Literatura Infantil e Ancestralidade

June 14, 2017 | Autor: Lucia Leiro | Categoria: Estudios de Género, Literatura Infantil, Ancestralidade
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Anais do V SENALIC – TEXTOS COMPLETOS ISSN – 2175-4128 Organizadores: Gomes, Carlos; Ramalho, Christina; Ana Leal Cardoso São Cristóvão: GELIC, Volume 05, 2014

LITERATURA INFANTOJUVENIL E ANCESTRALIDADE

Lúcia Leiro (Doutora/UNEB/DMMDC)

“Nominar é principiar o mundo das coisas.” (Cidinha da Silva) Hoje, no Brasil, é possível encontrarmos uma produção literária infantil produzida por escritoras negras interessadas em proporcionar uma experiência de leitura mais ampla para os leitores, contribuindo para um acervo cultural e literário mais abrangente e diverso, já que a literatura infantil canônica evoca em geral narrativas traduzidas por uma cultura ocidental e burguesa. As escritoras negras do Brasil buscam aproximar a criança da herança ancestral a partir de narrativas com múltiplas referências, mostrando a relação estreita e indivisível entre linguagem, estética, ética, política, cultura. Com base no conceito de ancestralidade faço uma leitura das narrativas Os Nove Pentes D’África, Kuami, e O Mar de Manu, todos de Cidinha da Silva1. Antes é preciso dizer que precisei me preparar para dar conta de uma cultura muito rica que exige de mim um aprofundamento e uma desacomodação não apenas teórica, mas existencial que aos poucos vou me permitindo. Seus ritos orientaram a vida daqueles que nos antecederam, implantando, organizando, fortalecendo e disseminando um modo de ser, de pensar e de estar no mundo. É com este olhar que trouxe para este seminário três produções literárias de Cidinha da Silva, escritora mineira e uma das vozes mais representativas da literatura negra feminina. É Cidinha que nos liga a uma ancestralidade africana, com muita poesia e encanto. O termo literatura negra tem sido usado pela crítica literária para se referir a escritores e escritoras que fazem literatura baseada na herança cultural africana, tematizando as implicações e ressignificações da diáspora negra, os ritos, filosofia e cosmogonia ancestral, entre outros aspectos. Apesar do termo ser amplo, esta proposta objetiva fissurar o olhar naturalizado de um território demarcado fisicamente, Cidinha da Silva é uma escritora contemporânea mineira autora de Cada Tridente em Seu Lugar (Instituto Kuanza, 2006), Você me deixe, viu? eu vou bater meu tambor! (Mazza Edições, 2008), Os Nove Pentes da África (Mazza Edições, 2009), Oh, Margem, Reinventa os Rios (Selo Povo, 2011), Kuami, (Editora Nandyala, 2011), O Mar de Manu (Kuanza Produções, 2012), e o recente Racismo no Brasil e seus Afetos Correlatos (Conversê Edições, 2014). 1

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para uma concepção de nação imaginada que, como sabemos, foi forjada com base num sentimento de unidade, pertencimento e nacionalismo, conforme bem assinala Benedict Anderson, para implodir este constructo mental e, com isso, elaborar outra composição igualmente imaginada que possa, tal qual um fio de contas, nos ligar a outras comunidades a partir de uma história comum. A escravidão espalhou pessoas do continente africano por todos os continentes de uma maneira extremamente violenta e o desafio de seus herdeiros é fazer o caminho de volta, não necessariamente um retorno físico, mas um retorno ancestral. Para Eduardo Oliveira, “a ancestralidade é um princípio regulador das práticas e representações do povo-desanto”, e isto coloca os estudos da ancestralidade dentro de uma perspectiva filosófica que enlaça os rituais dos terreiros de candomblé, alicerce para uma melhor convivência humana e social, à prática social. Depois de ter lido os três livros de Cidinha da Silva - Os Nove Pentes da África (2009), Kuami (2011) e O Mar de Manu (2012) - dei-me conta de que as velhas teorias não me ajudariam muito e que a filosofia da ancestralidade seria um dispositivo explicativo fundamental para analisar os textos literários que se propõem a uma reeducação literária, ética e social. Seguindo a ordem cronológica, faço uma leitura primeiramente de Os Nove Pentes d’Africa, publicado em 2009, pela Mazza Edições. Apesar de trazer como cenário principal um velório, a escritora o faz dentro de uma perspectiva ancestral, isto é, destacando os últimos momentos da vida de um Abánigbèro (sábio, homem mais velho), o avô da narradora, até o dia do seu velório, quando parentes e amigos comparecem para ritualizar o final de um ciclo, já inserindo o significado da morte na cultura africana. A morte no texto de Cidinha de Paula não é sombria, mas ganha uma dimensão humana, social, existencial, pedagógica e ancestral de proporções pouco imaginadas, a não ser para aqueles que entendem os elos que unem as gerações passadas e as vindouras que, tal qual um fio de contas, ligam várias histórias humanas a uma filosofia, a uma forma de se relacionar com as pessoas e com o mundo, originada de outro tempo e lugar. O texto inicia com uma voz narrativa em primeira pessoa, conduzindo o leitor para um encontro importante. A metáfora do encontro entre um homem e uma mulher, neste caso do avô e da avó, funciona como uma preparação, um convite ao acolhimento da palavra pelo leitor, para um encontro afetuoso com seus ancestrais. É com este engate narrativo que a autora conecta o leitor consigo mesmo, com as suas origens, com princípios e ritos básicos da 2 Realização:

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existência: vida, morte, comunidade, identidade, respeito, afetividade, ressignificando esta experiência para o leitor de acordo com a tradição do candomblé, para quem o caminho

(Óna),

o

percurso,

tem

importância

singular

no

processo

de

autoconhecimento dos sujeitos. É desta forma que a narradora conta a história de como o avô conheceu a avó, das atividades que fazia com a madeira, do seu compromisso de passar para as gerações mais novas a cultura Iorubá, fosse através dos objetos, fosse pelos contos, ambos com a função de legar um movimento ancestral (OLIVEIRA, 2009, p.03), um sentimento de pertencimento e, portanto, de identidade, através do conhecimento das origens, de uma África que, embora fisicamente distante, estava intimamente ligada às histórias dos nove netos a quem o avô ensinou a esculpir nove pentes de acordo com o perfil de cada um:

“Como o Vô nos conhecia como a palma da mão dele, legou-nos um pente enroscado na lenda pessoal de cada um de nós. Sem nos dizer tudo, porque não teve tempo ou porque não quis, afinal a história é nossa, cabe a nós construí-la. O Vô sabia disso.” (DA SILVA, 2009, p. 09)

O número nove é simbólico no candomblé, pois nos remete ao mito de Oyá que se transformou em nove ou, ainda, como sugere outras versões, teve nove filhos, por isso, passou a se chamar Iansã, cuja raiz Iyámésan significa “'a mãe (transformada em) nove'”. Assim, os nove netos do avô representam nove possibilidades de divindades encarnadas,

nove alianças renovadas prontas para guardar os

ensinamentos ancestrais. Cada pente correspondia a “lenda pessoal de cada um” (DA SILVA, 2009, p.09), a exemplo de Lira, neta “cuja tristeza ninguém decifrava” (DA SILVA, 2009, p.09), que recebeu o pente da alegria. Outra leitura pertinente sobre o número nove diz respeito ao sentido simbólico de passagem a ele atribuído, sugerindo que a vida seria uma viagem feita de descobertas, daí a metáfora do barco, da navegação e do pente-identidade no contexto da história. Os nove pentes foram entregues aos netos – Abayami, Ayana, Lira, João Cândido, Bárbara, Melissa, Ana Lúcia, Zazinho e Kitembo2 - significando cada um, respectivamente,

amor,

perseverança,

alegria,

generosidade,

solidariedade,

admiração, liberdade (passarinho), comunidade (baobá), ancestralidade (tartaruga) e Ou Kidembo significa na mitologia angolana o nkisi (orixá em yorubá) do tempo, aquele que controla as mudanças, as estações do ano, sendo cultuado pelos yorubás pelo nome de Iroko. 2

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tempo (peixe). O pente, assim como o barco, feitura artesanal e preferencial do avô, cujo oficio era esculpir em madeira, funcionava como fetiche, isto é, era atribuído a estes objetos poderes que, pelo uso da palavra, serviam para explicar os movimentos ancestrais e o processo de reencontro e de construção da identidade. O pente e o barco uniam estética (arte) e uso, sendo que o pente fazia contato direto com o ori (cabeça) e o orún (cabelo), signo supremo da identidade, da força e da ligação ancestral, e o barco era equiparado ao computador que, por meio da internet, conduzia o conhecimento ancestral a todos os lugares e permitia que os filhos da diáspora africana pudessem fazer um percurso de memória que os levariam ao “solo de origem” (FERNANDES, 2011, p.14):

Embora trabalasse todas as esculturas com igual dedicação, os barcos e os pentes eram os prediletos do vô. Os barcos eram apresentados a ele pelo Zazinho. O primo insistia e que o vô conhecesse as embarcações do povo Songai, grandes navegadores africanos. Desde os doze, treze anos, Zzinho imprimia imagens de barcos e plantas de carpintaria naval para o vô, que os estudava e recriava. (Eram bons parceiros. Não é à toa que a tia Neusa deu ao Zazinho a responsabilidade de iniciar o desenho dos programas de computador para os visitantes do futuro museu refazerem as rotas de navegação dos Songai, dentro dos barcos construídos pelo vô. (DA SILVA, 2009 p. 7)

Além das referências aos objetos sagrados, a narrativa nos reporta à importância das plantas e das ervas para a estética, a filosofia e o culto ancestral. O cultivo das flores pelo avô servia para embelezar, mas, sobretudo, para experimentar e entender, através da técnica do enxerto, as mudanças ocorridas quando uma espécie era unida a outra, produzindo uma terceira, respeitando o seu ciclo de vida, o seu tempo. Esta construção metafórica na narrativa sugere uma explicação para a ética da conjugalidade, formada pelo eri okán (consciência) de um elo ancestral, e não por imposição ou coerção divina, que uniria as seivas para formar uma descendência baseada no respeito, no amor, enfim nas relações afetivas em todos os níveis: “Conversou com as roseiras, suas companheiras de tantos anos. Ele plantava uma no nascimento de cada tio. Eram cinco. Depois, quando as roseiras e os filhos iam crescendo, ele fazia enxertos com as mudas, com os tios, e ficavam todos esperando para saber a cor das rosas novas, inclusive a vó Berna” (DA SILVA, 2009, p. 11)

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Em se tratando das ervas e das folhas, a narrativa as situa no rito de passagem do avô, fosse na colheita feita por ele, preparando-se para um novo “encontro”, fosse no momento do ritual de limpeza do corpo, realizado por parentes e amigos durante o seu “sono”. O avô colhe “três galhos de pitanga, três ramos de bambu e três de alfazema” (DA SILVA, 2009, p.11) e nesta citação encontramos novamente uma referência numérica, desta vez ao número 3, muito importante no candomblé, símbolo da unidade e da espiritualidade. Os galhos de pitanga são usados para limpeza de ambientes, os ramos de bambu e de alfazema são poderosos defumadores contra Kiumbas3. O rito ancestral de se preparar para a passagem mostra o que representa a morte para o povo-de-santo, para aqueles que conhecem os segredos da vida. A leitura do livro Os Nove Pentes D’África é um encontro prazeroso porque fala de vivências, das relações familiares e de ancestralidade, sugerindo uma visão diferente do tempo que deixa de ser linear para assumir uma forma cíclica, ligando as gerações pela ancestralidade, formando não apenas o esteio da família biológica, mas a espiritual, com base no respeito às diferenças e a boa convivência. Neste sentido, a ancestralidade é mais do que um conjunto de ritos, refere-se a uma epistemologia que explica e orienta a existência humana que, por sua vez, integra-a a uma existência mais ampla, envolvendo outros seres, e nisto consiste a importância do candomblé para a manutenção da harmonia entre os viventes. Já o segundo livro publicado, Kuami, de 2011, é o nome de uma das personagens da história, ainda que a protagonista seja uma sereia chamada Janaína, filha de Hércules Baiacu e Naomi dos Palmares. Para Cidinha da Silva, os nomes das personagens são fundamentais na sua composição: “Em literatura, então, os nomes são fundamentais: títulos de textos, de livros, nomes de personagens. Elisa Lucinda afirma que nomear um texto ou personagem é batizá-lo, inscrevê-lo no mundo.” (DA SILVA, 2014, p.1; LUCINDA apud DA SILVA, idem, ibidem)

Portanto, o nome das personagens em seus livros, assim como dos locais, funciona como cintilações que vibram ao longo do texto literário, para guiar o leitor na jornada dos sentidos. Kuami4 é um filhote de elefante que foi capturado por caçadores quando ainda estava no ventre de sua mãe e que, chegando a uma nova terra, 3 4

Acredita-se que são espíritos que provocam mal às pessoas. Provavelmente uma homenagem da escritora a Kwame Nkrumah, importante líder político africano.

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conseguiu fugir com a ajuda materna, passando a viver com medo e com saudades. Em razão disto, vivia preocupado em se esconder. Janaína vive em Sereal e, ainda pequena, soube por meio da rainha das águas que sairia do seu lugar, do convívio familiar, para uma vivência na terra. O seu primeiro contato foi com um filhote de elefante, Kuami, com quem estabeleceu logo uma amizade por afinidade, visto que ele tinha perdido a mãe para os caçadores e Janaína tinha perdido o pai que desaparecera misteriosamente. A mãe de Janaína foi consolada por Helena Tucanaré, a comandante dos tucunarés-bombeiro, com quem reaprende a cantar e passa a conviver. Janaína após contato com Kuami convida-o a um passeio pelo Sereal e o amigo faz amizades com a mãe e a “tia” de Janaína, assim como com todo o coral, a Mãe D’Água e o maestro que logo lhe remete a figura paterna. Todos ficam sensibilizados com a dor de Kuami e resolvem ajudá-lo a reencontrar a sua mãe, a sua ancestralidade. Janaína parte em busca da mãe de Kuami e planeja a sua fuga com a ajuda de outros animais. E aqui destaco um dos princípios éticos de matriz africana que contribui para uma melhor convivência humana: ìró mi aanu (tradução literal: O som da minha misericórdia) ou a compaixão: Omode Ty Yemoja (A Criança de Yemoja) Todos o excluiam e se enojavam dele. Mas Yemoja o amou E lhe deu um lar ... Lhe curou as chagas Lhe deu uma Família Lhe deu poder E força Lhe deu asé Obaluaye filho de Yemoja Yemoja é puro amor Quem não quer ser Uma criança de Yemoja? (NOSSOS ORISHAS, 2014, s/p)

Este poema-canção nos ajuda a entender a ética que rege as práticas sociais alicerçadas no candomblé que acolhe e transforma o sujeito, empoderando-o, fortalecendo-o, amando-o sinceramente e recuperando-lhe a autoestima. Ressignifica socioculturalmente e afetivamente o sujeito, antes excluído, para reinseri-lo com outro olhar e atuação no mundo. No caso do livro de Cidinha da Silva, as histórias de vida 6 Realização:

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de Janaína, Kuami e de Sete Lajedos se tocam porque são três crianças com histórias de perdas em comum, mas que são acolhidas pelo adulto, figura importante e indispensável na formação da criança, porque portador da memória e mediador da ancestralidade. A dor da perda, esta falta de referência, é minimizada com gentileza, com respeito, com redimensionamento do corpo, e tanto Helena quanto Didó agiram como típicos filhos de Yemanjá, maternais, com disposição para ajudar e civilizar. Além disso, vemos na narrativa alusões arquetípicas à orixá, nas nomeações das personagens, seja no nome Janaína, um dos nomes de Yemanjá, seja na referência à Mãe das Águas e à sereia, forjando um código de comportamento, de ética, que reequlibra o sujeito afetado e desempoderado pelos outros. Desta forma, a ética e a pedagogia se entrelaçam, participando da formação do leitor e a literatura negra traz para o centro das discussões não apenas a questão racial, mas a étnica, sobremaneira. A narrativa Kuami é rica em referências intertextuais que apontam para uma visão de mundo da escritora. No início do texto, é perceptível o diálogo com as narrativas míticas indígenas, como a história do boto, reforçado pela ilustração que traz uma menina índia, Janaína, uma mulher negra, a sua mãe Naomi e o seu pai que não tem forma humana, mas é descrito como um homem de olhos verdes, conhecido como D. Juan, muito passional, daí o seobrenome baiacú, uma descrição que muito se aproxima do homem branco. A menção à D. Juan, grande sedutor, dialoga com a literatura canônica, aproximando assim duas narrativas aparentemente distantes geograficamente, mas que traz pontos em comum, que é a história da sedução, abrindo possibilidades para uma discussão acerca da origem das narrativas, da precedência de uma em relação à outra, e põe em questão ainda o fato de tratarmos uma com mais deferência do que a outra. Além de referências intertextuais e bem humoradas à literatura, a narrativa de Cidinha menciona diretamente a música brasileira - Paulinho da Viola Mágica, Ademilde Chorosa da Fonseca, Max Cavalleiro de Jorge, Arlindo Cruz do Firmamento Real -, misturando gêneros musicais ao longo do texto. As referências à tecnologia fazem com que o mito se aproxime da vivência do leitor contemporâneo, o que acontece também em Os Nove Pentes D’África. Além das referências à cultura africana por meio dos Orixás, Cidinha da Silva traz outras narrativas, estas fruto de vivências históricas, sobre os caçadores que 7 Realização:

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capturavam pessoas para serem escravizadas, fazendo clara alusão ao processo de escravidão e as consequências nefastas para a população negra diásporica. No contexto da narrativa, Kuami poderia ser entendido como este sujeiro diaspórico que perdeu seu elo ancestral e vivia alijado da sua história, da sua importância no mundo, e é por meio da comunidade liderada por mulheres, alusão a um matriarcado, que o jovem elefante consegue se colocar novamente como sujeito e parte em busca da mãe, do referencial ancestral que o religará à sua ipilese, à sua origem, ao seu destino. Apesar do discurso sobre a origem ter sido interpretada de diferentes formas pela crítica literária, até mesmo despolitizando qualquer discurso que reivindique esta origem, foi por meio deste discurso que vários povos conseguiram se organizar e perpertuar os seus códigos, por isso considero suspeito, mas não estranho, que no momento em que as vozes diásporicas começam a tomar consciência do seu ori, um contradiscurso apareça para declarar a morte da origem. Neste sentido, Kuami é um convite a leitura de reencontro do sujeito com a história ancestral, sem perder de vista a sua inserção política no presente, que só poderá ser feito com vigor e consciência quando este sujeito tiver se ligado à sua gbòngbò (raiz). Logo no início do texto, a voz narrativa assume a contação e apresenta as personagens e o lugar de origem devidamente nomeados: Janaína, a sereia da história, não nasceu das águas do sempre, como todas as outras. É filha do amor entre Hércules Baiacú e Naomi dos Palmares. Ela vive no Sereal, reino das sereias, próximo da pororoca, onde se misturam olhos apascentados pelo rio e outros famintos de mar. (DA SILVA, 2011, p.01)

A referência intertextual às narrativas canônicas, através do destaque “como todas as outras”, permite-nos uma reflexão sobre a razão pela qual as referências identitárias de diferentes culturas não foram consideradas em sua origem quando transplantadas, mas retextualizada para inseri-la em outro contexto, negando-lhe a origem e o reconhecimento cultural.

O corpo para a cultura africana é o

acontecimento deste movimento ancestral que permite a ligação do sujeito com o presente, o passado e o futuro. O lugar, este corpo geográfico e histórico, mas, também, corpo simbólico gerado pela memória, precisa ser nomeado para dizer onde este corpo está assentado. Neste breve trecho, o lugar físico, de encontro de movimentos diferentes, de origens diferentes – rio e mar – deu origem a Janaína, nascida da confluência de sujeitos de culturas distintas. Com a morte do pai, a 8 Realização:

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identidade liga-se ao tronco materno, reforçando uma matrilinearidade que é expressa na intencionalidade da escritora ao suprimir a figura paterna da história, para acentuar a ligação entre os sujeitos e a mãe, seja a física ou a simbólica, neste caso a mãe África : “Olá, meu nome é Janaína e o seu?” Janaína de quê?” A pergunta a pega de surpresa. “Janaína dos Palmares Baiacu”, responde insatisfeita. Antes de investigar o porquê da pergunta, ele completa: “A origem da gente é muito importante, onde fica Palmares?” “Não sei, minha mãe é Naomi dos Palmares e eu sou Janaína dos Palmares. E você, quem é, afinal?” “Eu sou Kuami de Luanda.” “Onde fica a Luanda?” Ela devolve a dúvida de origem para saber o lugar dele. “Longe, muito longe daqui, é a terra da minha mãe, eu não a conheço” “E a sua terra onde fica? Janaína tenta também intimidá-lo no jogo de rato e gato. “minha terra é a Luanda, como minha mãe é de lá, eu também sou” (DA SILVA, 2011, s/p)

O nome, assim como o lugar, revela muito da origem das pessoas e uma das formas usadas pelo colonizador durante o processo de colonização foi mudar o nome dos escravos, atribuindo-lhe um nome cristão, para não deixar qualquer rastro ancestral que pudesse ligá-lo a uma origem, enfraquecendo-o para, enfim, dominá-lo. A referência a Palmares e a Luanda possui grande força simbólica porque Palmares foi um quilombo importante do Brasil, um local de resistência, o cordão umbilical que ainda ligava os escravizados a uma terra, a uma cultura, mas sobretudo a si mesmo. Na narrativa, Cidinha traz Luanda, capital da Angola, país colonizado também pelos portugueses, como a outra ponta. Do ponto de vista da linguagem, Kuami nos remete às narrativas orais, repletas de imagens e sugestões. Cidinha da Silva evita usar a palavra já dita, para buscar no leitor a palavra que ele dirá, realizando assim uma escrita emancipatória porque liberta o leitor da própria palavra cristalizada que o aprisiona em sentidos que ele mesmo não se reconhece, não se vê representado. Ao fazer o movimento inverso, a escritora oferece a imagem, para que o leitor encontre em suas referências a palavra, o sentido. Este processo de criação literária aparece em toda a narrativa, como em “Naomi se decompunha em lágrimas naqueles minutos intermináveis, quando o sentimento não sabe o que fazer, como se mover.” (DA SILVA, 2011, s/p). Aqui, o uso da personificação sugere a concretização da dor, viva e absorvedora, dominando o corpo do sujeito, neste caso da personagem Naomi, diante da morte do marido.

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Porém, da mesma forma que existe as pequenas metáforas ao longo da narrativa, as grandes também se fazem presente: Em tempo nasceu a sereiazinha mais graciosa do Sereal. Foram vinte e um dias de festa e uma procissão de visitantes dos reinos vizinhos trazendo mil presentes. A própria Mãe D’água mandou um Acará mensageiro convocar a menina ao palácio. Para escoltar a família Palmares-Baiacu, a Senhora das Águas enviou uma comitiva de peixes-espada. Num balé de guerreiros, eles cruzavam as lâminas regidas por Ogum Marinho, saudando os navegantes no caminho das águas de seixos dourados. (DA SILVA, 2011, s/p)

As referências ao candomblé são inúmeras, como em Ogum Marinho, Mãe D’Água (referência aos Orixás), Acará (referência ao alimento sagrado, ofertivo à Oyá), Seixos (ou otá, pedra-fetiche do candomblé onde o axé do orixá se fixa), e o próprio gesto de levar a menina para o palácio, aqui metáfora para o ilê axé, para entrar no sórò, o fundamento. A remissão ao número vinte e um, simbólico para esta religião, assim com três, sete, catorze, refere-se às obrigações e aos momentos em que a abiã, em yorùbá “aquele que vai nascer”, se torna uma iaô, em yorùbá, “esposa mais jovem”, isto é, aquela que já passou pela fase da reclusão. Destaco também a revelação, tão importante no destino das pessoas, quando a Mãe D’água prevê que Janaína alargaria sua vivência no mundo, alçando outras terras, além da que nasceu. Este é o momento em que o sujeito volta para a sociedade para viver o seu èkó (lição). No caso de Janaína, seria conquistar a confiança de Kuami e trazê-lo de volta ao seu ori. E nesta aventura ancestral, Cidinha da Silva entremeia tradição e modernidade, inserindo não apenas estilos musicais diferentes, como já dito, mas gerações distintas de músicos, além da tecnologia renomeada, a exemplo de em tudopode, nome dado a fone de ouvido, além da presença de repórteres e cinegrafistas, representantes do Ministério Público e a Polícia Federal, presentes no resgate dos escravizados, onde a mãe de Kuami se encontrava. Neste processo de camadas temporais, a escritora traz para o leitor questões do seu mundo, uma realidade que não está apenas no passado, mas no presente com outras engrenagens, mas que apontam para os resquícios da escravidão no Brasil. As páginas finais são um misto de denúncia e promessa, quando, durante um de seus voos, Kuami, neto de Dumbo, alusão ao desenho da Disney, vê o seu fio de contas escapar-lhe, pousando sobre a 10 Realização:

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terra e transformando-se em flores, imagem que alude a uma esperança por dias melhores às futuras gerações, à possibilidade desta terra ser um lugar de reconciliação e ìdásílè, isto é, liberdade: “Olá, meu nome é Janaína e o seu?” Janaína de quê?” A pergunta a pega de surpresa. “Janaína dos Palmares Baiacu”, responde insatisfeita. Antes de investigar o porquê da pergunta, ele completa: “A origem da gente é muito importante, onde fica Palmares?” “Não sei, minha mãe é Naomi dos Palmares e eu sou Janaína dos Palmares. E você, quem é, afinal?” “Eu sou Kuami de Luanda.” “Onde fica a Luanda?” Ela devolve a dúvida de origem para saber o lugar dele. “Longe, muito longe daqui, é a terra da minha mãe, eu não a conheço” “E a sua terra onde fica? Janaína tenta também intimidá-lo no jogo de rato e gato. “minha terra é a Luanda, como minha mãe é de lá, eu também sou” (DA SILVA, 2011, s/p)

Por fim, trago o livro O Mar de Manu, de 2012, baseado em uma lenda sobre os homens do deserto. Trata-se da história de um menino chamado Manu que tinha uma vara de pescar eletrônica para apanhar estrelas. Certo dia, depois de estar com o vendedor da vara, Manu se afasta da vila e alcança a floresta, quando começa a ser atacado por javalis. Manu sobe na árvore e “pescando as estrelas” mantém os javalis distantes até que eles desistem. Enquanto está no topo da árvore, Manu relembra as histórias ouvidas de sua avó Baya, cujo trocadilho de letras nos lembra a palavra Yabá, que significa “orixá feminino, senhora idosa”, sobre como os javalis se tornaram maus. Enquanto as rememora, o tempo cuida de fazer com que os javalis se afastem, sugerindo que os obstáculos por si só se desmoronam. Manu desce da árvore e retorna para casa, pensando, ao longo do caminho, nas histórias que sua mãe irá contar. O tempo, orixá Iroko, é referenciado na história de Manu porque a ele compete a passagem do tempo, e tempo foi o que o menino precisou para não ser atacado e morto pelos javalis. Por esta síntese, percebo que a escritora elege a narrativa como um legado simbólico ancestral que não apenas serve para o deleite, mas, sobretudo, para educar as pessoas a se relacionarem a partir de princípios éticos e, com isso, organizarem-se socialmente, vivendo melhor consigo e com os outros. O cuidado da escritora em mesclar as narrativas africanas à sua narrativa contemporânea, reelaborando-as em um momento presente, marcado pela referência à tecnologia, faz com que desperte no leitor de hoje uma visão menos fragmentada e mais orgânica, a partir da sua percepção como um sujeito diaspórico e do seu 11 Realização:

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reconhecimento ancestral, já que ele precisa entender que o texto está dialogando com ele e falando de coisas dele e não de um mundo desconhecido ou distante. É desta forma que Cidinha da Silva elabora as suas narrativas, cumprindo a função de uma jovem griot que oportuniza o seu leitor a buscar em suas reminiscências o seu fio de contas, o seu lugar de pertencimento no mundo como sujeito diaspórico, ao mesmo tempo significado e significador neste grande Ilé Axé que é o mundo. REFERÊNCIAS: DA SILVA, Cidinha. Os Nove Pentes da África. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009. _________________. Kuami, Belo Horizonte: Editora Nandyala, 2011. _________________. O Mar de Manu. São Paulo: Kuanza Produções, 2012. OLIVEIRA, Eduardo. Epistemologia da Ancestralidade. Disponível em: .Acesso em: 20 de mai de 2014. Culturas, histórias e lendas. Africanas Raízes. Disponível Acesso em: 20 mai 2014.

em:

CORDEIRO, Hildália Fernandes Cunha. “Quem é, é! Quem não é, cabelo avoa!” Orí-Irun (cabeça-cabelo) e a sua importância na religiosidade negro-africana em comunidadesterreiro. Disponível em: Acesso em: 20 mai 2014.

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