leitura de livros literários, especialmente os contos tradicionais e de fadas, oferecem enredos, personagens e conflitos que, ao serem lidos em voz alta e ao estimularem as crianças a se colocarem no lugar de seus personagens, permitem simultaneamente construção e compreensão das narrativas enquanto brincam com ela. É tradicional, no mundo da educação, criar espaços e oferecer o mais variado tipo de material para que as crianças brinquem livremente. Nossa investigação, porém, aponta para um trabalho pedagógico intencional baseado na articulação entre literatura infantil e brincadeira de maneira a possibilitar a ampliação das capacidades linguísticas e semânticas das crianças em contextos de letramento significativos e autorais. Samantha (os nomes são fictícios) é professora de pré-escola em uma comunidade aborígene no norte do Canadá, com uma população de cerca de 900 pessoas. Ela começou a trabalhar com contos populares e o faz-de-conta para apoiar o desenvolvimento do processo de alfabetização de suas crianças de 5 e 6 anos. Samantha concorda com Sawyer e DeZutter (2009) de que a brincadeira é um excelente contexto no qual as crianças podem desenvolver a compreensão sobre a estrutura da narrativa e, também, podem utilizar a linguagem narrativa, especialmente quando ouvem histórias lidas em voz alta. Ela reconhece que o desenvolvimento do processo de alfabetização fica limitado em situações onde as crianças devem copiar letras, palavras e frases. A cópia elimina os desafios cognitivos presentes nas crianças quando elas criam seus próprios registros quando acionam o conhecimento que tem sobre a escrita. Assim, Samantha incentiva as crianças a desenhar, rabiscar e escrever a fim de se expressarem. Um exemplo de sua prática que integra literatura e brincadeira começou com o conto popular norueguês “The Three Billy Goats Gruff” conhecido entre nós como “Os três carneirinhos”. Ao ler a história, convidou as crianças a cantarem enquanto repetia certos trechos da história, por ex. ”Quem está saltitando em minha ponte?” e “Trip trap, trip trap”. Em outra roda de leitura, durante a semana, ela leu a história novamente e desta vez atribuiu diferentes funções dramáticas a grupos de alunos (pediu a cinco crianças que fossem o carneirinho menor, cinco outras fariam o Ogro, e assim por diante). Durante a leitura, as crianças assumiam espontaneamente as ações dos personagens que lhes foram atribuídos. Por exemplo, enquanto a professora lia que o carneirinho menor foi desarmado e preso do outro lado da ponte, todas as crianças desse grupo levantaram-se e fingiram ser o carneirinho, fazendo barulho enquanto caminhavam ao longo da ponte do Ogro. Depois, enquanto Samantha lia: "Quem vai saltitar na minha ponte?" as cinco crianças que brincavam de ser o Ogro imitavam olhares furiosos em seus rostos. Enquanto isso, cerravam os punhos em direção aos colegas que imitavam o carneirinho menor, repetindo em voz alta o que a professora lia no livro, como se fossem o Ogro. Ainda que baseadas na história lida, as crianças experimentavam diferentes formas de caracterizar e comunicar as ações de cada personagem, tomando para si o significado da narrativa em dupla construção – a lida e a brincada. 2

3 A gestualidade assim como as onomatopeias ou sons usados para imitar os personagens contribuem para que as crianças compreendam e adentrem, muito cedo, na lógica da linguagem humana, que é simbólica e representativa. Ou seja, o uso contextualizado dos gestos, sons e movimentos trouxe para as crianças a possibilidade de partilharem situações e vivências pouco conhecidas de forma meta-representacional, adentrando no mundo de novas palavras pela vivência socializada e brincada. Samantha releu a história várias vezes, possibilitando às crianças experimentarem papéis diferentes, de modo que todos tiveram a oportunidade de assumir seus personagens preferidos (o carneirinho maior ou o Ogro!). As crianças também criaram máscaras de carneirinhos e de Ogro e passaram a usá-las para brincar quando estão no canto de faz-de-conta. As vezes, pode-se observa-las reproduzindo a história e repetindo os diálogos por meio de palavras e expressões presentes no conto. Outras vezes, observamos as crianças introduzindo novas palavras, gestos e objetos aos personagens do conto e desenvolvendo assim sua imaginação por meio da criação de novos enredos ou narrativas. Ao longo de dois dias, as crianças fizeram desenhos da história em um quadro que Samantha havia preparado para elas. Samantha disse-lhes que poderiam escrever, se quisessem, ou apenas desenhar imagens. Ela deu-lhes outras opções, também: as crianças puderam criar novas histórias usando os carneirinhos e o Ogro, mas, se preferissem, poderiam criar outros personagens para contar outra história. Fato interessante foi que todos as crianças decidiram desenharam histórias com base no conto lido. Na Figura, pode-se constatar que o reconto da história feito por Darien é muito mais que um simples relato dos acontecimentos do conto popular lido. Ele desenhou as emoções dos carneirinhos com sorrisos em seus rostos e como eles se safaram da armadilha (trip-trap em inglês) para chegar ao outro lado da ponte em busca do pasto verde. Os carneirinhos estão particularmente felizes quando se encontram todos juntos, novamente, do outro lado da ponte. O desprazer do Ogro é expresso pela sobrancelha franzindo a testa enquanto cada um dos carneiros atravessa a ponte e, em seguida, o seu rosto aparece desenhado muito triste ao ser derrotado pelo carneiro maior. O carneirinho maior aumenta de tamanho e parece muito ameaçador quando ele domina o Ogro, que agora está estendido no chão. Neste exemplo, Darien também usa o que sabe sobre escrita para escrever as palavras, “smoll” (pequeno) e “meedyum” (médio). Darien mostra um senso muito forte de estrutura narrativa – o início de um evento que leva ao conflito e, finalmente, a resolução - e uma capacidade de inferir as emoções dos personagens assim como suas intenções. Darien foi o único a escrever, assim como desenhar, para recontar a história. O principal objetivo de Samantha foi de que as crianças contassem a história aos colegas por meio de desenhos ou usando de uma combinação de desenhos e de escrita, de modo que ela ficou feliz com as releituras de todas as crianças, fossem desenhos ou uma combinação de ambos. Com seu trabalho, Samantha demonstra, como afirmam Mackenzie e Veresov (2014), de que as crianças podem criar textos mais complexos desde a mais tenra idade quando os professores enfatizam a comunicação por meio de registros (desenhos, rabiscos ou escrita), em vez de separar a escrita do desenho e exigir que copiem grafias convencionais de palavras.

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4 Como atividade culminante, em seguida aos registros, as crianças escolheram um parceiro para ler/contar sua história em voz alta. Elas usaram suas produções para lembrá-los dos eventos da narrativa, demostrando compreender o papel do registro – ainda não em forma de escrita convencional - como apoio de fala numa comunicação oral. Em resumo, o exemplo de Samantha nos permite sugerir que a brincadeira, quando enriquecida intencionalmente por elementos linguísticos por meio da leitura em voz alta de textos literários torna-se uma brincadeira letrada, ou seja, se utiliza da mesma estrutura e linguagem narrativa necessárias para a compreensão e uso social significativo e protagonista da Língua. Nessa perspectiva, guardando seu caráter experimental, improvisado, indeterminado e social, a brincadeira letrada pode se constituir em uma experiência rica de exploração e compreensão do caráter representacional da linguagem, resultando em maior consciência de sua construção e uso, tal como aparece no reconto de Darien. Livro de literatura infantil Asbjornsen, P.C., Moe, J.E., & Brown, M. (1957/2001). Three billy goats Gruff. Orlando, FL: Harcourt Brace. Referências Brougère, G. Jogo e Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998 Campos, M. M., Behring E. B., Esposito Y., Gimenes N., Abuchaim B., Valle R. & Unbehaum S.. (2011) A contribuição da educação infantil de qualidade e seus impactos no início do ensino fundamental. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.37, n.1, 220p. 15-33, jan./abr. 2011. Campos, M. M. M., Coelho, R.C., & Cruz, S. H. V. et al. (2006). Consulta sobre qualidade da Educação Infantil relatório técnico final, São Paulo: FCC/DPE. Mackenzie, N.M., & Veresov, N. (2013). How drawing can support writing acquisition: Text construction in early writing from a Vygotskian perspective. Australasian Journal of Early Childhood, 38(4), 22-29. Pellegrini, A.D. & Galda, L. (2000). Children’s Pretend Play And Literacy. In Strickland, D.S., & Morrow, L.M. (Eds.), Beginning reading and writing (pp. 58-65). New York: Teachers College Press. Sawyer, R.K., & DeZutter, S. (2009). Improvisation: A lens for play and literacy research. In K.A. Roskos, & J.F. Christie, J.F. Play and literacy in early childhood: Research from multiple perspectives 2nd Ed. (pp. 21-36). New York: Routledge. Smith, P.K. (2009). Pretend play and children’s cognitive and Literacy development: sources of evidence and some lesson fromthe past. In K.A. Roskos, & J.F. Christie, J.F. Play and literacy in early childhood: Research from multiple perspectives 2nd Ed. (pp. 3-19). New York: Routledge.



Gisela Wajskop é socióloga, mestre em Educação, doutora em Metodologia de Ensino e Educação Comparada, pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Desenvolvimento Profissional Docente da PUCSP e pesquisadora colaboradora do NOWPlay-OISE/Universidade de Toronto (Canadá). [email protected]

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Shelley Stagg Peterson é professora no Departamento de Currículo, Ensino e Aprendizagem da Universidade de Toronto (Canadá). Coordena o NOWPlay Project-OISE/Universidade de Toronto (Canadá) . [email protected]

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