Livre apreciação da Prova e dever de fundamentação da Sentença

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Jornadas de Direito Processual Penal – FDUL – 5 de Novembro de 2003

A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença

“La liberté, en matière de preuve, n’est pas comptée: liberté pour les acteurs du procès, quant aux modes de preuves admissibles, liberté, pour le juge, quant aux conclusions à en tirer.” Philippe Conte e Patrick du Chambom Procédure Penale, p. 32

“…un juez profesional (…) no puede basar su sentencia en una pura e íntima convicción, en una especie de corazonada, no exteriorizable ni controlable en otras instancias” E. R. Vadillo, La actividad probatoria…, p. 108

“Il conflitto tra accusa e difesa non può essere risolto in base ad un atto di fede” Paolo Tonini, La prova penale, p. 9

I – Introdução1 Em qualquer análise que se empreenda de questões relativas à prova em processo penal, e seja qual for o ordenamento jurídico com que nos deparemos, surgem sempre questões básicas inultrapassáveis, a saber: O que se entende por prova? A quem incumbe provar? Com quê é que se faz prova? E até onde deve ser estendida a obrigação de provar? A resposta a tais questões,

1 Referências bibliográficas citadas no decurso do texto: Andrés Martínez Arrieta, La prueba indiciaria, in La prueba en el proceso penal, Centro de Estudios Judiciales – Col. Cursos, vol. 12, Ministerio de Justicia, Madrid, 1993, pp. 51 e ss.; Jean-Luis Gomez Colomer, El proceso penal aleman – introduccion y normas básicas, Bosch, Barcelona, 1985; Philippe Conte e Patrick Maistre du Chambon, Procédure Penale, Ed. Armand Colin, Paris, 2002; Eduardo Correia, Les preuves en droit penal portugais, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, XIV, 1967, pp. 1 a 52; Sebastião Cruz, Direito Romano, I, 4ª Ed., Coimbra, 1984; Andrea António Dália e Marzia Ferraioli, Manuale di Diritto Processuale Penale, 4ª Ed., Cedam, Padova, 2001; J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, 1974; Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, II, 1981; Paulo Saragoça da Matta, O Direito ao recurso ou o duplo grau de jurisdição como imposição constitucional e as garantias de defesa dos arguidos no processo penal português, in Revista Jurídica, n.º 23 (Nova Série), Março 1998, AAFDL, pp. 323 a 413; João de Castro Mendes, Do conceito de prova em processo civil, Ed. Ática, Lisboa, impr. 1961; Júlio Fabbrini Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado, 9ª Ed., Jurídico-Atlas, S. Paulo, 2002; Jorge Miranda, Funções, órgãos e actos do Estado, apontamentos, Lisboa, 1986; José Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia, 5ª Edição, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1982; A. Castanheira Neves, Sumários de processo criminal, policopiado, Coimbra, 1968; Michèle Laure Rassat, Traité de procédure pénale, PUF, Paris, 2001; Claus Roxin, Strafverfahrensrecht, 24. Auf., Verlag C.H.Beck, München, 1995; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, Verbo, Lisboa / S. Paulo, 1993; Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, Ed. Simão Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1806; Miguel Teixeira de Sousa, A livre apreciação da prova em processo civil, in Scientia Iuridica, XXXIII, 1984; Gaston Stefani, Georges Levasseur e Bernard Bouloc, Procédure pénale, 18ª Ed., Précis Dalloz, Paris, 2001; Paolo Tonini, La prova penale, 3ª Ed., Cedam, Pádua, 1999; Enrique Ruiz Vadillo, La actividad probatoria en el proceso penal español, in La prueba en el proceso penal, Centro de Estudios Judiciales – Col. Cursos, vol. 12, Ministerio de Justicia, Madrid, 1993, pp. 101 e ss.; Autores Vários., El proceso penal - doctrina, jurisprudencia y formularios, Vol. III, Direcção de Victor Moreno Catena, Tirant Lo Blanch, Valencia, 2000.

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por seu turno, com excepção da primeira delas, já varia consoante o cenário jurídico-político instalado, ou seja, depende do tipo de estrutura constitucional do Estado em questão. No actual quadro jurídico e axiológico português, as respostas a tais questões encontram-se mais ou menos respondidas por princípios gerais inseridos na Constituição da República, que enformam, necessariamente, a legislação processual penal. Assim que à pergunta sobre a quem incumbe a prova, se responda, como regra, com o princípio da presunção de inocência. Já à questão sobre como é que se faz a prova, responde o sistema apelando a múltiplos princípios de grau constitucional, assim os princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da imediação e da contraditoriedade. Por fim, à questão que pretende determinar até onde deve ser levada a obrigação de provar, responde-nos o ordenamento jurídico com o princípio da livre apreciação da prova. Além da relevância jus-constitucional de tais respostas, as mesmas encontram-se também consagradas a nível legal, servindo de pórtico ao Livro III, Título I do Código de Processo Penal, mais precisamente nos respectivos art.ºs 124 a 127. Ora, as regras relativas à valoração da prova, matéria que se prende com a resposta à quarta questão atrás referida, constituem precisamente um dos temas nucleares do processo penal, hoje e sempre, e, diga-se, em qualquer ramo de direito processual. Isto sem prejuízo de a mesma assumir uma relevância especial no âmbito do processo penal, atenta a sensibilidade dos valores comprimidos com o Direito substantivo que este visa aplicar. Conforme atrás referido, o tipo de regras que regulam os diversos modos e vias de valoração da prova resulta inequívoca e inexoravelmente da estrutura jus-constitucional de determinado Estado. E se tal proposição é certa, não menos certa é a proposição inversa: o tipo de regras de valoração da prova em vigor – a cada momento e em cada Estado –, permite qualificar e interpretar o tipo de Estado em questão, no que concerne ao respeito que este demonstra pelos seus cidadãos. Ora, é precisamente uma análise das regras de apreciação da prova no quadro processual penal actualmente em vigor em Portugal que constitui objecto principal destas linhas, análise essa que é levada a cabo em relação com o dever constitucionalmente imposto de fundamentar as decisões processuais penais. Todavia, como facilmente se antevê, as liaisons dangereuses que se estabelecem entre as regras de apreciação da prova e o dever de fundamentação de sentenças não são as únicas relações que tais realidades mantêm no quadro jurídico-axiológico actual, e nem sequer são susceptíveis de uma análise esterilizada, i.e. que não envolva algumas outras questões fundamentais, de entre as quais ressalta, dada a sua íntima conexão com as anteriores, o direito ao recurso em processo penal.

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Tudo questões que tentaremos sumariamente apontar e analisar, numa tentativa tópica de alinhar entendimentos e suscitar questões de reflexão para os trabalhos que para breve se anunciam de revisão (mais uma), do processo penal português.

II – Algumas considerações sobre a prova em processo penal O tema em que nos movemos é de tal modo complexo e sensível que o próprio vocabulário utilizado é na maioria dos casos plurívoco, podendo mesmo assumir-se, em algumas circunstâncias, como equívoco. Desde logo o próprio sentido do termo prova2, subsequentemente o que sejam meios de prova, meios de obtenção de prova, indícios, etc. Prova, em sentido lógico, ou filosófico, significa um “processo mediante o qual se estabelece que a conclusão se segue das premissas. Alguns autores incluem no significado de ‘prova’ a dedução; outros restringem o significado à demonstração cuja conclusão é correcta. Para efectuar uma prova é necessário utilizar certas regras de inferência. Em nenhum caso a prova se baseia numa ‘intuição’ da verdade de uma proposição. (…) … Husserl afirmava que só pode falar-se de demonstração ou prova quando há ou pode haver dedução intelectiva. A demonstração distingue-se assim, a seu ver, da mostração, na qual se assinala ou aponta simplesmente, enquanto a demonstração vai sempre acompanhada de intelecção ou evidência. Mas, ao fazer intervir esta última noção, Husserl parece ter recaído em certo psicologismo incompatível com um processo de derivação ou inferência puramente formal”3. Por seu turno, em sentido jurídico, a prova surge funcionalmente definida no art.º 341º do Código Civil, quando tal normativo afirma que “as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos”. Nessa base, a prova é a actividade de demonstrar a realidade de um facto, ou o resultado da demonstração de que determinado facto é real, respectivamente a prova como actividade probatória no seio de um determinado processo e a prova como resultado daquela actividade. Mas se o Código Civil apresenta a vista definição funcional de prova, o Código Penal e o Código de Processo Penal não apresentam directamente qualquer definição, nem sequer funcional. Todavia, 2 E assim é por definição, não só no sistema legal português. No que ao direito francês concerne, escrevem P. Conte e P. Chambon, op. cit., p. 32: “il est parfois délicat de distinguer la preuve proprement dite, du procédé ou du support par lequel on l’a obtenue”. Já no âmbito do direito italiano, afirma Paolo Tonini, op. cit., pp. 12 e s., “Il termine ‘prova’ può avere almeno quattro diversi significati : si può riferire alla fonte di prova, al mezzo di prova, all’elemento di prova o al risultato probatorio.”. 3 José Ferrater Mora, op. cit., p. 327, voce “prova”. -3-

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referindo-se à prova em múltiplos dos respectivos normativos, o último dos diplomas citados permite-nos chegar, no âmbito das ciências criminais, a uma conclusão semelhante à do direito civil. A prova visa a demonstração da realidade dos factos, por só assim se poder exercer o soberano poder jurisdicional penal – tudo mercê da estrutura básica, clássica e habitual das chamadas normas perfeitas, dotadas de uma previsão e de uma estatuição. Assim sendo, pressuposto para a aplicação da estatuição é a verificação da previsão, e para que esta se dê, por seu turno, por preenchida, ponto é que os factos em que a mesma se analisa sejam dados como assentes, i.e., como historicamente verificados4. Em equivalente sentido, e segundo o dizer de Marques da Silva, prova tanto poderá significar o “acto ou complexo de actos que tendem a formar a convicção da entidade decidente sobre a existência ou inexistência de uma determinada situação factual”, como “a convicção da entidade decidente formada no processo sobre a existência ou não de uma dada situação de facto”, como “o instrumento probatório para formar aquela convicção”5. O autor chama ainda particular atenção para o facto de a prova no processo penal moderno não ter por fim, apenas, a demonstração da realidade dos factos. Em concreto afirma que “a prova, entendida como actividade, é também garantia da realização de um processo justo, de eliminação do arbítrio, quer enquanto a demonstração da realidade dos factos não há-de procurar-se a qualquer preço, mas apenas através de meios lícitos, quer enquanto através da obrigatoriedade de fundamentação das decisões de facto permite a sua fiscalização através dos diversos mecanismos de controlo de que dispõe a sociedade”6/7. Tradicionalmente, e logicamente, concebe-se a prova enquanto processo, ou método, no mais próprio sentido da palavra: um caminho que se trilha entre um facto cuja existência histórica ( ou

4 Paolo Tonini, op. cit., p. 7, escreve: “Le problematiche che attengono alla prova penale si comprendono più agevolmente se si considera la finalità alla quale le prove sono destinate, che è quella di permettere la decisione sulla reità dell’imputato. (…) Il giudice, in primo luogo, accerta se è avvenuto il fatto storico che è stato addebitato all’imputato e se questi ne è responsabile; in secondo luogo interpreta la norma incriminatrice al fine di ricavarne quale è il fatto tipico; infine, valuta se il fatto storico, che ha accertato, è ‘conforme’ al fatto tipico previsto dalla legge”. 5 G. Marques da Silva, op. cit., p. 81. 6 G. Marques da Silva, op. cit., p. 78, apelando, por seu turno, a José Maria Asencio Mellado, Prueba prohibida y prueba preconstituida. 7 Sendo reais todas as funções da prova que Marques da Silva aponta, não pode porém acompanhar-se que tais finalidades não sejam também comuns à prova nos outros ramos processuais. Com efeito, também no processo civil, no processo laboral, no processo administrativo, no processo tributário, etc., a prova constitui garantia de um processo justo, modo de evitar arbítrios, restrição de modos de investigação ilícitos, e modo de fiscalização da suficiência da fundamentação do decidido. -4-

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verdade)

se quer demonstrar, e a conclusão sobre a respectiva existência ou não 8. Tal conclusão é

o conhecimento, que na decisão a tomar é dado por assente relativamente ao factum probandum. E os modos para atingir tal conhecimento são amiúde esquematizados nos moldes seguintes: um modo directo ou imediato, e um modo indirecto ou mediato – além temos a prova directa e a prova indirecta indiciária, aqui temos a prova indirecta representativa, para utilizar a terminologia de Castro Mendes9/10. Quer a prova directa quer a prova indirecta vivem através dos meios de prova, mecanismos predeterminados que servem de modos de percepção da realidade ou de presunção de factos tendentes a demonstrar a realidade. Por outras palavras, os meios de prova são a fonte de convencimento utilizada pelas entidades a quem cabe decidir, a cada passo, acerca da veracidade dos facta probanda. Realidades distintas dos meios de prova são os meios de obtenção de prova, enquanto modos ou mecanismos de recolha de meios de prova. Igualmente digno de análise sumária é o conceito de indício. No dizer de Pereira e Sousa, “indício se diz a circunstância que tem conexão verosímil com o facto incerto de que se pretende a prova”11. Andrés Arrieta afirma que falar de indício “supõe um elemento fáctico que autoriza uma dedução, como sua consequência, assim permitindo afirmar a realidade de um facto oculto”12. Um indício é, portanto, um facto que embora não demonstrando a existência histórica do factum probandum, demonstra outros factos, os quais, de acordo com as regras da lógica e da experiência, permitem tirar determinadas ilações quanto ao facto que se visa demonstrar. Daí que se fale em prova directa e prova indiciária – além se querendo referir a prova que recai directamente sobre os facta probanda, e aqui se aludindo precisamente à prova indiciária. Também quanto ao termo indício se verifica a plurivocidade que atrás se assacou ao termo prova. É que indício tanto pode querer significar o facto conhecido do qual parte o juízo de indiciação,

8 Aliás, o próprio princípio da livre apreciação da prova constitui, essencialmente, um princípio metodológico. 9 João de Castro Mendes, op. cit., pp. 248 e ss. 10 Afirma a propósito G. Marques da Silva, op. cit., p. 79: “Se se tratar de prova directa, a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal; na prova indirecta a percepção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção. A prova directa faz-se por percepção, a indirecta por percepção e presunção.”. 11 Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, op. cit., p. 43. 12 A. Arrieta, op. cit., p. 55 -5-

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como o resultado do juízo referido. A cadeia de indícios pode também apresentar vários graus, num verdadeiro juízo de presunção ou conjunto de ilações13. Ora, o facto de o indício não ter uma conexão directa com o factum probandum leva a que o respectivo valor probatório seja variável, dependente do tipo de ilações que o indício autoriza. Um indício será tanto mais seguro quanto menos ilações alternativas permita14. Daí que haja que proceder com cautela acrescida na apreciação e valoração dos indícios, sendo imprescindível, para assegurar graus acrescidos de fidedignidade, que se distinga por um lado a prova (demonstração) do indício em si, do juízo lógico que tende a relacionar o indício com os facta probanda (in casu, os “factos que constituirão elementos ou circunstâncias do crime e que relevam para efeitos de determinação da responsabilidade penal do arguido e responsabilidade civil dos civilmente responsáveis”15).

Contudo, com a expressão prova indiciária refere-se a Lei ainda a uma situação diversa, que nada tem que ver com a relação existente, ou proposta, entre um facto conhecido e o factum probandum. Com efeito, prova em sentido próprio apenas se pode considerar existir após a sujeição da mesma ao contraditório pleno, contraditório que não se garante a não ser na audiência de discussão e julgamento. Por outras palavras, atribui a lei a força de prova apenas aos meios de prova que sejam produzidos, examinados e sujeitos a contradição em julgamento (art.º 355 CPP). Sem isso os meios de prova não têm a dignidade legalmente exigida para que possa considerar-se provado um determinado facto. Com semelhante enquadramento entende-se, então, que os meios de prova antes da respectiva produção e sujeição a contraditório apenas têm um valor indiciário; constituem demonstração apenas da suspeita que recai sobre o Arguido, i.e., indiciam os facta probanda, mas não chegam para considerar provados os factos.

13 P. Conte e P. Chambon, op. cit., pp. 32 e s.: “La catégorie de l’indice (évoquée seulement incidemment: art. 54) se définit moins par son contenu, fort large, que par l’opération intellectuelle qu’on lui rattache , la présomption. Au sens strict, l’indice s’entend de tout ce qui, sans fournir une preuve immédiate, rend possible le fait recherché (‘index’: qui indique); c’est précisément cette possibilité qui, par induction, permet de conclure positivement à la question de savoir si ce fait existe (…). Tout, ainsi, peut être indice: une dénonciation, une attitude, une trace, etc. C’est pourquoi, d’un certain point de vue, ce mode de preuve absorbe tous les autres, dès l’instant qu’ils ne créent pas d’évidence : recueillir un aveu ou un témoignage, c’est obtenir un indice par l’intermédiaire d’une personne. La présomption, quant à elle, est en général abandonnée à l’appréciation du juge (…). Il arrive, parfois, qu’elle soit l’œuvre du législateur (…) : ainsi des présomptions de culpabilité”. 14 Segundo Cavaleiro de Ferreira, op. cit., p. 290, “Quando um facto não possa ser atribuído senão a uma causa, o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se do da prova directa. Quanto o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova dum facto que constitui uma dessas causas é também somente um indício provável ou possível. Para dar consistência à prova, será então necessário afastar toda a espécie de condicionamento possível do facto probando menos um. A prova só se obterá, assim, excluindo, por meio de provas complementares, hipóteses eventuais e divergentes, conciliáveis com a existência do facto indiciante. Por meio destas investigações se poderá transformar a mera possibilidade que o indício revela, em necessidade”. 15 G. Marques da Silva, op. cit., p. 83. -6-

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Daí que se não estranhe que os meios de prova sejam, em determinado procedimento, os mesmos em todas as fases processuais, mas que apenas no final do julgamento se possam afirmar provados os factos imputados ao Arguido. Até então tiveram apenas a força de indícios da prática do facto, que suportaram a decisão de dedução de acusação (indícios), a eventual decisão de pronúncia (indícios com força probatória acrescida, dado o contraditório embrionário já existente no debate instrutório ), as eventuais decisões de aplicação de medidas de coacção, e mesmo as eventuais determinações de recolha de outros meios probatórios. E o facto de assim ser também em nada belisca, bem ao invés, os princípios fundamentais do processo penal. Como bem refere Marques da Silva, “a exigência de ‘prova’ sobre a ocorrência dos factos não é a mesma nas diferentes fases do processo. Enquanto para acusar importa a convicção do Ministério Público sobre a indiciação suficiente, e para pronunciar também a indiciação suficiente é bastante, já para a condenação importa a ‘prova’. Por indiciação suficiente entende-se a ‘possibilidade razoável’ de ao arguido vir a ser aplicada, em razão dos meios de prova já existentes, uma pena ou medida de segurança; a prova é a ‘certeza’ dos factos”16. Mas o entendimento visto, fruto de uma estruturação garantista do processo penal moderno, leva a alguma confusão, principalmente da parte dos desprovidos de conhecimentos técnicos necessários à compreensão da questão. A situação é particularmente visível nas discussões públicas de casos penais mediáticos, onde se encontram radicalizações de posições, por via de regra sempre incorrectas17. Com efeito, no processo penal, enquanto procedimento, não é sempre exigido o mesmo grau de certeza dos factos, bastando-se a Lei, para alguns efeitos, com a mera possibilidade ou com a probabilidade da respectiva verificação18/19.

16 G. Marques da Silva, op. cit., p. 85. 17 Situação particularmente actual e ilustrativa do afirmado no texto ocorre com o chamado “Caso da Casa Pia”, no que diz respeito ao Ac. T.R. de Lisboa de 13/10/2003, pronunciado sobre o Recurso interposto pelo Arguido Paulo Pedroso em relação à aplicação da medida de coacção de prisão preventiva. 18 G. Marques da Silva, op. cit., p. 85, refere: “A prova indiciária (indiciação suficiente) permite a sujeição a julgamento, mas não constitui prova, no significado rigoroso do conceito, pois que aquilo que está provado já não carece de prova e a acusação e a pronúncia tornam apenas legítima a discussão judicial da causa. Tão-pouco determina uma presunção legal, pois que a prova que pode servir de fundamento à decisão judicial é somente a que tiver sido produzida na discussão da causa, em audiência, e não a que, para fins intermédios do processo, consta do inquérito ou da instrução” – Sendo inequivocamente correcta esta asserção, certo é que a prática forense demonstra bem que assim não sucede, amiúde se encontrando exemplos de condenações assentes quase exclusivamente em prova constante do inquérito ou da instrução, e não repetida em julgamento, ou mesmo em contradições entre o que se verificou em julgamento e o que o próprio Arguido declarou no início do inquérito ou em fases pré-processuais. 19 A propósito referem Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, op. cit., p. 696: “La valorizzazione del dibattimento come momento acquisitivo della prova dovrebbe comportare, in attuazione dei principi accusatori, il rispetto della fondamentale regola secondo cui nella decisione à utilizzabile solo quanto testi ed imputati dichiarano nel -7-

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Assim que, v.g.: 

Para se (dever) constituir alguém como Arguido, baste uma mera suspeita – diz o art.º 58 n.º 1 al. a) do CPP que “é obrigatória a constituição de arguido logo que: a) correndo inquérito contra pessoa determinada, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal”;



Seja “obrigatória a constituição de arguido logo que: um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254º a 261º“20, sendo que suspeito é aquela “pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar”21;



Paralelamente, “se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente”, estão reunidos os pressupostos para se encerrar o inquérito com uma dedução de Acusação22;



Igualmente, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido (…).”23.



Todavia, para que haja condenação é necessário demonstrar: “a) se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime; b) se o arguido praticou o crime; c) se o arguido actuou com culpa (…)”24, etc.

Como pode com facilidade depreender-se do que ficou dito, quer os indícios quer a prova são neste sentido conceitos jurídicos próprios, eivados de um carácter de consabida relatividade. É que se com propriedade se afirma que quer uns quer outros visam demonstrar a realidade dos factos, com

contraddittorio delle parti di fronte al giudice. Senonché, sono plurime le eccezioni all’acquisizione orale del dato probatorio, imposte dall’esigenza di non disperdere quanto acquisito fuori del dibattimento”. 20 Aliás, igualmente exemplificador das situações descritas atrás é a previsão constante do art.º 59º n.ºs 1 e 2 do CPP: “1. Se, durante a inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, a entidade que procede ao acto suspende-o imediatamente e procede à comunicação e à indicação referidas no n.º 2 do artigo anterior. 2. A pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime tem direito a ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem”. 21 Art.º 1º al. e) CPP. 22 Art.º 283 n.º 1 CPP. 23 Art.º 308 n.º 1 CPP. 24 Art.º 368 n.º 2 CPP. -8-

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igual acerto se dirá que a verdade que os mesmos atestam é sempre, por definição, uma mera verdade processual, i.e., aquela que os recursos da Justiça e os limites impostos à acção da Lei lograram alcançar. Daí o facto de com habitualidade se distinguir a verdade material da verdade formal. Verdade formal é a verdade processualmente demonstrada por recurso às provas carreadas para os autos, sujeita a todos os limites que, por definição, tem o espírito humano na tentativa de conhecer e compreender o real, e ainda por aqueles que decorrem da própria vontade do legislador de tutelar os direitos dos cidadãos. Não se acompanha pois a afirmação segundo a qual não há duas espécies de verdade, mas somente a verdade. Apenas uma cientificamente reprovável hipocrisia poderá pretender que em juízo o que se conhece é a “verdade”, sendo certo que as mais das vezes o que se demonstrará (ou não), é uma série de factos articulados pelo acusador ou pela defesa que, se articulados de modos sensivelmente diferentes, levariam a demonstrações de carácter oposto. E se isto é particularmente notório em processos de carácter não penal, também acontece em concretos procedimentos penais25. Ademais, o conhecimento da verdade na maioria das situações pressuporia uma impossível incursão na mente humana, empreitada essa cuja dificuldade, de patente que é, não necessita de ser sublinhada. Atente-se, v.g., no facto de a grande maioria dos tipos pressuporem, para que se dê o crime por cometido, uma análise de estados psíquicos insusceptíveis, por regra, de qualquer demonstração. Tais estado são apenas detectáveis exteriormente, com graus variáveis de acerto, por indícios que a mente humana do agente da infracção e dos demais actores na cena do crime projectaram no mundo do real. Não se escamoteie, também, que apenas regras de experiência e de lógica permitem em muitos casos associar determinadas acções a certos estados de alma. Ora, tais regras são, em boa medida, regras de probabilidade e mesmo de mera possibilidade, e não regras de física. Assim que a indução astuciosa de alguém em erro ou engano para que pratique determinado acto ande por regra associada a uma intenção de obtenção de enriquecimento… é da natureza humana, dir-se-á. Mas poderá suceder que assim não seja. Basta pensar que a dita indução astuciosa em erro possa nem sequer ter qualquer conexão com a esfera patrimonial do induzido em erro, mas antes com a sua esfera emocional, afectiva ou sexual (o que neste último caso é de tal modo habitual, e reprovável, que levou

25 A propósito recorde-se a construção de Roxin, segundo a qual uma clarificação exaustiva dos factos penalmente relevantes poderia lesar muitos outros valores pessoais e mesmo sociais. Daí que a investigação processual penal da verdade não seja um valor absoluto; antes se encontra o processo penal imerso na hierarquia de valores éticos e jurídicos assumidos pelo Estado. -9-

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o legislador a tipificar criminalmente tal conduta).

Assim sendo, como é, provando-se que alguém praticou

um determinado acto sobre o seu próprio património que lhe gerou prejuízos, e alegando a vítimaagente que o fez porque alguém assumiu determinado tipo de comportamentos enganosos e aptos a influenciá-lo, emerge desde logo um indício de que aquele que influenciou o fez por determinada razão. Se após tais constatações se encontrar uma ligação parental, ou afectiva, ou mesmo só de conhecimento, entre o agente da indução e aquele terceiro que acabou por se ver beneficiado com o acto auto-lesivo da vítima, considerar-se-á provada a existência da intenção de obtenção de benefício para si ou para terceiro que o art.º 217º do CP exige como sendo o dolo específico do crime de burla simples. Se essa foi de facto, histórica e psiquicamente, a intenção do agente, apenas por confissão – séria, livre e sem reservas – se poderá demonstrar. Como por via de regra assim não sucede, restará assentar a verdade nas regras da lógica e da experiência26. Iguais raciocínios se podem encontrar nos crimes de difamação – quantas vezes, estatisticamente, se obtém a confissão da intenção de difamar? E não é por falta de confissão que deixa de se punir quem difama. É que as regras da lógica e da experiência demonstram que determinado tipo de imputações, certa categoria de juízos, alguns comportamentos físicos, não podem significar outra coisa que não a intenção de ofender alguém na respectiva honra, bom-nome e consideração. Afastar tal juízo linear feito com base nos indícios que resultam, tantas vezes, de um mero papel, desenho, fotografia ou gesto, implica demonstrar, nos próprios termos contra-típicos do art.º 181º n.º 2 do CP, que o agente “sabia” ser verdadeira a imputação, ou que tinha motivos fundados para crer “em boa-fé”, na respectiva veracidade. Mas se o agente não elidir, positivamente, a verdadeira presunção que emerge daqueles juízos de lógica e experiência comuns ao homem médio, a que primeiro se aludiu para estabelecer a imputação, terá que concluir-se que a condenação final assenta numa presunção de verdade, que não na verdade. Se aos exemplos vistos, sorteados aleatoriamente, se adicionarem os complexos problemas práticos que levantam a prova do erro, a prova da falta de consciência da ilicitude, a prova da aberratio ictus, etc., dúvidas não podem restar de que a verdade processual é efectivamente uma verdade formal, que tanto pode ser, como não, a verdade historicamente verificada. E em nenhum

26 Paolo Tonini, op. cit., p. 11, diz a esse respeito: “Ai fin di questo studio è utile ricordare per sommi capi quale è il concetto di ‘verità’ accolto in campo scientifico e storico-giuridico. In campo scientifico la verità si ritiene raggiunta quando la proposizione formulata come ipotesi (ad esempio, il teorema matematico) corrisponde alla misurazione quantitatitva del fenomeno che viene osservato. Viceversa, per lo storico e per il giudice la verità si ritiene raggiunta quando l’ipotesi su di un fatto, che si è verificato, corrisponde alla ricostruzione del fatto stesso ottenuta mediante prove. È ovvio che no si potrà mai conoscere la verità ‘totale’ sul fatto storico verificatosi, perché la capacità di conoscenza umana sono limitate; d’altra parte, per rendere Giustizia non è indispensabile conoscere la ‘Verità assoluta’; saranno le prove a dirci quanto l’ipotesi à probabile o, viceversa, da scartare. Non occorre che la ricostruzione del fatto storico sia - 10 -

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dos momentos anteriores sequer se transportou a questão para a problemática do próprio processo de apreciação e valoração das provas, antes nos tendo cingido liminarmente à questão da própria prova do facto tal como foi praticado. Por último, diga-se mesmo que “A Verdade” não constitui, a nosso ver, uma categoria ôntica, mas antes um valor, e como tal com uma dose considerável, na respectiva percepção, de dever ser. Correcto é pois aceitar que a verdade processual é uma “verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida”27. Nem de outro modo poderia ser, quando é certo que é a própria Lei, e mesmo a Lei Constitucional, que impõe que nem os poderes das autoridades são ilimitados, nem os meios de prova são todos admissíveis, e nem sequer o respectivo oferecimento, produção e avaliação ocorrem livremente a todo o tempo. Aliás, a própria delimitação daquilo que é susceptível de constituir objecto da prova também determina a verdade que vai conseguir demonstrar-se. O mesmo sucedendo, igualmente, por determinação da própria marcha dos processos, bastando, em rigor (e num Mundo a funcionar como é esperável), que determinadas provas tenham sido obtidas de modo ilícito para que a verdade, quase certamente, não possa sequer vir a ser processualmente conhecida28. Mas toda a discussão em torno do que seja, como se obtenha, como se conserve e como se produza a prova é vazia de consequências se não se analisar o modo pelo qual se apreciam, ou valoram, as provas. Ademais, esse é o objecto último da análise que se empreende. A resposta à questão ora colocada alterna historicamente entre duas possibilidades: devemos predeterminar abstractamente, e com anterioridade absoluta, o valor de dada prova? Ou devemos deixar ao juiz a possibilidade de, casuisticamente, decidir o valor de cada prova? Na primeira

‘perfetta’; ci preme che sia ragionevole e che rispetti i princìpi generali (...) e tra i quali è ricompresa la presunzione di innocenza”. 27 J. Figueiredo Dias, op. cit., p. 194. Igualmente, A. Castanheira Neves, op. cit., p. 51, escreve a propósito do juízo processual: “…a sua modalidade não é a de um juízo teorético, mas a daquela vivência de certeza em que na existência, na vida, se afirma a realidade das situações com tudo o que nestas de material e de espiritual participa”. G. Marques da Silva, op. cit., p. 96, afirma em idêntico sentido: “a verdade processual não é senão o resultado probatório processualmente válido, isto é, a convicção de que certa alegação singular de facto é justificadamente aceitável como pressuposto da decisão, obtida por meios processualmente válidos”. 28 E nesta senda arriscamo-nos a ir mesmo mais longe: verificando-se nos autos que a prova central se encontra eivada de nulidade, e inexistindo provas outras de igual fortaleza na formação da convicção do julgador, a descoberta da verdade seria mesmo ilegal – pois significaria que a prova nula tinha contribuído para formar a convicção do julgador, em clara violação das proibições de prova legalmente cominadas. Com o que se pode dizer que a verdade processual pode ser inimiga da verdade historicamente ocorrida. Em sentido inverso, poderemos ter prova nula que sirva precisamente para demonstrar a improcedência da acusação, e desse modo para provar a inocência daquele que se viu lesionado pela ilegalidade da prova. Também aqui uma prova processualmente inaceitável, e obrigatoriamente desprovida de efeitos, terá - 11 -

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hipótese temos o sistema da chamada prova legal; na segunda o sistema da prova moral, da livre apreciação da prova, ou, também, sistema da íntima convicção. Num plano histórico o sistema da íntima convicção ou da prova moral encontra as suas mais remotas origens no Direito Romano. Todavia, a sua recuperação e utilização como regra na era moderna é algo recente, remontando à revolução jurídica trazida pela Revolução Francesa de 1789, depois de séculos de prevalência do sistema da prova legal, com raízes no direito germânico e amplamente difundido no período medieval29. Com efeito, um sistema de provas legais não era benquisto pelos tribunais de jurados, ignaros quanto às complexas regras legais de admissibilidade e valoração das provas. Paralelamente, esses tribunais de jurados eram vistos não só como garantia de imparcialidade contra os arbítrios apontados aos magistrados profissionais, conotados com o ancien régime, como permitiam também o elogio processual da recta razão que a Aufklärung de setecentos havia erigido em critério último de decisão em todos os domínios do saber. E se pouca ou nenhuma razão existia nas fundamentações que acaloradamente se esgrimiam nesses tempos revolucionários em benefício do sistema da prova moral, sem prejuízo da bondade que o tempo demonstrou existir no princípio da livre apreciação da prova tal como hoje entendido30, já alguma razão subjazia ao temor generalizado de associar determinadas consequências, condenatórias, à verificação de determinadas provas31.

que ser excepcionalmente admitida, quanto mais não seja porque dela nasceu a dúvida (rectius, a certeza) acerca da irresponsabilidade penal do Arguido. Tudo o que demonstra quanto em texto se deixou alinhado. 29 Michèle Rassat, op. cit., pp. 347 e s., esclarece: “Dans le système de la preuve légale, les éléments de preuve sont en quelque sorte tarifés et le veredict résulte d’une espèce d’opération arithmétique où l’on évalue la valeur des preuves produites. C’était le système de l’ancien droit français que comportait des preuves pleines, des preuves semi-pleines et des preuves imparfaites. Dans un système entièrement inquisitoire, cette réglementation était, d’ailleurs, une des rares garanties accordées à la personne poursuivie puisqu’il y apparaît comme un contrepoids aux pouvoirs considérables des magistrats. Dans le système de la preuve morale ou système de l’intime conviction du juge, aucune preuve ne se voit reconnaître de valeur particulière. Le juge apprécie librement les preuves produites avec la valeur qu’il croit pouvoir reconnaître à chacune d’elles. Ce système a été adopté en France au moment de la Révolution un peu par la force des choses : pour des magistrats élus, le système de la preuve légale qui suppose une très grande technicité, était impraticable ”. Sobre a questão, também, G. Stefani, G. Levasseur e B. Bouloc, op. cit., p. 117. 30 Michèle Rassat, op. cit., p. 348, conclui : “Le système de la preuve morale a été conservé, ensuite, car il parait plus en accord avec une procédure de jugement contradictoire et, dans ce cadre, plus favorable à la personne poursuivie”. 31 Diz a propósito, acertadamente, G. Marques da Silva, op. cit., p. 108: “Pensava-se então, para além da dificuldade de os jurados conhecerem as complexas regras legais de valoração da prova, que na convicção íntima dos jurados, emanação ao mesmo tempo da razão individual e da soberania popular, estava o critério último e infalível da verdade. Estas razões, aliadas à convicção de que as prova legais eram arbitrárias, determinou que o sistema fosse inicialmente concebido de modo essencialmente negativo, isto é, pela não submissão aos critérios legais. É hoje, porém, geralmente reconhecido que a convicção íntima não é por si critério de verdade e também ser erro grosseiro pensar que as regras legais quanto ao valor das provas eram necessariamente arbitrárias. Elas assentavam na experiência comum e representavam a estratificação de conhecimento empírico obtido através dos séculos. Era certo que existia o risco do - 12 -

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Além desses fundamentos, um outro, classista e menos elevado, se descortina: sendo o Terceiro Estado o grosso da população francesa, o facto de os Tribunais serem de jurados garantia com grande probabilidade aos respectivos membros um julgamento pelos pares, do mesmo passo que os nobres e o clero teriam, com probabilidade igualmente expressiva, um julgamento feito por aqueles que até então estes dominavam – acabava o sistema processual penal dos Revolucionários da Marselhesa por garantir não só uma democratização e massificação do poder judiciário, mas permitia igualmente, legalizando-a, uma vendetta judicial entre classes, tão ao gosto dos tempos revolucionários. Quanto à relação entre os dois sistemas pode dizer-se que “a rigidez opõe-se, assim, à adaptabilidade, mas não é certo que um dos sistemas seja mais liberal que o outro: obrigar um juiz a condenar alguém relativamente ao qual tem a convicção de que é inocente (prova legal), não é mais satisfatório que o erro devido a um juízo falível”32. E os juízos são tanto mais falíveis quanto menor for a preparação do julgador, e quanto maior for a pressão pública relativamente a um concreto caso que esteja em apreciação, sendo este talvez um dos momentos mais incontroláveis da influência que a opinião pública tem no processo penal33/34. Adquirida a preferência generalizada pelo sistema da prova moral, que acompanhou a instalação dos tribunais de jurados, a mesma alastrou posteriormente aos magistrados profissionais. Ora, sendo a decisão dos tribunais de jurados tomada de acordo com a íntima convicção dos julgadores, claro resulta que a fundamentação da valoração da prova se tornava um exercício ocioso. A consciência e a recta razão eram a melhor garantia da correcção da valoração feita e da justiça do decidido. Como consequência, e como manifestação de que a inércia é talvez das maiores forças motrizes da humanidade, também os magistrados profissionais perderam o hábito de motivar as decisões, no que também seguiram a praxe instaurada para os veredictos populares dos tribunais de jurados. Daí que a arbitrariedade assacada à justiça penal do período pré-revolucionário

sacrifício do caso excepcional à regra comum, mas também no sistema da prova livre existem riscos, tanto maiores e mais graves quanto menor for a preparação e prudência do julgador”. Sobre o tema, desenvolvidamente, Eduardo Correia, op. cit., pp. 1 a 52. 32 Philippe Conte e Patrick du Chambon, op. cit., p. 37. Sobre a questão, igualmente, G. Stefani, G. Levasseur e B. Bouloc, op. cit., p. 117. 33 Philippe Conte e Patrick du Chambon, op. cit., ibidem, escrevem a propósito: “Par la faute d’une presse ignorante, le système de l’intime conviction souffre d’ailleurs, dans le public, de son interprétation inexacte, favorisée, il est vrai, par l’absence de motivation des déclarations de culpabilité du jury, rendues ‘à la maniére d’un oracle’ (Merle et Vitu)”. 34 Aliás, a história da Revolução Francesa é, quanto a isto, uma verdadeira história de erros judiciários e de brutalidade de repressão penal, que não parava, sequer, no respeito por alguns dos mais ilustres revolucionários. O caso de Robespierre será talvez o paradigma do que se afirma. - 13 -

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rapidamente se tenha deslocado para a justiça penal post-revolucionária35. O Juiz que mais não era do que “la bouche qui prononce les paroles de la Loi” transformou-se no Juiz que podia “julgar com prova, sem prova e mesmo contra a prova”. Também como consequência do princípio da infalibilidade valorativa do julgador que conhecia da matéria de facto, surgiu o entendimento do recurso como mero expediente de discussão de direito, transformando-se todo o recurso em mera revista, excluindo-se às instâncias superiores o poder de alterar a matéria de facto dada por assente. Este entendimento veio a ser assumido também em Portugal, onde se encontra bem patente, quer no art.º 296 § 2º da Nova Reforma Judiciária, publicada por Reais Decretos de 29 de Novembro de 1836 e de 13 de Janeiro de 1837, quer no art.º 1162 § 2 da Novíssima Reforma Judiciária, publicada por Real Decreto de 21 de Maio de 1841. A esse propósito, escrevia José Dias Ferreira: “… o júri pode decidir com as provas, sem as provas e contra as provas, visto que o elemento determinativo da sua decisão é unicamente a sua consciência”36. E assim se manteve o regime legal aquando da aprovação do CPP de 1929 37. Todavia, a doutrina, confrontada com as consequências práticas inaceitáveis do entendimento cristalizado na letra da lei, começou a sustentar que a matéria de facto não poderia considerar-se sempre e inapelavelmente fixada em primeira instância. Para tanto gizou-se o entendimento segundo o qual as regras de apreciação da prova constituíam ainda matéria de direito, como tal susceptível de constituir objecto de recurso. Assim se compreende que ainda na década de Oitenta do Século XX Cavaleiro de Ferreira se preocupasse em justificar que “a violação das regras legais sobre a prova como, por exemplo, a necessidade da sua produção em audiência, ou a aplicação do princípio ‘in dubio pro reo’, são violações de direito. E violação do direito é ainda, pelo menos em certa medida, a violação de máximas da experiência que integram as normas jurídicas”38. No mesmo sentido escrevia

35 Sobre o tema, igualmente, E. Ruiz Vadillo, op. cit., p. 108. 36 José Dias Ferreira, Novíssima Reforma Judiciária, Anotada, p. 262, apud G. Marques da Silva, op. cit., p. 109 e Eduardo Correia, op. cit., p. 18. 37 Conforme resulta dos seguintes normativos: Art.º 469 - “O Tribunal Colectivo julga de facto, definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito, com recurso para a respectiva Relação”; Art.º 473 “Da sentença absolutória ou condenatória, cabe recurso para a Relação do Distrito, e desta para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso restrito à matéria de Direito” (ambos os normativos citados foram alterados pelo Decreto-Lei n.º 20.147 de 1 de Agosto de 1931); Art.º 518 – “Salvo o disposto nos artigos anteriores, a decisão do júri sobre matéria de facto é irrevogável e não admite recurso algum”; Art.º 525 – “Da sentença condenatória ou absolutória cabe recurso restrito à matéria de direito para a Relação e desta para o Supremo Tribunal de Justiça”. 38 M. Cavaleiro de Ferreira, op. cit., p. 300. - 14 -

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Figueiredo Dias: “… a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada ‘verdade material’ –, de tal sorte que a apreciação háde ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos ).”39. A diversidade de entendimentos entre a jurisprudência e a doutrina manteve-se por longo tempo perante a pouca mutabilidade das regras legais, ao ponto de o CPP de 1987 manter ainda, aquando da sua publicação, um sistema que na prática equivalia a uma regra de quase definitiva fixação da matéria de facto pela primeira instância, apesar de aparentemente ser oposta a regra geral fixada40. Sem prejuízo dos méritos e defeitos de cada um dos sistemas descritos, é hoje esmagadora a preferência pelo sistema da livre apreciação da prova, com os contornos, dúvidas e problemas que passamos a analisar no capítulo subsequente.

III – A valoração da prova III.A) Colocação da questão

Constitui regra quase intangível do processo penal hodierno a regra segundo a qual a apreciação da prova é “livre”. Por outras palavras, que a prova é apreciada “em consciência” pelo Tribunal (processo penal espanhol), ou ainda que a apreciação da prova se faz de acordo com a regra da “íntima convicção” do julgador (processo penal francês) ou do seu “livre convencimento” (processo penal italiano). Assim acontece no direito processual penal português, mercê da inequívoca afirmação do art.º 127º do CPP41, outrotanto acontecendo, entre outros, nos direitos processuais penais espanhol (art.º 741

39 J. Figueiredo Dias, op. cit., p. 202. 40 Cfr., a esse propósito, o teor dos art.ºs 410, 428 e 433 do CPP/1987, na respectiva versão originária. A propósito, escrevemos noutro lugar o seguinte: “Ora com semelhante quadro fica definitivamente desmistificada a regra geral do 410 n.º 1. A regra é a de que o STJ não conhece nunca de matéria de facto, e a Relação, embora teoricamente possa conhecer de facto e de direito, na prática conhecerá só de direito, mercê deste entranhado jogo de remissões legais criado pelo legislador na definição do regime dos Recursos” (Paulo Saragoça da Matta, op. cit., p. 383). Em sentido inverso, pugnando pela correcção, e consequente constitucionalidade, do regime instituído, cfr., entre dezendas de acórdãos, e meramente a título exemplificativo, o Ac. T. Constitucional n.º 1164/96 (processo n.º 666/95). 41 Art.º 127 Código de Processo Penal - “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e da livre convicção da entidade competente”. Já o art.º 365 n.º 3 refere: “Cada juiz e cada jurado enunciam as razões da sua opinião, indicando, sempre que possível, os meios de prova que serviram para formar a sua convicção, e votam sobre cada uma das questões, independentemente do sentido de voto que tenham expresso sobre - 15 -

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LECRIM)42,

francês (art.º 427 CPP)43, italiano (art.º 192 CPP)44, alemão (§ 261 StPO)45 e brasileiro (art.º

157)46.

No entanto, o correcto entendimento de tal regra não foi sempre, e ainda hoje não é – pelo menos no plano prático dos foros criminais

–, um dado adquirido. Daí que amiúde se encontrem entendimentos da

regra da livre apreciação da prova como uma valoração segundo a ilimitada e descontrolada convicção íntima do julgador, i.e., como sinónimo “da liberdade mais absoluta na hora de valorar as provas, sem outras limitações que não a sua própria consciência, sem ter de ater-se à prova produzida”47. Com semelhante entendimento o juízo penal fácil e naturalmente se transforma num poder ilimitado do julgador, assim se transportando a questão para um nível insustentável à luz dos princípios do Estado de Direito moderno. Se assim fosse o julgador ficaria legitimado a ir para além da prova produzida no processo, rectius, poderia mesmo abstrair-se totalmente das provas, limitado que se encontraria, exclusivamente, pela sua recta razão na apreciação livre que delas fazia. Curiosamente, tal entendimento foi sustentado e desenvolvido pelos próprios Supremos Tribunais dos Estados que historicamente o acolheram, como abaixo melhor se verá. Por outras palavras, consequência necessária de uma tal premissa analítica seria a fatal insindicabilidade do decidido, posto que a justificação ou fundamentação da decisão se transformaria ipso facto (e, pior que isso, ipso iure), num acto de fé do julgador, sem qualquer necessidade de correspondência objectiva com o processualmente indiciado, numa primeira fase, e com o processualmente demonstrado, na fase decisória final. Mais: rapidamente se concluiria,

outras. Não é admissível a abstenção”. Sobre o inciso “sempre que possível”, se tecerão a final os comentários ao caso cabíveis. 42 Art.º 741 Ley de Enjuciamento Criminal – “El Tribunal, apreciando según su conciencia, las pruebas praticadas en el juicio, las razones expuestas por la acusación y la defensa y lo manifestado por los mismos procesados, dictará sentencia dentro del término fijado en esta ley. Siempre que el Tribunal haga uso del libre arbitrio que para la calificación del delito o para la imposición de la pena le otorga el Código Penal, deberá consignar si ha tomado en consideración los elementos de juicio que el precepto aplicable de aquél obligue a tener en cuenta”. 43 Art.º 427 Code de Procédure Penale – “hors les cas où la loi en dispose autrement, les infractions peuvent être établies par tout mode de preuve”. Todavia, o sistema processual penal francês é pela respectiva doutrina classificado como de “système de l’intime conviction, sous certaines limites” (P. Conte e P. Chambon, op. cit., p. 37). 44 Art.º 192 – “1. Il giudice valuta la prova dando conto nella motivazione dei risultati acquisiti e dei criteri adottati.”. 45 § 261 Strafprozeβordnung – “Über das Ergebnis der Beweisaufnahme entscheidet das Gericht nach seiner freien, aus dem Inbegriff der Verhandlung geschöpften Überzeugung” (“Sobre o resultado da produção das provas decide o Tribunal segundo a sua livre apreciação da audiência de discussão”). 46 Art.º 157 Código de processo penal – “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova”. 47 AA. VV., El proceso penal…, op. cit., p. 2314. - 16 -

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como a história o demonstra, que a fundamentação das decisões perderia totalmente a sua utilidade. Se apenas a consciência do julgador, assim entendida, servisse de raia ao soberano poder decisório dos Tribunais penais, então nem sequer as regras da lógica, da experiência, da técnica e da ciência valeriam como critérios para a valoração da prova. Cabe, pois, precisar o sentido do actual sistema da livre convicção. Antes disso, contudo, confira-se o modo como a questão evoluiu e é hoje posta nalguns dos ordenamentos jurídicos que nos são vizinhos. III.B) O Direito espanhol

No direito espanhol, o Tribunal Supremo, até ao início da década de 80 do século XX, defendia uniformemente que “o julgador, na hora de apreciar as provas, as alegações das partes e as declarações ou manifestações dos arguidos, fá-lo-á não já com reminiscências de valoração da prova taxada ou predeterminada por lei, ou seguindo regras da lógica ou da sã crítica, mas antes de um modo tão livre que a sua soberana faculdade valorativa não terá outro limite que não proceder à análise e consequente ponderação com respeito pela própria consciência, aos ditames da sua razão analítica e a uma intenção que se presume sempre recta e imparcial”48. Como resulta patente, este entendimento afasta, por definição, do âmbito da valoração probatória penal qualquer vestígio de lógica ou de razão, podendo legitimamente o julgador condenar ou absolver com base em prova disponível (mesmo que de duvidosa ou nenhuma fiabilidade segundo as regras da razão e da lógica),

ou, o que será idêntico, sem qualquer prova. Maior porta do que esta para a

arbitrariedade e o descontrole seria difícil de abrir no edifício do processo penal. Em contraponto a semelhante entendimento, sustentou, e sustenta, a doutrina que o julgador não pode fundar a sua decisão numa pura e íntima convicção não exteriorizável nem controlável por outras instâncias. Daí a preocupação da doutrina em desenvolver o entrecruzamento do princípio da livre apreciação da prova constante do art.º 741 da LECRIM com o art.º 120 n.º 3 da Constituição espanhola, que exige a motivação das decisões penais, e com o princípio da presunção de inocência – guias hermenêuticas estas que não constituiriam derrogações ao princípio da livre apreciação da prova, mas sim critérios que permitiam garantir a admissibilidade da regra de apreciação das provas. Para o entendimento maioritário, conclusivamente, a apreciação em consciência das provas tinha que assentar em verdadeiras provas, provas que teriam de ter

48 AA. VV., El proceso penal…, op. cit., p. 2314 e s. - 17 -

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sido apreciadas no juicio oral, e que deveriam contribuir para a decisão de modo constatável e controlável por terceiros49. O Tribunal Constitucional espanhol acabou por pôr fim àquele entendimento do princípio primeiramente apresentado, o que fez através de um famoso acórdão50 no qual concluía pela inadmissibilidade da construção por violadora, essencialmente, do princípio da presunção de inocência. Com efeito, independentemente de qual seja a convicção do julgador, ou a conclusão que lhe dita a sua consciência, de duas uma: ou existe prova que sustente, racional e logicamente, a condenação, ou, não a existindo, impõe-se a absolvição. Como consequência da imposição constitucional referida, o Tribunal Supremo espanhol modificou o seu entendimento, tendo passado a entender que “a avaliação em consciência a que se refere o preceito legal não há-de entender-se ou fazer-se com um fechado e insindicável critério pessoal e íntimo do julgador, mas com uma apreciação lógica da prova, com guias ou directrizes objectivas, que leve a uma consubstanciação histórica dos factos que seja compatível com o acervo probatório constante dos autos”51/52. III.A) O Direito francês

No dizer de Michèle Rassat, ao princípio da intime conviction no direito processual penal francês é atribuído um alcance duplo: como princípio de apreciação das provas e como princípio de decisão, sendo este último verdadeiramente o sentido mais importante. Enquanto princípio de apreciação das provas, significa que “pertence aos juízes apreciar soberanamente o valor dos elementos de prova regularmente produzidos em audiência e sobre os quais fundam a sua convicção. Os juízes são portanto livres de relevar ou não elementos de prova que lhe são submetidos. Podem condenar quem nega ter participado nos factos investigados. Podem absolver quem confessou ter cometido a infracção se a confissão lhes parecer suspeita.

49 E. Ruiz Vadillo, op. cit., p. 108, escreve: “Pero, en todo caso, lo que no pued ofrecer duda es que un juez profesional, experto no sólo en el Derecho sino en otras Ciencias Humanas o del Espíritu (la lógica, la psicología) no puede basar su sentencia en una pura e íntima convicción, en una especie de corazonada, no exteriorizable ni controlable en otras instancias. La exigencia de motivación que impone nuestra Constitución en el artículo 120.3 no es un adorno de las resoluciones sino un mandato que trasciende por completo de la forma para erigirse en principio esencial del proceso, transformando la decisión del juez de un puro acto de voluntad en un acto razonado y razonable”. 50 Ac. Tribunal Constitucional espanhol n.º 31/1981, apud AA.VV., op. cit., p. 2315. 51 AA. VV., op. cit., p. 2315. 52 No mesmo sentido, cfr.: Ac. do Tribunal Supremo espanhol de 24/04/1990 ("el juzgador no puede ampararse en la omnímoda y libérrima facultad de juzgar, para llegar a conclusiones contrarias a la lógica"); e de 09/09/1992 ("para - 18 -

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São livres de dar ou não crédito aos testemunhos. Levarão em linha de conta os relatórios periciais na medida em que assim o entenderem. Naturalmente são, por fim, livres de relacionar as diversas provas entre si…”53. Surgem contudo no panorama da doutrina e da jurisprudência francesas afirmações que poderão levantar algumas dúvidas quanto ao acerto do entendimento sobre a regra da livre apreciação das provas em processo penal. Com efeito, subsiste actualmente para alguma doutrina o entendimento segundo o qual “a íntima convicção não significa que se possa condenar sem prova, mas que se não peçam contas ao juiz sobre o modo como, a partir das provas existentes, chegou a determinada certeza (cf. art. 353)”54. Ou, noutra formulação, que os juízes “não têm que dar explicações sobre as provas que relevaram”55. Ora, como atrás visto, o simples facto de se exigir que a decisão seja compreensível em termos de regras de lógica, experiência, técnica e ciência, constituirá o tal pedir de contas. Não poderá ser esse, pois, o entendimento aceitável da regra em apreço. É todavia correcta a justificação dada o princípio da íntima convicção como formando uma unidade com o princípio da liberdade das provas. O poder de apreciação soberana das provas produzidas por parte do juiz justifica-se quando todo e qualquer meio de prova possa utilizar-se, apenas assim se garantindo, aliás, que qualquer risco de manipulação de meios de prova não conduza a uma errada decisão. Antes de avançar na precisão necessária do princípio da íntima convicção no direito probatório processual penal francês, cabe contudo analisar as excepções com que no respectivo sistema se limita o princípio.

que sea posible la condena, no basta com la probabilidad de que el imputado sea el autor, ni com la convicción moral de que así ha sido") – todas apud AA.VV., op. cit., ibidem. 53 Michèle Rassat, op. cit., p. 348. 54 Philippe Conte e Patrick du Chambon, op. cit., p. 37. Também com uma leitura que não pode deixar de se considerar errónea quanto ao significado e sentido do princípio no direito processual penal moderno, afirmam G. Stefani, G. Levasseur e B. Bouloc, op. cit., p. 118: “Dans le système de l’intime conviction, le juge apprécie en toute liberté la valeur des preuves qui lui sont soumises. Il se décide d’après sa conscience et il condamne, relaxe ou acquitte suivant qu’il est ou non convaincu de la culpabilité, sans être obligé de donner aucune justification de la force probante qu’il attache aux preuves qu’il retient (art. 353, 427 et 536 CPP)”. 55 Michèle Rassat, op. cit., ibidem. Conforme muito bem descrito pela Autora, o Código de Processo Penal francês “invite formellement les magistrats à prendre une décision en vertu de leur intime conviction par un texte hérité de la période révolutionnaire et qui constitue un des plus beaux morceaux de littérature juridique: ‘La loi ne demande pás compte aux juges des moyens par lesquels ils se sont convaincus. Elle ne leur prescrit pás de règles desquelles ils doivent faire particulièrement dépendre la plénitude et la suffisance d’une preuve. Elle leur prescrit de s’interroger eux-mêmes dans le silence et le recueillement et de rechercher, dans la sincérité de leur conscience, quelle impression ont faite sur leur raison les preuves rapportées contre l’accusé et les moyens de sa défense. La loi ne leur fait qu’une seule question, qui résume toute la mesure de leur devoir : avez-vous une intime conviction ?’ (art.º 353 CPP)”. - 19 -

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Há, com efeito, casos em que a Lei francesa afasta o poder de livre apreciação de provas pelo juiz. Assim sucede nos casos das presunções legais, e no valor atribuído em determinadas formas de processo aos chamados procès-verbaux e rapports56. Surge tal cenário, particularmente, no âmbito das contravenções e das normas de direito penal técnico, como é o caso das normas penais no seio do direito agrário e do direito do ambiente, do direito laboral, das regulamentações de caminhos de ferro, das fraudes alimentares, do urbanismo, da fiscalidade indirecta, etc. Nos termos do art.º 430 do CPP francês, os procès-verbaux e rapports57 têm por regra o valor de simples informações (“simple renseignement”), termos em que o poder de livre apreciação servirá para afastar as considerações da entidade autuante se o juiz ficar convencido, v.g. pelas afirmações inabaláveis do arguido, de que as afirmações constantes dos autos não são correctas – por outras palavras, apenas após o exercício do contraditório apreciará o juiz a fidedignidade que lhe merecem os procès-verbaux e rapports. Todavia, existem casos em que a Lei dá força probatória predeterminada aos procès-verbaux e rapports no que concerne aos factos que a entidade autuante pessoalmente constatou ( se o auto não relata factos presenciados, então vale como simples informação, de acordo com a regra geral atrás referida),

conquanto

sejam formalmente válidos e provenham de uma autoridade no exercício das suas funções e nos

56 Michèle Rassat, op. cit., p. 351 e s., explicita: “Certaines infractions ne peuvent être établies que par des modes de preuve ayant une efficacité particulière et que les magistrats ne pourront négliger. Ce sont, pour la plupart, des infractions de droit pénal technique qui, ou bien sont difficiles à prouver parce qu’elles sont peu susceptibles d’avoir des témoins ou qu’elles laissent peu de trace, ou bien laissent le public très largement indifférent en sorte qu’on ne peut guère compter sur sa collaboration à l’établissement de la preuve. Le législateur a prévu que ces infractions seraient établies par des procès-verbaux ayant une force probante particulière. Dans certains cas il s’agit de procès-verbaux qui font foi jusqu’à la preuve contraire et que la personne poursuivie pourra combattre en démontrant la fausseté de leurs énonciations. Leur effet est de renverser la charge de preuve. La preuve contraire pèse alors sur le contrevenant qui ne peut attendre aucune aide de la juridiction.”. 57 Philippe Conte e Patrick du Chambon, op. cit., p. 33, definem do seguinte modo os procès-verbaux e os rapports: “La preuve littérale, en matière pénale, prend la forme de procès-verbaux (écrits, nonobstant les termes remontent aux temps où les pandores étaient moins savants qu’aujourd’hui), ou de rapports. Procès-verbaux et rapports se distinguent par la qualité de leur auteur. Les premiers émanent des officiers de police judiciaire (art. 19), des agents de police judiciaire (art. 20, D. 14) et des fonctionnaires et agents chargés de certaines fonctions de police judiciaire (…). Les rapports sont rédigés par les agents de police judiciaire adjoints, qui les adressent à leurs supérieurs hiérarchiques (art. 21, D. 15) ; mais, à titre exceptionnel, ils peuvent eux aussi rédiger des procès-verbaux (…). Les uns et les autres ont pour objet commun de constater les infractions ; mais les procès-verbaux obéissent à des conditions de forme minutieuses, qui peuvent conditionner leur force probante ou leur effet interruptif de la prescription de l’action publique. Ces formes sont fort diverses selon le procès-verbal envisagé. Elles tiennent, en général, à la nécessité de la date et de la signature de l’agent ayant participé aux constatations, au délai de rédaction (art. 66) ou de transmission au procureur (art. 27).”. Já Michele Rassat, op. cit., recorda as seguintes exigências: que se trate de uma infracção constatada directamente pelo agente, que se trate de uma constatação e não de uma opinião e que a constatação ocorra no regular exercício de funções, além da regularidade do procedimento quanto ao fundo e quanto à forma. Sobre a questão na Jurisprudência portuguesa, nomeadamente mercê do valor probatório dos autos de notícia, à luz do art.º 169 do CPP, confiram-se os Acórdãos do T. Constitucional de 05/06/1987, in DR n.º 199, IIª Série, de 31/08/1987, p. 10709, e de 20/01/1988, in DR n.º 86, IIª Série, de 13/04/1988, p. 3471. - 20 -

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limites das suas competências (art.º 429 CPP-F). Assim que haja procès-verbaux e rapports que fazem fé em juízo até prova em contrário, i.e., que constituem presunção elidível da verificação do facto. A contra-prova do conteúdo dos procès-verbaux e rapports far-se-á nestes casos não nos termos da regra geral (ou seja, por todos os meios de prova), mas com limitações às provas admissíveis, como é o caso da limitação à prova documental ou testemunhal (art.º 537 n.º 3 CPP-F)58. Por fim, é de referir que se considera existir uma outra limitação ao princípio da íntima convicção. Tal limite provém do facto de o juiz não poder fundar a sua decisão a não ser sobre provas produzidas e sujeitas a contraditório na respectiva presença. I.e., o julgador tem de assentar exclusivamente em prova que tenha sido sujeita a contraditório das partes, e não em conhecimento público ou que pessoalmente tenha dos factos discutidos. E segundo a doutrina que consideramos de acolher, o entendimento visto não só é aplicável às decisões em sede de julgamento, mas também a todas as decisões ocorridas em sede instrutória – tal questão, contudo, merece abaixo reflexão autónoma59. Voltemos, contudo, à questão da determinação do significado, no processo penal francês, do princípio da íntima convicção, posto ter atrás ficado por precisar o significado de tal princípio enquanto princípio de decisão. No correcto entendimento do princípio o mesmo não constitui uma facilidade para o julgador. Tal regra não os exonera de produzir, a requerimento ou oficiosamente, todas as provas, e de as apreciar. “A íntima convicção não é a consagração legal da preguiça e da fantasia dos magistrados pois o texto legal do art.º 353 do CPP alude à impressão feita na respectiva razão pelos elementos de prova. Ela impõe, portanto, aos juízes que façam esforços razoáveis, e impede-os de se declararem convencidos de uma culpa na ausência de elemento de prova, bem como o inverso”60. E assim é mercê da existência de garantias nesse sentido, quais sejam: (i) a necessidade de um grau de certeza expressivo para que se possa ter o facto por provado, não permitindo a relevância de presunções; (ii) a obrigatoriedade de motivação das sentenças sejam condenatórias ou absolutórias (e uma motivação que se limite a constituir a expressão da íntima convicção será obviamente insuficiente); 58 Por seu turno, há procès-verbaux e rapports, nomeadamente em matéria de delitos aduaneiros, que fazem fé em juízo “jusqu’à inscription de faux” (art.º 336 do Côde des Douanes), i.e., que por resultarem da constatação de uma infracção por um oficial, fazem prova de tal sorte que “la personne visée ne peut les combattre qu’en faisant condamner leur rédacteur comme faussaire par la procédure de l'inscription de faux, qui est tellement compliquée qu’elle a, en pratique, fort peu de chances d’aboutir” (Michèle Rassat, op. cit., p. 352) .Sobre o processo de “l'inscription de faux”confira-se os art.ºs 642 e ss. do CPP-F. 59 Cfr. Ac. Cour de Cassation, Section Criminelle, 20/05/1980, apud P. Conte e P. Chambon, op. cit., p. 39, n. 4. 60 Michèle Rassat, op. cit., p. 348. - 21 -

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(iii) a proibição da existência de contradições entre a fundamentação e o dispositivo, bem como entre elementos da motivação. Neste sentido, aliás, se encontra vasta jurisprudência citada a propósito pela doutrina referida. Questão totalmente distinta debatida pela doutrina francesa é a de saber se o apontado entendimento do princípio vale só para as decisões em sede de julgamento, ou se vale igualmente para as decisões em sede instrutória. E a tal propósito são várias as posições da doutrina. Jean Pradel e Michèle Rassat entendem que não. Para tanto convocam duas razões fundamentais: a primeira delas, assente no expresso teor literal da lei, lembra que o princípio da livre convicção apenas é pelo CPP invocado quando regula decisões finais61, sendo que nunca é referido para qualquer decisão em sede instrutória; a segunda, também de carácter literal, sublinha que as normas do CPP que descrevem a actuação do juiz de instrução o mandam ponderar, exclusivamente, “indícios suficientes” (“charges suffisantes”). Ou seja, não cabe questionar um juiz de instrução acerca da sua convicção sobre a culpabilidade do arguido, mas, em face dos elementos probatórios carreados para os autos, que decida da existência de indícios suficientes para fazer evoluir o processo. E uma acusação não é uma prova, podendo ser menos decisiva e menos estruturada. Merle e Vitu, Stefani, Levasseur e Bouloc defendem a posição inversa, i.e., a de que o princípio da livre apreciação da prova, no sentido visto, se aplica igualmente às decisões em sede instrutória. Grosso modo apelam para a relevância, em todo o desenvolvimento do processo, do princípio da presunção de inocência62. Quanto a nós, e perante o direito francês constituído, não podemos deixar de concordar com estes últimos. A análise dos matizes da questão no nosso sistema processual penal é porém matéria que se deixa para diante. III.C) O Direito italiano

No direito italiano pontifica igualmente o princípio do “libero convincimento del giudice”, o qual é pela doutrina considerado um princípio cardeal do sistema. “Na reconstrução de um facto da experiência, o juiz deve ser livre de crer ou não crer numa fonte probatória, e não pode ser

61 Art.º 353 para as decisões da Cour d’Assises, art.º 427 para as decisões do Tribunal Correctionnel e art.º 536º para as decisões do Tribunal de police. - 22 -

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condicionado, na avaliação da respectiva relevância, por efeitos que sejam normativamente préfixados”63. Todavia, também no direito italiano o livre convencimento do juiz não equivale, e correctamente, a valoração livre. Tem que se escorar nos meios de prova ( “dato probatorio”), e encontra o seu limite na obrigação de fundamentação (“motivazione”). Daí que cuidada análise seja dedicada ao procedimento probatório, como garantia do respeito pelo princípio. A disciplina respectiva é pela doutrina concretizada em três núcleos distintos: (a) regras relativas à admissão dos meios de prova (forma tipificada de meios de prova, modos de propositura da prova e meios de obtenção de prova)64;

(b) critérios que devem ser seguidos pelo juiz na valoração da prova; (c)

obrigação que impende sobre o julgador de dar conta das suas descobertas através da fundamentação da decisão. Por outras palavras, a legalidade do accertamento probatório constitui o primeiro critério normativo de orientação do livre convencimento do julgador. O segundo critério encontra-se nas regras a que fica sujeito o próprio processo de valoração da prova, regras essas de liberdade, e cujo conteúdo abaixo se densifica, mas que encontram limites no que respeita à relevância previamente determinada de certos dados. I.e., sem prejuízo de se falar de um livre convencimento do julgador no que concerne à valoração da prova, o certo é que acabam por existir excepções a tal livre apreciação65. O último critério normativo de circunscrição do livre convencimento do julgador encontra-se na previsão da obrigação de motivação da decisão. “O juiz deve dar conta dos resultados probatórios obtidos e dos critérios com que avaliou os ditos resultados (art.º 192). Deve, assim, proceder à

62 G. Stefani, G. Levasseur e B. Bouloc, op. cit., p. 118, referindo: “Ce système est actuellement applicable devant toutes les juridictions répressives, aussi bien les juridictions d’instruction que les juridictions de jugement, et parmi celles-ci non seulement à la Cour d’assises mais encore au tribunaux correctionnels et de police”. 63 Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, op. cit., p. 695. 64 Precisamente neste núcleo regulamentar encontra-se a regra que veda ao julgador a utilização de provas que não tenham sido legitimamente admitidas e debatidas contraditoriamente (art.º 526 CPP-I). Constitui, no entendimento da doutrina esmagadora, uma manifestação do próprio princípio da legalidade, pelo que a respectiva violação implica a nulidade da prova (art.º 191 CPP italiano) e a respectiva inutilidade, oficiosamente cognoscível, para efeitos de sustentação da decisão. Entende-se mesmo que tal norma integra a cúpula do sistema probatório, pelo que a proibição de prova que comina é extensível a todas as violações das regras de aquisição e produção de prova em julgamento. Apenas constituem provas legitimamente obtidas as que sejam sujeitas às regras naturais da audiência, a saber, a oralidade e o contraditório. 65 Limites que decorrem do próprio normativo contido no art.º 192, e que resultam ainda de regras de relevância probatória de determinados meios de prova, v.g., a relevância das declarações dos co-arguidos no processo, ou de arguidos em processos conexos. Sobre o tema, precisamente, Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, op. cit., p. 697. - 23 -

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exposição concisa dos motivos de facto e de direito sobre os quais funda a decisão, com a indicação das provas que sustentam a mesma e a enunciação das razões que levaram a considerar não atendíveis as provas contrárias (art.º 546)”66. Ora, a imposição desta obrigação de concretizar as razões que levaram a excluir determinadas provas, ou a considerá-las menos ponderosas, é entendida pela doutrina precisamente como uma garantia concreta do direito de defesa do Arguido, que como tal assume a valência de um direito a ver valoradas pelo julgador as provas produzidas, no respeito pelo disposto no art.º 6º n.º 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Por seu turno, o entendimento exposto demonstra igualmente a conexão que também no direito italiano se estabelece entre o princípio da livre apreciação da prova e o direito ao recurso – qualquer das partes se assegura com a vista obrigação de motivação que, uma vez admitidos e produzidos os meios de prova, eles têm sempre relevância para a decisão, no sentido de que foram apreciados pelo julgador, mesmo que este por eles se não tenha deixado convencer. Assim, garante-se que os meios de prova sejam reapreciados em sede de um recurso efectivo, e não meramente formal, que se estende a todo o arsenal probatório carreado para os autos. Ou seja, da fundamentação terá de resultar que todos os meios de prova disponíveis foram ponderados, e quais as razões que levaram a preferir uns a outros. O que só se consegue se na decisão ficarem espelhados os ditos critérios e argumentos sopesados pelo decisor 67. III.D) O Direito alemão

No âmbito do Direito Alemão rege hoje igualmente o princípio da livre apreciação da prova (freie Beweiswürdingung)68,

consagrado no § 261 StPO. Não está, por conseguinte o julgador vinculado a

66 Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, op. cit., ibidem. 67 Segundo o Supremo Tribunal italiano, na motivação “ciò che rileva à l’esistenza di un apparato argomentativo cui non si possa imputare violazioni di princìpi di diritto o di regole codificate, superficialità ed approssimazione nella valutazione del dato probatorio, contrasto con il buon senso, incoerenza delle illazioni, inadeguatezza del giudizio sulle risultanze processuali”. Ao invés, “l’obbligo di motivazione della sentenza viene soddisfatto allorchè il giudice, valutati tutti gli elementi probatori, indichi con piena coerenza logico-giuridica quelli salienti dai quali ha tratto il proprio convincimento. Il giudice non adempie all’onere di motivare quando espone argomentazioni ‘apodittiche’.”, respectivamente Acórdão Cassazione, Sez. II, de 29 de Novembro de 1991, in Rivista Penale, 1992, p. 524, e Acórdão Cassazione, Sez. VI, de 27 de Maio de 1992, ambos apud Paolo Tonini, op. cit., p. 8. 68 Claus Roxin, op. cit., § 15, p. 87, rdn. 1, refere expressamente os seguintes princípios como sendo os cardeais no âmbito da prova: “Beweisgrundsätze sind der Ermittlungsgrundsatz, die Unmittelbarkeit, die freie Beweiswürdigung und der Grundsatz in dubio pro reo” (respectivamente, o princípio da averiguação, da imediação, da livre apreciação da prova e o princípio in dubio pro reo). - 24 -

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qualquer disposição prévia probatória, posto que não existem provas cuja valia esteja legalmente taxada69. Tal princípio foi ao longo dos anos desenvolvido, quer pela jurisprudência quer pela doutrina, em várias regras, a saber: a de que o Tribunal é livre frente a depoimentos de testemunhas, mesmo que ajuramentados; a de que o juiz pode dar maior valor às declarações do Arguido do que aos depoimentos das testemunhas, mesmo sendo estas em maior número; de que não está vinculado por qualquer tipo de documentos; de que o convencimento do Tribunal pode igualmente assentar numa mera prova de indícios; de que o princípio vale também para questões prejudiciais que tenham de ser tratadas em sede processual penal. Em sentido inverso, são elencados vários limites e excepções ao princípio da livre apreciação da prova, salientando-se os seguintes: o Juiz está vinculado pelas leis do pensamento e da experiência; existem casos em que a lei prevê regras para a prova, como sucede com a exceptio veritatis no âmbito dos crimes de difamação e injúrias ( §190 StGB), mas que se prendem mais com regras de repartição de ónus probatório (excepcionais em processo penal, aliás, por força dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo),

do que com uma limitação ao princípio da livre apreciação da

prova; e existem raros casos de força probatória previamente fixada por lei, como sucede com as actas das audiências de discussão e julgamento (§ 274 StPO). Com a expressão apreciação livre das provas quer significar-se “que o juiz não está ligado a regras probatórias legais”, mas “não significa que o juiz possa prescindir, por exemplo, de conhecimentos e experiências criminalísticas”70. Também no direito processual penal alemão, como nos demais atrás referenciados, a livre apreciação da prova não equivale a arbítrio dispensador de fundamentação. Assim que seja igualmente possível, em alguns casos, suscitar a questão da errónea apreciação da prova em sede de recurso de apelação. III.E) Densificação do conceito de livre apreciação da prova

Tentando densificar o conceito de “livre apreciação” com base nos esclarecimentos vistos, concluise que ao abrigo de tal poder o Julgador, na ponderação a haver, deverá pautar-se por regras lógicas e de racionalidade, de modo tal que quando confrontados terceiros com o decidido possam 69 Nas palavras de Klaus Tiedemann, apud Jean-Luis G. Colomer, op. cit., p. 52, o reconhecimento do princípio da livre apreciação da prova constitui uma demonstração da “grande confiança do legislador alemão nos juízes”. 70 Jean-Luis Gomez Colomer, op. cit., p. 133. - 25 -

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estes aderir ou afastar-se, também racionalmente, da valoração feita. Na expressiva fórmula de Tonini, “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé (como aconteceria se se dissesse: o facto é verídico porque, de outro modo, o ministério público não teria formulado a acusação)”71.

Daí a íntima conexão existente entre o princípio da livre apreciação da prova, o princípio da presunção de inocência, o dever de fundamentação das sentenças, o direito ao recurso, e o direito à tutela efectiva72. Sendo certo que todos estes relacionamentos são inequivocamente multidireccionais, especialmente o relacionamento que se estabelece entre o princípio da livre apreciação da prova e o direito ao recurso. I.e., o próprio entendimento que hoje temos do direito ao recurso como um direito a uma efectiva dupla jurisdição73 apenas se torna possível se, em matéria de facto, a decisão da primeira instância for susceptível de apreciação (substancial) pelo Tribunal de recurso74. Por outras palavras, ao Tribunal de recurso terá que ser possível, efectivamente, confrontar os juízos fácticos da primeira instância com as regras da experiência, da lógica, da racionalidade, da probabilidade e da razoabilidade. Esse o único modo plausível de conceber a dupla jurisdição, corolário que, diga-se uma vez mais, depende intimamente do carácter comunicacional da decisão recorrida. Certa é, portanto, a regra segundo a qual o tipo de critério de apreciação de provas determina a possibilidade de fiscalização em sede de recurso da fixação da matéria de facto levada a cabo em

71 Paolo Tonini, op. cit., pp. 9 e s. 72 Assim o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal espanhóis, conforme visto retro. No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional português, nomeadamente nas seguintes decisões: Acórdãos T. Constitucional n.º 401/02 (no âmbito do processo n.º 528/02, onde se lê: “…de acordo com o entendimento que tem vindo a ser professado por este Tribunal, a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais de produção da prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador ‘objectivável e motivável’, conjugandose com dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade”), n.º 464/97 (in D.R., IIª Série, de 12/01/1998), e n.º 546/98 (in D.R., IIª Série, de 15/03/1999). 73 Sobre o tema confira-se Paulo Saragoça da Matta, op. cit., pp. 323 a 413. 74 Júlio F. Mirabete, op. cit., p. 965, afirma a propósito, em nota ao art.º 381 do CPP brasileiro: “Referindo-se à motivação ou fundamentação determina o dispositivo que exponha o juiz o desenvolvimento de seu raciocínio para chegar a conclusão, ou seja, que forneça as razões de fato e de direito que o levam à decisão a fim de que as partes disponham de elementos para saber contra o que devem argumentar em eventual recurso. Embora fundado no ‘livre convencimento’ impõe-se que o juiz demonstre sua convicção mediante a análise da prova constante dos autos. É imperativo constitucional que todos os julgamentos dos órgãos do poder judiciário devem ser fundamentados, sob pena de nulidade (...). É uma garantia não só para as partes como para o Estado, pois a ele interessa que sua vontade superior seja exatamente aplicada e se administre corretamente a justiça.”. - 26 -

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primeira instância75. Esse também o entendimento, já cristalizado, da jurisdição Constitucional, para quem “o sistema da livre apreciação da prova não deve definir-se negativamente pela ausência de regras e critérios legais predeterminantes do seu valor, havendo antes de se destacar o seu significado positivo, que há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos”76. O papel interventor do Tribunal de recurso será tanto mais importante e livre nos casos em que a prova utilizada na decisão recorrida tenha carácter meramente indiciário, e, bem assim, nos casos em que a prova seja exclusivamente testemunhal. Com efeito, no primeiro caso cabe ao Tribunal de recurso determinar se entre o facto conhecido (básico), e a consequência apurada existe um nexo lógico a partir do qual se possa concluir pela probabilidade ou acerto dos facta probanda. Já na segunda situação, poderá o Tribunal de recurso apreciar se a valoração dos depoimentos foi feita de acordo com as regras da lógica e da experiência. Refira-se, ainda, que a construção vista, ao invés do sustentado por alguma doutrina77, não briga com o princípio da imediação da prova. Bem ao invés, o princípio da imediação resulta totalmente intocado quando a máquina judiciária penal funciona conforme ao previsto. Na verdade, a prova carreada para os autos terá que estar fixada, assim como o terá de estar o juízo fundamentador da decisão. Ao Tribunal de recurso não cabe repetir a produção de prova havida, nem a prova anteriormente produzida na instância recorrida perde seja o que for de vivacidade. Pelo contrário, o Tribunal de recurso limitar-se-á a aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório

75 Cfr. Acórdãos do Tribunal Supremo espanhol de 13/03/1989, de 02/09/1990 e de 16/01/1990, apud AA.VV., op. cit., p. 2316. Ao invés no direito francês, onde “a vrai dire, la Cour de cassation n’assure pas toujours avec rigueur le respect de cette exigence légal. Elle se contente d’une formule banale que cache à peine l’absence de motifs”, conforme afirmam G. Stefani, G. Levasseur e B. Bouloc, op. cit., p. 118, n. 4. 76 Ac. T. Constitucional de 19/11/1996, in D.R. n.º 31, IIª Série, de 06/02/1997, p. 1569. Neste mesmo aresto o T. Constitucional estabelece expressamente a relação necessária entre o princípio da livre apreciação da prova e o dever de motivação das sentenças. No mesmo sentido confira-se ainda o Ac. T. Constitucional de 17/04/1997, in Acórdãos do Tribunal Constitucional – volume 36, que afirma: “…a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma actividade puramente subjectiva, emocional e portanto não fundamentada juridicamente. Tal princípio, no entendimento do Tribunal, concretiza-se numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitirá ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão. Trata-se, assim, de um princípio de liberdade para a objectividade, e não para o arbítrio.”. 77 Nomeadamente a que parece estar vertida precisamente em AA. VV., cit., p. 2316, quando se afirma: “El TS por la via del recurso de casación podría revisar la conformidad del juicio fáctico de la sentencia com las reglas de la experiencia y la lógica, con las limitaciones derivadas del principio de la inmediación” (sublinhado nosso). No mesmo sentido, e no Direito espanhol, cfr.: Ac. Tribunal Supremo espanhol de 17/06/1990, 15/05/1990, 03/07/1990, 27/10/1992, 29/09/1992, idem, ibidem. - 27 -

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constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância. Voltemos, então, ao caminho atrás iniciado no sentido de densificar o conceito de livre apreciação da prova. Conforme bem refere Marques da Silva, “o actual sistema da livre convicção não deve definir-se negativamente, isto é, como desaparecimento das regras legais de apreciação das provas, pois não consiste na afirmação do arbítrio, sendo, antes a apreciação da prova também vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório”78. Logo, a liberdade concedida ao julgador e que aqui constitui objecto da nossa análise não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional79. Ora, para que o exercício de tal poder, i.e., o exercício da judicatura penal, seja justificado e comunicacional, ponto é que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja susceptível de auto-controlo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo dos próprios sujeitos prejudicados com a actividade instrutória em questão. Daí que nesta sede a expressão livre apreciação da prova seja a antítese da ideia liminar e intuitiva que se tem quando se fala em íntima convicção. A liberdade de apreciação da prova não pode por isso estar mais longe das meras conjecturas e das impressões sensitivas injustificáveis e não objectiváveis. Por isso atrás nos referimos às regras da lógica e da razão, às máximas da experiência, e aos conhecimentos técnicos e científicos, para balizar e circunscrever os limites da liberdade valorativa da prova penal. E o único modo de se garantir o respeito intocado por tais baias é a exigência de uma motivação clara, suficiente, objectiva e comunicacional. Por outras palavras, a exigência de motivação acaba por ter uma função dupla, pré e pósjudicatória – naquela primeira fase permite ao julgador exercer um auto-controle do acerto dos seus próprios juízos; na segunda fase permite à comunidade, e ao destinatário das medidas a tomar pelo

78 G. Marques da Silva, op. cit., p. 110. 79 G. Marques da Silva, op. cit., p. 111, escreve: “Também a liberdade que aqui importa é a liberdade para a objectividade, aquela que se concede e que se assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcende a pura subjectividade e que se comunique e imponha aos outros”; Castanheira Neves, op. cit., p. 203, refere: “Isto significa, por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no - 28 -

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sistema penal, compreender os critérios seguidos pelo julgador e aferir da respectiva legitimidade, razoabilidade e aceitabilidade. Assim se compreende, pois, a inultrapassável relação, essencial e estrutural, entre a livre apreciação da prova e o dever de fundamentação das decisões penais. Inexistindo, sendo frouxa ou incompleta a obrigação de fundamentação, franqueada está a porta para decisões penais totalmente subjectivas, desprovidas das cautelas necessárias à garantia da objectividade, com o que se cai, quase que necessariamente, em decisões injustas, ou pelo menos insusceptíveis de compreensão e de adesão (pelo próprio autor da decisão, pelo visado pela decisão e pela comunidade). Indo ainda mais longe, dir-se-á que um bem estruturado e bem delimitado dever de fundamentação das decisões penais é o único mecanismo que garante a constitucionalidade do princípio da livre apreciação da prova. Mas antes de desenvolver os reflexos que para o dever de fundamentação emergem de um correcto entendimento do princípio da livre apreciação da prova, cumpre ainda precisar alguns aspectos da livre apreciação da prova, de modo a expurgar do âmbito da presente discussão questões que não têm que ser aqui consideradas. E para tal há que determinar o quê é que tem de constituir objecto de prova. Num caso de justiça criminal constituem-se como necessários objectos de prova os elementos objectivos e subjectivos do tipo, e, bem assim, os pressupostos de facto da aplicação de reacções da máquina penal (v.g., pressupostos de facto das medidas cautelares e de polícia, pressupostos de facto da escolha e aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial, pressupostos de facto da escolha e aplicação das penas e medidas de segurança, etc.)80.

Daí que não tenham que se constituir como objecto de prova a lei e os

conceitos técnico-jurídicos. Estranhamente, contudo, a esmagadora parte das fundamentações e dos juízos feitos nas decisões emanadas da nossa jurisdição penal recai sobre interpretação

domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”. 80 Andrea A. Dalia e Marzia Ferraioli, op. cit., p. 204, escrevem quanto ao processo penal italiano: “Per intendere la dimensione del diritto alla prova, va tenuto presente che oggetto di prova sono i fatti che si riferiscono all’imputazione, alla punibilità, alla determinazione della pena o della misura di sicurezza – oltre quelli dai quali dipendi l’applicazione di norme processuali – e, se vi è costituzione di parte civile, i fatti inerenti alla responsabilità civile derivante dal reato (art. 187)”. Juan-Luis Gomez Colomer, op. cit., p. 129, afirma, relativamente ao direito processual penal alemão: “…dentro de los hechos que sean necesitados de prueba, hay que distinguir a su vez entre hechos directamente importantes, indicios y los hechos auxiliares. Los primeros son aquellos que fundan o excluyen por sí mismos la punibilidad; los indicios son los hechos que permiten llegar un hecho directamente importante; los últimos son aquellos que permiten llegar a la calidad de un medio de prueba. (…), además de ello, hay que hacer referencia, por último, a aquellos hechos que excepcionalmente no necesitan de prueba, por ser notorios (…), tanto si son notorios para la generalidad, como para el Tribunal, y aquellos otros reflejados (…), por haber sido ya demostrados.”. - 29 -

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normativa, doutrina e jurisprudência. Assim se conseguem transformar os despachos, sentenças e acórdãos em ocos e deslocados exercícios de erudição sobre Direito, e em paupérrimos apontamentos sobre a prova produzida e respectiva valoração. Por isso, e apenas por isso, a livre apreciação da prova na prática judiciária portuguesa continua ainda, neste início do Século XXI, tão descontrolada como o era no período revolucionário francês de setecentos. Questão esta a que no capítulo seguinte, e com mais propriedade, se voltará. Seguindo na análise do valor e contornos gerais, ou abstractos, do princípio da livre apreciação da prova, cabe questionar se a obrigação de objectivação atrás exigida para que se considere logicamente aceitável o princípio, não acaba por tolher totalmente a liberdade do julgador, vedado que lhe fica lançar mão da sua íntima convicção. Ora, a resposta obtida é inequivocamente negativa. Uma convicção pessoal não deixa de o ser pelo facto de ser objectivada e comunicada em termos de racionalidade. No superior modo de dizer de Figueiredo Dias, a convicção do julgador não pode deixar de ser “uma convicção objectivável, motivável, portanto capaz de impor-se aos outros”81. É, pois, a livre apreciação da prova, por mais íntima que seja a convicção a que se apele, um exercício de alteridade. Não havendo tal preocupação de alteridade, de discussão dialéctica, i.e. de discussão do julgador consigo próprio, num primeiro momento, e com os demais – juristas e não juristas –, no momento seguinte, e não temos verdadeira livre apreciação da prova, mas pura e simples arbitrariedade. Daí que o passo definitivo na Humanização e na Civilização da apreciação das provas esteja, neste terceiro milénio da nossa era, ainda por dar. Prova de que assim é encontra-se na própria tibieza com que grande parte da Doutrina ocidental aborda a questão, admitindo (do que aqui nos afastamos veementemente),

que existem questões por definição injustificáveis, rectius, insusceptíveis de

explicação, no âmbito da apreciação das provas. Certo é que o juízo de valoração da prova tem diferentes níveis. Diremos mesmo mais: tem, e tem que ter! Desde logo diferentes níveis de exigência determinados pela fase do processo em que se esteja (a exigência de indiciação em inquérito, para acusação, é desde logo superior à exigência necessária para a tomada de medidas cautelares de identificação de suspeitos numa rusga );

em seguida diferentes níveis de

exigência determinados pelo tipo de processo em questão ( em processo sumário ou abreviado as exigências de prova flagrante ou simples e evidente são naturalmente superiores às do processo comum );

igualmente diferentes

níveis de exigência determinados pelo próprio tipo de crime de que se trate ( pois existem tipos de crime em que a prova apresenta por definição uma dificuldade de valoração superior).

81 J. Figueiredo Dias, op. cit., p. 205. - 30 -

Mas isso nada tem que ver com a

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possibilidade, e mesmo a necessidade, de todos os aspectos, ou degraus, da valoração da prova terem de manter um padrão homogéneo, constante e elevado de ponderação e de comunicabilidade. Não faz, por isso, qualquer sentido admitir que a “credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova (…) depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova).”82. Bem ao invés, sendo esse o primeiro aspecto do próprio processo de valoração da prova, revela-se aí um momento particularmente sensível e cauteloso de comunicabilidade e imposição a terceiros das escolhas e decisões do julgador – sob pena de todo o demais processo de valoração da prova resultar inexorável e totalmente viciado. Compreender a decisão, e a ela aderir, de eleição de um meio de prova como sendo mais credível do que outro, é precisamente o primeiro momento em que a livre apreciação da prova como processo objectivado e motivado se impõe83. E o mesmo se passa com o segundo nível do processo de valoração da prova, a saber, o processo de dedução e indução realizado com base nos meios de prova. Também aqui, como será óbvio, é impreterível possibilitar uma conferência da “correcção do raciocínio que há-de basear-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência”84. Por fim, que tem de existir imperativamente comunicabilidade e imposição a terceiros da racionalidade do decidido no momento da subsunção dos factos ao Direito, parece ocioso sublinhar. Mas esse será o momento em que menos falha, por regra, o dever de fundamentação da decisão, sendo certo que este momento nem sequer tem que ver, hoc sensu, com a apreciação da prova, mas sim com a aplicação do direito aos factos. Temos, então, como critérios fundamentais de conformidade do princípio da livre apreciação da prova com o dever ser, a alteridade e a objectividade, entendida aquela como comunicabilidade e dialéctica, e esta como “uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente

82 G. Marques da Silva, op. cit., p. 111. 83 Paolo Tonini, op. cit., p. 10, refere: “Il giudice ricostruice il fatto storico usando come strumento la ragione. Ad esempio, il giudice no può limitarsi ad affermare che un testimone è attendibile soltanto perchè egli gli credi: al contrario, deve spiegare i motivi sui quali fonda la sua convizione”. 84 G. Marques da Silva, op. cit., p. 112. Paolo Tonini, op. cit., p. 28, afirma: “Il principio del libero convincimento non esime il giudice dal motivare la sua valutazionel. In base all’art. 192 il giudice deve ‘dare conto dei risultati acquisiti e dei criteri adottati’ nel valutare la credibilità e l’attendibilità delle prove”. - 31 -

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para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal)”85. A livre apreciação da prova constitui, assim, mais um dever do julgador do que um poder86, impondo-se-lhe axiologicamente como uma verdadeira obrigação no exercício delegado do poder soberano de aplicar a Justiça, traduzindo-se por isso na possibilidade de formar uma convicção pessoal de verdade dos factos, convicção essa ainda assim racional, assente em regras de lógica e experiência, objectiva e comunicacional. Por fim, cabe analisar algumas das consequências que o princípio da livre apreciação da prova tem na própria concepção estrutural do processo penal. Referimo-nos a consequências devolvidas por este princípio às ideias forças que histórica e filosoficamente o legitimaram. Cabe, assim, sumariamente analisar os reflexos que o princípio da livre apreciação da prova, entendido no sentido devido, projecta no princípio da presunção de inocência, no princípio in dubio pro reo, e, em sentido inverso, nos princípios da continuidade da audiência, da oralidade e da imediação. No que concerne às relações entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio da presunção de inocência, conclui-se sem margem para dúvidas que aquele poderá retirar alguma da consistência objectiva deste último. Com efeito, mercê do princípio da presunção de inocência, o Arguido tem teoricamente o direito a abster-se totalmente de agir no processo, esperando passivamente que o Ministério Público, o Assistente e/ou o Tribunal demonstrem a respectiva responsabilidade criminal. Todavia, uma total passividade da defesa pode redundar numa imagem desfavorável desta perante o julgador, o que num sistema assente no princípio da livre convicção do julgador poderá permitir a conclusão popular de que quem cala consente, ou, numa abordagem mais sociológica, que o silêncio funciona como uma confissão tácita da responsabilidade do Arguido. Dito de outro modo, um sistema de livre apreciação da prova, ao invés de um sistema de prova legal, leva a que a Defesa tenha o máximo interesse em desenvolver todos os esforços necessários a moldar a convicção do julgador (e quem é que actuando no foro pode dizer que nunca o sentiu ),

85 A. Castanheira Neves, op. cit., p. 52. 86 Ou seja: em rigor, o princípio da prova legal acaba por ser mais confortável, porque menos responsabilizador, para o julgador, pois que independentemente da respectiva convicção, a verificação de determinados meios de prova determina-o num ou noutro sentido, não dando espaço à pessoalidade da convicção. Ora, como em tudo na vida, a exclusão da liberdade cinge a responsabilidade. Daí que o princípio da livre apreciação da prova constitua um voto de confiança no crescimento e desenvolvimento da judicatura. Caberá fiscalizar, contudo, em que medida é que o dito voto contribuiu efectivamente para os fins referidos. - 32 -

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ou, pelo menos, a lançar alguma dúvida no seu espírito, embora no plano jurídico seja perfeitamente lícito ao Arguido pura e simplesmente nada fazer, nada dizer, nada demonstrar. Paralelamente, não menos verídico é afirmar que a regra in dubio pro reo tem hipóteses muito mais expressivas de se ver utilizada num sistema de livre apreciação da prova do que num sistema de prova legal. Na verdade, se a dúvida probatória final deve aproveitar ao Arguido, então um sistema assente na íntima convicção do julgador poderá muito mais facilmente gerar situações de dúvida do Tribunal do que um sistema de tabelada valoração da prova, com a imperativa consequência de uma absolvição. E se é certo o que se diz para a dúvida sobre a matéria de facto, i.e., sobre a dúvida emergente da prova produzida sobre a culpa do Arguido (insuficiência ou contradição da prova), não menos certo o é para a dúvida sobre o próprio Direito, situação esta que sendo menos provável de suceder não é todavia impossível – basta constatar a cada vez maior quantidade e menor qualidade legislativa para poder admitir que uma dúvida sobre o domínio ou sentido da norma incriminadora terá necessariamente que ser resolvida em favor do Arguido. Num último plano, também o princípio da livre apreciação da prova apresenta notórias e muito próximas relações com o princípio da continuidade da audiência, ou da concentração, e com os princípios da oralidade e da imediação da prova. Com efeito, o princípio da continuidade da audiência constituirá verdadeiramente um

princípio instrumental em

ordem

a permitir,

materialmente, a livre apreciação da prova. Ou seja, sendo um dado adquirido que a razão e o intelecto humano têm limites impostos pela humanidade do julgador, claro resulta que uma distância temporal excessiva entre os diversos actos em que se reparte a audiência de discussão e julgamento tornará pouco fidedigna a apreciação da prova que emergirá da mesma. Assim que seja declarado, pelo art.º 328 do CPP, que a “audiência é contínua, decorrendo sem qualquer interrupção ou adiamento até ao seu encerramento”. E se é certo que a Lei afirma que os adiamentos não podem exceder os trinta dias, uma prática judiciária censurável e que é totalmente de arredar no futuro permite desvirtuar totalmente o espírito legislativo, tornando na prática absolutamente excepcional o cumprimento da regra que o Código impõe, i.e., que “são admissíveis, na mesma audiência, as interrupções estritamente necessárias, em especial para alimentação e repouso dos participantes”. Ao invés, na prática a continuação da audiência raríssimas vezes acontece no dia útil imediato ao da suspensão dos trabalhos, sendo ao invés marcada a continuação para o trigésimo dia posterior ao da suspensão ( nem que seja para a abrir e logo encerrar com um outro expediente qualquer),

dando cumprimento à letra da lei, mas não se afastando mais do

respectivo espírito porque impossível.

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Quanto ao princípio da imediação da prova (bem como quanto ao princípio da oralidade), e na óptica acabada de descrever, constitui a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e conditio sine qua non para a respectiva admissibilidade lógica. Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às posições assumidas pela acusação e a defesa poderá estar capaz, no final da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento. Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção. Daí a regra imposta pelo art.º 96 n.º 1 do CPP. De tudo quanto se disse ressalta consequentemente como patente o genético entrecruzamento do princípio da livre apreciação da prova com o dever de fundamentação das decisões jus-penais, e bem assim com o direito ao recurso. Que é quanto passa a analisar-se seguidamente.

IV – O dever de fundamentação das decisões jus-penais O dever de fundamentação das decisões jurisdicionais87 decorre para nós, em última instância, do dever que recai sobre o Estado de banir a arbitrariedade do exercício dos poderes públicos, ou, socorrendo-nos de uma imagem civilística, do dever que qualquer mandatário tem de apresentação de contas aos mandantes. Com efeito, os órgãos de soberania, numa correcta concepção de Estado de Direito Democrático, não são sedes de poder, mas veículos de formação e manifestação da vontade do soberano, ou seja, do Povo, titular último de todo o poder temporal88/89. São pois verdadeiras fontes90, no mais

87 I.e., não só as sentenças / acórdãos, mas todas as decisões que não constituam o exercício de um poder discricionário do órgão responsável pela fase procedimental em questão. Assim terão de ser motivadas sentenças, despachos que de modo directo ou indirecto afectem a posição processual ou as garantais dos sujeitos e auxiliares processuais, etc. 88 Jorge Miranda, op. cit., p. 36 afirma: “É muito rico o interesse do conceito (de órgão): 1º Ele propicia um instrumento de mediação entre a colectividade e a vontade ou poder que a unifica; 2º Ele exprime a duração ou permanência desse poder para além da mudança dos indivíduos nele investidos; 3º Ele permite explicar a transformação da vontade psicológica (de certas pessoas físicas – os governantes e os outros detentores do poder político) em vontade funcional (em vontade do Estado ou da pessoa colectiva); 4º Ele permite resolver problemas de responsabilidade”. Segue adiante, a p. 37, o mesmo Autor: “I – Por órgão de Estado entender-se-á, pois, o centro autónomo institucionalizado de formação e manifestação da sua vontade, sejam quais forem o sentido, o alcance, os efeitos, a relevância que assuma. Ou de outro prisma, o centro de decisões jurídicas do Estado ou/e de instituições que nele se compreendam. Ou ainda o conjunto de meios normativos, tornados efectivos através de uma ou mais de uma pessoa física, de que o Estado ou as suas instituições carecem para agir (…). II – O conceito de órgão distingue-se do de agente (lato sensu). O agente não forma, nem exprime a vontade colectiva. Limita-se a colaborar na sua formação ou, o mais das vezes, a dar execução às decisões que dele derivam, sob a direcção e a fiscalização do órgão”. - 34 -

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simbólico e clássico sentido, de onde brota a vontade soberana, e não titulares eles próprios do poder, visto que o exercem por determinação e graça alheia. Apenas semelhante concepção constituirá verdadeira e efectiva manifestação dos princípios democráticos que por via de regra as Constituições proclamam, mas que os Estados de facto dificilmente vivem. Compreensível é, contudo, que tal desvio aconteça, posto que apenas uma cultura democrática entranhada nas consciências individuais, e só posturas eivadas de uma disponibilidade e submissão inabaláveis ao serviço público, permitem que os titulares dos órgãos se não inebriem com o poder que de facto exercem. Aliás, a tal desviada confusão entre titular do órgão, órgão do Estado e Soberano não são alheias as posturas autocráticas tão características das jovens democracias, e bem assim a cristalização no exercício do poder, esta uma característica já disseminada pela maioria das democracias. Aliás, tal cristalização no exercício do poder anda por via de regra acompanhada por uma pletora de imunidades, irresponsabilidades e privilégios adjudicados aos cargos, raramente utilizados com a parcimónia que a respectiva criação aconselharia91. O problema da fundamentação das decisões jus-penais entrosa-se, como decorre do que fica dito, nos meandros mais profundos da Teoria do Estado e do Direito – e é à luz dos Princípios aí gizados que a solução para os problemas deverá começar por ser procurada… principalmente em tudo quanto concerne à Justiça Penal. Daí a afirmação de que toda a decisão do poder tem de ser fundamentada, i.e., justificada e esclarecida, sob pena de o órgão do Estado, ou o respectivo titular (o que na perspectiva do destinatário da decisão será o mesmo),

estar a exorbitar o próprio mandato que recebeu do Soberano. Razão pela

qual também as decisões jurisdicionais o deverão ser (terão de ser), e, dentro destas, e por maioria de razão, as decisões que têm por consequência a violação ou compressão dos direitos fundamentais dos cidadãos92.

89 Cfr. art.º 3º CRP, literalmente. 90 Do Grego fons, fenos, que significa abrir, e que originariamente era um vocábulo relacionado com água. Dir-se-á que fonte, etimologicamente “significa aquilo que está aberto (ou que pode abrir-se) para sair água, ou que já contém água, podendo esta recolher-se naturalmente, com facilidade; algo donde ou onde nos aparece água” – Sebastião Cruz, op. cit., p. 162. 91 Exemplos do que se diz encontram-se, ademais, em todos os órgãos de soberania, desde os mais intrinsecamente políticos até aos de carácter técnico. Temos, assim, as prerrogativas inerentes às imunidades dos Deputados à Assembleia da República, o regime penal especialmente criado para os crimes praticados pelos titulares dos cargos políticos, etc. No mesmo plano surgem as chamadas garantias da independência dos Tribunais, que mais se convertem em prerrogativas estatutárias das magistraturas do que em verdadeiras garantias na aplicação da Justiça (v.g. a inamovibilidade dos juízes, a irresponsabilidade dos magistrados, o livre porte de arma, os passaportes especiais, e até as condições de acesso a crédito bancário e as benesses instituídas a nível de segurança social, apoio na doença, etc.). 92 Aliás, nesse sentido se orienta o entendimento, tendencialmente uniforme, do Tribunal Supremo espanhol. - 35 -

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Dito de outro modo, filiamos inequivocamente o dever de fundamentação das decisões jus-penais no núcleo essencial dos direitos fundamentais, mais precisamente dos chamados direitos, liberdades e garantias93. Nos Estados de Direito é a própria Constituição que exige, portanto, a fundamentação / motivação das decisões jurisdicionais, maxime, das decisões penais – diga-o ou não o texto formalizado daquela. Com a doutrina tradicional podemos concluir, aliás no sentido do que já no capítulo anterior ficou escrito, que a finalidade da fundamentação das decisões é tríplice: “lograr uma maior confiança do cidadão na Justiça, o autocontrolo das autoridades judiciárias e o direito de defesa a exercer através dos recursos”94. A Lei ordinária portuguesa expressamente consagra o dever de fundamentação das decisões finais, sentenças e acórdãos – art.º 374 n.º 2 –, outrotanto erigindo a fundamentação como requisito essencial na apreciação da prova produzida em audiência – art.º 365 n.º 2 –, e na escolha e determinação da pedida da sanção a aplicar ao arguido – art.º 375 n.º 195. Fá-lo, aliás, na

93 Atendendo aos Direitos, Liberdades e Garantias comprimidos ou limitados com a decisão, e isto relacionado com o disposto no art.º 18 CRP. 94 G. Marques da Silva, op. cit., p. 112. Segue o citado Autor: “A primeira das finalidades indicadas ajuda à compreensão da decisão e, consequentemente, à sua aceitação, facilitando a necessária confiança dos cidadãos nas autoridades judiciárias. O autocontrolo que a exigência de motivação representa manifesta-se a níveis diferentes: por um lado obsta à comissão de possíveis erros judiciários, evitáveis precisamente pela necessidade de justificar a decisão; por outro lado, implica a necessidade de utilização por parte das autoridades judiciárias de um critério racional de valoração da prova, já que se a convicção se formou através de meras conjecturas ou suspeitas, a fundamentação será impossível. Assim, a motivação actua como garantia de apreciação racional da prova. Finalmente, a motivação é absolutamente imprescindível para efeitos de recurso, sobretudo quando tenha por fundamento o erro na valoração da prova; o conhecimento dos meios de prova e do processo dedutivo são absolutamente necessários para poder avaliar-se da correcção da decisão sobre a prova dos factos, pois só conhecendo o processo de formação da convicção do julgador se poderá avaliar da sua legalidade” (p. 113). 95 No art.º 374 n.º 2, dispõe o legislador: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal”. Já o art.º 365 n.º 3 estatui: “Cada juiz e cada jurado enunciam as razões da sua opinião, indicando, sempre que possível, os meios de prova que serviram para formar a sua convicção, e votam sobre cada uma das questões, independentemente do sentido de voto que tenham expresso sobre outras. Não é admissível a abstenção”. Por último, e quanto à escolha e medida da sanção, rege o art.º 375 n.º 1: “A sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada, indicando nomeadamente, se for caso disso, o início e o regime do seu cumprimento, outros deveres que ao condenado sejam impostos e a sua duração, bem como o plano individual de readaptação social”. Quanto à sentença absolutória a mesma está isenta, por vontade do legislador, de qualquer fundamentação, como decorre do cotejo entre a citada disposição do art.º 375 n.º 1 e o regime constante dos n.ºs 1 e 3 do art.º 376. A tal respeito, em especial sobre a influência que na questão tem o princípio da presunção de inocência, confira-se a Declaração de voto da Conselheira Fernanda Palma, anexa ao Acórdão n.º 55/97 (processo n.º 330/94). Em sentido não coincidente, a Declaração de voto do Conselheiro Bravo Serra. - 36 -

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sequência do texto do art.º 205 n.º 1 da CRP96. Questão diversa é determinar em quê que a motivação das sentenças se consubstancia. O Supremo Tribunal de Justiça densifica o dever de fundamentação da sentença do modo seguinte: “A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova, deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência”97. Ou seja, “trata-se (…) de referir os elementos objectivos de prova que permitam constatar se a decisão respeitou ou não a exigência de prova, por uma parte; e de indicar o íter formativo da convicção, isto é, o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir, em especial na prova indiciária, comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi irracional ou absurdo, por outra”98. Quanto a nós, pensamos que a fundamentação das sentenças consistirá: (a) num elenco das provas carreadas para o processo; (b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras; (c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados );

e,

(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente. Diga-se, com rigor absoluto, que apenas desse modo se garante uma tutela judicial efectiva. Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado ),

e garante a

respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da

96 Art.º 205 n.º 1 CRP – “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. 97 Ac. STJ, de 13/10/1992, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII-1992, tomo I, p. 36. 98 G. Marques da Silva, op. cit., pp. 113 e s. - 37 -

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convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido. Reitere-se, uma vez mais, que apenas motivando nos moldes vistos a decisão sobre a matéria de facto, se permite, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, garantir que a valoração da prova produzida foi levada a cabo de modo devido, i.e., com respeito pelas regras da razão, da lógica e da experiência99. Precisamente por isso não nos coibimos de afirmar que quer a total e absoluta ausência de motivação, quer a motivação deficiente, geram inapelável nulidade da decisão. É que uma decisão apenas parcialmente fundamentada tem de ser entendida como não fundamentada, posto que inexiste meia fundamentação, tal como inexiste meia comunicação100. Em suma, a falta de fundamentação, em qualquer dos seus graus, determina a verificação de um vício inultrapassável da decisão proferida – de tal modo grave que apenas poderá ser estigmatizado com a nulidade (embora raras vezes os tribunais de recurso cheguem tão longe na apreciação da questão e retirem todas as consequências que deveriam tirar da existência de uma fundamentação insuficiente, deficiente ou inexistente).

O CPP português, no respectivo art.º 97 n.º 4, determina que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão. E tão singela regra bastaria para que dúvidas não existissem sobre a conformidade da lei ordinária com o texto e espírito da Constituição da República (art.º 27 n.º 4 – “…informada imediatamente e de forma compreensível das razões…” –, art.º 32 n.º 1 – “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa…” –, art.º 205 n.º 1 – “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”).

Aliás, não é à falta de repetição de tal regra no CPP, ou por incorrecta conformação literal da mesma, que ela se vê tantas vezes violada. Com efeito, o Código reafirma-a insistentemente, conforme se constata, de entre muitas outras, das disposições dos art.ºs 2º, 141 n.º 1, 153 n.º 2, 191 a 218 (genericamente), 220, 223, 227 e 228, 250 a 259 (genericamente), 273, 279, 283, 293, 307, 311, 374 n.º 2, 376 n.º 1, 379, 420 n.º 3, 425 n.º 5, 445 n.º 3, 449 n.º 1, 484 n.º 1, 485 n.º 3, 508, etc. Cabe à doutrina esclarecer o grau de exigência necessário para considerar a fundamentação compatível com o dever ser, tal como cabe à jurisprudência não regatear esforços na respectiva concretização forense.

99 Paolo Tonini, op. cit., p. 8, a propósito da estrutura atrás apresentada relativa ao silogismo judiciários, refere: “Altro pregio di questa ricostruzione è quello di frenare l’intuizionismo e gli aspetti irrazionali che si possono manifestare nel momento del decidere Al giudice si pone l’obbligo di usare soltanto criteri razionali, dei quali è tenuto a dare conto nella motivazione”. 100 Ac. T. Constitucional de 17/04/1997, in Acórdãos do Tribunal Constitucional – volume 36, quando afirma: “Não é aceitável na perspectiva da lógica normativa decorrente do sistema legal que uma decisão contrária aos fundamentos - 38 -

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De todas as regras referidas, e mercê da respectiva importância, sublinhem-se as que se referem à fundamentação das decisões que legalizam a detenção e que determinam a aplicação de medidas de coacção ou de garantia patrimonial, à fundamentação da acusação e da pronúncia e à fundamentação da sentença. Sendo que a falta de fundamentação da decisão final, sentença ou acórdão, gera, inequivocamente, nulidade da mesma, como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 379 n.º 1 al. a) e 374 n.º 2. Em desenvolvimento da questão anterior cabe levantar uma outra, cuja dificuldade prática se antecipa sem esforço, que é a de determinar quando é que o dever de fundamentação está cumprido. Ou seja, deparamo-nos agora com a questão do quantum da fundamentação. Quantum que não tem, diga-se desde já, qualquer carácter quantitativo, ao invés do que por vezes parece ser entendido pelos Tribunais, como modo de desfocar a fulcralidade do problema101. Em termos descritivos iniciais dir-se-ia que a motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor. Mas não só a prática levanta problemas de tal modo esdrúxulos que a limpidez e simplicidade da regra rapidamente resultam obnubilados, como igualmente é certo que as exigências de racionalidade e lógica podem sem dificuldade ser contornadas quando se tem por assente que o decisor não só é, por definição, um ser racional, como igualmente é um ser dotado de especiais conhecimentos e aptidões na matéria vertente. Por outras palavras, não só a vida nos coloca perante situações em que a determinação do efectivo cumprimento da norma vista não é linear; como o dever efectivo de fundamentação pode na prática, e até por regra, ser esvaziado de qualquer conteúdo útil se ponderarmos que o apelo a critérios irracionais ou ilógicos não será nunca (excepto em situações patológicas graves), de tal modo evidente que possa nesse sentido concluir-se sem esforço. Senão vejamos: Exemplo de situação imaginativa que exigirá um esforço acrescido na determinação sobre se o dever de fundamentação foi cumprido, surge quando se tenta densificar ou aferir concretamente o dever e a extensão da fundamentação das decisões condenatórias que assentam a prova dos factos em meros indícios ou em factos instrumentais dos quais logicamente decorrem os facta

seja considerada coisa diferente de uma decisão não fundamentada e, consequentemente, que seja configurável como norma ou interpretação normativa de uma norma aquilo que é apenas violação da mesma norma”. 101 O Tribunal Constitucional espanhol, e alguma doutrina, afirmam, com cristalina limpidez, que “a motivação não tem porque ser extensa, exaustiva e pormenorizada. Basta com que seja aceitável, do ponto de vista do normal e da suficiência”. Assim, precisamente, E. Ruiz Vadillo, op. cit., p. 109. No mesmo sentido, igualmente, o Tribunal Constitucional português, em abundante jurisprudência sobre o tema. - 39 -

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probanda102. Nestas situações apenas uma casuística apreciação de todos os elos da cadeia fundamentadora poderá garantir que a decisão não se limita a emergir da injustificável convicção íntima do julgador103. Por seu turno, difícil é admitir como normal que um decisor penal fundamente de modo claramente irracional ou ilógico uma sentença104; tal como não será habitual que sem dificuldade se constate como documentada na própria decisão a existência de prova ilógica ou irracionalmente valorada…105/106. Não obstante, caso situações extremas desse tipo ocorram, obviamente que se estará perante decisão não fundamentada de todo, por mais extensa que seja a justificação dada para a ilógica ou

102 Ac. Tribunal Constitucional espanhol de 11/10/1985, onde se lê: “corresponde al Tribunal comprobar si las inferencias lógicas de la actividad probatoria llevadas a cabo por el órgano judicial no han sido arbitrarias, irracionales o absurdas”. 103 Ac. Tribunal Constitucional espanhol de 17/09/1985, onde se lê: “El TC debe enfrentarse en estos casos a la dificil tarea de verificar si ha existido una verdadera prueba indiciaria, o si lo único que se ha producido es una actividad que no ha logrado más que arrojar sospechas o conjeturas sobre la culpabilidad del acusado”. 104 É, a propósito, bastante interessante a seguinte passagem do Ac. S.T.J. de 9 de Novembro de 1995, apud Acórdão T. Constitucional n.º 197/97 (processo n.º 153/96): “…essa inconstitucionalidade só pode existir na mente de quem advogar a existência de juízes amorfos, desprovidos de cultura, inteligência e probidade, incapazes de descobrir no facto directamente perceptível o seu significado oculto ou capazes de, por mero jogo arbitrário dos dados lançados ou das impressões difusas geradas no seu espírito, extrair uma conclusão não contida nas premissas. O juiz que o legislador pressupõe (…) (é) o juiz responsável, livre, capaz de pôr o melhor da sua inteligência e do conhecimento das realidades da vida e da sua cultura na apreciação do material probatório que lhe é fornecido”. Com semelhante entendimento compreende-se que esteja instituído o dogma da infalibilidade da judicatura. Todavia, o que no Acórdão citado não se admite, e mal, é a possibilidade de erro, da falha inconsciente, ou mesmo, indevidamente, da falha patologicamente consciente. I.e., o que o S.T.J. parece não conseguir admitir é a humanidade dos magistrados, susceptíveis de sofrerem como qualquer outro ser de paixões, enganos, indisposições, limitações, etc. E sendo este o ponto de partida, outras terão de ser as consequências, nomeadamente a de não se aceitar que a simples presença de um magistrado judicial seja garantia da tutela do direito de defesa consagrado no art.º 32 n.º 1 da CRP. 105 Daí a quase total irrelevância prática de normas como as que constam do art.º 410 n.º 2 do CPP (recurso de matéria de facto para o STJ nos casos excepcionais em que tal é admitido pela legislação em vigor). Conforme dissemos noutro local, “… só muito dificilmente o julgador recorrido será tão imponderado, descuidado ou incompetente que decida sem se escorar numa factualidade de que ‘ele’ se convenceu estar provada. Além do mais, uma decisão judicial não é só um texto, é uma consubstanciação escrita de um raciocínio mental, que ao ser vertido para o papel necessariamente ganha um carácter argumentativo ou, pelo menos, justificativo. Qualquer juiz penal sabe que não pode condenar sem dar como provados os factos constitutivos do tipo. Sabe também, como jurista especializado que é, que não pode faltar a prova de nenhum dos elementos do tipo penal. Razão pela qual não deixará de racionalmente enumerar os factos integrantes do tipo, dando-os como provados segundo a convicção que formou. Mas o que seria importante, que era a justificação do raciocínio pelo qual os factos foram dados como provados, isso já não é controlável pelo tribunal de Recurso, à uma porque em regra não constam do texto da decisão recorrida, mercê do entendimento praxístico do 374º, nº 2 do CPP/87, e à outra porque o juiz, como ser racional que é, não deixará, salvo casos patológicos, de enumerar os factos necessários, e a respectiva ‘prova’, para poder proceder à condenação do arguido.” (Paulo Saragoça da Matta, op. cit., p. 387). 106 No dizer de E. Ruiz Vadillo, op. cit., pp. 108 e s., “…el razonamiento o la inferencia, sobre todo en el supuesto de pruebas indirectas o indiciarias, solo es rechazable en el juez de instancia, cuando es irracional, arbitrario o ilógico, lo que prácticamente no sucede nunca con este lacónico dramatismo, haya que señalar que cuando la motivación no se ajuste a las reglas generales de la lógica y a las normas de la experiencia humana, también será rechazable”. - 40 -

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irracional decisão. Aliás, igual doutrina será de aplicar aos casos em que a fundamentação, por completa que seja, assente em erro notório ou patente, de facto ou de direito ( v.g., o caso de todo o juízo fundamentador assentar numa determinada data como premissa, e ser óbvio que a data assumida como certa está errada; igualmente o caso de se entender como vigente um princípio de susceptibilidade de transferência da responsabilidade penal, apesar da clareza do disposto no art.º 30 n.º 3 da CRP ).

E assim será quer o erro seja

imputável a uma desatenção do julgador, quer o erro resulte de negligência de um qualquer sujeito processual – até mesmo do próprio prejudicado com a decisão em questão. É que o critério que norteia o raciocínio que se empreende deve ser, exclusivamente, o de garantir a tutela judicial efectiva e o acerto material do decidido107. Em suma, não pode senão concluir-se que fundamentação é “a” condição necessária e imprescindível para garantir que a livre apreciação da prova não descamba num incompreensível e censurável subjectivismo, num fiat Iustitia totalmente ilógico, ilegal e injusto, em puro e simples arbítrio travestido de legalidade e Direito. E se é inequívoco que assim é, não menos claro resulta que apenas a fundamentação (leia-se: uma fundamentação honesta, necessária e suficiente), pode permitir aos Tribunais de recurso levarem a cabo a função que constitucionalmente lhes é atribuída 108. É que o controlo pelas partes do acerto do decidido pelo Tribunal recorrido depende totalmente da seriedade e suficiência da motivação aduzida em abono da decisão recorrida, e da honesta e inequívoca vontade do Tribunal de recurso de fiscalizar a decisão impugnada.

107 A situação é de tal modo levada a sério em alguns dos sistemas jurídicos que nos são próximos, que em Espanha se entende como sendo situação suficiente para legitimar e justificar a interposição de um Recurso de Amparo, mesmo que a decisão seja irrecorrível de qualquer outro modo. O Recurso de Amparo serve pois, além do mais, para corrigir interpretações arbitrárias ou totalmente infundadas, ou que resultem de um erro patente com relevância constitucional. O mesmo deveria suceder no direito português, em face do teor do art.º 204º da CRP. No dizer do Ac. do Tribunal Constitucional espanhol n.º 50/1988, “para resolver el presente recurso es útil recordar que (…) el derecho a la tutela judicial efectiva reconocido en el artículo 24.1 de la Constitución española, conlleva el derecho a obtener una resolución fundada en derecho en relación a la pretensión formulada ante el juez competente, el cual debe aplicar de manera motivada las normas jurídicas aplicables y resolver razonadamente la cuestión que se le plantea, pero (…) no garantiza el acierto del órgano judicial en cuanto a la solución del caso concreto”. Igual entendimento se encontra no Ac. do mesmo Tribunal n.º 20/1991. 108 Ac. T. Constitucional de 22/10/1996, no âmbito do processo 96-493, não publicado, em cujo sumário se lê: “II – Uma das garantias de defesa a que se reporta o art. 32 n.º 1 da Constituição é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, o que vale por reconhecer, no domínio processual penal, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição. III – O sistema de revista ampliada previsto no código de 1987, deve considerar-se um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto), e, em concomitância, defende-o dos riscos de uma sentença injusta (…). VI – A fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao Tribunal Superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório”. Especificamente sobre o significado do princípio da livre apreciação da prova e da sua relação com o dever de fundamentação, confira-se os Acórdãos do T. Constitucional n.º 1164/96 (processo n.º 666/95), n.º 197/97 (processo n.º 153/96), n.º 464/97 (processo n.º 102/96), n.º 542/97 (processo n.º 258/97), n.º 397/98 (processo n.º 124/98), n.º 137/01 (processo n.º 778/2000), n.º 390/01 (processo n.º 461/2001), n.º 3410/03 (processo n.º 346/2003). - 41 -

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Com efeito, ao Tribunal de recurso caberá aferir se a decisão recorrida constitui o resultado de uma correcta avaliação dos meios de prova, i.e., se houve acerto ou erro na avaliação da credibilidade ou da atendibilidade da fonte do convencimento, e se as interpretações e juízos construídos sobre a produção de prova são compatíveis com os padrões atrás enunciados de objectividade e alteridade109/110.

V – Valoração da prova e íter processual Recuperando o que atrás se concluiu, a livre apreciação da prova constitui um poder-dever do Julgador penal, que, enquanto dever, se lhe impõe axiologicamente como uma obrigação no exercício delegado do poder soberano de aplicar a Justiça, traduzindo-se na possibilidade de formar uma convicção pessoal de verdade dos factos, convicção essa racional, assente em regras de lógica e experiência, objectiva e comunicacional. Isto assente, conscientemente se deixou para este momento final o debate da questão específica relativa ao âmbito de império do princípio da livre apreciação da prova, e, bem assim, do dever de fundamentação das decisões jus-penais, sob pena de inconstitucionalidade do dito método.

109 Paolo Tonini, op. cit., p. 29: “Il giudice d’appello accerta se l’organo giudicante di primo grado ha fatto ‘mal governo delle risultanze probatorie’; e cioè accerta se ha sbagliato sia a valutare la credibilità della fonte o l’attendibilità dell’elemento di prova, sia a interpretare le varie resultanze probatorie. La corte di cassazione deve vagliare la correttezza del ragionamento per accertare se vi sia ‘mancanza o manifesta illogicità della motivazione’ (art. 606, comma 1, lett. e); e cioè, deve controllare se, assunte determinate risultanze probatorie, il giudice ha fondato su di esse la sua decisione in base ai princìpi della logica”. Precisamente sublinhando a relação intrínseca entre o princípio da livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença, pode ler-se o sumário do Ac. T. Constitucional de 19/11/1996, cit., quando afirma: “II – A regra da livre apreciação da prova em processo penal não se confunde com a apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. III – O art.º 374 n.º 2 do CPP, relativo à fundamentação da sentença, exige, claramente, não só a motivação e o controlo da prova, como também acentua o carácter racional que esta há-de revestir”. 110 Ainda a este propósito não deixe de se anotar a reprovação que merece a opção legislativa que, usando a fórmula constante do art.º 365 n.º 3 do CPP – “Cada juiz e cada jurado enunciam as razões da sua opinião, indicando, sempre que possível, os meios de prova que serviram para formar a sua convicção…” –, parece contrariar o espírito que perpassa todo o ordenamento processual penal português, ordinário e constitucional. Com efeito, a utilização do inciso “sempre que possível” servirá apenas para legitimar comportamentos laxistas, medíocres, autoritários e antidemocráticos, que são de repudiar com veemência. Na verdade, tal normativo parece admitir como compatível com o Direito que, em alguns casos – que lestamente se erigem em regra, conhecendo-se como se conhece a praxe forense e a força transbordante da inércia no comportamento humano –, não seja indicado que meios de prova serviram para formar a convicção dos julgadores, sejam eles jurados ou juízes. Não será, contudo, por tal infelicidade semântica condicional que se concluirá que a constituição processual penal portuguesa admite uma íntima convicção desmotivada, à maneira da antiga compreensão do princípio da livre apreciação da prova. Às instâncias legislativas, e ao Tribunal Constitucional, de energicamente reescreverem a norma expurgando-a do inapelável vício que a inquina. - 42 -

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Ora, quanto à aplicabilidade e imperatividade do princípio da livre apreciação da prova quer na fase de julgamento quer na fase instrutória, e na linha do que já dissemos atrás quando analisámos o significado do dito princípio no âmbito do Direito francês, é nosso entendimento que o princípio se aplica quer às Sentenças e Acórdãos que põem termo à lide, quer à decisão instrutória hoc sensu, quer ainda às decisões interlocutórias do juiz de instrução que afectem direitos, liberdades e garantias do Arguido ou de qualquer outro sujeito processual. Com efeito, as razões fundamentais convocadas pela doutrina francesa que nega a aplicabilidade do princípio às decisões instrutórias não só são argumentos de carácter exclusivamente literal, i.e., que terão de ceder perante argumentos axiológicos e teleológicos em sentido inverso, como nem sequer provam, tal como são usados, no sentido pretendido por quem os convoca. Isto apesar de tais argumentos literais poderem ser usados, pelo menos parcialmente, em face da letra do nosso CPP. Vejamos. O facto de a lei não referir expressamente o princípio da livre apreciação da prova quando regula e disciplina as decisões instrutórias, ao invés do que acontece, embora sincopadamente, com as Sentenças e Acórdãos – art.º 365 n.º 3 –, é totalmente irrelevante, em face da inserção sistemática do art.º 127 do CPP. Encontrando-se tal norma, sistematicamente, integrada no Livro que regula a prova no processo penal português, em geral, apenas autoriza concluir que toda a apreciação da prova obedece a tal princípio. Ademais, ponderada a filiação de tal princípio nos princípios constitucionais que nos capítulos anteriores tivemos oportunidade de referir, claro resulta que nenhuma redução hermenêutica cabe levar a cabo. O legislador disse o que quis dizer, e disse-o correctamente, não se detectando qualquer desconformidade de âmbito ou fim entre o espírito e a letra da lei. Por outro lado, o facto de em sede instrutória, e especificamente em sede de decisão instrutória, a Lei mandar atender à existência ou não de “indícios suficientes” para efeitos de pronúncia do arguido – art.º 308 n.º 1 –, em nada briga com o facto de a prova disponível nos autos, quando analisada, o dever ser de acordo com a regra geral fixada no art.º 127 do CPP. Ou seja, não só na decisão instrutória se está efectivamente a questionar o juiz de instrução acerca da sua convicção, indiciária, sobre a culpabilidade do arguido, como, mesmo que se entenda que tal decisão serve apenas para fazer prosseguir o processo, então as provas disponíveis nos autos terão de ser apreciadas de acordo com a regra legal para efeitos de decidir da submissão ou não do arguido a julgamento. Por outras palavras, a questão da aplicabilidade da regra do art.º 127 às decisões do Juiz de Instrução é prévia, e totalmente alheia, aos fins da decisão em questão. Uma coisa é saber como se apreciam as provas, outra, totalmente distinta, subsequente e independente desta, é saber

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se e quando é que a prova uma vez avaliada (de acordo com os cânones legais), autoriza a continuação do processo. Ademais, entendimento diverso do aqui propugnado implicaria reconhecer a constitucionalidade de uma importante restrição ao princípio da presunção de inocência. Com efeito, a ser assim estaríamos a reconhecer que a prova antes do julgamento poderia ser, e seria, produzida, apreciada e valorada de modo menos rigoroso (ou pelo menos de modo com o qual a Lei se não preocupou em regular),

posto que não se estaria a julgar ninguém mas apenas a decidir se se devia ou não sujeitar

o Arguido a julgamento. Nada de menos acertado, quer jurídica, quer logicamente. É que apesar de o Tribunal Constitucional entender (no que anda a nosso ver, s.d.r., mal), que a submissão de quem quer que seja a julgamento penal não constitui qualquer estigmatização111, a realidade é bem diversa, e é-o quer sociologicamente quer juridicamente. O simples facto de o Arguido o ser, traz-lhe, ipso facto e ipso iure, um estatuto de cidadania diminuído, do que o simples termo de identidade e residência é demonstração cabal e inabalável – art.º 196 CPP.

Por outras palavras, a própria preocupação em afirmar o princípio da presunção de

inocência é a demonstração da incongruência do sistema e do sem razão da construção que se refuta: o Estado afirma a presunção de inocência apesar de estar ele próprio, através da sua máquina penal, convencido do contrário, por isso sujeita o Arguido a julgamento. Conclusivamente, dir-se-á que é imposição do princípio da presunção de inocência, e mais ainda do princípio do Estado de Direito Democrático e da Dignidade da Pessoa Humana, que qualquer cidadão nem sequer esteja na situação de ter de ser presumido inocente. Tem de ser considerado inocente, como qualquer cidadão que vive a sua vida normal “sem ser Arguido”, e não ser estigmatizado com uma inocência presumida, ou “de segundo grau”. Não pode um Estado em boafé aceitar que todos os seus cidadãos são inocentes, mas afirmar que uns são mais inocentes do que outros. Por último, a própria ideia de que a sujeição a julgamento deve ter lugar porque existe uma dúvida, mas confessar que tal dúvida apenas existe porque a prova não tem de ser em instrução apreciada tão criteriosa e cuidadosamente como o terá de ser em sede de julgamento – i.e., nos termos a outro respeito regulados nos art.ºs 127 e 365 n.º 3

–, constitui uma intolerável hipocrisia estatal. Intolerável porque

111 Entendimento esse que se não confunde com o facto de o Tribunal Constitucional “reconhecer o Direito do Arguido de não ser submetido a julgamento no caso de não existirem indícios suficientes, como manifestação do princípio da presunção de inocência”, conforme decidido, v.g., nos Acórdãos n.º 401/02, cit., e 226/97 (in BMJ, n.º 465, p. 140 e ss.). Tal entendimento, contudo, é de bem pouca expressividade, considerando que nunca foi declarada inconstitucional a irrecorribilidade do despacho de pronúncia, prevista no art.º 310 do CPP. - 44 -

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violadora do princípio da igualdade, intolerável porque potenciadora de laxismo, intolerável porque confessória do desinteresse da fase processual da instrução ( do que aliás a prática é tristemente demonstrativa e se encontra estatisticamente comprovado)112,

e intolerável porque sendo uma construção

prejudicial ao Arguido, apenas pode logicamente ser justificada com o farisaico argumento de que assim era porque apenas em Julgamento existe um contraditório pleno que tutela o Arguido. Em última instância, o Arguido teria que continuar a ser Arguido, e a presumir-se inocente, para que pudesse na fase última do processo defender-se com mais vigor e plenitude! Seria, pois, a mais perniciosa tese imaginável: para tutelar a liberdade do Arguido, é melhor mantê-lo agrilhoado ao processo! A jurisdição constitucional portuguesa teve já oportunidade de debater a questão num aresto com pouco mais de um ano113, tendo decidido, a nosso ver, correctamente, embora criando uma situação de difícil gestão no plano prático (e que uma declaração de voto anexa ao Acórdão aliás suscita), para já não sublinhar aquilo que nos parece ser uma incongruência com declarações de conformidade à Constituição de outros normativos do CPP constantes de anteriores acórdãos114. A questão de constitucionalidade posta prendia-se com “saber se é inconstitucional a interpretação das normas que definem a função e finalidades da instrução em processo penal e os requisitos legais do despacho de pronúncia (artigos 280 n.º 1, 298 e 308 n.º 1 do CPP), no sentido de que a

112 Ou seja, a nosso ver é errado o pressuposto fáctico de que parte o Tribunal Constitucional quando, olhando para a prática forense, afirma que “a não recorribilidade do despacho de pronúncia que confirma a acusação é compensada no plano das garantias de defesa pela possibilidade prévia de uma clara sujeição a contraditório da prova dos factos carreados para o processo através do inquérito pela acusação e pela consequente possibilidade de o arguido demonstrar ao Tribunal que a acusação é infundamentada. Mas tais possibilidades só se concretizam efectivamente realizando aquele efeito garantístico se o Tribunal, ao decidir sobre a aceitação da acusação no termo da instrução, tiver que fundamentar explicitamente, numa concreta ponderação do valor probatório dos factos, a viabilidade de os mesmos conduzirem à condenação do Arguido”. Pergunte-se: e se o despacho de pronúncia for claramente mal fundamentado ou totalmente infundado? Quid iuris em face do teor literal expresso do art.º 310 em conjugação com o disposto no art.º 400 e mercê do entendimento do T. Constitucional atrás manifestado? 113 Acórdão T. Constitucional n.º 439/02, no âmbito do processo n.º 56/2002. 114 Referimo-nos, especificamente, ao juízo de conformidade com a Constituição da irrecorribilidade geral do Despacho de pronúncia estabelecida no art.º 310 do CPP – com efeito, por maiores que sejam as deficiências de fundamentação do dito Despacho, inexiste meio processual para fazer conferir tal violação ao art.º 97 n.º 4 do CPP, isto considerando a dita irrecorribilidade expressamente declarada, o teor inequívoco do art.º 400 do CPP, e ainda o facto de a situação vertente não integrar claramente o âmbito das nulidades que legitimariam, nos termos literais do art.º 310, a interposição de um recurso. Isto porque os Tribunais tendem a estreitar ainda mais o já de si angustioso rol de nulidades previstas nos art.ºs 119 e 120 do CPP, do qual não consta a falta de fundamentação como gerador de nulidade (apesar de em rigor dever considerar-se nulidade mercê do jogo normativo estabelecido entre o art.º 118 n.º 1 e o carácter imperativo e não excepcionável do n.º 4 do art.º 97). Assim sendo, apenas por força de uma (correcta) interpretação normativa que convoque o disposto no art.º 668 do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 4º do CPP, se poderá levar um Tribunal superior, in casu o Tribunal da Relação, a fiscalizar a ausência de fundamentos do Despacho de pronúncia. À desprotecção do arguido criada pelo sistema instituído nem sequer vale a jurisdição constitucional, arredada que está, incompreensivelmente, a possibilidade de Recursos de Amparo no processo jus-constitucional português. - 45 -

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valoração da prova que subjaz à decisão de pronúncia não exige a subordinação ao princípio in dubio pro reo mas somente a ‘formulação do juízo que com a submissão do arguido a julgamento não resulte daí um acto manifestamente inútil e clamorosamente injusto’. (…) Não está (…) neste domínio em causa um mero problema de formulação doutrinária, mas necessariamente a possibilidade de a norma (ou interpretação normativa) que fundamentou a decisão conduzir, na valoração da prova, a consequências inaceitáveis segundo os princípios constitucionais. Ora é esta mesma possibilidade que se divisa no caso sub judicio, na medida em que o Tribunal recorrido rejeita considerar na valoração da prova, na fase da instrução, qualquer ponderação suportada pelo princípio in dubio pro reo, mesmo que adequada às finalidades dessa fase”115. Como bem foi ponderado pelo Tribunal Constitucional, “a consideração do princípio in dubio pro reo condicionará, necessariamente, o próprio resultado de prognose, na medida em que poderá não bastar uma reduzida possibilidade de condenação do arguido para ser pronunciado, nem as possibilidades de absolvição poderão ser superiores às de condenação quando o Tribunal pronuncia. Há, portanto, seguramente, uma afectação das possibilidades de valoração da prova devido à alteração do parâmetro normativo.” Posta assim a questão, entendeu o Tribunal Constitucional, depois de algumas considerações demonstrativas de uma muito correcta ponderação do problema116, que se “impõe uma exigência de fundamentação para o despacho de pronúncia superior ao de um juízo de manifesta não improcedência da acusação, em que a ultrapassagem das dúvidas razoáveis sobre a possibilidade futura de condenação não terá de ser demonstrada. Se o Tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma efectiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos concretos constantes da acusação, estará a enfraquecer intensamente de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a sua submissão a julgamento”. E muito bem conclui: “A ulterior possibilidade de, no julgamento, se infirmar a acusação e a garantia de respeito pela presunção de inocência nessa

115 Acórdão T. Constitucional n.º 439/02. 116 As considerações referidas são as seguintes: “Bastará, para a efectivação daquele plano garantístico, a não manifesta infundamentação da acusação para dar conteúdo à suficiência dos indícios e a um juízo de razoável possibilidade de que a acusação proceda no julgamento? Será suficiente invocar a preservação da presunção da inocência no julgamento para que as garantias de defesa sejam plenamente asseguradas na fase instrutória? As mesmas garantias de defesa serão suficientemente respeitadas com a mera possibilidade de o arguido demonstrar que a acusação é manifestamente infundada? Tal colocação da questão não converterá uma concreta presunção de inocência numa presunção meramente teórica da inocência, que na prática não redunda em qualquer posição processual vantajosa para o arguido, mas o coloca ilimitadamente à disposição da acusação, a qual pouco terá de demonstrar para que o julgamento se realize?” (Acórdão T. Constitucional n.º 439/02, cit.). - 46 -

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última fase do processo não são suficientes para dar conteúdo à garantia de não ser submetido a julgamento em face de uma acusação que provavelmente não conduzirá a uma condenação. É a expressão concreta, nessa fase, da presunção de inocência que impõe uma tal conclusão”117. Em face de todo o exposto, estas são as razões que nos levam a entender, sem desvios nem excepções, que o princípio da livre apreciação da prova, com o concomitante dever de fundamentação das decisões jurídico-penais, se aplica às Sentenças e Acórdãos, aos Despachos de Pronúncia, e bem assim a todas as decisões interlocutórias que tenham por efeito, directo ou colateral, a compressão, limitação ou restrição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Aliás, dúvida nem sequer pode existir quanto ao grosso destes Despachos, quando é claramente exigido pelo código que os mesmos sejam especialmente fundamentados e que neles sejam cautelosamente sopesadas todas as condições gerais e especiais de aplicação de medidas de coacção – assim os art.ºs 192 a 228 do CPP. Excepção feita ao termo de identidade e residência, porque de carácter automático em face da assumpção de um determinado estatuto-papel no seio do procedimento, e todas as decisões referidas terão que partir e assentar numa valoração de provas, rectius, de indícios, constantes dos autos, nos termos do art.º 127 CPP. Ademais, para quem tenha particular apego por argumentos literais, sempre se dirá que uma leitura linear dos n.ºs 1 e 4 do art.º 97 do CPP não autoriza qualquer outra leitura: havendo actos decisórios que pressupõem a verificação de determinada factualidade pretérita e a projecção ou antevisão do procedimento futuro, necessário é que sejam apreciados os indícios probatórios constantes dos autos, pois só por isso se exige que os mesmos sejam fundamentados 118. E se tem de ser apreciada matéria probatória, não cabe senão aplicar a regra legalmente prevista para proceder a tal apreciação… na sua plenitude.

117 Não se opondo ao juízo de inconstitucionalidade operado, o Sr. Conselheiro Bravo Serra votou com declaração de voto na qual afirma: “…a formulação de um juízo indiciário do cometimento dos factos delituosos pelo agente, base insuperável da decisão de pronunciar, não pode, como é óbvio, fundar-se num juízo de certeza quanto a esse cometimento, pois que, se assim fosse, a fase da instrução tornaria perfeitamente inútil a efectivação da fase de julgamento. Aquela formulação, pela própria natureza das coisas (…) acarreta, necessariamente, uma natural margem de dúvida. Ora, é justamente neste ponto que se funda a minha perplexidade, já que se me atolha de difícil compatibilidade aceitar-se, de um lado, a ocorrência de uma margem de dúvida e, de outro, a primaridade de um princípio segundo o qual, a existir dúvida, a inocência do arguido deverá conduzir à sua não perseguição penal”. 118 E, como visto atrás, a fundamentação não se basta com dar por verificados os dados fácticos de que depende a previsão da norma e depois arrazoar acerca das construções jurídicas admissíveis à luz da lei para subsumir os ditos factos. Ao invés, impõe a Constituição, e o Código de Processo Penal, que a fundamentação constitua uma apresentação lógica, racional e objectiva dos motivos que levam a dar por verificada a factualidade necessária ao desencadear das consequências jurídicas previstas na norma a aplicar. - 47 -

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VI – Conclusões A livre apreciação da prova constitui um dever do julgador que axiologicamente se lhe impõe por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana – i.e., emerge directamente dos art.ºs 1º e 2º da CRP

–, traduzindo-se na possibilidade de formar uma convicção pessoal de

verdade dos factos, convicção essa ainda assim racional, assente em regras de lógica e experiência, objectiva e comunicacional. Para ser racional a convicção tem necessariamente de assentar em provas, e não na corazonada de que falava Vadillo. Provar significa, por isso, “indurre nel giudice il convicimento che il fatto storico sai avvenuto in un determinato modo. Il fatto storico deve essere ‘rappresentato’ al giudice mediante altri fatti. La prova è, appunto, quel procedimento logico in base al quale da un fatto noto si deduce l’esistenza del fatto storico da provare e le modalità con le quali si è verificato”119. Para ser assente em regras de lógica e experiência, tem que ser inexpugnavelmente compatível com os princípios que se reconhece regularem mentalmente a gnose. Daí se ter referido que o processo de valoração começa com a própria admissão dos meios de prova, seguindo pela aferição da respectiva credibilidade, e concluindo pela conferência dos respectivos resultados com os

demais

meios

probatórios



resolvendo-se

nessa

sede

qualquer

contradição

ou

incompatibilidade entre os meios em presença. Para ser objectiva, tem de ser desprovida de subjectivismo injustificável, ser assente em elementos reais e externos ao Tribunal, afastando-se de meros conhecimentos ou presunções privadas do Homem que ocupa a posição de julgador. O objectivismo aqui convocado é aquele, aliás, que justifica a imparcialidade soberana, e elevada, do Juiz, não prejudicada pelo seu poder de investigação ex officio, mas antes por ele potenciada (aqui o entrecruzamento máximo entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio do acusatório).

Para ser comunicacional, tem de ser intrinsecamente reflectida e claramente compreensível por terceiros, com o que se procura garantir, ao limite, a inexistência de falhas ou erros de julgamento e se permite que a pena infligida possa cumprir os fins para que foi criada: a retribuição devida ao criminoso, pelo mal do crime, a prevenção especial e a prevenção geral. Nisto se consubstancia a essência da motivação. Ou seja, é genética e inquebrantável a ligação entre o princípio da livre apreciação da prova, o

119 Paolo Tonini, op. cit., p. 10. - 48 -

Paulo Saragoça da Matta

princípio do Estado de Direito, o princípio da presunção de inocência, o princípio in dubio pro reo, o princípio da continuidade da audiência e da imediação da prova, o dever de fundamentação das decisões penais, e o direito ao recurso. Aplica-se, o princípio da livre apreciação da prova, a todas as fases do procedimento em que caiba apreciar da existência histórica de factos necessários ao desencadear de consequências jurídicas que possam constituir restrição, compressão ou limitação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Por fim, constata-se que a fórmula legal utilizada pelo legislador português no art.º 127 do CPP não prejudica em nada o correcto entendimento que do princípio da livre apreciação da prova se deve ter. Como atrás referido, cabe à jurisprudência e à doutrina densificarem em permanente devir o sentido com que tal norma deve valer, sem regatear esforços no caminho apontado pelo art.º 2º in limine da Constituição da República.

Lisboa, 1 de Novembro de 2003.

Paulo Saragoça da Matta

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