Livro de Guarani feito por Juruá: reflexões acerca do design do livro e da leitura a partir da escolarização dos agentes de saúde Guarani

June 7, 2017 | Autor: R. Carvalho | Categoria: Anthropology, Literacy, Indigenous Studies, Reading Practices, Book Design
Share Embed


Descrição do Produto

Ricardo Artur Pereira de Carvalho

Livro de Guarani feito por Juruá Reflexões acerca do Design do livro e da leitura a

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

partir da escolarização dos agentes de saúde Guarani.

Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes & Design da PUC-Rio. Orientadores: Luiz Antonio Luzio Coelho Jackeline Lima Farbiarz Rio de Janeiro, fevereiro de 2007

Ricardo Artur Pereira de Carvalho Livro de Guarani feito por Juruá - Reflexões acerca do Design do livro e da leitura a partir da escolarização dos agentes de saúde Guarani.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Design do Departamento de Artes & Design do Centro de Teologia e Ciências Humanas. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Dr. Luiz Antonio L. Coelho Presidente/PUC-Rio

Profa. Dra. Jackeline Lima Farbiarz Co-orientadora/PUC-Rio

Profa. Dra. Tania Dauster Magalhães e Silva PUC-Rio

Prof. Dr. Armando Martins de Barros UFF Universidade Federal Fluminense

Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro, _______ de _____________ de _____ Departamento de Artes & Design Rua Marquês de São Vicente, 225 – Gávea – 22543-900 Rio de Janeiro – RJ – Tel; (021) 3527-1596 FAX (021) 3114-1589

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Ricardo Artur Pereira de Carvalho

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Bacharel em Desenho Industrial, com habilitação em Comunicação Visual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em 2003. Atua como designer gráfico e webdesigner, além de participar como pesquisador no Núcleo de Estudos do Design do Livro da PUC-Rio em trabalhos com o foco em Design da Leitura, especificamente em questões relacionadas ao impacto social da atuação do Designer e na investigação das relações entre Design e culturas indígenas.

Ficha Catalográfica

Carvalho, Ricardo Artur Pereira de Livro de Guarani feito por Juruá. Reflexões acerca do design do livro e da leitura a partir da escolarização dos agentes de saúde guarani / Ricardo Artur Pereira de Carvalho; orientadores: Luiz Antonio Luzio Coelho, Jackeline Lima Farbiarz. – 2007 108 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Artes e Design)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Inclui bibliografia 1. Artes – Teses. 2. Design da leitura. 3. Design do livro. 4. Guarani. 5. Índios do Brasil. 6. Escolarização de jovens e adultos. 7. Educação diferenciada. 8. Prática de leitura. 9. Etnografia. I. Coelho, Luiz Antonio Luzio. II. Farbiarz, Jackeline Lima. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Artes. IV. Título.

CDD: 700

Agradecimentos Ao meu orientador Luiz Antonio Luzio Coelho, pelo acolhimento, incentivo, estímulo, liberdade e, principalmente, pela confiança. À minha orientadora Jackeline Lima Farbiarz por me adotar num momento de necessidade e pela fé depositada em mim. À Capes, PUC-Rio e FUNASA pelos auxílios concedidos, fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa. Ao professor Armando Martins de Barros, pela grande oportunidade concedida.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Ao amigo José Francisco Sarmento que sem querer mudou o rumo desta pesquisa. A todos os membros do Núcleo de Estudos do Design do Livro, pelo sentimento de pertencer a algo maior. Aos agentes de saúde e professores do povo Guarani das aldeias de Itax , Araponga, Sapukai e Rio Pequeno. À Jane Portella, Diana Marinho, SES-RJ e FIOCRUZ, pela oportunidade de desenvolvimento do Álbum Seriado. À Mirla Paiva, Fernanda Muniz, Renata Pinheiro, Celso Sanches, Gabriela Barbosa, Bessa Freire, Luiza Helena Carvalho, Anunciada Lima e toda a equipe Juruá do projeto, pela acolhida e por partilharem comigo o carinho pelos Guarani. Aos professores, funcionários, amigos e colegas de mestrado da PUC-Rio, pelas influências e contribuições teóricas, logísticas e afetivas. À UFF, UERJ, UFRJ, ETIS, Secretarias Municipais de Angra dos Reis e Paraty e demais instituições envolvidas no Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde. Ao Romulo Matteoni e demais amigos pela paciência. Ao Milton, Regina, Carol e Marina por tudo.

Resumo Carvalho, Ricardo Artur Pereira de; Coelho, Luiz Antonio Luzio e Farbiarz, Jackeline Lima. Livro de Guarani feito por Juruá. Reflexões acerca do design do livro e da leitura a partir da escolarização dos agentes de saúde guarani. Rio de Janeiro, 2007. 108p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Artes & Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O design do livro é uma arte invisível? Depende do leitor. Mas como este leitor é considerado pelos designers de livros? Esta questão é o ponto de partida deste estudo, que busca investigar como o designer pode participar do processo de formação de escritores e leitores, compreendendo a inserção do Design, enquanto campo de vocação interdisciplinar, em projetos em que há a

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

predominância do hibridismo, da mescla de vozes e da mescla de identidades.Sabendo que os designers de livro servem a três clientes: autor, leitor e editor, é verificado que apenas autor e editor interferem diretamente no trabalho do designer, enquanto este profissional considera o leitor apenas por uma noção pré-concebida. Desta forma, questiona-se a ausência do leitor nos projetos de design do livro,ao mesmo tempo em que se propõe a noção de Design da Leitura.O estudo considera as teorias que tratam da recepção e mediação da leitura, como em Chartier, e utiliza-se de um exercício etnográfico sobre os encontros presenciais do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde voltado para o agentes Guarani das aldeias de Itax , Araponga, Sapukai e Rio Pequeno, na região de Angra dos Reis e Paraty. A partir da observação das práticas da leitura do grupo Guarani são levantadas questões para pensar uma abordagem que contemple as características destes leitores. Portanto, ao reconhecer a importância do leitor e das mediações, o Design da Leitura contempla também o letramento, ao tentar contribuir tanto para a alfabetização como para a formação das práticas sociais de leitura e escrita.

Palavras-chave Design da Leitura; design do livro; Guarani; índios do Brasil; escolarização de jovens e adultos; educação diferenciada; alfabetização; letramento; práticas de leitura; etnografia;

Abstract Carvalho, Ricardo Artur Pereira de; Coelho, Luiz Antonio Luzio e Farbiarz, Jackeline Lima. Livro de Guarani feito por Juruá. Reflexões acerca do design do livro e da leitura a partir da escolarização dos agentes de saúde guarani Rio de Janeiro, 2007. 108p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Artes & Design, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Is Book Design an invisible Art? How is the reader considered by book designers? These questions are the starting point for this study, which aims at investigating how can a designer contribute to the process of forming new writers and readers. Design is here approached as an interdisciplinary vocational area where hybrid projects occur; encompassing different voices and identities.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

We work on the assumption that book designers consider three kinds of clients—the author, reader and publisher—and that only author and publisher have traditionally interfered in the designer’s work more directly, while the reader exists more as a pre-conceived notion. By and large, the reader has been disregarded by book designers. We, then, try to propose what we call a Design for Reading or Reading Design. We consider theories that deal with reception and mediation in the reading process. We use theoretians like Roger Chartier and apply them to an Ethnographic exercise carried out at the Schooling Project with Guarani Health Agents in the Native Brazilian Villages of Itaxi, Araponga, Sapukai and Rio Pequeno in the Angra dos Reis and Paraty Regions. By observing the reading process by the Guarani Agents, we raise questions on how to encompass the specific profile of such a reader in the visual project, thereby recognizing the importance of the reader and mediation in the Reading Design. We also consider some aspects of literacy in order to contribute to new reading and writing. social processes.

Key words Book Design; Reading Design; Guarani; Native Brazilians; Young and Adult

Schooling;

Ethnography

Alternative

Education;

Literacy;

Reading

Process;

Sumário

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Introdução

9

2 Sobre livros, leitores e leituras 2.1. Da linguagem oral à cultura escrita 2.2. O autor, o leitor e o texto 2.3. Livros e outros objetos de leitura

15 15 21 27

3 Escolarização dos agentes de saúde Guarani 3.1. Povo Guarani: um breve relato 3.2. Demanda 3.3. Proposta 3.4. Estrutura do curso 3.5. Recursos didáticos e paradidáticos 3.6. Rotina dos Encontros 3.7. Personagens

34 34 37 38 39 40 41 42

4 Exercício Etnográfico: Por uma descrição do curso presencial 4.1. Chegada: o contato inicial 4.2. A sala de aula 4.3. Rotina do curso 4.4. Contraste cultural

51 51 52 53 59

5 O papel do designer na cultura 5.1. O designer como agente cultural 5.2. O impacto do Design na cultura 5.3. Design e responsabilidade social 5.4. Design para a prevenção de DST-AIDS

65 69 71 73 75

6 Considerações para o Design 6.1. Design voltado para a produção 6.2. O leitor implícito 6.3. Percepção e Linguagem 6.4. Design do livro: projeto para quem? 6.5. Design do livro: de Juruá para Guarani 6.6. Design da Leitura

87 87 89 91 92 94 97

7 Conclusões e considerações finais

101

Referências bibliográficas

105

Lista de siglas e abreviações empregadas

APA – Área de Proteção Ambiental. AIDS – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida Core-RJ – Coordenação Regional do Rio de Janeiro da FUNASA. CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis. EJA – Educação para Jovens e Adultos.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública (vinculada à FIOCRUZ). ETIS – Escola Técnica Enfermeira Izabel dos Santos. FIOCRUZ – Fundação Instituto Oswaldo Cruz. FUNAI – Fundação Nacional do Índio. FUNASA – Fundação Nacional de Saúde. LEIO - Laboratório de Estudos da Imagem e do Olhar (vinculado à UFF). MEC – Ministério da Educação e da Cultura. NEL – Núcleo de Estudos do Design do Livro. (vinculado à PUC-Rio). PIBIC – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica. Pró-Índio – Programa dos Povos Indígenas (vinculado à UERJ). PUC-Rio – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. SES-RJ – Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio de Janeiro UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. UFF – Universidade Federal Fluminense. UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Introdução

O presente estudo pouco se relaciona com minha proposta inicial de mestrado, exceto pelo fato de pensar diálogos entre as culturas nativas brasileiras e o Design, temática pela qual tenho me interessado desde meu projeto de conclusão de curso. Em 2003, ao fim de minha Graduação em Design pela PUC-Rio, desenvolvi como projeto de conclusão um estudo, apresentado na forma de animação, em que procurei compreender o processo de formação dos padrões gráficos dos Asurini do Xingu.1 Ao longo do projeto, pude me familiarizar com uma série de pesquisas sobre diferentes culturas indígenas brasileiras, que foram me entusiasmando e sensibilizando tanto pela riqueza do tema, quanto pela maneira como ele é ainda pouco explorado dentro do campo do Design. A partir deste envolvimento, resolvi dar continuidade ao estudo deste tema, embora com um novo enfoque. No momento de meu ingresso no programa de PósGraduação do Departamento de Artes & Design da PUC-Rio, em 2005, minha proposta era investigar a produção da Arte Nativa Aplicada, uma loja paulista que recrutou designers para trabalhar a temática indígena em suas peças. Buscava, neste momento, entender os possíveis diálogos entre a rica iconografia indígena e seu emprego no Design, considerando investigar e questionar a prática dos designers e a maneira como se apropriaram da cultura nativa brasileira. Entretanto, com as oportunidades que surgiram, acabei mudando o enfoque de minha pesquisa no início do segundo semestre e propondo um outro objeto de estudo, mais adequado ao momento em que me encontrava. O acaso deu-se na defesa de mestrado de meu coorientador do projeto de conclusão, prof. José Francisco Nogueira, que dissertou sobre os grafismos das cestarias dos Guarani M´bya do Estado do Rio de Janeiro (Nogueira, 2005). Para a ocasião eu havia desenvolvido, a partir de suas análises sobre os grafismos, animações análogas àquelas desenvolvidas por mim em meu projeto de conclusão. Ao fim da defesa, fui convidado pelo Dr. Armando Martins de 1 No estudo, intitulado “Grafismo indígena: compreendendo a representação abstrata na pintura corporal Asurini”, concluí, através das análises das formas dos padrões, que estes grafismos nada mais são do que a síntese geométrica de elementos da natureza, processo que interessa aos designers como uma técnica para auxiliá-los na criação.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

10

Barros, que participou da banca avaliadora da defesa de mestrado, a conhecer alguns dos Guarani das aldeias da região de Paraty e Angra dos Reis. Em contrapartida, eu deveria auxiliar na produção dos cadernos paradidáticos para o Projeto de Escolarização dos agentes de saúde indígenas, do qual ele era coordenador. Assim, a partir da primeira visita ao Projeto, em julho de 2005, resolvi direcionar minha pesquisa de mestrado para tratar da participação do designer no processo de formação de escritores e leitores de cultura indígena (no sentido do desenvolvimento da tecnologia do ler e escrever em língua portuguesa com vistas ao letramento, ou a aquisição do estado ou da condição de quem se apropriou da leitura e da escrita, incorporando práticas sociais que a demandam , no caso específico, práticas sociais vinculadas a área da Saúde) e, conseqüentemente, da inserção do Design, enquanto campo de vocação interdisciplinar, em projetos em que há a predominância do hibridismo, da mescla de vozes, da mescla de identidades. Portanto, a presente pesquisa baseia-se em minhas observações dos encontros presenciais do Projeto de Escolarização dos agentes de saúde promovido pela FUNASA no distrito de Patrimônio, em Paraty, e em Praia Brava, em Angra dos Reis. As observações foram feitas ao longo de quatro encontros com dois dias de duração, ministrados nos meses de junho e de setembro do ano de 2005 e nos meses de maio e junho de 2006. Neste período, pude dialogar com os diversos participantes envolvidos, agentes de saúde indígenas, professores Guarani, professores não índios, monitoras do curso, enfermeiras e membros da equipe organizadora. A princípio, por saber que os alunos pertenciam à etnia Guarani, minha expectativa era encontrar um grupo totalmente diferente de minha realidade, formando um ambiente completamente exótico para observar. No entanto, ao longo de minhas visitas, e após o contato com alguns textos de antropólogos, notei que minha observação ignorava aspectos importantes para a análise porque desconsiderava questionar os pressupostos de um contexto extremamente familiar para mim: a sala de aula. Minha familiaridade com a sala de aula vem das experiências que tive dentro de diversas instituições de ensino, do jardim de infância à pós-graduação, passando por outros tipos de curso como Artes, Música e Esportes. Esta familiaridade contempla também os diversos papéis ocupados, por conta das experiências acumuladas como aluno, monitor, professor e, mais recentemente, como conteudista para um curso de educação a distancia. Entretanto, observar o familiar não é uma tarefa fácil, pois, na medida em que estamos familiarizados com determinado contexto, torna-se difícil alcançar o estranhamento necessário para desenvolver uma análise mais

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

11

profunda. Por isso, o contato com a Antropologia e em especial com a prática etnográfica pode se apresentar útil ao pesquisador que deseja escapar de uma observação superficial.2 Oliveira (1998) afirma que para desenvolver uma etnografia é preciso um olhar educado que permita ao pesquisador observar as situações que se apresentam. O estranhamento deve estar presente no difícil exercício de olhar como também no exercício de ouvir e escrever. 3 Uma alternativa para solucionar o impasse em relação ao familiar está no esforço de transformá-lo em exótico, para haver o chamado “estranhamento” do objeto de estudo. Da Matta (1978) afirma que tanto para o antropólogo que estuda o exótico, quanto para aquele que pesquisa em contextos que lhe são familiares, fazem-se necessários os movimentos de transformar o exótico em familiar e de transformar o familiar em exótico. No entanto, é preciso cuidado para não fazer esse familiar parecer simplesmente estranho e desconexo, e tampouco para não aproximar o exótico, tornando-o familiar a ponto de “naturalizá-lo” e deixar, conseqüentemente, de captar as “regras do jogo”. Por um lado, para relativizar o ponto de vista, é preciso buscar compreender a lógica presente nas relações observadas através da perspectiva do nativo em contraste com a perspectiva do pesquisador. Por outro lado, não podemos perder de vista que esta compreensão, por mais acertada que seja, será sempre uma interpretação, pois como define Geertz (1989), a etnografia constitui-se como um trabalho de natureza interpretativa. No início, minhas primeiras observações sobre o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas remetiam diretamente às minhas compreensões e expectativas sobre “o que é” e “o que deve ser” uma sala de aula. Boa parte das imagens que constituem a noção de escola estava evidente para mim, como as relações de professores e alunos, a disposição do espaço físico, os processos de aprendizado, os materiais utilizados e outros fatores. Acredito, assim, que não apenas eu, mas qualquer observador com considerável experiência escolar, poderia reconhecer naquele ambiente as características da sala de aula que lhe eram familiares, apesar das peculiaridades. Ilustro a ponderação, retomando o primeiro momento da observação, quando apenas o exótico saltava aos olhos, quando tudo aquilo que era diferente era observado, quando eu ainda não considerava refletir sobre aquela estrutura. Isso me levava a observar numa perspectiva naturalizada 2 A problemática colocada do familiar pode ser conferida na obra de Velho (1978) 3 Olhar, ouvir e escrever constituem diferentes etapas do trabalho etnográfico, segundo Oliveira (1998)

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

12

concluindo antecipadamente que se “fulano é mau aluno, não presta atenção na aula” sem questionar o que se espera de um “bom aluno” naquele contexto específico. Pelo mesmo viés, observava que “a turma não gosta de resolver os exercícios no caderno” sem buscar compreender os gostos ou motivos para tal. Também constatava antecipadamente que “beltrano não participa da aula, fica muito calado e não responde ao professor”, sem buscar uma compreensão sobre este tipo de manifestação frente a cultura em questão. Do primeiro momento ao atual, em que apresento as considerações da presente pesquisa, dois anos se passaram e do contato com conceitos da Antropologia e com questões referentes não ao design do livro, mas ao Design da Leitura (Farbiarz e Farbiarz, 2005), optei por tomar a presente dissertação de mestrado como um exercício etnográfico. Sob este prisma, estabeleci para mim um desafio em relação a “sala de aula” do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde; exigi de mim mesmo uma mudança de olhar sobre este ambiente. Busquei um olhar questionador e desnaturalizado, na procura dos significados presentes nas relações. Neste sentido, eu deveria não apenas perceber as diferenças e peculiaridades que caracterizam este curso de outros, mas buscar compreender as diferenças também naquilo que parece ser semelhante, que parece familiar, em suma, eu deveria estranhar este familiar. Da mesma forma como me propus observar a sala de aula Guarani, considerei igualmente importante buscar o estranhamento em relação ao Design, enquanto prática e enquanto disciplina. Ao partir de um campo teórico ao qual estou familiarizado, julguei pertinente estabelecer um afastamento crítico das referências teóricas que fundamentam este campo, na tentativa de definir de maneira mais precisa que prática é esta que chamamos de Design, e como ela pode ser utilizada para a aquisição da leitura e da escrita. Como conseqüência deste afastamento, estudamos o Design do Livro pelo viés dos conceitos que definem a prática do Design, considerando algumas teorias que tratam da recepção e das diferentes mediações. Diante desta proposta, não me pareceu pertinente levantar e analisar a forma dos materiais didáticos empregados, na medida em que já existam trabalhos que propõem uma abordagem similar. Desta forma, acreditei que elaborar um estudo com um teor similar pouco acrescentaria ao campo, e optei, portanto, pelo desenvolvimento de meu estudo nas fronteiras do Design com outras disciplinas, como a Comunicação, a Teoria Literária, a Sociologia, a Antropologia e a Educação, com o intuito de discutir as referências que constituem o discurso de alguns designers e formam os parâmetros para tais análises sobre a forma.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

13

A escolha e delimitação do objeto de estudo, assim como conclusões que apresento aqui foram fortemente influenciadas pelo meu envolvimento com o Núcleo de Estudos do Design do Livro (NEL). As atividades realizadas no núcleo de pesquisa tanto pautaram as escolhas das referências utilizadas, quanto permitiram o entendimento sobre o Design da Leitura, através de uma perspectiva que considera a recepção e as mediações. Consideramos para este estudo muitas das noções empregadas por Chartier, assim como as discussões realizadas nos grupos de trabalho do colóquio “Chartier: apropriações de um pensamento no Brasil” em 2005, pela PUC-Rio e UFRJ. A partir destas discussões, consideramos que muitas das dificuldades ligadas ao aprendizado remetem à dificuldade de apropriação dos conteúdos, entendendo esta apropriação como a capacidade de instrumentalizar o conhecimento no cotidiano do indivíduo. Portanto, constatamos que o distanciamento entre os conteúdos e o contexto dos aprendizes pode se tornar um empecilho no processo de apropriação. Por este viés, abordamos neste estudo os problemas relativos à inserção do objeto livro dentro da cultura Guarani, que tradicionalmente privilegia a linguagem oral. As dificuldades de recepção do livro como objeto de outra cultura, normalmente concebido e confeccionado por estrangeiros, implicam a aquisição de uma nova prática social: a leitura. Diante disso, problematizamos a ação do designer: como pensar o design do livro, considerando a recepção por um grupo de leitores , com suas características culturais, sociais e subjetivas? A questão propõe que o designer, como mediador da leitura, pertence a uma cultura diferente de seu público. Neste sentido esta pesquisa pretende investigar como o designer pode participar do processo de aquisição e prática de leitura e escrita, sem desconsiderar as questões vinculadas à identidade cultural. Para tanto, partimos da hipótese de que o conhecimento mais aprofundado sobre o leitor e a leitura (aspectos culturais, sociais e subjetivos) permite ao designer uma melhor avaliação da situação de projeto e, consequentemente, facilita a recepção do livro pela comunidade através da forma como este objeto dialoga com a cultura do leitor. A dissertação está dividida em três partes. Na primeira parte, situada no capítulo 2, apresentamos as referências teóricas que nortearam esta pesquisa. Nesta seção abordamos os conceitos relativos à cultura escrita, autoria, recepção e suportes de leitura, através dos estudos de Havelock, Gandelman, Fish e Chartier, entre outros. Na segunda parte, formada pelos capítulos 3 e 4, apresentamos uma descrição do Projeto de Escolarização dos

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

14

agentes de saúde. Nesta parte do trabalho nos guiamos por Barros, Geertz, Morel, Oliveira e Velho. O capítulo 3 discorre sobre os Guarani, a demanda por agentes de saúde indígenas, a proposta e estrutura do projeto e as personagens envolvidas no curso. O capítulo 4 apresenta as observações sobre os encontros presenciais, através do exercício etnográfico sobre a sala de aula. A terceira parte busca situar a discussão dentro do campo do Design. Nela discutimos a prática do Design através dos discursos que a definem. Neste sentido, o capítulo 5 busca compreender a formação da identidade do designer e e seu papel como agente cultural. Para tanto, observamos o discurso de Ruskin e suas conseqüências no Brasil, consideramos também o impacto da ação do designer no campo da tradição cultural. Nesta reflexão recorremos a Cabral, Niemeyer e Teixeira assim como aos estudos de Bourdieu, Elias, Geertz. e Wolff. Em seguida, discutimos nossa abordagem na experiência da produção de um material para a prevenção de AIDS/DST pela Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, voltado para o uso dos agentes de saúde indígenas nas aldeias Guarani. No capítulo 6 tratamos das considerações para o Design do Livro, buscando compreender as noções sobre o leitor empregadas no campo do Design. Por este viés, observamos o discurso considerado ainda predominante no campo do Design sobre a forma de organização da informação baseado na teoria da Gestalt, em contraste com outras teorias que consideram a linguagem como formadora da percepção e a cultura como mediadora do olhar. Para isso utilizamos as noções empregadas por Fish e Chartier, entre outros. Também neste capítulo, apresentamos o Design da Leitura, como proposta que considera o papel do designer como mediador da leitura em diferentes suportes, e conseqüentemente, como um profissional que deve estar atento às características das possibilidades de recepção do objeto no contexto onde esta leitura se realiza.

15

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

2 Sobre livros, leitores e leituras

A partir da cultura escrita e da importância que conferimos aos livros nos dias de hoje, pelo senso comum podemos acreditar que esta configuração seja fruto de uma evolução, ou seja, de uma situação que se encontrava em determinado estágio e que com o passar do tempo este estágio naturalmente se modificou. No entanto, uma perspectiva como esta oculta e ignora as arbitrariedades destes processos e os mecanismos que operaram para a consolidação de determinadas noções que hoje temos como naturais. Saber que o autor tornou-se reconhecido por uma simples mudança de pensamento Ocidental não nos explica os fatores que determinaram esta mudança. É comum compreender que a escrita seja uma forma de registro mais eficiente e que por este motivo tenha sido adotada, ou ter a idéia de que a percepção das coisas se dê de maneira semelhante em todos os indivíduos, como um fenômeno universal e independente de uma interpretação. Estas são noções que devem ser avaliadas antes que sejam apropriadas e tomadas como certas sem o devido questionamento e as devidas ressalvas. Para pensarmos sobre a inserção do livro nas comunidades indígenas é preciso também pensar nas determinações que consolidaram esta importância do livro em nossa sociedade e as compreensões sobre autor e leitor, autoria e leitura e percepção e interpretação. 2.1. Da linguagem oral à cultura escrita Para compreendermos o porquê de uma cultura livresca ou, mesmo antes do livro, para entendermos o motivo de uma cultura possuir a escrita como um dos principais meios de transmissão de informação e aquisição de conhecimento, é lícito propor uma reflexão sobre as características da língua escrita e a forma como ela se justapõe a uma tradição oral. Afinal, quais as vantagens do domínio da escrita e em quais aspectos a língua escrita difere da língua falada? Frente a esta questão, responderíamos imediatamente que a escrita nos serve, entre outras coisas, para registrar, para guardar uma informação. A língua escrita é para nós como uma espécie de prótese de nossa memória, basta

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

16

lembrarmos do código para recuperarmos a informação registrada. Obviamente, esta é uma redução simplista da operação de leitura, pois sabemos que existem diversos outros fatores relevantes que operam neste processo de decodificação da informação. Estes processos serão discutidos num outro momento, quando falarmos sobre a função interpretativa do leitor. Mas, por enquanto, esta redução nos servirá como ponto de partida para desenvolvermos nosso raciocínio e, assim, compreenderemos que não precisamos memorizar toda a informação contida no texto, uma vez que dominamos o código e o acesso ao texto. O registro é uma das principais vantagens da escrita, e é um dos aspectos pelo qual consideramos a escrita algo tão prático em nossa cultura. A partir desta característica tão relevante podemos pensar sobre o que faríamos se tivéssemos que confiar única e exclusivamente em nossa própria memória para lembrar-nos das coisas. Uma vez que na sociedade em que vivemos já estamos habituados ao uso da escrita, e que a esta é atribuída uma função de extensão da memória, o resultado da supressão da linguagem grafada representaria uma considerável perda de nossos conhecimentos, principalmente por ocasião da supressão significativa de nossa capacidade de registrar e difundir o saber. Não devemos nos esquecer que mesmo com o advento da escrita a oralidade nunca foi suprimida. Mas atribuímos à escrita um papel decisivo como forma de registro e difusão do nosso conhecimento, apesar do fato de nos comunicarmos pela fala. Tamanha é esta importância atribuída à escrita que ainda hoje consideramos grande parte da História principalmente pelo que pôde ser resgatado das antigas culturas possuidoras da língua escrita. Já em relação às culturas ágrafas, principalmente as extintas, o conhecimento parece ser muito mais incerto. Ao seguir este raciocínio podemos incorrer no erro de considerar que uma sociedade possuidora da escrita seja potencialmente mais desenvolvida do que uma sociedade que possua apenas a tradição oral, especialmente sob o ponto de vista da facilidade de registro. Sem considerar o erro epistemológico que este tipo de generalização possui, pela simples comparação que ignora as dinâmicas sociais nas quais estas práticas se inserem, poderíamos encontrar alguma lógica na afirmação da superioridade de uma cultura escrita, justificada pela compreensão das possibilidades tecnológicas da escrita em relação à oralidade. No entanto, ao partirmos do pressuposto que a escrita favorece o registro da informação como uma extensão da memória, devemos também tentar compreender como as culturas orais são capazes de registrar e reproduzir o saber. Para este entendimento destacamos que o tema da oralidade

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

17

vem conquistando a atenção de acadêmicos já há algum tempo: Havelock identifica a importância atribuída aos estudos científicos sobre a oralidade a partir da década de 60. Como precursores deste movimento, o autor destaca os trabalhos de Lévi-Strauss (1962) em La pensée sauvage (“O pensamento selvagem”), McLuhan (1962) em The Gutenberg Galaxy (“A Galáxia de Gutenberg”), Goody e Watt (1963) em The consequences of Literacy (“As conseqüências da cultura escrita”), e o do próprio Havelock (1963) em Preface to Plato (“Prefácio para Platão”), como obras que buscaram a compreensão da cultura oral.1 Havelock (1995) considera a cultura grega como ponto de partida para a compreensão do que ele chama de equação cultura escrita – oralidade. Para o autor, somente na Grécia Antiga torna-se possível observar mudanças significativas na cultura a partir da aquisição da escrita. Segundo ele, apesar de possuírem a língua grafada, as sociedades egípcia, suméria, fenícia, hebraica, chinesa e indiana, não chegaram a constituir uma cultura definida pela escrita. Essa conclusão parte da constatação de que apenas algumas elites clericais e comerciais dominavam a escrita, e por que as atividades ligadas à justiça, ao governo e à vida cotidiana eram comandadas pela comunicação oral. Assim, Havelock considera que a Grécia Antiga apresenta uma mudança substancial a partir do desenvolvimento do alfabeto grego. Havelock parte das observações de Parry em sua dissertação L´Epithète traditionelle dans Homère, publicada originalmente em 1928, em que o autor buscou identificar as regras que governavam a composição homérica, principalmente nos epítetos padronizados ligados aos nomes próprios e concluiu que essas e outras formas eram artifícios para se improvisar a narrativa. Também neste estudo, Havelock demonstra que Parry encontrou “frases-fórmula mais pertinentes à narrativa” cuja função foi percebida como mecanismo de “ajuda à improvisação, preenchendo lapsos métricos para permitir ao cantor a manutenção do fluxo narrativo”. Havelock (1995: p.29) também afirma que a obra de Parry introduz o conceito de “armazenamento do material na memória oral”, embora o autor reconheça que este material era de significância limitada.

1 LÉVI-STRAUSS, C. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962. MCLUHAN, M. The Gutenberg Galaxy. Toronto: University of Toronto, 1962 GOODY, J. e WATT, I. The consequences of Literacy (1963). In GOODY, J (ed.) Literacy in Traditional Societies. Cambridge University Press, 1968. (também disponível online no endereço: http://nyitottegyetem.phil-inst.hu/kmfil/kmkt/g-w_1.htm. Acesso em 21 de Dezembro de 2006). HAVELOCK, E. Preface to Plato, Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1963

18

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Diferente de Parry, que concentrou seus estudos na literatura grega de Homero, Havelock concentra seus estudos sobre o que nos chegou dos filósofos pré-socráticos. O autor buscou identificar por que alguns destes “pensadores, embora engajados na especulação séria, preferiam compor em verso, e em verso homérico” e por que, por outro lado, Heráclito “preferiu expressar seu pensamento em aforismos autocontidos, ditos orais segundo o modelo que ainda pode ser encontrado no Novo Testamento, e não na linguagem da exposição em prosa”. A partir da observação do trabalho de Parry, Havelock (1995) conclui que na Grécia, até o século V, as regras orais de composição ainda eram exigidas ao se elaborar até mesmo o “pensamento filosófico sério e também parte do pensamento científico”. Em relação a estas regras, o autor observa que “a prosa platônica marcou um afastamento decisivo”, constituindo o primeiro exemplo de prosa de caráter ampliado conhecida. Observando também que o texto de Platão continha uma rejeição explícita tanto de Homero quanto do drama grego como integrantes do currículo da educação superior que sua academia deveria oferecer, concluí que uma grande divisão da cultura grega havia tido início, talvez por época do nascimento de Platão e um pouco mais tarde, estabelecendo a separação entre uma sociedade oralista, que dependia da literatura metrificada e recitada para registrar seu conhecimento, e uma sociedade de cultura escrita, que no futuro iria confiar na prosa como veículo de reflexão séria, pesquisa e registro. (HAVELOCK, 1995:29)

De acordo com este raciocínio, a obra de Homero se expressa por meio da narração de situações típicas do cotidiano da sociedade. Para o autor, grande parte da retórica é constituída pela sabedoria proverbial e por sentimentos habituais da comunidade, neste sentido ele propõe ampliar a opinião de Parry, afirmando que “a fórmula está armazenada na memória como instrumento de ajuda à improvisação”. Por este viés, os dois poemas de Homero são compreendidos como “repositórios da informação cultural” que chegaram até nós por conta da escrita, mas cujo conteúdo é próprio de uma sociedade de cultura pré-escrita. Através dos estudos de Parry (1928) e Havelock (1995) somos levados a crer que mesmo antes da escrita já havia mecanismos para a memorização e o armazenamento de informações da cultura grega em sua fase pré-escrita. Estes mecanismos apóiam-se nos conhecimentos presentes na sociedade, como os ditos populares e práticas sociais conhecidas ou podem apresentar estruturas que facilitem a memorização e a reprodução, como ritmo, métrica, melodia, a narrativa, etc. Esta noção nos permite repensar o papel da linguagem escrita e a função de registro apresentada anteriormente, afinal, se existiam formas de registrar e

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

19

reproduzir o conhecimento na cultura oral, como pôde uma cultura escrita vir a se estabelecer? No mesmo estudo, Havelock (1995) estabelece uma relação entre esta função de memória e a forma do épico, pontuando também suas limitações. O autor observa que, enquanto um dos objetivos do épico era o armazenamento de informações, outro mais evidente era o entretenimento. O épico, por ser uma forma narrativa, “deve contar uma história em que os personagens sejam pessoas fazendo coisas ou sofrendo o efeito delas, com uma notável ausência de pensamento abstrato”. Para Havelock a reflexão no épico é sempre enquanto ser humano, e nunca como filósofo, intelectual ou teórico. Por isso o autor acredita que a mudança da linguagem escrita para a forma de prosa privilegiou o desenvolvimento do pensamento abstrato, e que sem a cultura escrita grega “não teríamos a ciência, a filosofia, a lei escrita ou a literatura e, tampouco o automóvel ou o avião”. Esta mudança para uma cultura escrita não se dá pela capacidade de registrar a língua oral na forma como havia sido organizada para a memorização pelo drama, pela epopéia e pela lírica, e sim pelo surgimento de uma outra forma de registro que não mais dependesse de ritmos empregados para a memorização. Com esta mudança, os mecanismos de memorização do discurso oral foram substituídos por uma “sintaxe reflexiva de definição, descrição e análise”. Então, a forma de expressão da prosa de Platão e de todos os seus sucessores, pela expressão filosófica, científica, histórica, descritiva, legal ou moral, passou aos poucos a influenciar a cultura européia. Uma outra aproximação entre cultura escrita e oralidade é feita por Martín-Barbero (2001), em sua análise sobre as “literaturas populares” – manifestações de escrita consumidas pelas classes populares como a literatura de cordel e de colportage na Espanha e França do século XVII, respectivamente. Segundo o autor, estas literaturas inauguraram uma outra função para a linguagem: a literatura daqueles que “sem saber escrever sabem, contudo, ler”. Martín-Barbero identifica nesta linguagem a escritura como linguagem oral, não pelo fato de boa parte se encontrar na forma de verso, ou por transcrever canções e romances, etc.. mas por estar “sociologicamente destinada a ser lida em voz alta, coletivamente”. Martín-Barbero descreve aqui um caso em que a leitura se dá no âmbito do coletivo, através socialização da leitura com aqueles que não sabem ler. Ele destaca a importante diferença que há entre saber “ler” e saber escrever, afirmando que em comunidades orais “ler é escutar”. O autor conclui: Leitura, enfim, na qual o ritmo não marca o texto, mas o grupo e na qual o lido funciona não como ponto de chegada

20

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

e fechamento do sentido, mas, ao contrário, como ponto de partida, de reconhecimento e colocação em marcha da memória coletiva que refaz o texto em função do contexto, reescrevendo-o ao utilizá-lo para falar do que o grupo vive. (MARTÍN-BARBERO, 2001:160)

Podemos observar certa discordância entre Havelock (1995) e Martín-Barbero (2001) ao tratar de uma escrita com características orais, apesar da forma do texto ser uma característica comum. Para Havelock, o texto apresenta estruturas definidas pela oralidade que servem de recursos para uma memória cultural expressa pela oralidade e transposta para a escrita, ou seja, ele relaciona a estrutura do texto à estrutura oral e aborda as funções destas estruturas. Já para Martín-Barbero, o determinante de uma literatura oral não é apenas a forma, mas as práticas de leitura, que no caso em questão são definidas pela prática da leitura em voz alta, como uma espécie de retorno da escrita para a oralidade. Em relação a esse tipo de manifestação o historiador Chartier (1999) identifica a necessidade de investigações sobre as maneiras de ler para uma compreensão mais completa sobre as nuances da cultura escrita. O autor destaca que o conhecimento das práticas permite uma melhor compreensão do leitor e das formas em que o texto faz sentido para os que o lêem. Chartier (1999: p.17) nos alerta sobre a tendência equivocada de se observar as formas de leitura como algo universalmente partilhado, uma forma única, destacando que “nos séculos XVI e XVII, a leitura implícita do texto, literário ou não, constituía-se numa oralização, e seu ‘leitor’ aparecia como ouvinte da palavra lida”. Através destes olhares sobre o tema da oralidade e cultura escrita destacamos três aspectos relevantes para a compreensão desta relação: O primeiro aspecto dá conta de que a cultura oral não é, de forma alguma, desprovida de mecanismos de registro e memória. Estes mecanismos são incorporados, ao que tudo indica, pelas práticas cotidianas dos indivíduos, e tendem a se ocultar dentro da própria estrutura da linguagem, especialmente a lógica pela qual estes mecanismos operam. O segundo aspecto considera que a manifestação da escrita em determinada cultura não implica, necessariamente, uma “cultura escrita”. Isso significa que o fato de possuir a escrita não confere a uma sociedade o desenvolvimento de uma nova forma de pensamento. O que é muito comum é uma escrita de características orais, que reproduzem o pensamento oral, seja pela imitação da forma e estrutura do texto, ou pela prática de leitura em que se insere. O terceiro aspecto entende que a “cultura escrita” de que falamos não se estabelece por ser mais eficiente, prática ou requintada, mas por conta de uma convenção e, desta forma, arbitrária regida por uma corrente filosófica que

21

privilegiou o desenvolvimento desta forma em relação a outras. A cultura européia ocidental não apenas herda o pensamento de Platão, mas também a forma utilizada para desenvolver este tipo de pensamento. Observamos também como a mudança no pensamento dentro da sociedade grega repercutiu na constituição de novas práticas de leitura e escrita nesta sociedade e em como, através das práticas de leitura, foi possível compreender o consumo da literatura popular na Espanha e França no século XVII por leitores que não sabem escrever. Em ambas as relações, destacamos o papel das práticas de leitura como uma forma para a compreensão das suas variações em culturas específicas.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

2.2. O autor, o leitor e o texto

Uma abordagem sobre o livro não deve deixar de observar os papéis de dois agentes fundamentais entre os quais o livro é um mediador: o autor e o leitor. Sabemos que a importância do autor é mais do que clara no processo de atribuição de sentido ao livro, por outro lado, o leitor é muitas vezes entendido como um simples receptor da informação transmitida pelo texto. No entanto, este papel vem sendo revisto através de diversas teorias, como a noção de Fish (1996), de que o texto só se realiza a partir do olhar interpretativo do leitor, e sem o qual ele inexiste. Estas relações entre autores, leitores, livros, escritas e leituras constituem um ponto de interseção e interesse para as mais diversas disciplinas, como Lingüística, Psicologia, Sociologia, Comunicação e também para o Design. O tema do livro é foco de diversas publicações e constitui, enquanto produto industrial, um objeto passível de produção e reflexão do campo do Design, mas que, se comparado às outras disciplinas, ainda se encontra numa posição pouco privilegiada em termos de teoria. Neste sentido, buscaremos um entendimento sobre a formação da noção moderna de autoria, sua produção intelectual, e o processo de emancipação e a noção de gênio criativo. A seguir, buscaremos a compreensão da relação entre o leitor e o texto através da teoria literária e a compreensão sobre a ação interpretativa do leitor. 2.2.1.A noção de autor Até o fim da Idade Média a produção e a circulação de livros no ocidente foram controladas pela Igreja Católica, que segundo Heller (1984) possuía como uma das principais fontes de seu poder a autoridade sobre o saber. A reprodução

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

22

dos livros era feita manualmente por copistas, na sua grande maioria monges, e os textos que poderiam ser reproduzidos eram criteriosamente selecionados pela Igreja em virtude do tipo de conteúdo, restringindo assim o acesso aos livros. Gandelman (2002) discute em sua dissertação de mestrado as relações entre estado e sociedade, em torno da produção de conhecimento. A autora compreende que a partir da Idade Moderna a humanidade passa a se desvencilhar da verdade absoluta estabelecida pela Igreja. Para Gandelman, nesta época o trabalho intelectual deixa de ser uma dádiva divina e passa a ser um meio de expressão de idéias próprias, de comunicação com a humanidade e de manifestação de liberdade. A autora toma o Renascimento como “marco inicial para o desenvolvimento de novos conceitos, princípios e fundamentos que serviram de base para a formulação dos vários sistemas jurídicos de proteção à propriedade intelectual”. Percebemos, a partir daí, que na Era Moderna passam a existir as condições necessárias para a discussão da autoria como é compreendida hoje, ou seja, como uma produção criativa, intelectual e independente de uma produção material específica. Embora o reconhecimento individual não tenha surgido no Renascimento, observamos que, a partir deste período, a percepção sobre o mundo se modifica através do aparecimento de noções como as de indivíduo, humanidade, etc. Essas noções talvez constituam um dos principais aspectos para a compreensão da noção de autoria, enquanto refletida pelos mecanismos legais. Entendemos os mecanismos legais como criados para a proteção do autor através da noção de propriedade intelectual. Um dos fatores apontados como fundamentais para o surgimento desta noção de autoria é a tecnologia. A invenção da imprensa é considerada por diversos teóricos como um fator determinante para as mudanças culturais do Renascimento, não apenas pelo aspecto da propagação do conhecimento, mas também pelo próprio impacto desta tecnologia no cotidiano das pessoas, através das novas potencialidades, estabelecendo também novas práticas que conduziram à revisão de conceitos e expectativas. Até então, os livros eram reproduzidos através da atividade do copista, que por seu trabalho gerava um objeto único. A partir da imprensa, tornou-se possível a edição de diversos exemplares semelhantes, mas essa possibilidade apenas nada significaria se não houvesse material a ser publicado e público que o consumisse. Por um lado, na medida em que a imprensa se desenvolve, surge a necessidade de distribuição e comercialização de livros. Por outro lado, a partir do estabelecimento de um mercado de livros, há o aumento da demanda e a necessidade de novas

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

23

publicações. Entretanto, para que tais atividades fossem desenvolvidas, grandes investimentos em equipamentos e mão de obra eram necessários. Neste momento, para incentivar a atividade e, de certa forma, garantir o retorno de seus investimentos através da preservação de seus interesses, os investidores passam a exigir das autoridades a proteção da atividade. Em Veneza, no século XV, a proteção da atividade aparece por meio dos privilégios concedidos aos donos de gráfica. Estes privilégios constituíam direitos exclusivos, conferidos pelas autoridades a indivíduos por um tempo determinado e podem ser compreendidos como uma das primeiras manifestações do que veio hoje a ser compreendido como propriedade intelectual. Conforme Gandelman (2002: p.31), “em alguns casos, privilégios eram concedidos também a autores, demonstrando que, na verdade, a questão girava em torno do “fazer livros”, sem uma separação clara entre a criação do autor e a materialização de sua criação em livros impressos”. De maneira análoga ao sistema veneziano, a coroa inglesa determina que, como requisito para o direito de imprimir com exclusividade os manuscritos, estes deveriam ser previamente licenciados mediante registro na Stationer´s Company. Em 1529, foram editados os primeiros atos da coroa, e em 1622 o Licensing Act garante à corporação de editores o monopólio da atividade de impressão, como forma de garantir não apenas o controle da atividade comercial, mas também o controle sobre os conteúdos que seriam publicados. Com o Licensing Act, o editor que possuísse os manuscritos originais detinha os direitos de cópia dos livros, o copyright, estabelecendo uma relação dos profissionais das corporações com os autores de compra e venda de manuscrito. Na relação, onde o autor abria mão dos direitos de publicação e não possuía qualquer recompensa caso sua obra se popularizasse e gerasse lucro para o livreiro. Além disso, o livreiro, uma vez proprietário dos manuscritos do autor, adquiria não apenas os direitos sobre as cópias, mas também sobre o conteúdo. Este primeiro momento da constituição do mercado de livros nos mostra não haver ainda distinção entre a criação intelectual e a produção material dos livros; em outras palavras: a mensagem não se distinguia do seu suporte. Esta indistinção entre texto e seu suporte reflete um entendimento da autoria ainda ligada à própria materialidade dos textos, ainda influenciada pela época dos livros manuscritos. A diferença é que, inserido nesta grande cadeia de produção, o autor é apenas a fonte da matéria-prima para a produção de livros. A partir do século XVI, surgem as primeiras discussões sobre os tipos de direito que o autor teria sobre sua obra,

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

24

sobre a possibilidade de propriedade sobre a criação intelectual e como tratar a propriedade na medida em que objeto do direito não é material. Durante a existência do Licensing Act, Rose (1993) explica que diversas manifestações tomaram espaço, entre as quais, o filosófo John Locke, defendeu o direito de propriedade do autor sobre a forma e o conteúdo de sua criação. 2 3 Em 1695, o Licensing Act foi revogado, principalmente para garantir o livre comércio, mas, por conseqüência, conferindo liberdade de expressão ao autor. Para Gandelman (2002), esta decisão do parlamento representa um amadurecimento da noção de autor, possibilitando a este o direito de propriedade sobre a forma e o conteúdo de sua criação. Apesar da conquista de propriedade sobre a forma e conteúdo da obra, o autor só se profissionaliza, ou seja, passa a receber o retorno financeiro de suas atividades criativas a partir do fim do século dezessete, quando se alcançam determinados níveis de produção e consumo de materiais impressos. Só então o autor passa a contar com a proteção do que conhecemos hoje como Direitos Autorais. Mesmo com o domínio sobre a obra, a autonomia do autor era relativa, pois este permanecia dependente do mecenato e, por extensão, determinado pelo gosto aristocrático-cortesão. Elias (1995) fala sobre as dificuldades de Mozart, no século XVIII, em se tornar um músico independente das imposições do gosto aristocrático. Elias afirma que, diferente da música, este processo de autonomização já estava em andamento em outras áreas: Nos campos da literatura e da filosofia era possível, na Alemanha da segunda metade do século XVII, liberar-se do padrão de gosto aristocrático-cortesão. As pessoas que trabalhavam em tais setores podiam chegar ao seu público através de livros; e, como já havia um público leitor bastante grande e crescente em meio à burguesia alemã desse período, ali puderam surgir, relativamente cedo, formas culturais específicas de cada classe. Tais formas satisfaziam os padrões de gosto dos grupos burgueses, não-cortesãos, e expressavam sua crescente confiança face ao establishment aristocrático dominante. (ELIAS, Norbert. 1995:17 - destaque do autor)

2 Vamos compreender forma (em itálico) como a maneira que o texto se estrutura a partir da composição, do ordenamento e dos efeitos estéticos pretendidos pelo autor, em oposição a forma (sem itálico), como a configuração material que o texto se apresenta, tal como diagramação, tipo de suporte, etc.. 3 ROSE, Mark Authors and Owners – The Invention of Copyright . Cambridge: Harvard University Press, 1993.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

25

Em sua obra, Elias observa que esta autonomia do artista reflete a independência econômica conquistada a partir da ascensão da burguesia, e da constituição de um novo público consumidor. Com o crescimento do consumo burguês, as relações entre artista e público começam a se modificar, na medida em que o autor não depende mais do patronato cortesão, e sim da remuneração relativa ao consumo de sua obra. O autor deixa de servir ao gosto de um público específico, que lhe recompensava muitas vezes através da troca de favores, e passa a se dirigir a um público anônimo, que está disposto a remunerar sua produção, pelos seus méritos. A partir desta independência do gosto cortesão, e da legitimação por meio do consumo burguês, o autor adquire um novo estatuto. Este momento propicia a formação de uma noção até há pouco inexistente: o Gênio criativo, ou seja, do autor dotado de capacidades únicas, de um dom especial ou aptidão inata para o desempenho de uma atividade criativa. Esta concepção de gênio criativo ganha espaço no período conhecido como Romantismo e acaba por conferir ao ato da criação um caráter de divindade, esotérico e que contribui para um afastamento da figura do autor de seu desenvolvimento social e de sua experiência enquanto indivíduo. Ao gênio seria atribuída a capacidade de criar. 2.2.2.O aparecimento do leitor Observamos anteriormente que as transformações no pensamento ocidental, seus reflexos na sociedade e a aquisição de novas tecnologias, permitiram o desenvolvimento da noção da autoria. Impulsionada pela reprodutibilidade dos livros a partir da imprensa e as perspectivas de mercado, esta noção se modifica até haver uma separação clara entre a produção material e a produção intelectual, evidenciada pela aquisição dos direitos da propriedade intelectual e dos direitos autorais. A proteção legal reconhece o direito que o autor possui sobre o conteúdo e sobre a forma de sua produção, garantindo-lhe a integridade de sua obra. Na medida em que o consumo e a produção aumentam, cresceu também a importância do autor, permitindo-lhe que se livrasse das determinações do gosto aristocrático e burguês e passasse a produzir para um público anônimo; o que possibilita o desprendimento do autor e a concepção de Gênio criativo. Por meio da consolidação desta noção de autor, vemos surgir a compreensão do domínio sobre os significados. Neste momento, passa a ser atribuída ao autor a competência pela construção do sentido do texto, ao passo que ao leitor cabe apenas a tentativa de apreensão deste sentido.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

26

O monopólio sobre o sentido do texto permanece com o autor até ser contestado por alguns teóricos literários do século XX, especialmente pela Teoria da Recepção na década de 1960. A partir de então, a “transferência” do conteúdo para o leitor deixa de ser atribuída apenas ao texto e o leitor é entendido como agente desse processo de significação. Iser (1984: p107) considera que qualquer transferência bem sucedida, embora iniciada pelo texto, depende do “grau em que este texto pode ativar as faculdades individuais de percepção e processamento do leitor”. Neste sentido, observamos que, para Iser, texto e leitor possuem a mesma importância. Ao contrário de outras teorias contemporâneas que sugeriam que o texto era automaticamente impresso na mente do leitor, para Iser o texto funciona como guia para o que pode ser produzido. O autor compreende que a leitura não trata apenas de uma “internalização direta”, por não se configurar como um processo de mão única, mas como um processo de interação dinâmica entre texto e leitor. O autor propõe uma compreensão de uma “leitura aberta” pelo leitor cuja ação se dá através do preenchimento das lacunas do texto. Ele distingue três manifestações no texto: o que é dado, determinado e indeterminado (given, determinate and indeterminate). Para Iser (1996: p.427) “as palavras de um texto são dadas, a interpretação destas palavras são determinadas e as lacunas (gaps) entre os elementos dados e/ou nossas interpretações são as indeterminações”.4 Diferentemente de Iser, seu contemporâneo Fish não acreditava que o texto fornecesse as indicações que guiam a percepção do leitor, mas sim que é o leitor quem constrói o texto. Fish (1996) observa que todos os elementos devem ser levados em consideração e que todos são produtos de estratégias interpretativas. Neste caso, estes componentes não deveriam ser, portanto, isolados. A interpretação aqui não é algo que acontece depois do olhar, mas significa a própria forma do olhar. A partir do entendimento de que a percepção não é livre de suposições, que dão contorno ao que é percebido, Fish conclui não poder haver nada que seja anterior à interpretação. Embora discordantes em diversos aspectos, as teorias de Iser e Fish concordam ao atribuir ao leitor um papel decisivo para a construção do sentido do texto. No entanto, Iser confere mais peso ao texto literário, considerando que este possua mais lacunas e, portanto, demande mais o preenchimento do leitor, enquanto Fish (1996: p.41) afirma que o acesso mediado é o único acesso que temos, seja numa situação face a face ou no ato de leitura de uma novela. Para 4

minha tradução

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

27

ele as propriedades de um objeto, pessoas e situações emergem de um entendimento pré-estruturado sobre as formas que um item significante qualquer possa assumir. Essa perspectiva não apenas atribui ao leitor/intérprete uma importância crucial, como também relativiza as determinações do autor, na medida em que compreende que a apreensão do conteúdo do texto não é imediata, mas interpretada, adquirindo sentido através da subjetividade do leitor. Tal perspectiva nos permite reconhecer no livro não apenas o espaço do autor, mas também o espaço do leitor. Chartier (1999) parte desta perspectiva para elaborar uma compreensão sobre a história dos livros, destacando a importância das mediações presentes nos atos da leitura e a forma como estes atos se configuram, refletindo aspectos sociais e históricos específicos. Neste sentido, Chartier (p.17) considera que “o autor não escreve livros, mas textos que serão transformados em livros”. Para Chartier, o livro não é mais apenas uma obra do autor, mas é fruto de escolhas editoriais, do trabalho dos gráficos e passa por diversas mãos até que possa chegar às mãos do leitor. O texto escrito pelo autor sofre uma série de mediações antes de ser compreendido pelo leitor, desde o processo em que adquire sua materialidade, até o quando chega às mãos e depois à mente do leitor. Desta maneira, pela própria dinâmica do processo, Chartier (1999:11) observa que a leitura não está implícita no texto e que este texto só existe na medida em que houver um leitor para lhe dar significado. Ao mesmo tempo em que compreendemos que há um leitor que “constrói” o sentido do texto, a noção sobre as mediações deste processo implica o reconhecimento que leitores diversos não lêem de uma mesma maneira. De fato, estas leituras adquirem características específicas, de acordo com o contexto em que se inserem e a partir dos contrastes que se estabelecem entre as normas e convenções de leitura, as maneiras de ler, os instrumentos e procedimentos de interpretação, etc. Neste sentido, Chartier (1999) se aproxima de Fish (1996), ao compreender que o acesso ao texto é sempre mediado e extrapola os limites impostos pelo texto. Entretanto, Chartier expande a noção de Fish, ao reconhecer uma série de fatores – como o suporte, a sociedade, as práticas de leitura, o mercado editorial, entre outros – como agentes mediadores da leitura. 2.3. Livros e outros objetos de leitura Diante da perspectiva de que o leitor não confere ao texto apenas um sentido por meio da interpretação, e sim a própria existência deste texto através do ato da leitura,

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

28

somada à compreensão de que entre o autor e o leitor há uma série de mediações que participam desta prática, que operam em diferentes esferas (referentes ao imaginário, à sociedade, à escola, à família, à materialidade do suporte, às expectativas, etc.), questionamos se não seria o livro, enquanto suporte para o texto escrito, apenas uma das diversas manifestações materiais passíveis de serem lidas que possam servir como instrumentos para apreensão do conhecimento. Na medida em que formulamos a questão desta maneira, a resposta parece óbvia, por havermos destacado a importância dos suportes e de como o sentido passa por diversas mediações. No entanto, mesmo sabendo que existam outras manifestações diversas do livro que se prestam ao ensino e ao aprendizado, somos levados a crer que o livro ainda possua um papel privilegiado em nossa sociedade, consagrado enquanto repositório de um saber legítimo. Mas como o livro adquire este estatuto? Ao dirigirmos nosso olhar para estas esferas de mediações poderemos identificar as instâncias que contribuíram para a legitimação do livro, na sua forma que conhecemos hoje, como suporte privilegiado para o conhecimento. Uma destas instâncias é o próprio pensamento filosófico, que a partir do século V na Grécia promove uma mudança significativa ao adotar a forma de prosa para o desenvolvimento do pensamento filosófico. Em oposição às formas tradicionalmente orais ainda presentes na escrita, a prosa platônica ganha espaço e adquire o estatuto de suporte que privilegia o pensamento sério, abstrato, filosófico e descritivo. Junte-se a isso, a compreensão de que a escrita em prosa, por seu caráter “descritivo” e “objetivo”, serve como forma de privilegiada registro, e recuperação de informações, funcionando como uma extensão da memória. Desta maneira, a escrita, especialmente na forma de prosa, passa a ser considerada como um suporte por excelência para o desenvolvimento do conhecimento e, por extensão, consagra a leitura como forma autêntica de apreensão deste conhecimento. Neste momento, o suporte ainda não é o livro na forma que conhecemos hoje, mas que com a invenção do códice é substituído por esse novo formato. Ainda assim, a escrita e a leitura permanecem restritas a pequenos grupos durante muito tempo. Somente com as revoluções do pensamento renascentista e com as novas possibilidades de produção e difusão do saber, impulsionadas pela popularização da imprensa, que se torna possível o desenvolvimento das competências de leitura e escrita no Ocidente. Chartier (1996) entende que as competências de leitura e escrita, ao contrário do que costumamos compreender, representam competências distintas e independentes. O autor

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

29

argumenta que os índices de alfabetização na Inglaterra do século XVII vêm sendo tradicionalmente compreendidos através do número de assinaturas nos registros de casamento, e que estes índices apenas não servem para uma compreensão da amostragem de leitores, na medida em que a competência da leitura era ensinada num momento diferente da competência da escrita, e, por conta disso, uma parcela considerável deve ter adquirido apenas a primeira. Como hipótese, Chartier (1996) arrisca afirmar que a distinção entre ler e escrever não separa apenas duas competências, mas duas habilidades léxicas, na medida em que o aprendizado da leitura habitua à leitura dos caracteres romanos, tipográficos e dos abecedários de leitura, enquanto o aprendizado da escrita supõe a decifração da letra cursiva do manuscrito. Diante deste quadro, uma outra instância que desempenha um papel fundamental para a legitimação dos livros são as próprias instituições de ensino. As escolas são responsáveis pela manutenção dos hábitos de aprendizagem e aquisição do conhecimento segundo os parâmetros hegemônicos de uma elite intelectual, num processo de reprodução e consagração destes hábitos. Bourdieu (2004) compreende que as instituições de ensino contribuem para inculcar valores e formas legítimas de apropriação do saber, sendo a escola responsável pela legitimação não apenas do livro enquanto objeto do saber, mas também da reprodução de uma competência de leitura, como modelo a ser aspirado. Um fator específico que também contribui para esta percepção do livro enquanto suporte privilegiado é a própria noção de confiabilidade, construída a partir da mediação dos editores e das condições técnicas de reprodução dos livros. Sabemos, por exemplo, que antes da imprensa os livros eram copiados manualmente e que, neste processo de cópia, o texto poderia ser alterado segundo a interpretação, desleixo ou intenção do copista. Com a chegada dos livros impressos, criou-se a noção de que aquele exemplar de livro seria idêntico aos outros da mesma tiragem, embora isso não significasse necessariamente a fidelidade ao texto do autor. Outro exemplo que podemos apontar em relação às formas de legitimação que conferem ao livro uma posição privilegiada é a criação das corporações editoriais. Estas corporações funcionariam como uma das maneiras de legitimar, através da figura do editor, quais livros mereciam ou não ser publicados, muito embora os critérios que norteiam esta escolha eram, geralmente, obscuros. Esta chancela conferida pelo editor garantiria ao livro impresso uma espécie de mérito pela simples ocasião de sua publicação. Embora haja certa interferência da tecnologia e do mercado nessa percepção sobre o livro, há por outro lado uma

30

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

tendência, reforçada pela noção da autoria, que compreende o texto do autor como algo independente de um suporte material. Esse suporte que nos referimos aqui não trata da forma e da linguagem, pois sabemos que um escritor literário utiliza-se da ferramenta da linguagem verbal para se expressar, mas no sentido que este texto é compreendido como o mesmo texto mesmo que se encontre em um livro, na internet ou mesmo narrado por alguém. No entanto, para Chartier (1996), esta materialidade influencia a própria forma de apreensão e apropriação deste texto. Enquanto há uma tendência em se dissociar as condições técnicas e materiais de produção e difusão do livro dos textos que elas transmitem, Chartier atribui importância a estes dois aspectos, desconsiderando o mérito desta dissociação: Há na tradição ocidental numerosas razões para essa dissociação [entre texto e suporte]: a força perdurável da oposição, filosófica e poética, entre pureza de idéia e sua corrupção pela matéria, a invenção do copyright que estabelece a propriedade do autor sobre um texto sempre idêntico a si mesmo, seja qual for seu suporte, ou ainda a definição de uma estética que considera as obras em seu conteúdo, independentemente de suas formas particulares e sucessivas. (2002: p.62)

Desta maneira, como era de se esperar, reconhecemos que a propriedade intelectual e os direitos autorais lidam apenas com a propriedade das idéias, com o texto do autor, e acabam por desconsiderar as condições em que este texto se manifesta. Chartier (2002) afirma que, contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as formas que permitem sua leitura, audição ou visão, participam profundamente na construção de seus significados. Assim, o “mesmo” texto fixado em letras, não é o “mesmo” caso mudem os dispositivos de sua escrita e de sua comunicação. Para Chartier o suporte nunca é neutro. Considerando a mediação pelo suporte e suas condições tecnológicas, é importante destacar que as mudanças nas práticas de leitura não acompanham, necessariamente, as mudanças tecnológicas, e que esta relação não configura uma relação de dependência. Vimos seguidamente com as revoluções técnicas do século XIX: a cultura da produção do livro não seguiu sempre o passo das revoluções técnicas, tinha uma autonomia em relação a elas. Então, não há uma necessidade intrínseca de Revolução. O que muda é o meio de produção de livros, de reprodução dos textos, mas os usos que podem-se fazer estão abertos à decisão humana, às seleções ou às ignorâncias dos que têm o poder de atuar e de decidir sobre os usos da revolução técnica. Não há um determinismo técnico, mas há um reconhecimento de que as mudanças deste tipo, neste nível de importância, não podem ser anuladas nem

31

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

decretadas como uma decisão que dependa unicamente de uma vontade singular. Só podem ser apropriadas. (Chartier, 2001:158)

Entretanto, devemos reconhecer que a materialidade do suporte ainda encerra, apesar de todas as possibilidades de apropriação pelo leitor, uma gama limitada por sua própria especificidade: determinadas características da leitura feita num rolo jamais poderão ser reproduzidas na leitura do códice, pelas próprias limitações materiais deste suporte. Mas e quanto a outros suportes? Seria possível a “leitura” de uma imagem, de um objeto, de um rito, etc? Se compreendermos esta “leitura” como uma forma específica de apropriação de idéias que leva em conta a própria prática da leitura e a interpretação do leitor, parece-nos possível também falar de uma “leitura” das coisas. Talvez a palavra leitura não seja um termo adequado, mas o fato é que, como seres humanos, já nos habituamos a atribuir sentido às coisas que nos cercam, e este sentido vai ser influenciado por uma série de fatores, mediações em diferentes níveis, que possibilitam diversas interpretações sobre uma mesma coisa. A idéia de ‘ler’ uma imagem pode ser entendida como metáfora, mas sem esquecer que não é uma leitura, mas uma ‘leitura’ organizada ou pensada conforme os mesmos procedimentos e as mesmas técnicas da leitura de um texto, mas como um objeto distinto.”(Chartier, 2001 p.142)

Além de reconhecer que Imagem e Texto se constituem enquanto objetos distintos, o autor propõe uma ressalva por acreditar que existe algo específico que difere o texto de demais objetos: Durante os anos 60 e 70, me parece, abusou-se do termo ler ou do termo leitura, pois segundo as referências desses anos se ‘liam’ todas as coisas: paisagens, imagens, sociedades, etc. Para nos entendermos, pode se utilizar o termo, mas com a idéia fundamental que a leitura de um texto pertence ao mundo das práticas discursivas e não é igual à “leitura” de uma imagem, de um rito ou de uma paisagem pois, realmente, aqui as técnicas e os procedimentos são de outra natureza.” (2001: p.142)

Chartier(2001) parece se contradizer, na medida em que afirma que a percepção das coisas pode se dar pelas “mesmas técnicas de leitura de um texto”, mas logo a seguir afirma que na leitura de objetos “as técnicas e os procedimentos são de outra natureza”. Esta distinção pelo conteúdo discursivo do texto é o argumento que fundamenta a compreensão do autor para estabelecer esta distinção. Logo em seguida ele afirma que “em relação as outras formas de leitura, devemos analisar como se desenvolve a prática de apropriação da paisagem, do texto ou do ritual” Contudo, o próprio Chartier (2001, p143) aponta que, contra a noção de um alfabeto abstrato que se anula em

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

32

detrimento do texto, há uma tendência de valorização das escritas de tipo simbólico em virtude de que são imagens e ao mesmo tempo um suporte fônico. O autor destaca as línguas da Mesopotâmia e Japão como possuidoras do que se chama de chaves de ordem lógica. Estas escritas são ao mesmo tempo imagens, sinais fonéticos e elementos de classificação lógica. Porém, se a dimensão pictórica dos alfabetos ideogramáticos também pode ser lida, que garantias teríamos de que a caracterização de uma escrita não se dá simplesmente por uma ordenação lógica de sinais de um código compartilhado? Havelock (1995) nos fala sobre estruturas formais dos versos homéricos que serviam como recursos de memorização na comunicação oral. No entanto, como ter certeza de que estruturas com funções semelhantes não poderiam se estender também para produção material? Como poderíamos afirmar que as pinturas corporais, expressões gráficas, cerâmica e cestaria das diversas tribos indígenas brasileiras não possuem uma dimensão narrativa, na medida em que pudesse ser constatado que essas manifestações apresentam sinais constituintes de um código mais ou menos partilhado dentro do grupo? Isso sem considerar os suportes que reconhecidamente chegaram a constituir sua própria linguagem, diferente do texto escrito por suas características intrínsecas, como no caso do cinema e das histórias em quadrinhos. Afinal, tanto o cinema, a animação, quanto os quadrinhos são capazes de apresentar uma narrativa prescindindo da linguagem verbal. Barthes (2001: p. 208) já propôs o estudo de uma “Semântica do objeto” ao reconhecer a necessidade de se compreender como os seres humanos dão sentido às coisas. O autor fala sobre a atribuição de finalidade ao objeto que o caracteriza uma “transitividade do objeto”. Neste sentido, “o objeto é uma espécie de mediação entre a ação e o homem”. Barthes (p. 208 e 209) destaca que, entre outras coisas, o objeto serve para “comunicar informações”, que “sempre há um sentido que transborda o uso do objeto” e ainda que “não há nenhum objeto que escape do sentido”. Estabelecendo, desta forma, que o objeto é um signo, definido por duas coordenadas, uma simbólica e outra de classificação. No entanto, para um estudo dos objetos, Barthes (p.213) afirma que há um obstáculo que se lhe impõe: o obstáculo da evidência. Para que tal estudo possa se desenvolver, é proposto que haja um afastamento, recorrendo à ordem “das representações em que o objeto fica entregue ao homem de um modo ao mesmo tempo espetacular, enfático e intencional, que é a publicidade, o cinema ou ainda o teatro”.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

33

Também sob esta perspectiva, Barthes (1990) propõe um estudo sobre a imagem publicitária, como objeto portador de diversas mensagens e de diversos tipos de mensagens (no caso em questão a mensagem lingüística, a linguagem icônica codificada e a icônica não codificada). Neste sentido, Barthes identifica a imagem como polissêmica, uma “cadeia flutuante” de significados e que, contra esta incerteza sobre o sentido, as sociedades buscam fixar esta “cadeia flutuante” através da mensagem lingüística. Ao contrário de Chartier (2001), Barthes (2001) não caracteriza a distinção entre objetos e textos pelo conteúdo discursivo, mas pela capacidade de significação, na medida em que compreende que na mensagem lingüística estes sentidos tendem a ser mais restritos. Ao mesmo tempo, Barthes não deixa de destacar que na imagem publicitária há uma intencionalidade, uma mensagem que deverá ser compreendida pelo leitor. Esse raciocínio nos permite supor que os objetos, na medida em que possuam um código compartilhado, são capazes de transmitir conhecimento, mas não um conhecimento universal a ser apreendido, mas uma série de conhecimentos específicos que surgem, acima de tudo, pela experiência do leitor com o objeto e que através de seu “leitor” irá ganhar uma sentido específico, ocorrendo só assim a apropriação do objeto.

34

3 Escolarização dos agentes de saúde Guarani

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Uma vez compreendida a importância do leitor no processo de significação dos textos, dos livros como suportes que influenciam a leitura, enquanto prática social que se inscreve num universo cultural específico, o presente capítulo apresenta a descrição de um contexto de sala de aula onde se observa um grupo de leitores com características específicas. A observação do contexto em que se insere este grupo de leitores Guarani nos permitirá refletir posteriormente sobre a participação do designer no processo de aquisição das práticas de leitura e escrita, considerando seu papel na produção do suporte livro. 3.1.Povo Guarani: um breve relato Os primeiros contatos do povo Guarani com os europeus remetem aos séculos XVI e XVII quando os cronistas, segundo Ladeira (2003), utilizavam o nome “guarani” para designar os grupos de mesma língua que se encontravam desde a costa atlântica até o Paraguai. Schaden (1962) fala sobre a grande “nação Guarani”, que outrora ocupava grandes extensões dos estados meridionais do Brasil e encontra-se hoje reduzida a alguns milhares, dispersos em pequenos aldeamentos e com grandes diferenciações, mantendo apenas a língua, a religião e a tradição mítica como um dos poucos aspectos em comum. Estas reduções se iniciaram com a chegada dos conquistadores espanhóis e portugueses na região, exterminando muitos e criando conflito entre os subgrupos, acentuando as diferenciações entre eles e levando-os a guerra. Com as guerras entre os conquistadores, poucas alternativas restavam aos Guarani (ou “carijós” como eram chamados pelos portugueses). As opções que se apresentavam era a fuga para outras regiões ou o refúgio nas missões jesuíticas, submetendo estes grupos à catequese dos missionários. Entretanto, até mesmo a opção do refúgio nas missões não os livrou de abandonar seus territórios originais, pois após a extinção das mesmas, os Guarani foram forçados a se deslocarem novamente. Apesar da violência física e cultural, o povo Guarani sempre manteve uma relação amistosa e respeitosa com os

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

35

Juruá (designação do grupo M´bya para os não índios). 1 Segundo Ladeira, os Guarani costumam ser estigmatizados como aculturados, por utilizarem roupas e outros bens e alimentos industrializados, ou como estrangeiros, pelo fato de alguns serem originários de outros países. No entanto, a autora atesta que tais interpretações são precipitadas, pois ignoram que o contato sistemático com os brancos criou “formas muito específicas para preservarem suas tradições e estabelecerem relações com a sociedade dominante”, permitindo que esta cultura sobrevivesse ao contato com o branco durante mais de cinco séculos. Atualmente, se considerarmos os subgrupos Nhandeva, Kaiowa e M´bya, o povo Guarani encontra-se nos territórios da Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai e do Brasil, nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Porém, os deslocamentos dos Guarani não estão ligados apenas a expulsão de seus territórios, mas também, como narra Schaden (1962), estão relacionados a motivos religiosos ligados ao “yvý opá” (o fim do mundo profetizados pelos pajés). Alguns grupos, e até mesmo aldeamentos inteiros, podem se deslocar para um território indicado em sonho ao pajé pelo deus Nhanderu. A busca pela “terra sem males” levou ao deslocamento de grupos provenientes do Sul do Brasil até o litoral fluminense e ao estabelecimento de aldeias detectadas na década de 1970, com a abertura da rodovia Rio-Santos. A vinda para o litoral ocasionou na constituição das quatro aldeias com cerca de 500 indígenas na Região de Angra dos Reis e Paraty: Itax (Pedra Branca) em Paraty Mirim, Araponga no distrito de Patrimônio, Sapukai em Bracuí e, mais recentemente, na aldeia de Rio Pequeno, a cinco quilômetros de Paraty e ainda em processo de demarcação. O estabelecimento destas aldeias está diretamente ligada à forma de ser Guarani: A fixação das aldeias no litoral se insere em uma dinâmica própria da nação Guarani, norteada pela busca da “terra sem males” (espaço mitológico onde há fartura). Para eles, as terras do leste foram habitadas por seus antepassados constituindo seus tekoa – lugar onde é possível manifestar sua verdadeira maneira de ser. A escolha do local para a fundação da aldeia Guarani obedece a preceitos tradicionais e a condições físicas (geográficas e ecológicas) para um tekoa: água limpa, área de mato, certo isolamento e terra boa para plantar. (NOGUEIRA. 2005: p.50)

De acordo com Ladeira (2003), o termo Juruá quer dizer, literalmente, “boca com cabelo”, referindo-se à barba e ao bigode dos conquistadores europeus. Também segundo a autora, o termo passou a ser uma referência genérica aos não índios. 1

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

36

Se por um lado as aldeias (tekoa) são lugares de resistência, onde os Guarani podem preservar seu modo de ser, através de suas tradições pela prática da língua, religião e atividades de subsistência, por outro lado, a proximidade com as áreas urbanas e o freqüente contato com os Juruá contribuem para o afastamento de suas tradições, especialmente para os mais jovens, que são comumente seduzidos pelas “coisas da cidade”. Além da proximidade com a cidade e a exposição ao contato Juruá, outra ameaça à cultura Guarani pode ser percebida pelas políticas oficiais de integração nacional, praticadas até antes da Constituição Federal de 1988. Barros (2005: p.106) afirma que apenas com a Constituição de 88 passa a haver “o rompimento com a tradição legal, até então hegemônica, de integração do índio através de processos de aculturação e desintegração de patrimônios e identidades étnicas”. No entanto, antes da CF de 1988, compreendemos que o foco das ações do Estado era a integração do índio na sociedade nacional por meio de estratégias para torná-lo cidadão brasileiro. Entre estas estratégias de integração nacional podemos situar também as ações públicas ligadas à saúde e educação, que garantiam o acesso do cidadão à esses bens, mas sob o risco de fazê-lo no contexto da cultura Juruá, ignorando as especificidades do modo de vida indígena e, portanto, negando-lhes sua cultura. Estas ações públicas são exercidas pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), que além da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), constituem os dois principais órgãos governamentais que estendem suas políticas às comunidades indígenas brasileiras. É interessante destacar que, mesmo com o impacto provocado, a Escola e o Posto de Saúde, característicos da cultura Juruá, já estão incorporados ao modo de vida Guarani. Ao entrarmos na aldeia de Itax , com cerca de 95 habitantes no distrito de Paraty-Mirim em Paraty, por exemplo, podemos perceber imediatamente a presença das duas edificações contrastando com as construções tradicionais Guarani. A simples presença destes edifícios na aldeia, que é um espaço sagrado, demonstra o reconhecimento da importância destas instituições para a comunidade, embora ainda haja nos discursos dos membros mais velhos, ênfase na preservação da cultura e da identidade Guarani. Neste sentido, o discurso dos mais velhos atua como forma de resistência e impõe às instituições responsáveis o desafio de se garantir aos índios saúde e educação por meio de uma escola e um posto de saúde integrados a cultura Guarani. Como conseqüência da demanda por uma valorização cultural dos grupos indígenas, as instituições competentes têm buscado investir na formação de professores e agentes de

37

saúde nativos. Em acordo com o discurso de resistência dos líderes, a Constituição de 1988 e seus desdobramentos, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) que permite o surgimento de escolas indígenas diferenciadas, garantem legitimidade à preservação da cultura Guarani e confere importância cada vez maior às ações que estabeleçam diálogo intercultural.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

3.2. Demanda Os agentes indígenas de Saúde, de Saneamento e Bucal surgiram para atender a necessidade da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) de manter a presença contínua de assistência médica, odontológica e preventiva nas aldeias. Ao contrário das práticas vigentes até a década de 1990, a FUNASA passou a reconhecer neste momento a importância de minimizar a presença de não índios na comunidade, sem deixar de garantir a manutenção da saúde nas aldeias. Para tanto, a FUNASA resolveu criar a figura dos agentes de saúde indígenas para apoiar as equipes médicas, que por sua vez, se limitaram apenas a visitar as aldeias, de modo sistemático. Os agentes indígenas se tornaram assim mediadores entre a cultura tradicional e a cultura médica ocidental. A demanda pela formação de Agentes indígenas de saúde nas comunidades indígenas tem se intensificado nos últimos anos, não só para garantir atenção primária à saúde, como também para buscar novos elementos que favoreçam a comunicação entre a população indígena e o sistema Único de Saúde (SUS). (MOREL. 2005: p.108)

Para a FUNASA, a formação destes agentes deve ser dupla: a formação técnica, voltada para a capacitação profissional, e a formação a nível de Ensino Fundamental, considerando sua posterior formação e possível profissionalização no ensino médio como auxiliar técnico e no nível superior, caso desejem. No entanto, Morel (2005) mostra, através de dados da FUNASA, como a escolarização dos agentes na maioria dos casos é incompleta, e às vezes até inexistente: O sistema de cadastramento de Agentes Indígenas de Saúde, desenvolvido pela Funasa, dispõe de dados ainda parciais sobre o número, distribuição e capacitação dos Agentes. Estima-se que existam no país cerca de 2.000 Agentes indígenas de saúde, sendo que metade dos cadastrados tem o ensino Fundamental incompleto, com um segmento de 5% não alfabetizados. No caso específico das aldeias guarani existentes no litoral do Rio de Janeiro, o perfil dos Agentes em exercício registra, no máximo, uma breve passagem pelas escolas não índias (primeira ou segunda séries, no

38

máximo) e aquisição precária do português tanto na leitura quanto na escrita. (p. 108 e 109)

O baixo índice de escolarização dos agentes de saúde levou a FUNASA a constituir, juntamente com as aldeias Guarani do Rio de Janeiro, uma classe de Educação de Jovens e Adultos. O EJA proposto seria voltado especialmente para a complementação dos estudos dos então doze (atualmente catorze) agentes das quatro aldeias da região, além de contar com a ajuda de seis professores indígenas destas aldeias.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

3.3. Proposta Diante da demanda de promover a escolarização dos agentes de saúde Guarani do Estado do Rio de Janeiro, a FUNASA convidou o Programa dos Povos Indígenas (PróÍndio), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e o Laboratório de Estudos da Imagem e do Olhar (LEIO), da Universidade Federal Fluminense, juntamente com a Escola Técnica de Saúde Enfermeira Izabel dos Santos (ETIS) e as Secretarias de Educação dos municípios de Angra dos Reis e Paraty, para elaborar um curso de Educação de Jovens e Adultos. Esta parceria interinstitucional permitiu que no início de 2005 começasse o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas. O projeto obedece às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Escolarização de Jovens e Adultos e propõe, segundo os termos destas diretrizes, “retomar o potencial, desenvolver habilidades e confirmar as competências adquiridas na educação extra-escolar e na própria vida”. 2 Ainda no âmbito da proposta do projeto, Morel (2005: p.104) destaca que tanto o Pró-Índio da UERJ, como o LEIO da UFF atuam “desde a década de noventa na formação de professores e na assessoria de produção de materiais paradidáticos junto as aldeias Guarani na Baía de Ilha Grande”, e a partir desta experiência buscaram compreender este projeto de EJA dentro dos parâmetros da Educação Indígena diferenciada. A proposta desenhada pelo projeto segue os Referenciais curriculares para Educação Indígena, do MEC, incorporando as disciplinas: História (Prof. Bessa Freire), Geografia (Prof. Armando Barros), Línguas (Profª. Ruth Monserrat, guarani e português), Ciências (Prof. Celso Sanches), Matemática (Profª. Gabriela Barbosa). O projeto detém uma estrutura curricular integrada, organizada em

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos. Parecer CNE/CEB11/00 – diretrizes Curriculares Nacionais – educação Básica. Conselho Nacional de Educação, Brasília, 2001, pp.114. 2

39

eixos temáticos transversais, mediante projetos pedagógicos, designados pelas seguintes atividades de ensino: ensino presencial; ensino semi-presencial; estudo dirigido. ( p.111)

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Diante de uma proposta de EJA diferenciado, as instituições junto com os representantes das aldeias definiram o currículo e a forma como o curso seria oferecido. A definição de eixos temáticos transversais permitiu trabalhar com ênfase alguns temas que perpassavam as diferentes disciplinas como, por exemplo, a “Cultura Guarani”, trabalhado no segundo trimestre de 2005. Considerando que o Projeto é voltado para os Guarani, a abordagem pedagógica também se caracteriza pelo viés da Educação Indígena diferenciada. Neste contexto, busca-se promover o acesso aos conhecimentos da sociedade nacional através da valorização da cultura Guarani, enunciando que o projeto pretende: (...) proporcionar aos índios, comunidades e etnias a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; garantir aos índios, suas comunidades e povos o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não indígenas. (MOREL, Cristina et al: 2005 p.111)

Desde o momento de sua constituição, o Projeto procura manter sempre aberto o diálogo com a comunidade Assim, para melhor atender as necessidades dos cursistas, os encontros são sistematicamente avaliados por eles, buscando a melhor forma de conduzir as aulas e as atividades ligadas às disciplinas de Língua Portuguesa e Guarani, Geografia, Matemática, Ciências e História. Estas disciplinas possuem a diretriz pedagógica de aproximar os conteúdos do universo da cultura e do cotidiano dos alunos e das tarefas dos agentes. 3.4.Estrutura do curso O curso é oferecido em três momentos distintos: ensino presencial, semi-presencial e estudo dirigido. Esta disposição busca estabelecer uma rotina viável tanto para o grupo de alunos como para a equipe docente. O ensino presencial é realizado mensalmente, ao longo de dois dias seguidos, cada um com oito horas de duração, com a presença de professores de 1ª a 4ª série índios e de monitores não índios. Esta etapa fica sob a responsabilidade do UERJ/Pró-Índio, UFRJ e UFF/LEIO e conta com o apoio da ETIS e FUNASA/Core-RJ. Durante o ensino presencial são antecipados os conteúdos a serem trabalhados pelos índios ao longo do mês no Caderno Paradidático. O ensino semi-presencial é realizado semanalmente, ao longo de dois dias, com quatro horas diárias. Esta etapa conta com o apoio de especialistas em EJA, vinculados às secretarias de Educação de Paraty e Angra dos Reis, que

40

orientam e esclarecem dúvidas relacionados aos conteúdos e exercícios dos Cadernos Paradidáticos. O Estudo Dirigido é realizado semanalmente, ao longo de três dias, com quatro horas diárias. Nesta etapa, agentes de saúde e Saneamento realizam exercícios ou fazem pesquisas indicados no Caderno Paradidático, preferencialmente realizadas em grupo, sob orientação dos professores indígenas das aldeias, também cursistas. Observamos que o Caderno Paradidático assume importância dentro do curso, pois está presente nas três etapas distintas, servindo como meio para acompanhar o desenvolvimento dos alunos, organizar os conteúdos e atividades das disciplinas e como forma de avaliação e registro escolar.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

3.5.Recursos didáticos e paradidáticos O Caderno Paradidático, como é chamado pela coordenação, apresenta os conteúdos das aulas que serão trabalhados no encontro presencial e as atividades e exercícios que serão resolvidos ao longo do mês, durante os encontros semi-presenciais. Esses conteúdos são apresentados principalmente por meio de textos, produzidos pelos professores Juruá, e contam com a presença de algumas imagens, reunidas e organizadas pelos mesmos. Parte dos conteúdos remetem ao livro Ara Reko (Barros:2005), produzido em co-autoria pelos professores indígenas estabelecendo uma relação metodológica com os cadernos. A produção destes cadernos é feita de maneira amadora pela coordenação do curso, com auxílio das graduandas em Educação envolvidas com o projeto, e reproduzida por fotocópia. Apesar da participação da designer Renata Vilanova na a organização visual de alguns cadernos, o curto prazo para a produção acaba impedindo um tratamento estético profissional e faz as formas pré-definidas pelos processadores de texto prevalecerem. Em relação às páginas com imagens, é comum encontrar fotocópias de figuras recortadas à mão e coladas ou grampeadas no papel.(Figura1)

Figura 1 Caderno fotocopiado com imagens recortadas à mão

41

O curto prazo da produção se dá pela falta de tempo dos professores Juruá em elaborar os conteúdos com antecedência, que algumas vezes os leva a entregar os materiais de suas respectivas disciplinas na véspera dos encontros presenciais para serem organizados e reproduzidos. Além dos Cadernos, outros materiais são empregados nos encontros para auxiliar a atuação dos professores. Entre os recursos encontram-se objetos de uso cotidiano, produtos industrializados, materiais naturais (como terra, folhas de plantas, água), registros fotográficos, ilustrações e diagramas em suporte impresso e eletrônico, livros, laptop, vídeos, calculadoras. Também são utilizados como recursos didáticos objetos específicos para os conteúdos das disciplinas, como um boneco antropomórfico com os órgãos do tronco destacáveis usado numa aula sobre o corpo humano. Na maioria dos casos, os materiais empregados são trazidos pelos próprios professores Juruá para um conteúdo específico, ou solicitados pela coordenação do projeto.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

3.6.Rotina dos Encontros Uma das características bem nítidas do ensino presencial é a preocupação com a organização dos horários e definição da programação do curso. Tanto por parte dos Juruá como dos Guarani é visível a cobrança em relação à pontualidade e ao cumprimento da agenda. Nos momentos em que há atrasos, os alunos começam a olhar para seus relógios e a cobrar “a hora do almoço” ou do “intervalo”. Os encontros presenciais seguem a seguinte rotina: 08:30 – Início da aula 10:30 – Lanche 12:30 – Almoço 14:00 – Reinício da aula 17:00 – Fim da aula, lanche e dispersão. Esse tempo de aprendizagem constitui um aspecto importante que se impõe à equipe como motivo para as diversas reformulações do curso. A equipe organizadora afirma que a atual configuração do curso busca atender as necessidades impostas pelo grupo. No início, o curso apresentava quatro disciplinas por encontro, ao longo dos dois dias, com uma disciplina pela manhã, e outra pela tarde. Os alunos queixaram-se da quantidade de informações e da dificuldade de aprender tantos conteúdos. Isso fez com que somente duas disciplinas fossem trabalhadas no mês e que estas disciplinas fossem trabalhadas ao longo de um trimestre inteiro para não perder a continuidade. O tempo de aprender também está associado ao espaço. Nos primeiros encontros semi-presenciais, a coordenadora regional ia às aldeias acompanhar a resolução dos exercícios, porém não havia tempo hábil para trabalhar com os agentes,

42

já que ela chegava acompanhada pelas equipes de saúde, fato que mantinha os agentes ocupados com suas atribuições. Em virtude disso, os encontros semi-presenciais passaram a acontecer no local onde o curso presencial acontece. Este deslocamento contribuiu para uma diferenciação entre os espaços de estudo e os demais espaços, fazendo com que a atividade escolar fosse valorizada neste ambiente. A mudança dos espaços permitiu que mais alunos resolvessem os exercícios para a fixação dos conteúdos das aulas ao longo do mês.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

3.7. Personagens O Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde Guarani não conta apenas com a participação de alunos e professores, mas também com o envolvimento de outros grupos que desempenham papéis diversos e participam na construção do ambiente em que o curso se desenvolve. Entre esses diversos grupos situam-se alunos, professores, coordenadores, bolsistas, funcionários, visitantes, crianças, cujas presenças caracterizam a singularidade do projeto. Desta maneira, tanto para a compreensão das relações entre professor e aluno, como para o entendimento das relações entre as demais identidades buscaremos descrever as diferentes personagens e os papéis que desempenham no curso empregando a nomenclatura utilizada no Projeto. Considero o freqüente emprego dos nomes que caracterizam os diversos papéis um dado determinante para o reconhecimento da diferenciação dos grupos envolvidos. Portanto, adotarei tais designações como categorias para definição e descrição destes grupos com o intuito de favorecer uma compreensão sobre os contrastes de identidade que se estabelecem na dinâmica do Projeto. 3.7.1.Cursistas Como o próprio nome indica o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas é prioritariamente voltado para a formação escolar dos agentes de saúde Guarani. Entretanto, antes de uma compreensão sobre os papéis que os agentes desempenham, é preciso saber que os agentes não são os únicos Guarani que participam das aulas, recebem os cadernos com os textos, resolvem as atividades, etc. O papel “aluno” também é assumido por um grupo menor, formado pelos professores indígenas. Apesar de partilharem a identidade Guarani, que os diferencia de muitos outros grupos, a distinção entre agentes de saúde e professores indígenas denota funções diferentes em relação ao Projeto. As categorias profissionais que

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

43

caracterizam estes grupos estabelecem dois papéis de liderança importantes na comunidade que habitam e configuram duas autoridades diferentes. Diante disso, as formas como estes grupos se relacionam e as funções que assumem dentro do papel de aluno são, muitas vezes, distintas e às vezes diametralmente opostas. Também veremos que o papel do Aluno, em oposição ao professor, não deve ser compreendido apenas como alguém que assume a posição de quem aprende, pois observaremos adiante situações em que os papéis de aprendizagem e ensino se invertem. Frente à conotação que o termo Aluno traz consigo, optarei pelo emprego do termo cursista, que servirá apenas para designar os Guarani que participam do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas, considerando que nem docentes e nem cursistas são proprietários de um saber consolidado, mas em constante formação que depende da interação com o outro. Não obstante, devo deixar claro pretendo referir-me mais às subdivisões do grupo dos cursistas do que ao grupo como um todo, preferindo utilizar as distinções entre agentes de saúde e professores indígenas, por se apresentarem como categorias funcionais diferenciadas. 3.7.2.Agentes de saúde O grupo dos agentes trabalha na prevenção, controle e tratamento de doenças nos planos médico, odontológico e de saneamento e são a ponte entre as aldeias e a FUNASA, o órgão do governo federal que atua diretamente nas aldeias através de visitas sistemáticas das equipes médicas, formada por dentistas, médicos e enfermeiros às comunidades. Os agentes de saúde são os representantes legítimos da saúde pública nas aldeias e são ao mesmo tempo os representantes das aldeias na saúde pública. Esta situação lhes confere status e responsabilidade junto à comunidade, na medida em que o agente Guarani se destaca principalmente nos momentos de ausência de médicos e enfermeiros, cuja presença é limitada pelo seu horário de visitas às comunidades. A atuação do agente pode ser crucial em determinadas situações se considerarmos a distante localização e as dificuldades de acesso à algumas aldeias, que exigem veículos especializados ou que o atendente se desloque a pé em caminhada de 40 minutos ou mais. No plano cultural, o agente também ganha importância pelo fato da comunidade não haver formado ainda seus próprios médicos e enfermeiros, tornando-os dependentes dos profissionais Juruá. Neste sentido, há que se considerar que muitas vezes os médicos Juruá não têm o devido preparo e a sensibilidade para lidar com as questões culturais, especialmente de cunho religioso, o que acarreta na

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

44

imposição de condutas que são muitas vezes contraditórias ou até mesmo desrespeitosas em relação às tradições.3 Os agentes, por sua vez, conhecem, respeitam e integram a cultura Guarani, e por isso buscam e são incentivados, do ponto de vista da política pública oficial, a adequar as práticas da saúde Juruá ao cotidiano e cultura Guarani. Os agentes são, portanto, mediadores por excelência entre a saúde pública e a aldeia. Em relação ao Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde o grupo dos agentes constitui o público primário cujas deficiências relacionadas ao Ensino Fundamental o Projeto busca sanar. O grupo, constituído atualmente por catorze agentes (dez homens e quatro mulheres) é bastante heterogêneo, havendo agentes em diferentes idades e estágios de formação escolar, e em sua maioria, provenientes de escolas de tradição Juruá. Em virtude destas carências pretende-se capacitar os agentes para que estejam aptos a acompanhar os cursos de preparação técnica dentro de suas áreas específicas e para que possam empregar os conhecimentos produzidos ao longo do Projeto em suas atividades profissionais. Para sua capacitação, os agentes participam das etapas presenciais, semi-presenciais e do estudo dirigido, através da leitura, resolução de exercícios e atividades de pesquisa. Os agentes de saúde que participaram do curso durante o período observado foram: Aldeia Araponga: Nino Benite Silva, Nilton, Zilda Martins Silva. Aldeia Itax : Eva Rete Mimbi Benite, Pedro Karai Miri Benite, Vilmar Vilharves Tupa. Aldeia Rio Pequeno: Márcia e Jorge Aldeia Sapukai: Adílio da Silva, Aldo Ribeiro Karai Mirim, Cecílio Fernandes, Domingos, João da Silva, Lúcia Para Iri. 3.7.3.Professores Guarani Os professores Guarani são, por sua vez, os profissionais habilitados a ensinar nas escolas bilíngües, local onde as crianças terão o seu primeiro contato com a língua portuguesa escrita e falada. Hoje em dia, a criança Guarani

3 Em relação à questão das tradições, a equipe do curso me informou que os Guarani Mbya guardam o cordão umbilical dos recém nascidos como um ritual religioso que celebra o nascimento do filho na tradição Guarani. Com o início dos partos feitos no hospital, muitos médicos ignoram ou desprezam o fato, jogando fora o cordão umbilical inadvertidamente, fato que entristece os pais.

45

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

aprende a língua portuguesa somente quando atinge a idade escolar, que nesse caso é em torno dos sete anos de idade, mas a experiência da escola diferenciada não é comum a todas as gerações da aldeia, configurando-se como uma prática relativamente recente. 4 Por conta de seu ofício, os professores Guarani são os que mais dominam o registro escrito de sua língua e da língua portuguesa, apresentando maior facilidade para a tradução de uma língua para outra e no domínio da escrita. Barros (2005: p.95) descreve a importância das atribuições do professor Guarani na construção do conhecimento e no processo de mediação entre ensino formal e tradição: No movimento de reinvenção do Brasil e da escola onde a gnose (conhecimento) indígena seja preponderante, os professores mbya-guarani defendem que a proposta políticopedagógica incorpore a produção do conhecimento, o “professor pesquisador”, o currículo inacabado. Exemplo dos desafios é o impacto sobre as estruturas cognitivas dos guarani da inserção da escrita, resultante da codificação da língua, pontencializando-se, via escola, práticas até então desconhecidas ao universo cultural guarani: a alfabetização na língua materna, o surgimento do suporte livro, a constituição de um tempo novo marcado pela leitura e o surgimento de uma desconhecida figura social: o autornarrador-escritor.

Através da figura do “professor pesquisador” e do currículo inacabado podemos compreender a necessidade de dois movimentos; o primeiro é o movimento de uma formação continuada, realizada através da participação em cursos oferecidos para a capacitação de professores Guarani; o segundo movimento está ligado à pesquisa das tradições junto às autoridades neste assunto, ou seja, os mais velhos. Por meio destes dois movimentos, os professores Guarani contribuem para o processo de resgate e registro da cultura Guarani através de pesquisas e textos produzidos por eles para publicações sobre o tema ou como formas materiais paradidáticos. 5 Neste sentido, os professores Guarani são as novas autoridades no campo do saber, ao lado da família, dos idosos, pajés e caciques. Especificamente em relação ao

Segundo Barros (2003: p.2-3), somente em meados da década de 1980, com o fortalecimento dos movimentos indígenas e suas organizações na Sociedade Civil, surge a demanda por escolas diferenciadas com gestão pelas próprias comunidades indígenas. 5 Alguns dos textos dos professores Guarani foram publicados em GUIMARAENS, D.(org.) Museu de Artes e Origens: mapa das culturas vivas guaranis org. Dinah Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003 e em BARROS, A.M. e CASTRO, R.P. (org.) Ara reko: Memória e Temporalidade Guarani 2ª. Ed. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2005). 4

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

46

domínio da língua escrita, os professores Guarani são respeitados e consultados como aqueles que legitimam as formas e os usos corretos. Considerando as variações étnicas e regionais que existem na língua Guarani, além do processo de sistematização em que esta se encontra, os professores indígenas são formadores e principal referência para a definição das formas e dos usos do Guarani escrito. Por estabelecerem a relação entre ensino formal e a cultura tradicional, os professores indígenas estão presentes no Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde tanto para auxiliar no desempenho dos agentes em relação à escrita e a língua, como também para aprender sobre as questões de saúde, habilitando-os como agentes multiplicadores, através de sua atuação nas escolas que lhes permite trabalhar o tema nas salas de aula. Deste modo, a mediação feita pelos professores Guarani se dá em duas esferas: uma junto aos agentes como mediadores entre o ensino formal e a cultura Guarani, outra como mediadores em relação às questões de saúde com seus alunos nas escolas indígenas. Os professores Guarani são Darci Nunes de Oliveira, Isaque Souza Kuaray Poti e Sérgio da Silva (aldeia Itax ), Algemiro da Silva Karai Miri (aldeia Sapukai), Nírio da Silva (aldeia Araponga) e Neusa Martins Kunha Taqua (aldeia Rio Pequeno). Eles participam dos encontros presenciais, onde participam das aulas de maneira semelhante aos agentes, prestando atenção e desenvolvendo os exercícios de sala de aula. Posteriormente, os professores Guarani orientam as atividades dos agentes durante a fase de estudos dirigidos. 3.7.4.Professores Juruá A classificação e a distinção “mais óbvia” entre alunos e professores necessitam de revisão diante da perspectiva do curso, pois como vimos anteriormente, entre o grupo dos cursistas encontram-se também os professores das escolas indígenas. Desta forma, é importante deixar claro o emprego do termo “professor” considerando que este pode ser utilizado tanto para designar os professores Guarani que freqüentam o curso, como também os professores Juruá, docentes não índios, que lecionam as disciplinas do curso. Para entender o papel assumido pelos professores Juruá é preciso, primeiramente, compreender que tipos de atividades estas pessoas desempenham, para depois situarmos seu papel no Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas. Como as aulas ocorrem mensalmente, é de se esperar que os docentes do curso se envolvam em outras atividades ao longo do mês, e é precisamente o que ocorre. O grupo dos professores Juruá é constituído por profissionais pósgraduados em áreas de interesses diferentes relacionadas às

47

disciplinas do curso: José Ribamar Bessa Freire (História), Gabriela Barbosa (Matemática), Celso Sanchez (Ciências), Armando Martins de Barros (Geografia) e Ruth Monserrat (Guarani/Português). Como professores, atuam em diversos níveis, do fundamental a pós-graduação e, em alguns casos, estão envolvidos diretamente em pesquisas voltadas especificamente para Educação Indígena. Além de atuarem na sala de aula, os professores Juruá também são conteudistas do curso, se responsabilizando pela elaboração mensal de textos e atividades que são apresentadas nos Cadernos Paradidáticos. As mediações que os professores Juruá desempenham estão no nível da adequação e adaptação dos conteúdos do Ensino Fundamental para o contexto do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas. Seguem, portanto, as diretrizes pedagógicas do Projeto e os eixos temáticos estabelecidos pelos coordenadores através de eventuais reuniões ao longo do mês.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

3.7.5.Monitores Além dos cursistas e professores Juruá, o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde conta com a presença de uma equipe de Monitores que auxiliam nas aulas, dando suporte tanto em relação aos conteúdos, esclarecendo dúvidas, quanto em relação à organização material e espacial do curso, por meio da organização, distribuição e controle do material paradidático. Os Monitores ficam à disposição dos professores Juruá e dos cursistas, para eventuais necessidades, mas enquanto estão presentes são muitas vezes responsáveis pela observação e registro das atividades de sala de aula. Como a monitoria não requer um nível específico de especialização, este papel pode ser desempenhado por diversas pessoas em condições distintas no curso. Neste caso, eventuais convidados e profissionais vinculados às instituições organizadoras do Projeto podem exercer o papel de Monitor. Entretanto, um grupo em específico possui esta função claramente definida e designada pela organização do curso: as bolsistas. 3.7.6.Bolsistas As bolsistas, como costumam ser designadas, é o grupo de alunas de graduação em Educação que participam do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas e estão vinculadas aos projetos de pesquisa e extensão da UFF e UERJ através do LEIO e Pró-Índio. São chamadas de bolsistas por usufruírem do benefício concedido pelos programas de iniciação científica das agências de fomento à

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

48

pesquisa e extensão universitária, como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), oferecido pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Constituído unicamente por mulheres, dada a predominância do gênero feminino nos cursos de Educação, as bolsistas são responsáveis pelo suporte aos professores Juruá e aos cursistas, ao mesmo tempo em que registram e observam o curso. Para garantirem o suporte às atividades em sala da aula, as bolsistas são orientadas pelos coordenadores que definem as tarefas e as formas de abordagem a serem cumpridas. Entre as tarefas atribuídas pela coordenação, encontram-se também a observação e o registro das atividades de sala de aula, por meio de fotografias e gravações em vídeo e áudio. Os registros realizados pelas bolsistas servem para a confecção de relatórios encaminhados à FUNASA, para posterior avaliação e controle do curso, ao mesmo tempo em que fornecem dados às pesquisas desempenhadas pelo LEIO e Pró-Índio. Em função da restrição orçamentária da verba disponibilizada pela FUNASA para as despesas e deslocamento das equipes do Rio de Janeiro para Paraty, o grupo das bolsistas fica reduzido ao limite máximo de quatro monitoras, embora haja mais bolsistas vinculadas às pesquisas. Assim, para que todas possam participar, é realizado o revezamento deste grupo a cada encontro, mas privilegia-se a permanência das bolsistas mais antigas no projeto, dada a familiaridade com o grupo conhecimento dos procedimentos no curso. A partir de sua relação com a coordenação do curso, as bolsistas exercem a mediação entre aula e as diretrizes pedagógicas do curso. A mediação entre estes dois universos se dá pela atuação e observação feitos pelas bolsistas que o fazem por um ponto de vista constituído no universo teórico da graduação em Educação. As alunas que participaram do Projeto como monitoras no período observado foram: Fernanda Muniz e Renata Castro (bolsista UFF), Mirla Paiva (bolsista UERJ), Érika Tílio (aluna UERJ), Aline Paiva (monitora da professora Gabriela Barbosa). 3.7.7.Coordenadores O grupo dos coordenadores é constituído pela equipe dos representantes das instituições envolvidas no projeto. O grupo dos coordenadores reúne os diretores dos laboratórios de pesquisa Armando Martins de Barros (UFF-Leio), José Ribamar Bessa Freire (UERJ-Pró-índio) e (UFRJ) Ruth Monserrat (UFRJ), que também são docentes no curso,

49

representantes da Secretaria Municipal de Educação de Angra dos Reis e Paraty e representantes das instituições de saúde, FUNASA e ETIS. A equipe da coordenação foi constituída pela FUNASA para a elaboração do Projeto e assume a responsabilidade pelo funcionamento do Projeto. A principal função dos coordenadores é definir as diretrizes do Projeto, seja no aspecto pedagógico, quanto na própria programação dos encontros. Cabe a coordenação do Projeto a avaliação das estratégias utilizadas, a definição dos eixos temáticos, o controle sobre a adequação das disciplinas e observação das necessidades e carências do curso, implementando eventuais mudanças na estrutura e funcionamento do curso, quando necessárias. Os coordenadores exercem a direção do curso e são, portanto, mediadores entre a FUNASA e os agentes de saúde, buscando o equilíbrio entre os interesses das duas partes.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

3.7.8.Funcionários da FUNASA Os funcionários da FUNASA se responsabilizam pelo apoio logístico ao projeto. A enfermeira Anunciada Ferreira de Lima, a Cida, é especialmente recrutada para cuidar do bem-estar dos cursistas, organizando as refeições, supervisionando a hospedagem, controlando os deslocamentos das equipes dentro dos horários estabelecidos. O apoio conferido pela enfermeira é fundamental para o funcionamento do curso e bem estar dos indígenas. Os motoristas da FUNASA são responsáveis pelos deslocamentos das diversas equipes, transportando tanto a equipe docente e demais membros Juruá, como também os agentes e professores indígenas das aldeias mais distantes para a pousada onde se hospedam, ou no caso das aldeias mais próximas para o local do curso. 3.7.9.Visitantes O Projeto eventualmente conta com a presença de indivíduos que não pertencem à equipe constituída. Estes indivíduos são convidados pela coordenação para conhecer o curso, e eventualmente contribuir com ele. Entre os visitantes encontram-se fotógrafos, designers, educadores, enfermeiros, representantes de outras instituições e demais profissionais interessados pelo Projeto, incluindo até mesmo índios de outras etnias, como no caso da visita do enfermeiro Pedro, de uma aldeia Kayngang do Paraná. Os visitantes são observadores eventuais, mas são tratados como membros temporários da equipe, e por isso também desempenham tarefas atribuídas pela coordenação. Por esse caráter eventual, os visitantes não chegam a constituir um papel específico no curso, mas é importante

50

saber da constante presença de outros membros na sala de aula. 3.7.10.Crianças

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Os únicos indivíduos que não possuem um papel atribuído pelo Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde são as crianças. Apesar de não serem cursistas, um pequeno grupo de crianças de idades diversificadas acompanha seus pais, agentes ou professores indígenas do curso, e integram as relações que compõem o ambiente da sala de aula que envolve o ensino presencial. Estas crianças compõem um pequeno grupo de 3 a 4 indivíduos, com uma presença constante ao longo das aulas. Por possuírem idades distintas, são tratadas de forma diferentes, podendo ser identificadas por três faixas etárias: 1. As crianças em fase de amamentação, dos primeiros meses a um ano de idade, que ficam no colo das mães e normalmente permanecem quietas ou dormindo, raramente choram e quando o fazem são prontamente atendidas pela mãe para não interferir na aula. 2. As crianças pequenas, entre um e quatro anos de idade, estão em fase de aquisição da fala e desenvolvimento motor. Elas permanecem brincando no chão ou explorando o ambiente através de caminhadas e pequenas corridas pela sala de aula. Estas crianças são monitoradas de duas formas: pelas mães a distância e de perto pelas irmãs mais velhas. 3. As crianças mais velhas que possuem entre 5 e 11 anos e são normalmente meninas. A função delas é tomar conta das crianças menores para que não se machuquem. Por serem mais independentes e mais maduras, as mães passam a atribuir a elas o cuidado com as crianças menores com o intuito de educá-las para as tarefas femininas, especialmente ligadas à maternidade.

51

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

4 Exercício Etnográfico: Por uma descrição do curso presencial

Como designer, fui convidado pelo professor Armando Martins de Barros, coordenador do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde, a observar o curso e os usos dos cadernos paradidáticos e, posteriormente, auxiliar na elaboração do material paradidático. No entanto, ao longo do processo verificamos a inviabilidade da inserção do trabalho do designer por causa do curto prazo para elaboração do material. Desta maneira, minha ligação ao projeto foi direcionada para uma publicação a ser realizada ao fim do curso, reunindo o material e as aulas produzidas ao longo do projeto. Neste sentido, o presente capítulo consiste em um exercício etnográfico acerca dos encontros presenciais do Projeto. No exercício, são apresentadas as interpretações e realizadas a partir das observações feitas através de minha participação no Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde, na qualidade de visitante, para investigar as questões relativas ao uso dos cadernos e materiais paradidáticos a fim de pensar a inserção do designer neste processo. 4.1. Chegada: o contato inicial A rotina do curso começa logo pela manhã. Após o café, juntei-me à equipe Juruá, hospedada em Paraty, que se deslocaria para o espaço reservado para a aula, em Patrimônio, distrito da cidade afastado do centro histórico. A cena já havia se repetido em minhas visitas anteriores, e a preocupação com o atraso era uma constante em todas elas, pois deixar os índios esperando, de acordo com a experiência da equipe, causaria diversas queixas e indisposições. Pegamos nossa condução às oito da manhã e seguimos para a estrada, costeada pela serra verde e arborizada do litoral sul fluminense. Após uns vinte minutos, a van da FUNASA estacionava próxima a entrada da sede da Associação Cairuçu, na bifurcação da estrada que leva a Trindade, dentro da área de proteção ambiental do Cairuçu. Depois do desembarque as bolsistas da graduação em educação da UFF e UERJ ouviam as instruções do coordenador do curso, que distribuía as tarefas para todos,

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

52

enquanto isso eu deixava o meu material pessoal de lado para auxiliar a pegar cadeiras e trazer as bancadas para compor o espaço de sala de aula. Essa arrumação era necessária, pois o local não é uma escola, mas uma associação que cede o espaço para os encontros do curso. Enquanto arrumava a sala, os Guarani começavam a chegar. Entre eles predominavam os pertencentes ao subgrupo Mbya, provenientes das aldeias de Araponga, Sapukai e Itax , mas havia também a presença de alguns Nhandeva, habitantes da reserva indígena de Rio Pequeno. Com a chegada dos cursistas começaria mais um encontro presencial do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde, que acontece no início de cada mês. 1 Os Guarani haviam dormido na pousada próxima à sede da associação, e em pequenos grupos chegavam, permanecendo do lado de fora, enquanto alguns poucos entravam e ocupavam seus lugares. Havia indivíduos aparentemente mais tímidos, mais silenciosos, e já outros mais falantes, que cumprimentavam e até brincavam com a equipe Juruá. O grupo, bastante diversificado, apresentava uma faixa etária de 16 a 40 anos, composto por homens e mulheres, algumas delas acompanhadas de seus filhos pequenos. Por um lado, boa parte dos cursistas conversava na língua Guarani enquanto aqueles que buscavam alguma interação com a equipe Juruá buscavam falar em português. Por outro lado, apenas alguns dos Juruá arriscavam uma palavra ou outra em guarani, mas ninguém manifestava algum domínio sobre a língua que se estendesse além de algumas frases, como por exemplo a saudação “Djau i dju” (Bom dia). 4.2. A sala de aula A sala de aula no espaço da “Cairuçu” constituía o local mais freqüente do curso. Segundo a equipe Juruá, ela possuía uma “boa estrutura”. O local situado nas proximidades da reserva ambiental possuía duas grandes portas laterais que permaneciam abertas, sendo que uma permitia observar a vegetação próxima, no loteamento logo abaixo da sede. O espaço era relativamente bem iluminado por luz natural, ventilado e amplo o suficiente para abrigar as duas bancadas grandes o bastante para os vinte cursistas. As duas bancadas eram mantidas paralelas em direção ao quadro branco, colocado de maneira improvisada apoiado sobre um banco

Uma das bolsistas me informou sobre a distinção dos dois subgrupos e da diferença de aspectos da cultura e da língua, indicando quem pertencia a qual grupo. 1

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

53

em direção diametralmente oposta à grande porta lateral. A associação contava também com aparelhos de televisão, vídeo cassete e DVD, recursos explorados esporadicamente nas aulas. Assim que as salas de aula foram arrumadas, as duas grandes bancadas foram ocupadas pelos agentes e professores indígenas que começaram a se sentar em agrupamentos. Os homens, neste caso a maioria numérica, sentavam-se em grupo, em geral separados das mulheres, as exceções eram alguns casais que se sentavam próximos. Nesses agrupamentos não se notava a separação por aldeia de origem ou por subgrupo da etnia, estas diferenças me pareceram ser pouco relevantes na definição dos grupos em torno da bancada. Como a “sala de aula” encontra-se numa estrutura ampla e arejada, o espaço foi bastante explorado pelo filho de uma agente. Não era raro ver a criança mexendo nos objetos, correndo ao redor das mesas, ou sendo repreendida pela irmã mais velha. Nem a mãe e nem os demais cursistas pareciam incomodar-se com a ação das crianças pequenas, que às vezes queixavam-se e brigavam, mas só conseguiam atrair a atenção da mãe quando esta sentia necessidade de intervir. Do contrário, as mães delegam o cuidado da criança menor a uma menina um pouco mais velha, em torno dos sete anos de idade. Essa prática parece estar relacionada à preparação da menina para a maternidade, que na sociedade Guarani pode ocorrer em torno dos quinze anos. Em relação ao grupo de cursistas, não faziam muitos deslocamentos durante as aulas, permanecendo sentados durante a maior parte do tempo, com alguns se levantando apenas para ir ao quadro, quando solicitados, ou para ir ao banheiro, quando necessário. Aguardavam os intervalos para se dispersar ao redor da sede, quando a maioria se dirigiu para os fundos, local onde o lanche é servido. Depois alguns homens deslocaram-se para frente da sede para conversar e fumar cigarro, cachimbo ou o petyngua, o cachimbo tradicional dos rituais Guarani. 4.3. Rotina do curso 4.3.1.Rituais de Abertura Depois da chegada da equipe Juruá, da arrumação da sala e da chegada dos Guarani, a aula se inicia. Antes que o professor Juruá da aula do dia começasse, houve uma espécie de rito de abertura do curso, realizada pelo coordenador Armando Martins de Barros, que apresentou a equipe presente e o novo caderno de atividades que foi entregue em seguida. Na abertura ele também descreveu a programação do

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

54

encontro e solicitou que um representante do grupo de cursistas participasse, falando sobre o novo encontro. Nos discursos de abertura é comum que o representante Guarani faça uma oração, geralmente na Língua Guarani, e peça bênçãos a Nhanderu para que tudo corra bem durante os dois dias de curso. Porém, em um desses discursos, foi possível observar que o agente Pedro Karai Miri Benite aproveitou para avaliar a importância do curso para o grupo. Ele começou seu discurso em guarani e, ao longo de sua fala, foi possível distinguir algumas palavras em português como “agente de saúde”, “não completou os estudos”, “dificuldade”. Em seguida o agente “traduziu” sua fala, dizendo que o curso era uma forma de ajudar os agentes, que o curso atua na capacitação daqueles que não completaram os estudos e que o curso os auxilia em suas dificuldades. Destacou também ser importante o trabalho em conjunto e alertou os colegas afirmando: “não devemos abandonar o curso, por que é importante para nós e para a comunidade”. Após o discurso os cursistas aplaudiram e só então a aula começou. A manifestação dos cursistas demonstra a preocupação em desenvolver um projeto em conjunto, pois a demanda pelo curso foi colocada pelo próprio grupo de agentes e líderes Guarani que identificaram as carências e participaram de sua proposta pedagógica junto com a equipe Juruá. 4.3.2.As abordagens Juruá Na aula de ciências, o professor Juruá Celso Sanchez demonstrava ter a simpatia de muitos cursistas por tentar comunicar-se em guarani, arriscando várias frases num esforço apreciado e elogiado por eles. Embora se divertissem com os erros, eles também se sentiam responsáveis por corrigir o professor no uso da língua. Este esforço do professor em estabelecer aproximação das linguagens também pode ser observado ao longo da aula, como no caso em que ele tratou do corpo humano: ao apresentar os órgãos, sistemas e suas funções com o recurso de um modelo humano constituído por cabeça e tronco trazido pela equipe da organização, Celso aproveitava para interrogar os cursistas se determinado órgão possuía nome em guarani, em caso afirmativo anotava o nome no quadro, em caso negativo propunha aos cursistas que dessem “um nome em guarani” para o órgão. Nas aulas de matemática, a professora Juruá Gabriela Barbosa buscava a participação da turma através de elementos cotidianos que ela trazia para a sala de aula como tema da proposição de exercícios. Quando trabalharam com divisão e unidades de medida, a Gabriela trouxe dois ovos de páscoa e interrogou como o ovo poderia ser igualmente

55

dividido entre os cursistas presentes. A proposição do exercício despertou entusiasmo na turma, diante da perspectiva de poder comer o ovo após a solução do problema. Em outra situação, usou as informações nutricionais do verso de uma caixa de bombons para trabalhar porcentagens, recompensando o esforço dos cursistas distribuindo os bombons entre eles. Os dois professores Juruá aparentam buscar essa aproximação das experiências cultural e cotidiana dos cursistas. Há nos dois casos proposições de exercícios que consideram a atividade dos agentes como medir dosagens de medicamentos ou conhecer como os medicamentos atuam no corpo, no entanto, a forma de abordar os conteúdos é bem diferente.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

4.3.3.Uso dos recursos didáticos e paradidáticos Apesar das aulas se constituírem principalmente na atuação dos professores Juruá, especialmente na exposição oral e no diálogo com os cursistas, outros recursos também são explorados para se trabalhar os conteúdos das disciplinas. Os Cadernos Paradidáticos, distribuídos no início do encontro de cada mês, permanecem sempre abertos sobre as mesas e são constantemente consultados pelos professores Juruá e pelos cursistas. Por vezes, os professores Juruá pedem aos cursistas que leiam o texto em voz alta, intercalando a leitura com explicações e discussões. Outras vezes, como no caso da professora de Matemática, o Caderno é utilizado para a proposição de atividades que envolvem a observação, resolução e registro dos exercícios (Figura 2). Destarte, em todas as aulas observam-se atividades de leitura e escrita executadas por meio do Caderno Paradidático.

Figura 1 Cursistas resolvendo atividades no caderno

Além do registro escrito, os cursistas também são estimulados a registrar os conteúdos das aulas por meio de desenhos (Figura 3). Na aula em que a Gabriela Barbosa

56

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

utilizou os ovos de páscoa, parte da compreensão dos exercícios passava pela representação visual esquemática da disposição dos cursistas em relação à quantidade de ovos.

Figura 2 Cursistas ilustrando os órgãos na aula de Ciências.

Os cadernos também apresentam algumas imagens, como ilustrações, fotografias, gráficos e diagramas, que são utilizadas pelos professores Juruá para explicar determinados aspectos do tema da aula. Como alguns gráficos utilizados pela professora de Matemática para ensinar porcentagens. No uso destas imagens a grande maioria aparece sem legenda (Figura 4) e algumas não apresentam qualquer relação aparente com o texto. A falta de legendas acaba tornando imprescindível a explicação dos professores Juruá, para que se estabeleça o vínculo entre a imagem e o conteúdo da aula.

Figura 3 Imagens sem legenda em página do Caderno Paradidático.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

57

Outros recursos são eventualmente utilizados, mas não de maneira sistemática como o Caderno Paradidático. Nas aulas Ciências, por exemplo, o professor Juruá utilizou um boneco antropomórfico (Figura 5) com os órgãos destacáveis para explicar o funcionamento do corpo humano, seus diversos sistemas, órgãos e funções. O boneco foi emprestado por uma bolsista e utilizado em uma ocasião apenas, por referir-se ao conteúdo específico da aula. Em outra aula, desta vez sobre o ciclo da água, o mesmo professor utilizou-se de recipientes de plástico, algodão e terra para realizar uma experiência de construção de um filtro para água, destacando a utilidade dos materiais e a forma como a água pode ser reutilizada. Do mesmo modo, a professora Juruá de Matemática presenteou os cursistas com calculadoras para que aprendessem a utilizá-las para facilitar o cálculo, e em especial para ensinar as operações de porcentagem. Neste caso, ferramentas como calculadoras, réguas e tesouras podem ser utilizados em diversas aulas, de acordo com o tipo de conteúdo e atividades propostas pela professora Juruá. Entre os materiais utilizados nas diversas aulas foram observados os usos de vídeo, livro, laptop para a exibição de imagens digitais, régua, calculadora, balança, bombons, ovos de páscoa, imagens como fotos, desenhos, gráficos, diagramas, anúncios de revistas e mapas, vegetais, terra, recipientes plásticos, escova de dente e boneco esquemático. 4.3.4.Rituais de Encerramento Assim como no primeiro dia de encontro há um ritual de abertura, também no fim do último dia um ritual de encerramento do encontro, quando é feita uma avaliação geral por parte dos professores Juruá e dos cursistas. As orações são comuns quando os representantes dos Guarani falam, agradecendo a conclusão de mais um curso. No encerramento do curso do mês de maio pude presenciar uma avaliação que me ajudou a compreender melhor o papel do grupo dos professores Guarani no Projeto: Um dos agentes, que não havia sido informado que os professores Guarani estavam em um curso de formação, lamentou a ausência deles, considerando o fato ruim para o curso, justificando que eles ajudam os agentes em suas dificuldades com a língua. No mês seguinte, ao fim do novo encontro Darci Nunes de Oliveira, professor Guarani, foi informado sobre a queixa e tomou a palavra, lamentando sua ausência, mas atestando a importância que o evento tinha para sua formação profissional. Nesta oportunidade aproveitou para elogiar o desempenho dos agentes, reconhecendo o evidente aumento das capacidades dos agentes.

Figura 4 Boneco antropomórfico utilizado nas aulas de Ciências

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

58

O professor narrou que enquanto esteve no curso para formação de professores, em Santa Catarina pensou nos agentes de saúde e em como estaria sendo o desempenho do grupo. Darci disse que ficou imaginando como a equipe estava e que teve vontade de estar lá com eles, embora reconhecesse que era importante estar no curso para professores, pela oportunidade que teve de conversar com outros professores Guarani e discutir os problemas relativo à educação diferenciada. Para ele isso ajudaria muito as comunidades, pois ele entende que professores e agentes de saúde são líderes em suas comunidades, ambos são escolhidos dentro delas e têm responsabilidades para com elas. Assim, concluiu que o curso de Escolarização dos Agentes de Saúde é importante, pois observou o progresso da equipe e notou que “o pessoal já resolve problemas que não resolvia antes”. A partir deste momento ficou nítida para mim a distinção entre os dois grupos, com objetivos e papéis diferentes dentro do curso. Ficou claro também o sentimento de coletividade e o espírito de grupo que os une, determinando a presença dos professores Guarani em um curso não direcionado para eles, mas que desempenham um papel fundamental para a formação e fortalecimento do grupo como um todo. 4.3.5.Identidade e comportamentos A aula é observada por uma série de pessoas como, por exemplo, as bolsistas, como mencionado no capítulo anterior, que distribuem o caderno paradidático do mês, gravam as falas do professor Juruá para posterior transcrição, anotam os termos em guarani para organização do dicionário e preparam o diário de classe. Essas atividades têm por objetivo a produção dos relatórios sobre a aula, para posterior documentação e avaliação do curso pelos coordenadores. As relações com os cursistas são, na maioria das vezes, bem amistosas, pois muitas bolsistas estão presentes no projeto do curso desde o início e já conhecem relativamente bem o perfil dos cursistas. No entanto, é evidente que suas expectativas em sala de aula relacionam-se com o ponto de vista de quem ensina. Logo, elas esperam que todos sejam “bons alunos” dentro de seu entendimento de bom ou mau aluno. A situação pode ser ilustrada, por um momento do curso em que um dos agentes, considerado “mau aluno”, chegou atrasado à aula. Um das bolsistas prontamente comentou comigo que além dele “não saber nada” e “chegar atrasado”, ele ainda “ficava conversando” sem “prestar atenção na aula”. Outro momento que corrobora a situação remete ao episódio em que a bolsista ao conversar com o agente, afirmou que ele “não sabia nada sobre o assunto” por

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

59

ficar conversando. O agente pareceu tomar a afirmação como desafio e, logo em seguida, entrou na discussão da aula de ciências afirmando que segundo o ensinamento de seu pai, quando o “tampo da cabeça” da criança permanece “aberto” até um ano e cinco meses, um ano e seis meses, é sinal que a criança “não está gostando de sua estadia na Terra”, e está ainda “muito ligada a Deus (Nhanderu)”. Na sala de aula há o espaço determinado para o diálogo, no entanto são comuns os momentos em que o grupo Guarani busca conversar apenas entre si. A natureza dos assuntos é difícil saber, pois são, muitas vezes, restritos ao uso da Língua Guarani, podendo até configurar assuntos censurados ao ouvido Juruá. Possivelmente, o que eles consideram que os professores Juruá não devem ouvir são faladas na língua nativa, pois é comum após os comentários surgirem risadas, o que deixa às vezes os professores Juruá ligeiramente constrangidos. Há, na sala de aula, também, momentos de silêncio e de poucas palavras. Alguns cursistas, quando inquiridos aparentam timidez ou insegurança, falando numa voz baixa a tal ponto que eu era incapaz de escutar o que foi dito a poucos metros de distância. A situação me fez atentar para o fato que, de um modo geral, os Guarani costumam falar baixo. Eu pessoalmente jamais presenciei um Guarani levantando a voz, e acredito que tal gesto fosse interpretado como algo extremamente mal educado e grosseiro. Para se ter uma noção, o alcoolismo que é um dos grandes problemas que aflige as aldeias, possui como um dos aspectos negativos a característica de levar o ébrio a falar alto. No contexto Guarani, falar baixo não é sinônimo de timidez ou insegurança, mas um valor cultural, que se manifesta em homens e mulheres, e reforça a característica do Guarani de se manter calado, com a sabedoria de quem celebra o silêncio. Como disse um dos agentes sobre uma das dificuldades em lidar com a saúde Guarani: “às vezes o Guarani está se sentindo mal, de saúde ou de espírito, e ao contrário dos outros, ele não fala. Não fala e às vezes melhora”. 4.4. Contraste cultural É possível concluir que as relações da sala de aula são fortemente marcadas pelos diversos contrastes situados pelas oposições entre Guarani e Juruá, professor e cursista, conhecimento formal e conhecimento informal, professores indígenas e agentes indígenas, etc. Estas oposições, embora tentem ser contornadas pelos grupos, tornam-se muitas vezes evidentes e constituem uma das principais características do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

60

O contraste entre os universos Guarani e Juruá permite rever o papel de aluno, na medida em que os cursistas deixam de ser apenas agentes passivos da educação e seus saberes passam a ser valorizados pelos professores Juruá, que buscam reconhecer esses conhecimentos e utilizá-los na sala de aula. Apesar do confronto de papéis e de culturas, há de um modo geral um interesse comum, que alinha as expectativas dos grupos envolvidos. Neste sentido, a escolarização dos agentes de saúde indígena como objetivo maior garante o espaço de negociação entre os interesses particulares de cada personagem envolvida. Entretanto, mesmo com as negociações e as abordagens que buscam negociar os interesses dos grupos e buscar equilíbrio entre as duas culturas, surgem, ainda assim, dificuldades e desentendimentos, evidenciando que a constante avaliação é um elemento importante para a crítica e a melhoria do projeto ao longo de todo o processo. Observando o caso do professor de Ciências, que se interessa em nomear os conhecimentos das Ciências Juruá com nomes em guarani, podemos notar que mesmo uma prática mais informal e voltada para o contexto Guarani acaba trazendo dificuldades para os cursistas em relação à retenção dos conteúdos. Quando questionados durante os exercícios dos encontros semi-presenciais, os cursistas demonstraram dificuldades em relembrar os órgãos do corpo humano que foram trabalhados no encontro presencial. Para sanar esta dificuldade, a orientação dada ao professor de Ciências pelos coordenadores foi que buscasse trabalhar mais os exercícios, para facilitar o domínio dos conteúdos pelos cursistas. O fato demonstra que apesar do sucesso em aproximar as Ciências Juruá do universo de significação da Língua Guarani, o tipo de expectativas em relação à apropriação dos conteúdos segue um modelo consolidado no ensino escolar Juruá. Notemos que a própria proposta do curso, como um projeto de escolarização de jovens e adultos, supõe a construção de um conhecimento situado no âmbito da educação escolar, que estabelece mecanismos de ensino e de avaliação diferentes daqueles da educação informal. O contraste entre ensino escolar e ensino informal também pode ser exemplificado pelo embate entre o agente de saúde e a bolsista, na situação em que uma das bolsistas desafiou um dos agentes a demonstrar um conhecimento sobre a aula e este narrou um exemplo fundamentado em sua cultura, como mencionado no tópico anterior. Mesmo considerando que tensões de ordem pessoais entre estes indivíduos possam existir, notamos que o desafio revela uma expectativa por parte da bolsista em relação aos maus-alunos, em especial uma predisposição em esperar uma má atuação destes indivíduos. Se por um lado a resposta do agente

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

61

surpreende, ao manifestar que tem conhecimentos a acrescentar à discussão de sala de aula, por outro lado também confirma que, mesmo que o agente tenha conhecimentos formados fora do ambiente escolar, espera-se dele um tipo de postura e de conhecimentos que são constituídos no ambiente escolar. Neste ambiente, são formadas as noções de bom e mau aluno, que não consideram o que o indivíduo efetivamente conhece, mas um modelo de comportamento e de conhecimento específico da sala de aula. Contudo, devemos considerar que as estratégias pedagógicas também se configuram como elemento estranho aos saberes tradicionais e podem causar desinteresse nos cursistas. Como exemplo, vemos que a professora de Matemática procura resgatar elementos presentes no cotidiano para propor os exercícios e reforçar as informações já conhecidas. Nesse movimento de resgatar conceitos e reforçá-los, ela acaba criando séries de exercícios semelhantes, que para os cursistas tornam-se repetitivos, levando-os a manifestar expressões como “muito chato” ou por meio de justificativas irônicas para não realizar os exercícios, porque o cursista “já fez o outro”. Apesar de repetitivos, não observamos as mesmas dificuldade de fixação por parte dos cursistas, como no caso da aula de Ciências, o que evidencia a necessidade de equilíbrio entre dever e prazer. Frente à função disciplinadora da Escola, os cursistas utilizam-se da Língua Guarani como forma encontrada de subverter o controle dos professores Juruá, constituindo um momento em que manifestam maior liberdade para se expressar. A língua portuguesa é utilizada ao longo das aulas pelos professores Juruá e permite que estes controlem o diálogo dentro da sala de aula, de acordo com o teor das conversas. Através do espaço garantido para o uso da Língua Guarani, os cursistas podem subverter este ambiente disciplinador da Escola, e deixar de lado o papel de cursistas, para agirem, ainda que momentaneamente, guiados pelo modo de ser Guarani. Observamos que o uso da Língua Guarani representa duas funções importantes para os cursistas. Primeiro, por que o uso da língua é uma forma dos cursistas exercerem sua identidade Guarani. A língua, neste sentido é um elemento que dá coesão e distinção ao grupo a tal ponto que chega até a desencadear discussões acerca de diferenças étnicas e regionais sobre o seu uso adequado. Em segundo lugar, podemos compreender o uso da língua como forma dos cursistas exercerem sua autonomia, podendo conversar através de um código restrito, só dominado pelo grupo, que lhes garante o poder de excluir os professores Juruá das conversas, se assim desejarem.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

62

Diante do contraste entre a disciplina da escola e o modo de ser Guarani, notamos que o curso se caracteriza não por uma abordagem puramente baseada no universo da cultura Guarani, mas pela busca de equilíbrio entre as práticas escolares tradicionais e o universo cultural Guarani, constituindo assim um universo híbrido em que se encontram tanto as estratégias pedagógicas da escola Juruá, quanto o repertório dos saberes tradicionais Guarani. Seja pela falta de exercícios para fixação dos conteúdos, seja pelo excesso, fica evidente o esforço dos professores Juruá em estabelecer estratégias pedagógicas que atendam da melhor maneira possível às dificuldades apresentadas durante o curso.2 No entanto, além do cuidado com as estratégias pedagógicas, da abordagem de temas relativos à cultura do grupo, outro fator que se mostra importante no processo de aprendizado é a relação com o tempo, e em especial o tempo para o aprendizado. Durante uma das aulas um dos agentes afirmou que “o Guarani antigamente não tinha que ensinar com os livros, era pela conversa e não tinha pressa, não tinha um tempo certo para ensinar”. O tempo certo para a aprendizagem de algo era “quando a criança perguntava”, então os mais velhos deveriam ensiná-la. Entretanto, inseridos na dinâmica do ensino escolar, esta noção de tempo indeterminado é substituída pela segmentação do tempo através dos horários fixados para as aulas, refeições, deslocamento, etc. A partir da rotina determinada pela organização dos encontros presenciais, os Guarani demonstram sua adaptação ao tempo segmentado ao cobrar dos professores Juruá o rigor com os horários das refeições e dos intervalos, quando os docentes estendem a duração das aulas. A partir desta noção do tempo de aprendizado Guarani podemos detectar o choque inevitável com a noção escolar, em que a turma deve aprender um conteúdo específico dentro de um intervalo de tempo determinado. Para minimizar o choque, os professores Juruá procuram consultar os cursistas sobre o ritmo das aulas e os Organizadores buscam adequar o currículo e a organização dos encontros presenciais às necessidades destes cursistas. O aprendizado também está relacionado ao espaço de estudo. A definição de um local específico para as aulas e para a resolução de exercícios contribui diretamente para o fortalecimento da prática do estudo, como foi observado em relação aos encontros semi-presenciais que, ao ganharem um local e um tempo definido para sua realização, permitiram um maior índice de resolução dos exercícios. Assim,

Neste caso, observamos o fenômeno do hibridismo a partir da definição de cultura de Canclini (1995) como um processo de montagem multinacional, uma articulação flexível de partes. 2

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

63

observamos que o deslocamento do lugar da aldeia para o lugar da escola foi determinante para reconhecer e desempenhar o papel de cursistas em atividade escolar. Em relação aos materiais didáticos e paradidáticos empregados, destacamos a importância desempenhada pelos Cadernos Paradidáticos, que constituem o fio condutor das atividades dos alunos nas diferentes etapas do curso, nos encontros presenciais, semi-presenciais e estudo dirigido. Contudo, mesmo sendo fundamental para avaliação do percurso dos cursistas, os Cadernos Paradidáticos não constituem elementos independentes e auto-sustentáveis, pois o tempo todo dependem da mediação realizada pelos professores Juruá, através de incentivo e cobrança para que o material seja utilizado. Entre os principais empregos no ensino presencial observamos o uso dos Cadernos ligados à leitura, registros de conteúdos complementares e resolução de exercícios (como mencionado no tópico 4.3.3). Neste sentido, os Cadernos constituem um elemento fundamental e distintivo do processo de escolarização, na medida em que se afasta das práticas orais e informais Guarani, para se tornar registro escrito e prática de leitura do ambiente escolar, desenvolvido na sala de aula com a mediação dos professores Juruá. Além dos usos direcionados aos conteúdos das disciplinas, é a partir dos usos do material que também são consolidadas as práticas relacionadas à Língua Portuguesa e Guarani. Diferente dos usos dos demais recursos didáticos, que em geral possuem um caráter demonstrativo, no sentido de exemplificar determinado conteúdo ou situação, os Cadernos Paradidáticos também exigem, por princípio, a interação dos cursistas através das atividades de desenho e escrita. Marcam, portanto, uma passagem em relação a forma de aprendizagem ao estabelecerem estas práticas de leitura escritas, embora às vezes consolidada um pouco a contragosto. Neste sentido, fica evidente que os Cadernos Paradidáticos, mesmo sem possuir uma organização dos conteúdos e produção visual elaborada, alcançam os cursistas através da mediação dos professores Juruá, que são também autores. Como no caso das imagens sem legenda, o professor Juruá pode suprir sua falta através da explicação, mas esta estratégia resume-se apenas ao momento em que ele, enquanto docente e conteudista, estiver presente. Entretanto, cabe questionar até que ponto os Cadernos, enquanto registro escrito, devem permanecer tão dependentes da mediação do professor Juruá. Uma vez colocada a importância do Caderno Paradidático para o curso e a mediação realizada pelo docente/conteudista junto aos cursistas, a relação entre leitor e suporte fica pendente, carecendo de uma investigação sobre as mediações dos

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

64

Cadernos Paradidáticos entre os cursistas e o os textos dos professores Juruá. Não obstante, mesmo uma investigação sobre a mediação do Caderno Paradidático não pode ignorar a importância da mediação do professor Juruá, assim como o fato que este material está vinculado a outras formas diversas de mediação, exercida por diversos agentes em diversos níveis, como o próprio conhecimento dos agentes de saúde, as mediações dos professores Juruá e Guarani, as línguas, as culturas, as trajetórias individuais e coletivas, etc. Portanto, verificamos o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde define-se pelo desafio frente ao contraste entre as culturas Juruá e Guarani, e a resposta a esse desafio encontra-se na tentativa de equilíbrio entre ambas. Na maior parte do tempo observamos a intenção manifestada pelos professores Juruá em respeitar o universo cultural Guarani, propondo-se ao desafio de dialogar com o conhecimento dos cursistas. Também há por parte dos cursistas a noção da importância do curso para sua formação, e da importância desta formação para o bem da comunidade, constituindo este grupo não apenas como sujeitos que devem aprender, mas que participam de um projeto coletivo de fortalecimento de sua comunidade. Há, portanto, que se considerar que o curso existe na negociação entre Juruá e Guarani, e é produto destas tensões e dos contrastes culturais.3

Negociação esta análoga ao entendimento de Elias (1994), quando o autor observa a sociedade enquanto fenômeno reticular, ou seja, como fruto das interações entre os indivíduos. 3

65

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

5 O papel do designer na cultura

Considerando o diálogo entre as diversas identidades nos encontros presenciais do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde, somos inclinados a pensar o papel cultural do designer neste processo. Neste sentido, coloquemos a seguinte questão: como pode o designer contribuir para a aquisição da leitura na sociedade Guarani, minimizando o impacto do livro enquanto suporte externo às tradições educacionais desta comunidade? Não parece haver uma única resposta para esta pergunta, e tampouco parece haver alguma que seja mais precisa ou correta. No entanto, parece lícito buscarmos respostas por meio de uma abordagem que contemple a ação social e cultural do Design, na medida em que o tema é introduzido no próprio enunciado. Contudo, antes de arriscarmos uma compreensão sobre as intervenções do designer e as conseqüências de seu trabalho, a fim de refletirmos sobre a conduta deste profissional, é preciso primeiro buscar um entendimento acerca do que define esta prática do Design e sua caracterização em nossa sociedade. Em primeiro lugar, é importante compreender os alicerces que contribuíram para a formação da noção de “Design” (ou Desenho Industrial). Embora haja uma série de debates sobre qual a verdadeira origem do Design no Brasil, não pretendo discutir este tema aqui, portanto assumiremos a noção mais comum de que o Design surge no Brasil, ao menos como prática institucionalizada, entre as décadas de 50 e 60. Contudo, não é suficiente apontar o período em que surge sem compreender o contexto de como há a implantação desta profissão e quais as noções que distinguem esta prática. Para um entendimento sobre o contexto recorro ao estudo de Teixeira (1997), sobre a gênese deste campo no Brasil, em que o autor compreende a instituição do Design fortemente ligada à ideologia desenvolvimentista, presente na política das décadas de 30, 40 e 50. Por meio de um projeto de nação, a demanda por esta categoria profissional foi instituída para atender ao amplo parque industrial em crescimento. No mesmo estudo, Teixeira aponta para a maneira como estes projetos políticos inspiravam–se no lema positivista “amor como princípio, ordem como base e progresso como fim”, através da crença no desenvolvimento tecnológico como solução para o desenvolvimento da nação e

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

66

a extinção dos problemas sociais e econômicos conduzindo, por conseguinte, à consolidação de uma nação moderna e igualitária. Neste sentido, reconhecer o caráter ideológico do projeto desenvolvimentista nacional parece ser determinante para termos uma noção sobre que tipo de papel o designer teria nesta nação emergente que se planejava. Niemeyer (1997) observa que, juntamente com o estabelecimento de uma indústria, o designer brasileiro seria um dos profissionais responsáveis pela modernização do país, através do estabelecimento do produto industrial brasileiro. Cientes do contexto histórico, podemos agora dirigir nosso olhar sobre as noções que definiram esta prática profissional que veio a ser considerada uma das ferramentas para a modernização do Brasil. Não é segredo que a Escola Superior de Desenho Industrial, fundada em 1962, foi fortemente influenciada em sua origem pela doutrina racionalista da Hochschule für Gestaltung, em Ulm, na Alemanha. Neste sentido, Niemeyer (1997) descreve a forte influência dos professores Alexandre Wollner e Karl Heinz Bergmiller, formados em Ulm, na reprodução das práticas da escola alemã. Portanto, parece justo deslocarmos o nosso foco para a Europa, momentaneamente, numa tentativa de observar alguns aspectos característicos e distintivos que determinaram a formação do Design como campo autônomo e contribuíram para a formação da identidade do designer no Brasil. Situando historicamente, podemos compreender que a própria escola de Ulm foi herdeira de uma noção de Design que lhe era anterior, mas que no contexto da escola desenvolveu um entendimento próprio através de uma prática pautada por uma ideologia conhecida como “racionalista”. No entanto, apesar do importante papel que a escola teve para o desenvolvimento do Design particularmente no Brasil, a distinção da prática do Design em relação aos outros campos pertence a um momento anterior. A distinção desta prática profissional começa a se estabelecer em meados do século XIX, influenciada pela crítica do artista inglês John Ruskin em relação à produção industrial contemporânea, sob o ponto de vista das artes decorativas, ou seja, o ato de projetar para o interior das construções. Aos olhos do crítico, os produtos da indústria eram meros arremedos da produção artesanal e, por esse motivo, inferiores, pois lhes faltava “verdade” em relação à natureza e ao uso dos materiais empregados. Heskett(1998) entende que para Ruskin, o sucesso da produção artesanal estava ligado à sua forma trabalho e em especial ao controle sobre o processo produtivo, em oposição a um momento histórico em que era

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

67

comum a separação entre o Design e os processos de produção industrial. A crítica de Ruskin é comumente apontada como ponto chave para a formulação da noção do Design moderno que define o designer como profissional que projeta as formas dos produtos, adequando os materiais e técnicas utilizadas ao processo de produção industrial. É importante mencionar que neste mesmo período desenrolava-se a discussão no campo das Artes em busca da distinção entre tipos mais ou menos nobres. Para Wolff (1982), esta diferenciação em níveis pode ser atribuída ao surgimento da noção de artista como gênio, que confere uma singularidade ao trabalho artístico em detrimento das demais práticas. A partir desta noção as artes decorativas passam a ser entendidas como “arte menor”, em oposição às demais formas de arte. Entretanto, a despeito desta segmentação, Ruskin entendia que toda forma de arte podia ser decorativa, o que mudava eram apenas as condições de sua recepção, no que diz respeito à maneira como a obra fica mais ou menos expostas a danos e ao desgaste. A partir deste entendimento, podemos situar o discurso de Ruskin num contexto de “reconhecimento oficial do design, na tensão entre criação artística e criação para a indústria”, como afirma a designer Fabrícia Cabral (2006, p12). Em Ruskin vemos também a ascensão da identidade do designer, ao lado do Artista e do Artesão, através do estabelecimento deste novo papel relacionado às artes decorativas. Para Ruskin cabia a este novo profissional, o designer, a compreensão dos “limites dos materiais” e, por conseguinte, sua “boa utilização” atribuída a um “bom senso”, ou seja, a um senso artístico próprio deste profissional: É justamente o conhecimento da razão para não fazer tais coisas, e para fazer o que fez, que constitui seu poder como design [...]. Você acaba confundido os outros ao afirmar que o design depende de série e simetria quando, na verdade, depende inteiramente do seu próprio senso e juízo. (John Ruskin, apud Cabral, 2006, p.4)

O “uso da razão” que Ruskin propõe institui o caráter inventivo da profissão, atribuindo ao designer o estatuto de criador e não um mero seguidor de métodos e formas para a criação do produto. Observamos aqui que o discurso de Ruskin é constituído a partir de uma ideologia que conjugava dimensões éticas e estéticas: Para o design da época, Ruskin, propôs como solução o bom convencionalismo que seria obtido na: observação e interpretação, não na mimese, do belo, a fonte do belo seria

68

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

a natureza e a boa arte; compreensão dos limites dos materiais, o que ocasiona a sua boa utilização; habilidade em desenhar e o bom gosto, que viriam da formação como artista. Educação, trabalho e bom senso. (Cabral, 2006 p.12)

Neste âmbito, vemos associada ao designer a articulação da competência da invenção artística com a compreensão dos materiais e processos produtivos. Tal articulação atribui à noção de Design a equação entre criação e técnica. Por um lado, a esfera da criação pressupõe uma capacidade singular e individual, algo que se dá de maneira obscura e que não se pode aprender ou definir. Um “je ne sais quoi”, algo que confere singularidade e distinção à obra. Por outro lado, temos a esfera da técnica que estabelece os conhecimentos o que designer precisa ter para exercer seu ofício e que são, portanto, partilhados pelo campo e ensinados pelas escolas. O caráter técnico foi fortemente acentuado por algumas correntes de Design, especialmente da escola de Ulm, que pautava sua prática através de uma ideologia racionalista que se definia pela máxima “a forma segue a função”. A ideologia racionalista de Ulm propunha uma abordagem metodológica que buscava a definição de um Design “objetivo”, amparada por outras ciências como a Psicologia da Gestalt e a Semiótica, considerando que as formas dos produtos seriam inevitavelmente definidas pelo uso que se destinavam. Apesar da tentativa de se evitar a presença de “subjetividades” no projeto, o uso de um produto e a forma que ele deve ter ainda dependiam, e muito, da compreensão individual do designer. Portanto, mesmo com o estabelecimento de um “método projetual objetivo” voltado para a função, este Design não deixa de ter aspectos individuais e subjetivos, mas conduz a um obscurecimento do caráter da criação. Temos, portanto, uma noção de Design compreendida através desta equação entre criação e técnica, estabelecendo a prática profissional em torno da criação para indústria considerando os materiais e processos de produção. É a esta noção que a política desenvolvimentista recorre ao instituir a profissão no país. Embora não constituísse uma intenção prévia, o estabelecimento de uma escola que seguisse o modelo racionalista de Ulm, com maior ênfase na técnica por meio de um Design objetivo e voltado para a função, parece ter se adequado muito bem à ideologia desenvolvimentista daquele momento, como afirma Niemeyer (1997).

69

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

5.1. O designer como agente cultural Vista a noção de Design incorporada no Brasil, é preciso considerar que a prática da profissão ganhou características próprias através da atuação ligada à indústria, mas também com a presença do designer em outras áreas. Cabral (2006) nos dá um exemplos da atuação do designer fora da indústria ao destacar a contribuição do designer Aloísio Magalhães no plano cultural, que segundo a autora, estabeleceu uma política de resgate da produção artesanal brasileira. Outro exemplo pode ser encontrado no âmbito da pesquisa e dos projetos de extensão universitária voltados para o atendimento de demandas sociais. Houve, portanto, uma ampliação do campo de atuação do Design, fato que interferiu diretamente sobre a compreensão do designer sobre sua identidade. Na medida em este profissional passa a agir fora dos limites tradicionalmente estabelecidos para sua profissão, compreendida no processo de adequação das formas dos produtos aos modos de produção industrial. A partir daí, uma possível crise de identidade do Design contemporâneo pode ser enunciada através da pergunta: existe Design sem indústria? O questionamento sobre o campo de atuação do Design suscita uma série de discussões e não apresenta respostas conclusivas, pois, para alguns, a compreensão da atividade depende da sua relação com a indústria, sem a qual pode ser qualquer coisa, menos Design. Para outros, o que define a atividade de Design é uma forma de abordagem ligada aos conhecimentos específicos da área. Contudo, ambas as respostas apontam para questões circunstanciais, na medida em que tentam justificar a singularidade do Design pelo trabalho ou pelo corpus teórico. Não obstante, se examinarmos o que constitui o trabalho do designer não encontraremos diferença efetiva, em relação às formas de trabalho, entre a maneira como o designer trabalha e a maneira como trabalhavam os artesãos do fim da Idade Média, incluindo-se nesta categoria aqueles que compreendemos hoje como artistas, uma vez que não havia esta distinção. Podemos argumentar que as guildas de artesãos das mais variadas especialidades, baseados na documentação dos contratos de trabalho da época, geriam todo o processo de produção, da proposta de trabalho à entrega da produção, passando até pelo acordo de definição das formas a serem utilizadas numa pintura, por exemplo. Desta maneira, pintores, escultores, sapateiros, carpinteiros, joalheiros, oleiros, ferreiros, entre outros, cuidavam das etapas de proposta, negociação, especificação do trabalho, definição do contrato, projeto, desenvolvimento e produção. Estas

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

70

atribuições não são nem mais nem menos do que as que atribuímos hoje ao trabalho do designer (e também ao Arquiteto e a outros profissionais liberais, ligados ou não a uma indústria). 1 Neste sentido, Cabral (2006) deixa claro que o próprio John Ruskin considerava o modelo das manufaturas medievais como referência para estabelecer os parâmetros do Design, intitulando uma de suas palestras como “a manufatura moderna e o design”. Assim como em relação à prática, também em relação aos conhecimentos empregados fica igualmente difícil situar os conhecimentos específicos do Design, haja vista o caráter multidisciplinar da profissão que conduz aos conhecimentos empregados nas áreas afins, como a Artes, Arquitetura, Comunicação, Engenharia, apenas para citar as mais comuns. Considerando a dificuldade de se estabelecer uma distinção prática e teórica do Design, poderíamos questionar se há alguma diferença entre o trabalho do designer e de outros profissionais. Sob o ponto de vista da praxis não há, pois não é o designer o único profissional que projeta, cria, planeja, gerencia, negocia, etc. Tampouco a diferença está no conjunto de conhecimentos empregado. Contudo, devemos supor que haja algo que diferencie este campo, afinal empregamos o termo Design para distinguir este dos demais campos. Apenas o uso deste termo já constitui um signo distintivo, que abarca um sentido diverso de outros termos como Arquitetura, Artes, Engenharia, etc. Afinal, o que estabelece esta diferença? O que faz com que o produto de um designer seja mais bem remunerado, via de regra, que um Artesão? As respostas a estas questões situam-se fora dos produtos e das práticas do Design. O valor de um produto de Design não está no produto, e nem na forma de trabalho, mas numa dimensão imaterial que este produto ganha, relacionado aos significados atrelados a ele em nossa sociedade. Como valor, tratamos de um bem simbólico e, portanto, dependente dos contextos social, cultural e econômico em que se encontra. 2 A distinção do Design está no conjunto de significados atribuídos ao Design, valores como, por exemplo, as noções de que irá promover a modernização do país, melhorar a qualidade dos produtos, aumentar a competitividade, favorecer a assimilação, comunicar uma idéia ou conceito aos clientes, etc. 1

Como no contrato de trabalho Antonio Spezia e Pedro Paulo comissionados por Matteo di Giovanni para a pintura de altar para a Irmandade de Santa Bárbara. Livre tradução de Alberto Cipiniuk. Apud. GILBERT, C. Italian Art 1400-1500. New York, 1980. pp. 38-40. 2 A esse respeito, o sociólogo Pierre Bourdieu propõe a existência de um mercado dos bens simbólicos, e até mesmo de uma economia das trocas simbólicas. (BOURDIEU:2004)

71

Contudo, não há motivos para crer que a distinção do Design pela dimensão simbólica seja menos justa do que uma distinção pelo trabalho, até por que os significados, apesar de abstratos, participam concretamente das relações sociais. Como define Geertz (1989, p.15), não há ação humana que esteja dissociada de significados. Para o autor, o ser humano é um “animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu. Neste sentido, é preciso que fique claro que a distinção do designer não se dá pela prática, mas pelos valores socialmente constituídos que conferem à esta identidade um caráter singular.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

5.2. O impacto do Design na cultura Se considerarmos o caráter distintivo da identidade do designer constituído a partir de significados socialmente atribuídos, e não pela prática ou conhecimentos específicos, podemos situar o Design a partir dos discursos que o sustentam e valorizam. A partir dos valores simbólicos acerca do campo, há uma a noção constituída e reproduzida que considera o Design como ferramenta para a modernização e aumento da competitividade dos produtos no mercado. Esta noção implicou a constituição de uma nova frente de atuação para o Design: a consultoria de artesanato. Programas que visam ao desenvolvimento econômico de comunidades tradicionais têm levado as instituições, como no caso do SEBRAE, que têm abrangência de caráter nacional, ao recrutamento de designers como detentores de um conhecimento técnico e administrativo visando ao “aumento da competitividade” e “revitalização” dos produtos artesanais. Do ponto de vista econômico, se considerarmos os designers como profissionais qualificados por sua experiência de mercado e pela similaridade entre a prática do Design e do Artesanato, tal alternativa apresenta-se como uma solução plausível. Entretanto, considerando o ponto de vista cultural e o teor simbólico das práticas sociais, nos deparamos com alguns problemas considerados pelas Ciências Sociais, Antropologia, Educação e Psicologia e diante das quais cabe perguntar: que tipo de impacto o Design pode causar nas formas de saber ligadas a tradição destas comunidades? Um fato a ser considerado neste problema refere-se a formação do designer. Sob o ponto de vista cultural, a despeito de sua formação profissional, a formação sóciocultural do designer é, na maioria das vezes, diversa do público a que atende, tanto aos usuários de seus produtos quanto aos clientes de seus serviços. Há que se considerar que por essa formação diversa de seu público o designer partilha de códigos e significados diferentes, e, portanto, não

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

72

possui, a priori, meios para compreender as práticas do artesanato na dinâmica do contexto em que desenvolvem. Podemos ilustrar este fato com um pequeno caso, narrado por uma ex-funcionária do IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A narradora conta que costumava visitar uma pequena comunidade de mulheres bordadeiras no interior do Nordeste brasileiro, que reproduziam os padrões tradicionais aprendidos através da prática ao longo das gerações, de mãe para filha. Em determinado momento, um dos projetos promovidos pelo SEBRAE chegou ao local, contratando um designer paulista para prestar consultoria. Conforme a proposta, o designer se apresentou e propôs uma avaliação da forma de produção, considerando a recepção destes produtos pelo mercado e, com a posse destes dados, determinou a modificação dos padrões e da forma de trabalho, com o objetivo de ampliar a produção e aumentar o lucro. Sob o ponto de vista econômico haveria uma melhoria, mas a que custo? Nesta situação, a intervenção deste profissional impôs o rompimento com uma tradição estabelecida e, portanto, com aspectos formadores e definidores da identidade dos membros desta comunidade, ignorando a maneira como a forma de trabalho possui significados nas esferas das relações sociais, psicológicas, subjetivas e afetivas. Sob o ponto de vista da constituição destes significados, uma solução puramente voltada para aspectos econômicos pode afetar o próprio entendimento da comunidade sobre si e causar danos como o enfraquecimento ou a perda da identidade cultural. Ao visitar novamente a comunidade, nossa informante observou que a interferência do designer gerou uma baixa-estima generalizada por forçar a produção de um padrão que nada significa para as artesãs e, desta forma, rompeu com auto-reconhecimento definido por uma tradição histórica. 3 A partir de nosso exemplo percebemos que o Design não se distingue apenas por valores de caráter simbólico, como também atua na produção destes bens simbólicos e afeta diretamente sua recepção. Neste sentido, podemos compreender o designer como agente cultural na medida em que lhe é outorgada a autoridade sobre as formas e as técnicas de produção dos objetos, que lhe permite legislar sobre o que pode ou não pode ser feito, e como ser feito, seja para os objetos industriais ou não. Reconhecendo o designer enquanto agente cultural e a autoridade que lhe é conferida, observamos que novas responsabilidades emergem deste processo e tornam a

3

A história foi narrada informalmente, por isso optamos por não revelar a informante, a comunidade e o designer envolvidos, de modo a preservar suas identidades. Neste caso, mencionamos apenas as instituições envolvidas para evidenciar os diferentes posicionamentos.

73

temática do impacto do Design algo cada vez mais presente nas discussões sobre as interferências deste profissional.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

5.3. Design e responsabilidade social Dentre as responsabilidades decorrentes da ação do designer na cultura, consideramos importante abordar a questão da identidade do público para o qual o profissional trabalha. Como define o sociólogo Norbert Elias(1994), é a identidade de grupo que permite um sentido de continuidade, pois garante um passado e um futuro ligados ao indivíduo através de sua identificação com este grupo. Como exemplo, destacamos a importância conferida pelo autor à maneira como a identidade nacional influencia a formação e caracterização das identidades individuais. Para Elias, a idéia de pertencimento a uma nação garante ao indivíduo a inserção em um grupo que o precede e sucede. Destarte, o sociólogo observa que a identidade coletiva garante a perpetuação do indivíduo através da memória do grupo, e reproduz sua existência através da História. O sentimento de pertencer a algo maior do que si também determina a própria identidade individual, sob o ponto de vista de não nos definirmos simplesmente como alguém, mas como alguém que nasceu em algum lugar, possui uma família, pertence a um grupo profissional, fala determinada língua, etc. Além dos grupos aos quais pertencemos nos definimos também pelos grupos aos quais não pertencemos, pois a singularidade de um grupo depende da relação de contraste com outros grupos existentes para que se estabeleça esta distinção. Desta maneira, se digo que sou carioca é por não ser gaúcho ou potiguar, se me afirmo como designer é por não ser advogado ou dentista, se me considero brasileiro é por não ter nascido na Noruega ou no Senegal, ou por falar balinês ou inglês. A constituição destas identidades, segundo Elias, é fruto de um processo histórico constituído através da interação social entre os indivíduos e não é determinada, assim como o rumo de uma conversa, pela vontade de um ou de outro, mas pela dinâmica da interação entre os dois. Isto significa dizer que as práticas que definem uma identidade podem ser situadas no tempo e no espaço, e ganham significados neste contexto. Mas enfim, qual a importância de se considerar o processo de formação das identidades? O que implica reconhecer que as identidades são historicamente formadas através das relações sociais? Considerar este processo em que se constituem as identidades e a atuação do designer como agente cultural permite reavaliar suas ações diante do impacto que pode causar. A imposição de uma forma de produto pré-

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

74

determinada pela experiência profissional do designer, ignora as particularidades que constituem uma identidade regional e consequentemente não participa dos significados socialmente instituídos. Se o designer se propõe a atuar em uma comunidade, buscando minimizar o impacto na constituição da identidade do grupo ele deve estar ciente de que esta identidade se constitui ao longo da história através das relações sociais dos indivíduos. Uma vez expostos os argumentos para pensarmos sobre uma conduta do designer, e cientes de sua ação na cultura, retomemos nosso questionamento inicial: como pode o designer contribuir para a aquisição da leitura na sociedade Guarani, minimizando o impacto do livro enquanto suporte externo às tradições educacionais desta comunidade? Em primeiro lugar, cabe situar em que contexto esse livro se insere. Para minimizar o impacto do Design sobre a identidade e as tradições Guarani, é necessária uma observação de todo o entorno que envolvem as práticas sociais da leitura e escrita. Uma ação típica dos designers seria fazer um levantamento das referências visuais que cercam a identidade Guarani e aplicá-las num livro com “identidade visual Guarani”. Entretanto, tal postura só contribui em parte para uma identificação com o material, na medida em que o projeto será pautado pelas convenções de representação acerca do livro conhecidas pelo designer. O que pode ser feito para estabelecer a identificação do grupo com este material é buscar entender como o livro é utilizado e que significados estão ligados a esta prática na comunidade específica a que se destina. As maneiras como tradicionalmente são transmitidos os conhecimentos podem servir para pautar estratégias de abordagem que passem tanto pela proposta didática, quanto pelo desenvolvimento de conteúdo e pelo projeto gráfico. Entretanto, se consideramos que a identidade e os significados se constituem através da dinâmica das relações sociais é preciso atentar para o fato de que a observação e análise por si só não bastam para a constituição de um objeto que reflita a identidade do grupo. Se voltarmos nosso olhar para o Projeto de Escolarização de Agentes de Saúde indígenas, notamos que o próprio curso não se caracteriza unicamente por seus alunos, mas por uma série de variáveis envolvidas nessa prática, tais como o local do curso, as aldeias envolvidas, a equipe docente, as instituições responsáveis, etc. Ora, se o curso caracteriza-se pelas relações entre professores e alunos, instituições e aldeias, num espaço e tempo específicos, por que um produto de Design deveria se pautar apenas por uma análise de contexto para definir o “melhor emprego” das convenções de representação de livro? Portanto, é preciso considerar primeiro a definição de um produto que atenda não apenas a uma identidade Guarani,

75

ou à identidade do designer, mas a uma identidade contextualizada neste curso para agentes de saúde indígenas. Contudo, para atender a esta identidade coletiva é preciso que o Design não se torne algo externo e alheio ao processo, mas que se inscreva em sua dinâmica, para que, através da prática com o grupo, o produto possa adquirir significados diante das relações estabelecidas. Assim como uma conversa que não possui rumo definido, o produto é constituído pela relação entre o designer e seu público. Assumir tal postura não constitui efetivamente uma mudança na prática do Design, no tocante ao modo de trabalho, mas estabelece uma mudança significativa em torno dos sentidos produzidos. Por isso, se o Design se distingue pelo caráter simbólico, é lícito que haja uma preocupação com a constituição destes significados dentro das relações sociais. Tendo isso em vista, relataremos a seguir a experiência de um caso de design voltado para o contexto.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

5.4. Design para a prevenção de DST-AIDS A partir de meu envolvimento com o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígenas para as aldeias Guarani do Estado do Rio de Janeiro, fui convidado em setembro de 2005 para participar da produção de uma publicação sobre prevenção de Aids e outras doenças sexualmente transmissíveis (DST). A publicação foi uma iniciativa da Assessoria Estadual de DST/Aids, vinculada à Secretaria Estadual de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (SES-RJ), como uma das estratégias educativas e preventivas nas aldeias Guarani, para controle das DST e Aids. O Álbum Seriado, como foi denominado pelas idealizadoras Jane Portella e Diana Marinho, surgiu como forma de consolidar os conhecimentos dos indígenas que participaram do treinamento de multiplicadores para a prevenção das DST/Aids realizado no ano de 2000. 4 A necessidade foi percebida ao término do treinamento, durante o acompanhamento feito pela SES-RJ, quando foi constatado o interesse dos participantes pela criação de um material ao qual pudessem recorrer posteriormente. 5 Assim, concebido com o objetivo de servir aos Agentes de Saúde e Professores indígenas como material de apoio para trabalhar o tema na comunidade, o Álbum Seriado seria uma publicação impressa a partir dos desenhos e 4

Jane Portella é integrante da Assessoria de DST/AIDS da SES-RJ Diana Marinho é integrante da ENSP – FIOCRUZ. 5 De acordo com as idealizadoras, o “Álbum Seriado” consistiria em um conjunto de páginas impressas ilustradas direcionada para conteúdos específicos, com o objetivo de facilitar a discussão dos temas nos grupos familiares.

76

depoimentos feitos ao longo do treinamento para prevenção das DST e Aids.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

5.4.1.Definição do projeto Em posse de uma grande quantidade de desenhos, textos e idéias, muitos deles inclusive digitalizados, restava à Assessoria Estadual de DST/Aids transformar este material numa publicação. Para a realização desta empreitada a instituição resolveu contratar-me como designer consultor para auxiliar no projeto e produção. Neste momento eu já acompanhava o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde das aldeias Guarani e fui indicado para a produção do Álbum. Quando começamos o projeto, no qual fui auxiliado pelo designer Romulo Matteoni, as idealizadoras ainda não possuíam uma noção clara sobre como seria a publicação, não havia um roteiro ou texto definido, apenas uma idéia de criar algo a partir das imagens e depoimentos dos indígenas que participaram do treinamento. Na primeira reunião foram mostrados alguns desenhos produzidos pelos Guarani que participaram do treinamento, bem como uma publicação que serviria de modelo para este projeto. Também foram apresentadas e discutidas informações relevantes sobre a prevenção das DST e Aids. Sobre este aspecto, discutiu-se também a vulnerabilidade dos indígenas às doenças e a necessidade de aproximar esta discussão da cultura Guarani. Portanto, desde o primeiro momento foi estabelecido que a publicação refletisse da maneira mais próxima possível uma perspectiva Guarani sobre a questão da prevenção da Aids e das DST. 5.4.2.Método de abordagem Ao contrário da expectativa dos designers, o Álbum Seriado possuía uma proposta diferente de uma cartilha convencional sobre Aids e DST. Observamos em outras cartilhas educativas uma forma bem comum de abordar o tema da prevenção da Aids e das DST. Na maioria delas encontramos uma fórmula de esquematizar as explicações de maneira prática (ver Figura 6), ou seja, exemplos de ações, sobre as doenças, suas formas de transmissão e de prevenção. Já no Álbum, pelos objetivos definidos, o tipo de abordagem deveria apenas disparar a discussão dos temas nos grupos da comunidade.

77

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Figura 6 Panfleto distribuído pela SES-RJ para prevenção de Aids e DST.

Ao início do projeto do Álbum Seriado, a equipe da SES-RJ, juntamente com a equipe do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde Guarani, encontrava-se na fase final da produção de um vídeo destinado às mulheres Guarani, abordando o tema das DST/Aids. A parceria entre SES-RJ e a equipe do projeto foi constituída para a produção de dois vídeos, o primeiro dirigido às mulheres e o segundo dirigido aos homens. Para viabilizar esta produção, foram oferecidas oficinas de roteiro com os Agentes de Saúde e Professores indígenas, além da contribuição de caciques e pajés e professores Juruá do curso (Figura 7). As oficinas permitiram a concepção de um roteiro, feito em grupo, para o público feminino e outro para o público masculino. As filmagens partiram dos roteiros e foram realizadas pela equipe do LEIO com auxílio da ONG Imagem e Cidadania e foram dirigidas pelo coordenador e professor

Figura 7 Oficina de roteiro para o vídeo feminino de prevenção das DST e AIDS.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

78

do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde, Armando Martins de Barros. Além do roteiro, o vídeo também contou com a atuação dos próprios indígenas e com a narração realizada por eles na Língua Guarani. Com a experiência dos vídeos, foi possível nos aproximarmos da ótica dos indígenas sobre o tema em questão. Para compreender melhor esta abordagem, nos forneceram o relatório sobre as oficinas, os roteiros criados nestas oficinas e uma cópia do vídeo, que ainda estava em fase de edição. Em posse desse material, juntamente com os desenhos produzidos no treinamento de multiplicadores para prevenção de DST/Aids, começamos a estabelecer nosso roteiro elegendo, a partir das recorrências dos temas observados nos textos e nas imagens, quais os aspectos mais relevantes para serem abordados. Através da observação dos discursos, manifestados nos desenhos, depoimentos e no roteiro dos vídeos, notamos que a abordagem Guarani para a prevenção de Aids e DST estava centrada na preservação das tradições. O discurso da tradição, muito presente na fala dos mais velhos (Figura 8), apresentase como forma de resistência e preservação do povo. Assim, nos deparamos com o discurso da tradição como forma de prevenção das DST e Aids. Desta forma, entendemos que na perspectiva Guarani o namoro segundo as tradições, por exemplo, constitui uma estratégia tão importante quanto aprender a usar a camisinha. Seguindo as tradições, expõem-se menos ao risco e, conseqüentemente, evitam situações em que possam contrair estas doenças.

Figura 8 Filmagem do depoimento do cacique Agostinho para o vídeo masculino de prevenção de DST-AIDS.

5.4.3. Definição dos conteúdos A abordagem voltada para a tradição como forma de prevenção acabou tornando-se o tema central do Álbum, que

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

79

recebeu o título “Caminho das tradições, prevenção de DST/AIDS nas aldeias Guarani M´bya do Estado do Rio de Janeiro”. Uma vez estabelecido o foco temático, passamos a definição dos assuntos que seriam trabalhados. Em função da verba disponível, o conteúdo deveria ser limitado ao menor número de páginas possível. Portanto, seguindo a proposta de apenas enunciarmos alguns temas para a discussão, observamos os desenhos e o vídeo em busca destes temas, e destacamos os oito assuntos para cada página. Incluindo a capa, créditos, apresentação, etc., nós estabelecemos uma tiragem de cinqüenta exemplares do Álbum Seriado, com doze páginas cada. Abaixo estão listados os temas do Álbum: 1. A vida na aldeia: a sua terra, o seu povo, o respeito às tradições, a convivência das famílias dentro das aldeias ajuda os Guarani a terem saúde. 2. A saída para a cidade: a principal fonte de renda das famílias é a venda do artesanato, que é feito principalmente pelas mulheres. Para vender o artesanato, as mulheres precisam sair de suas aldeias, do convívio de suas famílias. Essa necessidade leva as mulheres Guarani a terem contatos freqüentes com a população Juruá nos meios de transporte e na cidade. 3. Armadilhas da cidade: a cidade oferece muitas armadilhas para os Guarani. A compra de bebidas alcoólicas, a ida ao forró ou ao jogo de futebol pode expor os Guarani ao contato com o Juruá e às abordagens sexuais, aumentando o risco de contrair doenças. 4. A bebida alcoólica: o uso da bebida alcoólica torna as pessoas vulneráveis, fazendo com que se descuidem da sua saúde ou se exponham a situações de violência. A bebida alcoólica pode desviar os Guarani do caminho das tradições. 5. Formas de transmissão: somente através de um exame de sangue é possível saber se a pessoa possui o vírus da Aids ou não. Beijo, carinho, abraço, sexo com camisinha, uso pessoal de objetos cortantes e seringas não oferecem riscos. O parto e aleitamento materno, as relações sexuais sem camisinha, contato com sangue e o uso compartilhado de objetos cortantes e seringas oferecem riscos. 6. Cuidados com a saúde: aprender sobre as doenças também é importante. Treinamentos, palestras, cursos dados por profissionais de saúde Juruá e pelos agentes de saúde indígena ajudam a conhecer mais sobre essas doenças e como se proteger. Os Guarani podem se reunir

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

80

para conversar sobre o assunto em grupos familiares e também ouvir os ensinamentos dos profissionais das equipes de saúde indígena. 7. Cuidados com a gestante: as mulheres que têm o vírus da Aids também podem passar o vírus para o seu bebê, durante a gestação, na hora do parto e pelo aleitamento. Por isso, todas as mulheres grávidas devem procurar o posto de saúde para fazer o acompanhamento pré-natal para que seu bebê possa nascer saudável. 8. Manutenção das tradições como forma de prevenção: manter as tradições do namoro e do casamento dentro da etnia, como os mais velhos ensinam, constitui uma das formas de proteção para DST e Aids. Com os assuntos encadeados nesta ordem foi possível sugerir uma pequena narrativa, que parte da aldeia, passa pela cidade e retorna a aldeia. Esta estrutura foi baseada no roteiro do vídeo feminino, que contempla a saída da mulher para vender artesanato na cidade, e acrescida de temas mais pertinentes ao público masculino, como a freqüência aos bares e ao jogo de futebol, situações que na visão dos indígenas favorecem as abordagens dos Juruá e aumentam o risco de contaminação. 5.4.4.Finalização do Álbum Seriado Definidos os assuntos, passamos à seleção dos desenhos para ilustrar os temas. Neste momento procuramos escolher os desenhos que melhor apresentassem elementos pertinentes aos temas. Entretanto, muitos desenhos apresentavam estruturas semelhantes que agrupavam em apenas uma imagem a maioria dos aspectos que seriam trabalhados em páginas separadas, como a questão da aldeia, da cidade, da bebida, das relações sexuais, etc. O tema “a vida na aldeia” foi mais facilmente encontrado. Na maioria dos casos (ver Figuras 9 e 11) encontramos representações da aldeia e das atividades ligadas a tradição Guarani, como artesanato, caça, música, dança etc. Em outros casos (Figura 10) também apareciam representações da cidade. Porém, em relação aos temas mais específicos como “cuidados com a saúde” e “cuidados com a gestante” não foi possível encontrar desenhos que representassem esta situação. Portanto, recorremos à edição das imagens e à fusão entre desenhos e destes com imagens capturadas do vídeo. Além das combinações entre imagens, muitos desenhos foram editados, para omitir, destacar, ou incorporar fragmentos de imagens com informações a fim de representar o tema trabalhado.

81

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Figura 9 Representação da aldeia (autora:Renata)

Figura 10 Desenho da aldeia e da cidade (autor: sem identificação)

Figura 11 Página do álbum “A vida na aldeia”.

Como exemplo, temos na Figura 11 a composição da imagem respectiva à vida na aldeia. Para contemplar os diversos elementos que caracterizam a aldeia, foram

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

82

incorporadas à imagem a caracterização do artesanato e a representação moradia tradicional através da inserção de imagens fotográficas. Vemos nesta imagem elementos comuns às Figuras 9 e 10, como as casas, a dança, a casa de reza (em geral a casa maior) e as noções de união a partir dos grupos de casas e pessoas. De modo geral, os critérios para a edição guiavam-se pela maneira como as imagens se relacionavam aos textos. Porém, tendo em vista que o Álbum seria destinado aos públicos masculino e feminino simultaneamente, resolvemos estabelecer a censura de cenas explícitas de sexo. Esta opção deveu-se a minha observação sobre o Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde, em que percebi que o tema da sexualidade não é falado abertamente entre indivíduos dos dois gêneros. Consideramos também a experiência dos vídeos que buscaram a diferenciação dos discursos por gêneros. Assim, optamos por censurar as cenas de sexo onde as genitálias ficavam explícitas (Figura 12), preferindo o uso de imagens que apenas insinuassem o ato sexual (Figura 13). Outro caso de edição ocorreu em relação à representação das bebidas alcoólicas, que estavam presentes na maioria dos desenhos, mas não correspondiam ao destaque dado ao texto pela influência dos vídeos. Vemos como exemplo a Figura 14 em que encontramos uma série de informações como a aldeia, a cidade, o bar, os casais, o ato sexual. Na Figura 15 vemos a imagem sintetizada, com o bar ao fundo, um casal com uma bebida alcoólica e um casal se beijando.

Figura 14 Ilustração que apresenta a bebida alcoólica

Figura 12 Detalhe: desenho com sexo com a genitália exposta (autor: Orlando)

Figura 13 Detalhe: desenho sexo insinuado (autora: Sineidi)

83

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Figura 15 Página do Álbum “A bebida alcoólica”.

Definidos os conteúdos e imagens, partimos para o detalhamento dos textos e diagramação. Como Álbum foi pensado para servir de recurso às exposições orais feitas pelos Agentes de Saúde, optamos por trabalhar com o formato A3 (29,7 x 42 cm) para conferir maior visibilidade aos desenhos. Em virtude deste privilégio ao material visual, os textos e a diagramação foram pensados e trabalhados para não se destacarem. Deste modo, o texto em guarani foi destacado por um corpo maior e caixa alta enquanto o texto em português, cuja função seria apenas uma referência para profissionais de saúde Juruá, foi feito com caixa alta e baixa, em corpo menor, abaixo dos textos em guarani, como uma espécie de legenda (ver Figura 15). A partir de uma primeira versão do Álbum em português, remetemos os textos ao professor Guarani Algemiro da Silva, que adaptou a linguagem para que os textos funcionassem em sua língua. A revisão do texto em Guarani foi realizada pela professora Ruth Monserrat, que ministra as aulas de português e guarani no Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde indígena. A diagramação para os textos em português não apresentou problemas entretanto, encontramos dificuldades no momento de inserir o texto em guarani.para a finalização do trabalho. Pelo fato da Língua Guarani escrita possuir uma série de caracteres especiais para representar alguns sons específicos da língua falada, começaram a surgir erros no texto, pois a família tipográfica utilizada não possuía caracteres especiais, tais como , e . Para contornar a situação, estes caracteres foram editados em programa de desenho de fontes, para que pudessem ser incorporados ao layout sem que fosse necessário substituir a família tipográfica utilizada.Esta situação nos fez imaginar em que medida os projetos tipográficos brasileiros contemplam a

84

diversidade de línguas e dialetos indígenas e os caracteres por elas utilizados. Após uma série de correções no texto, adequação ao uso da Língua Guarani e ajustes do projeto gráfico, um exemplar foi impresso para a observação e aprovação pelo grupo dos Agentes de Saúde. Somente com o aval do grupo foi autorizada a impressão dos cinqüenta exemplares do Álbum Seriado, que foram distribuídos para eles posteriormente.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

5.4.5.Um olhar sobre o trabalho do designer O desenvolvimento do Álbum Seriado representou uma abordagem de Design diferente das usuais na medida em os designers participaram do processo antes mesmo da definição de um conteúdo específico. Neste caso, observamos a participação dos designers na própria definição dos temas trabalhados e tentativa de considerar, juntamente com a equipe envolvida, a perspectiva dos Guarani sobre sua vulnerabilidade e medidas preventivas em relação às DST e Aids. Outro fato peculiar do projeto está na multiplicidade de papéis assumidos pelo público leitor, na medida em que eles foram simultaneamente co-autores e ilustradores. A peculiaridade desta situação permitiu promover uma identificação quase imediata com o material, na medida em que origina-se de suas próprias representações gráficas e narrativas que definem seu olhar sobre o tema. Observamos que, apesar de se tratar de um material impresso, houve a tentativa manifesta de se articular a linguagem visual e a linguagem verbal escrita como forma de incentivo à oralidade, pois na própria concepção, o material não procurava esgotar o assunto, mas, ao contrário, deveria servir apenas como apoio para introduzir a conversa nos grupos familiares. Abaixo, reproduzimos um trecho do texto de apresentação do Álbum: O material aqui apresentado não tem a pretensão de dar conta de todos os aspectos que envolvem a discussão das DST/Aids entre os indígenas da etnia Guarani Mbyá. O seu objetivo é servir como apoio para que os agentes de saúde e professores indígenas possam introduzir a conversa sobre o assunto nos seus espaços de trabalho e, principalmente, junto aos grupos familiares - joapyguas. (SES/RJ. 2006. p.1)

Diante desta abordagem, consideramos que o projeto procurou contemplar as características do grupo, suas práticas de transmissão de conhecimento e suas visão sobre o sexo e as doenças sexualmente transmissíveis. Neste sentido, observamos que embora o Álbum Seriado parta das imagens e dos roteiros produzidos pelos Guarani, ele não pode ser considerado um objeto Guarani. Não por ser um objeto estranho à cultura tradicional Guarani, mas pelos

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

85

conhecimentos apresentados terem sido desenvolvidos em conjunto com os Juruá. Contudo, também não podemos considerar o Álbum um produto Juruá, por considerar que tanto a forma e conteúdo foram profundamente influenciados pela perspectiva Guarani. Temos, portanto, um produto que representa o diálogo entre três grupos envolvidos: idealizadores, leitores e designers. O grupo das idealizadoras foi formado pelas representantes da Assessoria Estadual de DST/Aids e da ENSP-FIOCRUZ. Ao grupo coube a co-autoria, organização, concepção, viabilização, produção, financiamento e distribuição do Álbum. Entretanto, o grupo também cumpre o papel de educador, tendo sido responsável pelo curso em que permitiu a criação dos desenhos e roteiros que compuseram o Álbum. As principais preocupações neste trabalho foram em relação à precisão dos conteúdos e seu aprendizado. Os leitores constituíram um grupo composto majoritariamente pelos agentes de saúde Guarani. Além de constituírem o público leitor, assumiram também o papel de co-autores e ilustradores, na medida em que definiram o roteiro do filme que serviu de referência para o Álbum e os desenhos que o ilustraram. A preocupação principal como leitores foi a aquisição de um material de consulta sobre o tema, e como autores, o objetivo foi contextualizar a questão da Aids e DST numa representação Guarani. O grupo dos designers, que atuaram no projeto gráfico, na organização das informações, nas especificações técnicas e no tratamento dos desenhos e imagens. A preocupação principal foi enquanto forma e visualidade do Álbum de modo a atender as necessidades das idealizadoras e dos leitores. Diante destas três identidades observamos o Álbum Seriado como produto da negociação entre as partes, em que as vozes se mesclaram em busca de um objetivo comum: abordar o tema da prevenção das DST/AIDS. Este trabalho não se define pela voz dos leitores/autores, nem das idealizadoras/educadoras e tampouco dos designers, mas por um contexto definido pela interação entre eles (Bhabha:1998). Vemos nestas identidades as diversas mediações exercidas. Por exemplo, a mediação entre cultura Juruá e Guarani, realizadas pelo grupo de leitores/ilustradores ao representar os conteúdos através dos roteiros para o filme e dos desenhos. Em relação a este grupo, é importante lembrar que estes são agentes multiplicadores, que participaram do curso com o objetivo de trabalhar a prevenção nas aldeias. Desta forma, constituem um grupo importante de mediadores, pois a partir do Álbum, trabalham oralmente os temas com os demais indivíduos da comunidade. Neste caso, temos uma leitura que se torna oralidade através destes mediadores.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

86

Portanto, encontramos um caso em que ler também é ver e escutar.6 As idealizadoras foram responsáveis, principalmente pela mediação entre as ações institucionais de educação e prevenção e a cultura do grupo abordado, através do reconhecimento das peculiaridades deste. Desta maneira, foram responsáveis por estratégias educativas condizentes com as formas tradicionais de transmissão de conhecimento Guarani, evitando seguir o padrão dos materiais para campanhas de prevenção. Elas também se apresentaram como interlocutoras entre o grupo Guarani e os designers, considerando seu contato freqüente com o grupo. Em relação aos designers, observamos a mediação entre as idealizadoras e os leitores por meio da articulação de texto e imagem no suporte, a fim de atender tanto aos interesses das idealizadoras, como às necessidades e perspectiva dos leitores. Assim, ao realizar o tratamento dos desenhos, os designers tentaram evidenciar os conteúdos que precisavam ser abordados pelas idealizadoras, sem descaracterizar a representação dos leitores/autores. Neste sentido, os designers tentaram interpretar a intenção original dos desenhistas, para adequá-las às necessidades técnicas e comunicacionais do projeto. Contudo, é preciso evidenciar que na censura das imagens de sexo, temos um exemplo da arbitrariedade nas decisões tomadas pelos designers. Embora as escolhas para esta censura sejam fundamentadas pelas observações do campo, reconhecemos que a ação do designer nunca é neutra, mas parte sempre de sua interpretação sobre como abordar o projeto. Desta forma, reconhecemos a responsabilidade do designer, como agente cultural, cujas ações podem refletir tanto no produto, quanto no processo de produção e que irão influenciar as formas de apropriação do produto. Neste caso, observamos que o conhecimento sobre o grupo de leitores influenciou diretamente as decisões acerca de forma e conteúdo do Álbum. No que toca à atuação do designer como agente cultural, ele realizou escolhas, arbitrárias, mas pautadas em sua interpretação sobre um grupo real de leitores.

6

Como vimos em Martín-Barbeiro (2001) no capítulo 2.

87

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

6 Considerações para o Design

Diante da compreensão do papel do designer enquanto agente cultural que atua na construção de significados, e da produção do Álbum Seriado como forma de inserir um grupo de leitores no processo de produção criando um produto que buscasse a mescla de vozes, procuramos no presente capítulo entender como o leitor é usualmente considerado pelos designers de livro. Para isso analisamos três discursos representativos de uma abordagem predominante no design do livro e comparamos com a perspectiva de uma leitura enquanto prática social e da importância dos leitores e das mediações para apropriação da leitura e escrita. No entanto, é necessário esclarecer que nosso objetivo não é invalidar estes discursos, mas caracterizá-los em relação a forma como o leitor é abordado, a fim de pensarmos a participação do designer no processo de aquisição das práticas sociais de cultura e escrita, considerando as características de um grupo de leitores específicos, como no caso do grupo Guarani do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde. 6.1. Design voltado para a produção Chartier (1999: p.17) afirma que o autor não escreve livros, mas textos que serão transformados em livros. Daí, a compreensão de que entre o objeto que o autor escreve e aquele que o leitor lê, existe uma série de mediações, transformações e interferências feitas por diversos profissionais, como os editores, designers, impressores, etc. Portanto, se com isso pensarmos que a materialidade e a visualidade do suporte influenciam na recepção do livro, é possível compreender o design do livro como um elemento importante na relação entre o leitor e o objeto. Essa importância dá-se pela mediação entre o livro e o leitor através da configuração formal do suporte, e para tal, o designer deve conjugar variáveis relativas às intenções do autor e às necessidades do leitor. Partindo deste raciocínio, a tendência é uma abordagem de Design que também se ocupe do leitor, considerando quem este leitor é, sua inserção sócio-cultural e quais as suas características de leitura. No entanto, notamos que a realidade da prática profissional não comporta, por diversos motivos, uma postura de investigação minuciosa sobre o público leitor.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

88

Entre os diversos motivos, o mais evidente possivelmente está na própria dinâmica do cotidiano profissional, com pouca disposição de tempo e recursos para uma investigação aprofundada, e de um mercado editorial que não se preocupa com os micro-contextos sociais, buscando sempre atingir o maior público possível. Contudo, a dinâmica do mercado não parece ser o único fator determinante para o atual desconhecimento sobre o leitor e as práticas de leitura. Tampouco nos apressaríamos a atribuir este desconhecimento à escassez de publicações e pesquisas neste tema, pois se a produção acadêmica ainda é pequena, provavelmente ela é apenas o reflexo do pequeno interesse da área em desenvolver pesquisas que considerem o leitor e seu contexto.1 Entretanto, segundo Coelho (2005), há uma preocupação com a produção, evidente na formação profissional dos designers. Ao observar os cursos de graduação em Design no Brasil, o autor destaca a maneira como as escolas possuem os projetos de realização como balizadores do progresso dos alunos, projetos que privilegiam a finalização do produto e raramente se voltam para aspectos que vão além da produção, como por exemplo a recepção e o desuso. Como exemplo desta situação, observamos que o designer e escritor americano Richard Hendel (2006: p.33) afirma que os designers de livro servem a dois clientes: o autor e o leitor, com o objetivo de tornar a comunicação entre eles “tão clara quanto possível”. Mais adiante o designer/escritor também aponta o editor como um terceiro cliente. No entanto, Hendel apresenta exemplos apenas da intervenção do autor e do editor no trabalho do designer. Deste modo, somos levados a entender que o leitor é abordado através da intenção do designer em favorecer a legibilidade e proporcionar uma estética atraente, mas este é um leitor abstrato, uma noção implícita do designer de livros sobre uma idéia de leitor que guia suas escolhas. Como conseqüência da preocupação com a produção, as discussões sobre o design do livro acabam por tratar apenas das representações do livro em relação ao autor e ao editor, com os aspectos visuais do livro e com a maneira como este dialoga ou não com o texto e com as determinações editoriais. No entanto, pouco se ouve falar sobre o público deste livro, sobre seu contexto sócio-cultural onde a leitura se realiza e quais as condições desta leitura, para que o projeto também possa ser balizado por estas variáveis.

1 Neste sentido o Núcleo de Estudos do Design do Livro vem se posicionando através de eventos e publicações que buscam elucidar e discutir as questões relativas recepção Livro pelo viés do Design.

89

Há, talvez, um distanciamento entre a visão do Design em relação às áreas da Educação, Letras, Ciências Sociais e da Psicanálise, responsável por afastar o designer das questões ligadas à recepção e que o faz considerar que o produtor e o público partilham das mesmas formas de leitura e percepção. Entretanto, diante de um contexto onde a leitura, o texto e o design do livro acontecem num âmbito multicultural, torna-se relevante a revisão e o questionamento de alguns pressupostos através do olhar sobre estes outros horizontes disciplinares.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

6.2. O leitor implícito De acordo com o designer Milton Ribeiro (1983), em seu livro Planejamento visual gráfico (uma obra considerada como pioneira sobre o design gráfico no país), devemos considerar os fundamentos da Gestalt para a organização visual da página. Márcia Leon (2001) também nos prescreve as seguintes recomendações no trato das ilustrações no interior do livro: 2 No caso de haver mais de uma ilustração na página, conforme os fundamentos da Gestalt, as possíveis combinações devem ser feitas por oposição. Isto significa que ilustrações grandes devem ser acompanhadas por ilustrações pequenas, assim como, um conjunto de formas verticais deve ser combinado com formas horizontais; redondas com quadradas, construções simétricas com assimétricas, a ilustração mais larga 3/4 da largura da mancha deve ser centralizada, ilustração 3/4 menos larga deve situar-se na margem lateral da página, ilustração composta por figuras de perfil deve ser colocada voltada para o texto, para não desviar a atenção do leitor. (LEON: 2001 p.50)

Podemos compreender esta afirmação como uma série de parâmetros a serem seguidos, ou seja, linhas de guia para o “bom projeto gráfico”. Este “bom projeto” vem entre aspas por estar diretamente relacionado com o princípio da “boa forma”, fruto de uma abordagem do Design que pregava o privilégio da função do objeto sobre a forma, e esta última como mera conseqüência desta função. A abordagem em questão surge da ideologia racionalista da Hochschule für Gestaltung de Ulm que influenciou diretamente a Escola Superior de Desenho Industrial e a formação do campo profissional do Design no Brasil. 2 A psicologia, ou teoria da Gestalt surge no começo do século 20 através dos estudos de Max Wertheimer e seus assistentes, Wolfgang Köhler e Kurt Kofka. Ela trata principalmente da percepção a partir da proposição de que a mente opera por “Gestalt” (termo alemão que pode ser entendido como “totalidade”, “global”, etc.) Ou seja, a compreensão se dá pela percepção da totalidade e não das partes isoladas.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

90

A princípio, uma concepção que trate da função dos objetos não discorda da idéia de se abordar o leitor e as leituras, contudo não podemos deixar de esclarecer que nestes discursos a compreensão da função não está ligada a algum método de observação dos usos dos objetos. Muita das vezes a compreensão da função está relacionada exclusivamente aos princípios fundamentados pela Gestalt. Neste sentido, podemos compreender que a avaliação desta função está ligada aos fundamentos de uma teoria da percepção, mas ainda não poderemos esclarecer a questão: “bom projeto” para quem? No caso de Ribeiro, acreditamos que seja bom para a Gestalt, ou para a compreensão que esta teoria possui sobre a maneira como as pessoas percebem as formas. Neste caso insistiremos ao interrogar: que pessoas são essas da teoria da Gestalt? Será que todos estes indivíduos realmente percebem as coisas de maneira idêntica? Onde podemos situar o sujeito e a subjetividade, o leitor/intérprete nesta história? O texto de Ribeiro foi publicado originalmente em 1983, muito antes da criação do primeiro mestrado em Design do país, e que talvez pela carência de publicações e discussões, existissem ainda poucos questionamentos sobre a abordagem racionalista ainda presente na época. Contudo, é importante destacar como alguns traços destes discursos ainda estão presentes nas reflexões atuais. No caso da dissertação de mestrado de Leon, concluída em 2001, a autora se utiliza das “leis da Gestalt" para fundamentar a compreensão do projeto gráfico sob o ponto de vista da percepção, evidenciando que esta teoria ainda serve de instrumental aos designers contemporâneos. Os pontos, as linhas, as cores, as luzes, as superfícies se colocam como elementos estruturais básicos da composição visual e se impõem na qualidade de padrões visuais à percepção, portanto, signos interpretáveis. Todos os signos do código visual são captados perceptivamente. Por este motivo pode-se encontrar suas bases teóricas nos estudos efetuados dentro do âmbito da psicologia da percepção visual. Assim, são operadas as leis que dão embasamento científico ao sistema de leitura visual, as leis da Gestalt, que originaram os princípios que regem as forças de organização. (LEON, 2001 p.54.) [grifo meu]

A partir destas “leis que dão o embasamento científico” são construídos e legitimados os discursos de Ribeiro, Leon e de outros designers. No entanto, não são questionados de onde vêm estas leis e qual a validade delas. Sabemos que a psicologia da Gestalt se estrutura a partir das experiências conduzidas por um grupo de psicólogos que buscavam examinar como se dava a percepção, mas o que não se considera ao lidar com a Gestalt são os tipos de variáveis que poderiam condicionar esta percepção, ou em outras palavras:

91

questionar a relevância de se saber quem eram estes indivíduos, em qual cultura eles se encontravam, que língua eles falavam, qual o nível de escolarização dos participantes, status social, poder aquisitivo, etc. Para a Gestalt, estes aspectos parecem ser pouco importantes e não chegam a ser considerados. Behrens (2004) destaca que os fundadores da Gestalt, Wolfgang Köhler (1959)3 e Max Wertheimer (1923)4, entre outros pesquisadores da Gestalt, se interessavam mais pelas artes (plásticas) e a música, e menos pela literatura. Esta falta de interesse pela literatura talvez tenha levado esta teoria da percepção a se afastar da relação da linguagem com o pensamento. Outras disciplinas, contudo, como a lingüística e a psicologia valorizam esta relação. 6.3. Percepção e Linguagem

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

Na psicologia, podemos observar a linguagem ligada ao desenvolvimento cognitivo nas obras de autores como Jean Piaget (1967) e Lev Vigotsky (1984). Nuti (1990) entende que para ambos a linguagem é responsável pela estruturação e

organização do pensamento em determinada fase do desenvolvimento: no caso de Piaget, a fala egocêntrica atua num primeiro estágio do desenvolvimento infantil e tende a desaparecer quando se torna fala socializada. Já para Vygotsky esta ordem é inversa, para ele a fala socializada representa o pensamento da criança em voz alta e que num segundo momento se tornaria fala interior, ou seja, fala mental. Na lingüística Chandler (1995) destaca a importância da hipótese de Edward Sapir (1929) e Benjamin Lee Whorf (1956), que atribuem à linguagem um papel determinante na percepção. Sapir (1929)5 considera a linguagem não apenas como uma forma de resolver os problemas de comunicação e reflexão dentro de uma sociedade, mas também entende que o “mundo real” é construído a partir dos hábitos lingüísticos do grupo. A proposição de Sapir foi ampliada por Whorf (1956)6, que afirma que a linguagem encerra a percepção que determinada cultura possui sobre o mundo. Neste sentido, os KOHLER, W,. Gestalt psychology :: an introduction to new concepts in modern psychology. New York : New American Library, 1959 4 WERTHEIMER, M. Laws of Organization in Perceptual Forms (1923). In ELLIS, W.D. (ed.), A Source Book of Gestalt Psychology. New York: Harcourt Brace, 1939. 5 SAPIR, E. (1929): 'The Status of Linguistics as a Science'. In SAPIR, E. Culture, Language and Personality (ed. D. G. Mandelbaum). Berkeley, CA: University of California Press, 1958 6 WHORF, B. L. Language, Thought and Reality (ed. J. B. Carroll). Cambridge, MA: MIT Press, 1956 3

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

92

indivíduos vivem segundo suas culturas em universos mentais muito distintos, que estão exprimidos (e talvez determinados) pelas línguas diferentes que falam. Conhecida como hipótese de Sapir-Whorf, esta teoria se difundiu principalmente na América nos anos 40 e 50, repercutindo nos campos da lingüística, psicologia e antropologia, como uma das principais referências de uma corrente teórica conhecida como determinismo lingüístico. Sob o ponto de vista da percepção, Fish (1996) propõe que percepção e interpretação não diferem entre si. Para ele, é impossível haver percepção sem o intermédio da interpretação, compreendendo que a primeira ganha forma através da segunda. Neste sentido, o autor desconhece qualquer forma que pré-exista a interpretação, ao passo em que a própria percepção das coisas é condicionada por ela. Contudo, Fish (1996) não é o único a entender a percepção como algo influenciado por aspectos externos ao próprio objeto percebido. A partir do ponto de vista da psicanálise podemos compreender que a percepção não constitui uma simples apreensão das características intrínsecas do objeto, mas que este processo não está livre das atribuições de sentido, através da linguagem. A compreensão psicanalítica atribui grande importância à linguagem: tanto em Freud (1971), como em Lacan (1998), ela constitui um aspecto fundamental do ser humano e determinante para a sua diferenciação. A linguagem afasta os seres humanos de uma função de simples resposta aos estímulos externos, na medida em que confere a estes estímulos dimensões mais complexas, pois sua percepção se relaciona com diversos aspectos de sua experiência, dos possíveis significados, ou seja, dos diversos fatores que operam na ordem da subjetividade e que tornarão ainda mais complexas as respostas que serão dadas ou não a este estímulo. Na psicanálise estas relações não são de simples estímulo e resposta, não se reduzem simplesmente a um instinto que as condicionaria para certa percepção pela própria “natureza do objeto”. Pelo contrário, aqui a própria percepção não escapa à linguagem e, por esse mesmo fato, deixa imediatamente de pertencer à ordem do natural e passa a se configurar na ordem das representações humanas. Talvez por isso mesmo, lhe seja possível assumir uma variedade de configurações assim como são variadas as experiências humanas e suas formas de representação. 6.4. Design do livro: projeto para quem? A partir destes pontos de vista sobre o tema da percepção podemos perceber, pela própria diversidade de abordagens, que este não se reduz a uma teoria única, mas

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

93

configura-se como um campo amplamente estudado e rico em discussões. Independente da função que a linguagem possa assumir em relação a percepção, pois cada abordagem lhe atribui uma função, observamos que ela constitui um aspecto comum em diversas teorias, e que talvez por isso não deva ser tão facilmente descartada. O que parece fundamental é que a linguagem se apresenta como intermediária entre o indivíduo e sua percepção de alguma coisa. Com o intermédio da linguagem passa a haver algo que escapa ao próprio objeto e suas características intrínsecas, e que ganha uma dimensão interpretativa, uma dimensão profundamente influenciada pelos diversos contextos onde o indivíduo se insere, e que interferem na sua própria apreensão do mundo sensível. Estes contextos são determinantes para a formação da percepção e podem ser situados tanto nas representações da cultura (como as línguas, as ideologias, as políticas, as religiões, as configurações sociais, etc.), quanto na formação da subjetividade. Portanto, na medida em que a leitura pode ser compreendida como uma forma de apropriação pelo leitor, segundo o termo utilizado por Chartier (1996), ela adquire particularidades específicas situadas dentro dos contextos de uma prática social e de uma leitura individual, configurandose não mais como única, mas como uma diversidade de práticas possíveis.7 Essa diversidade deve ser considerada pelo designer de livros, na medida em que corresponde à própria noção de projeto em Design, que se propõe a conjugar valores estéticos e valores de uso. Por um lado, é importante ter em mente que, independente da abordagem do designer, o objeto não deixará de adquirir uma diversidade de sentidos através das relações que serão estabelecidas com este objeto, e que, diante de nossa perspectiva, seria muita pretensão exercer o controle sobre os sentidos que serão percebidos nas relações com os objetos. Por outro lado, na medida em que não há apenas uma forma de apropriação, deve haver a cautela de não se tomar pressupostos que atribuem uma universalidade à percepção e às formas de apreensão de determinado objeto. No caso do suporte de leitura livro para a educação o designer deve evitar o pressuposto de que deve haver uma forma ideal de ler e interpretar o texto, como aparentemente nosso discurso pode vir dar a entender e, portanto, uma forma ideal de configuração visual das informações, de manipulação do material impresso, de uso e de apropriação do livro enquanto objeto, pois, sem dúvida, o local sobrepõe O termo apropriação é um conceito-chave empregado por Chartier (1996) e diz respeito à forma como a leitura é incorporada nas práticas culturais cotidianas de um indivíduo ou grupo social, caracterizando uma prática de leitura específica. 7

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

94

o global. Logo, diferentes realidades sociais compreendem diferentes capacidades de leitura e, conseqüentemente, potenciais diferenciados para as práticas de leitura. Contudo, o designer gráfico deve evitar também a idéia de que, não havendo uma forma ideal, qualquer forma é possível. Na verdade não há uma forma ideal, mas existem diversificadas formas que interagem de maneira mais eficiente cada uma com seus grupos específicos. Conhecer os leitores, seus momentos de vida, e o modo como praticam a leitura se torna vital. Ao considerarmos, por exemplo, que a cultura Guarani, abarca uma noção de temporalidade diferente da nossa – noção que se manifesta principalmente através de sua língua pela maneira como esta é formadora de sua visão de mundo – também é importante que o Design de Livro voltado para um público Guarani contemple não apenas a legibilidade, mas também o tempo da leitura. Neste sentido seria possível propor uma série de alternativas que consideram o tempo da leitura, como modificações na mancha gráfica e na tipografia a fim de interferir na velocidade e na atenção demandada pelo texto, a divisão em fascículos, considerando a periodicidade da leitura, a utilização de múltiplas colunas para ajudar a marcar os pontos de interrupção no texto, etc. Portanto, não se trata de uma forma correta para a disposição das ilustrações e da tipografia dentro de um livro, mas de uma forma que busca se aproximar da realidade de seu leitor. A oposição entre as formas não oferece uma leitura melhor, na medida em que há diversas maneiras de ler e que a própria percepção não é condicionada apenas pela natureza intrínseca do objeto, mas por diversas variáveis externas ao objeto, da ordem da cultura, da subjetividade, etc.8 O que há em nossa sociedade é uma leitura “mais legítima”, que deve ser aprendida antes do designer propor seu projeto gráfico sob pena de seu leitor vivenciar não a experiência, o afeto, a identificação, a paixão e a construção, mas sim o desconhecimento, a negação, a frustração, a desilusão e o retrocesso que inviabilizam a leitura. 6.5. Design do livro: de Juruá para Guarani Uma vez que reconhecemos a importância da cultura na formação do olhar do leitor, cabe discutir o design do livro diante das observações acerca do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde.

Como vimos no capítulo 2 com Chartier (1996), que situa a leitura como prática social e cultural que assume formas múltiplas de acordo com a diversidade das práticas. 8

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

95

Ao questionarmos os pressupostos teóricos do Design e tentarmos definir esta prática profissional, reconhecemos que estas noções não são universais e que o designer não é o detentor exclusivo dos conhecimentos de sua área, especialmente no diz respeito à percepção da forma. Tal postura não invalida o saber do designer, mas, ao contrário, lhe garante a possibilidade de se abrir às especificidades do contexto com o qual trabalha. Esta abertura ou, conforme o termo utilizado anteriormente, o afastamento do olhar do designer permite ao mesmo tempo atentar para o contexto em que se dá a recepção do produto e estabelecer outras referências teóricas adequadas ao contexto. Neste caso, diante da noção do designer não só como profissional que cria, mas como profissional que projeta, podemos conceber a possibilidade deste profissional redefinir seu método a cada projeto, readequar suas referências teóricas a cada contexto, e repensar sua prática a cada desafio. Na observação sobre os encontros presenciais do Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde, no capítulo 4, notamos que os professores Juruá não são os detentores exclusivos do conhecimento, mas, ao contrário, utilizam-se de estratégias para aproximar os conhecimentos já adquiridos pelos cursistas daqueles trabalhados nas disciplinas. Neste sentido, os próprios cursistas guiam os docentes na maneira como abordar os conteúdos da aula. De maneira análoga, observamos no capítulo 5 que ao partir do roteiro do filme e das ilustrações dos indígenas para criar o Álbum Seriado, assumimos que ninguém melhor que os próprios Guarani para definir a vulnerabilidade e o tom da abordagem para a prevenção de DST/AIDS. No entanto, não podemos deixar de reconhecer que mesmo utilizando as imagens e os temas definidos por eles, ainda assim efetuamos escolhas pautadas em nossa compreensão sobre o tema, que muito provavelmente seriam abordadas de maneira diferente se trabalhadas exclusivamente por eles. Como observamos no caso da sala de aula, há um contexto emergente que não é nem Juruá nem Guarani, tampouco definido apenas por professores ou cursistas, mas o fruto da interação entre os papéis e as culturas. Neste diálogo vimos emergir um contexto de sala de aula diferenciado, que conta com a participação de seus interlocutores para a sua constituição. Do mesmo modo, o Álbum Seriado, para a prevenção de AIDS e DST, na maneira como foi concebido, não é produto apenas das idealizadoras, do designer, ou do público de leitores, mas um produto da interação entre estes três papéis, constituído num contexto híbrido, da mescla de vozes e identidades. Essas vozes e identidades acabam por influenciarem-se mutuamente em torno de um objetivo

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

96

comum e específico, mas sem perderem suas características distintivas. Por este viés, o design do livro voltado para o público Guarani não é, necessariamente um Design Guarani, ao contrário do que poderíamos esperar. Talvez não seja sequer necessário que seja pensado integralmente por uma ótica Guarani ou ainda, que seja necessariamente feito pelos indígenas. Na medida em que contemplamos conteúdos que também dizem respeito à cultura Juruá, encontramos um ambiente de formação híbrida, influenciado pelas duas culturas. Portanto, é fundamental neste contexto que o designer procure estabelecer uma aproximação para poder abordar o projeto a partir de sua interpretação sobre dados concretos, a fim de atender a este contexto específico. Portanto, consideramos o êxito do projeto não pelo resultado estético segundo os parâmetros da “boa forma”, mas pelo próprio processo em que se constituiu. Neste caso, atribuímos à forma de abordar o problema, na construção de um método particular ao longo do processo, em virtude de um grupo e um contexto específico o mérito do projeto que pautou suas decisões diante destes contextos. Contudo, não podemos atribuir o êxito apenas aos designers, às idealizadoras ou aos leitores/autores, mas precisamente à articulação destas três identidades em um propósito comum. Esta perspectiva vai de encontro ao entendimento de Farbiarz e Farbiarz (2004) sobre as responsabilidades do designer frente ao caráter interdisciplinar em que intervém. Diante disso, os autores afirmam: O designer pode gerenciar a linguagem visual utilizada na elaboração de livros, para facilitar o processo perceptivo, minimizando obstáculos que dificultam a leitura e a compreensão. Se o designer, durante o projeto, tiver conhecimentos dos mecanismos de construção de significados desses elementos, o receptor compreenderá melhor seu conteúdo verbal e não verbal. (2004: p.5)

Desta maneira, considerando os mecanismos em que os significados se formam (contextos sociais, culturais e subjetivos), pensar o design do livro implica assumir uma perspectiva em que cada projeto seja único. Esta perspectiva dificulta o estabelecimento de um método mais geral para guiar a prática deste Design, definindo-se por uma abordagem que além de não ser pré-estabelecida, também precisa ser reinventada no contexto e em função dele, a partir do diálogo que se estabelece entre o designer e seu interlocutor, privilegiando assim o local ao global. Se por um lado temos a possibilidade de um Design voltado para os leitores em seus contextos, por outro lado Farbiarz e Farbiarz (2004: p.5) destacam também a presença de um Design pasteurizado no mercado editorial, em que as “soluções gráficas são utilizadas concomitantemente em livros de temáticas distintas ou para leitores distintos”.

97

Não obstante, devemos esclarecer que a noção de que cada projeto é único não é exclusiva da abordagem sob nosso enfoque. Hendel, (2006: p.xi), designer e escritor, reconhece na apresentação de “O Design do Livro” que não sabe “fazer o design de livros – livros no abstrato.” Ele afirma que sabe apenas como fazer o design do livro em que está trabalhando no momento, concluindo que “cada livro, como todos os livros, é único”. Contudo, Hendel reconhece a existência de tradições e regras que guiam o design do livro:

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

O design do livro é uma arte que tem suas próprias tradições e um corpo relativamente pequeno de regras aceitas. Se o design de um livro irá chamar atenção ou não para si mesmo, isso vai depender do grau de consciência do leitor acerca tanto do design em geral quanto do design de um livro particular. (Hendel, 2006: p.1)

Desta forma, entendemos que em torno do design do livro encontramos um conjunto de saberes tradicionais que lidam, em geral com a noção de um leitor experiente e muitas vezes implícito, como observamos anteriormente através dos discursos de Ribeiro (1983) e Leon (2001). Portanto, em relação ao mercado editorial, o design do livro como apresentado por Hendel, Ribeiro e Leon mostra-se coerente na medida em que o público de uma publicação possa ser tão abrangente que dificulta a delimitação de um grupo específico a ser considerado. Contudo, se tratamos de um grupo restrito, como os agentes de saúde e professores Guarani, diante de um objetivo educacional dirigido para a aquisição da leitura e escrita, devemos relativizar as noções empregadas, reconhecendo que os pressupostos de legibilidade, conforto, clareza empregados pelo Design podem não se adequar a este contexto. Enfim, pelo menos quando pensamos em Design de livro para fins didáticos, adentrar o universo em que o suporte de leitura será inserido, perceber suas características e necessidades, buscar a parceria com um contexto específico contribui para a relativização do que venha a ser o discurso que considera a existência do “bom design”. 6.6. Design da Leitura Frente à tentativa de pensarmos o Design numa perspectiva que contemple os leitores e as diversas mediações que participam das práticas de leitura, nos deparamos com a noção de “Design da Leitura”. 9 O Design da Leitura, segundo Noção antecipada por Jackeline e Alexandre Farbiarz (Farbiarz e Farbiarz. 2004) no 6º Congresso de Pesquisa em Design e explicada por eles (Farbiarz e Farbiarz: 2005) na Revista da Sociedade Brasileira de Design da Informação. 9

98

Farbiarz e Farbiarz (2005: p.5), trata-se de uma questão de conduta que, no universo cultural brasileiro, vai “além da arte do livro” ou de um “design para a leitura”. Por “arte do livro” podemos compreender nossa discussão sobre as abordagens cujo fim é meramente estético. Já em relação ao Design para leitura, podemos considerar as formas do livro que pressupõem a legibilidade, conforto, e o uso do livro, e que também contemplem pressupostos e normas estabelecidas pela Gestalt e o diálogo do designer com o autor e o editor. Contudo, a compreensão do Design da Leitura parte de uma perspectiva em que o designer toma consciência de seu papel enquanto mediador e contempla a produção, a mediação e a recepção:

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

O designer, enquanto agente mediador de um processo de leitura, deve ter, portanto, um duplo olhar tanto sobre os objetivos e interesses dos “autores” do livro quanto sobre as reais necessidades e carências do público leitor. (Farbiarz e Farbiarz. 2005: p.6)

O entendimento do Design da Leitura por este viés contempla a articulação de suportes específicos para leitores específicos em contextos específicos, visando à formação de leitores e escritores de acordo com suas vivências e bagagem cultural. Neste sentido, ao discutirem o desinteresse dos adolescentes pela leitura, Farbiarz e Farbiarz colocam a seguinte questão: Não seria a hora de somarmos ao livro impresso a potencialidade do livro eletrônico e/ou de nos dedicarmos aos jogos eletrônicos já presentes no cotidiano dos adolescentes? (2005: p.4)

Tal questionamento parte da observação sobre os alunos desta faixa etária, verificando que são facilmente seduzidos pelo jogo eletrônico, enquanto consideram a experiência do livro desinteressante porque a linguagem empregada não dialoga com os repertórios deste público. Desta forma, fundamentados pela observação do universo que envolve os leitores, suas necessidades e expectativas e os significados em torno das práticas de leitura, podemos pensar em estratégias de leitura que possam se apropriar do jogo eletrônico, e também legitimar outros suportes e linguagens que participam do cotidiano deste público. Em suma, a observação de um contexto específico permitiu propor estratégias que não só influenciam a estética e a abordagem do design, como contribuem para a legitimação dos conhecimentos já dominados pelos leitores, neste caso o jogo eletrônico, a fim de favorecer o reconhecimento e desenvolvimento das práticas de leitura sem, no entanto, perder de vista que uma mídia não substitui a outra. Considerando o grupo de leitores formado por agentes de saúde e professores Guarani, vimos que eles participam de um contexto híbrido, formado pelo diálogo entre os saberes Guarani e Juruá, em que sua identidade indígena só não

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

99

estará ameaçada se puderem conciliar seus saberes tradicionais com os conhecimentos Juruá inerentes a seu papel como agentes de saúde. Entretanto, observamos que para que eles exerçam o papel de agentes é necessário não apenas sua alfabetização, mas a aquisição das práticas sociais de leitura e escrita. Diante disso, consideramos a perspectiva do Design da Leitura por objetivarmos além da alfabetização a formação de leitores e escritores, através do diálogo com o universo deste público. Entretanto, para compreendermos a forma como o Design da Leitura participa do processo de apropriação das práticas sociais de leitura e escrita é preciso antes caracterizar a diferença entre alfabetização e o letramento. Como vimos no capítulo 2, Havelock (1995) identifica, a partir de Platão, uma mudança na sociedade grega de uma cultura oral, com uma escrita de características orais, para uma cultura escrita. Desta forma, o autor estabelece a distinção entre cultura escrita, que possui práticas sociais cotidianas com o uso da leitura e escrita internalizadas, e a cultura que apresenta a escrita apenas como tecnologia, mas não possui estas práticas incorporadas em seu cotidiano. Trazendo esta noção para o âmbito da Educação, podemos situá-la na diferença estabelecida entre alfabetização e letramento. Enquanto a alfabetização dá conta da competência de apropriação da tecnologia de leitura e escrita, o letramento diz respeito à competência de apropriação das práticas sociais de leitura e escrita. Soares (2000, p.18) define letramento como “resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever” compreendendo-o como “estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como conseqüência de terse apropriado da escrita”. Para a autora, a capacidade de apropriação é um conceito fundamental para esta compreensão e que a distingue de alfabetização. Para Soares (2000, p.19) o termo alfabetizado serve para nomear aquele que aprendeu apenas a ler e a escrever, mas sem necessariamente ter adquirido “o estado ou a condição de quem se apropriou da leitura e da escrita, incorporando práticas sociais que a demandam”. Portanto, identificamos no design do livro, por meio da preocupação acerca da legibilidade, do conforto e da clareza na leitura, uma abordagem que favorece a alfabetização, na medida em que busca facilitar o reconhecimento dos caracteres e da percepção do texto enquanto forma gráfica. Contudo, esta abordagem não se ocupa diretamente do letramento por não buscar dialogar com o universo do leitor e, desta forma, não facilitar a apropriação das práticas sociais de leitura e escrita. Neste sentido, se o design do livro é fruto da interação do designer com o autor e o editor, o Design da Leitura

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

100

também se preocupa em inserir o leitor neste diálogo em que se articulam as negociações. Desta forma, ao contemplar o diálogo com o leitor, o Design da Leitura ocupa-se tanto da alfabetização, quanto do letramento, investigando recursos para a aquisição da leitura e da escrita como prática social. Portanto, temos o Design da Leitura como uma expansão do design do livro, incorporando suas estratégias na medida em que se demonstrem úteis para a alfabetização, mas também investigando as condições de recepção, produção e mediação por diferentes agentes e suportes, assim como as estratégias que possam contribuir para formação de leitores e escritores, visando a desenvolver o letramento. Hendel (2006, p.1) afirma que, muitas vezes, o design do livro é considerado como uma “arte invisível” por considerar um leitor já familiarizado com a leitura e, consequentemente, com o livro enquanto objeto. A familiaridade do leitor com os livros obscurece a observação da forma como este livro se apresenta e torna seu design “invisível”. Contudo, diante das diferenças de cultura e de níveis de letramento, acreditamos que o Design da Leitura não deva se ocupar em se tornar invisível, mas em falar a mesma língua do leitor. Isso não significa o designer deva assumir integralmente a perspectiva do leitor, mas que possa falar de maneira que faça sentido diante do contexto que o leitor se encontra. Ao falar a mesma língua do leitor, o designer encontra-se numa situação similar a do nativo que se comunica em língua estrangeira com nativos de outra cultura, sem que com isso perca as características sua própria identidade cultural. Neste sentido, mesmo com o sotaque e outros obstáculos oferecidos pelas barreiras interculturais, é apenas com a tentativa de articular significados que façam sentido em outro universo simbólico que podemos conceber estratégias para contribuir com letramento, respeitando a identidade cultural e étnica do grupo de leitores e escritores em formação.

101

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

7 Conclusões e considerações finais

O design do livro é uma arte invisível. Este é um enunciado que traduz muitos dos conceitos tradicionalmente empregados pelos designers, como neutralidade, legibilidade e clareza, entre outros que guiam esta prática profissional. Todavia, o que buscamos investigar através deste estudo vai precisamente de encontro a esta afirmação. Neste caso, entretanto, não devemos situar este enunciado como um ponto numa linha reta em que seja possível apenas o deslocamento contra ou a favor. Assim, consideremos este enunciado num espaço tridimensional, onde várias trajetórias possíveis cruzam este ponto, para não irmos contra, ou a favor, mas ao menos chegar tão perto (ou tão longe?) do design de livros que este objeto familiar nos pareça estranho e nos permita um outro olhar sobre ele. Diante desta perspectiva, não podemos considerar o design de livros uma “arte invisível” sem refletir que, muito além dos mecanismos que o tornam invisível, é preciso, primeiramente, um sujeito que, por algum motivo, não o possa ver. Neste sentido, para se tornar invisível deve haver um leitor mais ou menos habituado às práticas de leitura e escrita, e mais ou menos familiarizado com os livros e as formas do livro, para que o livro, enquanto objeto torne-se invisível. Portanto, é neste sentido que pedimos licença a Caetano Veloso para parafraseá-lo ao reformular o enunciado: “O design do livro é uma arte invisível. Ou não”. O que isso quer dizer? Quer dizer que depende. Depende de quem vê e, especificamente neste caso, depende de quem lê. Antes de prosseguirmos, é preciso frisar que esta não é apenas uma mera relativização do enunciado, movido apenas pela inércia daqueles que se dispõem a duvidar de tudo sem nada afirmar. Esta relativização fundamenta-se numa perspectiva que contempla o leitor como sujeito que confere sentido ao livro. Neste sentido, concordamos com Fish (1996), ao afirmar que toda leitura é interpretada e logo, construída pelo leitor. Somamos à esta compreensão as noções de Chartier (1999), que fala explicitamente da influência dos suportes na leitura, e de Martín-Barbero (2001), que propõe, inclusive, a existência de leituras oralizadas em práticas coletivas. Neste sentido, colocamos o leitor sob nosso foco. Diante deste quadro, observamos que a leitura, não só do texto, do suporte, como do próprio design do livro, são

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

102

percebidas, interpretadas e significadas por quem lê da maneira como lê e onde lê. Portanto, consideramos que a invisibilidade do design do livro está diretamente ligada à noção que o designer tem sobre o leitor, como também à noção que o leitor tem sobre o livro e sobre o Design. Ou seja: depende de quem lê. Partindo desta perspectiva, atentamos para a responsabilidade do designer de livros enquanto mediador cultural, ao verificarmos que, pela maneira como trabalha, o designer acaba muitas vezes ocultando o público leitor, tornando-o implícito por meio de uma ótica que admite préconceitos e entendimentos precipitados acerca do leitor. Isto se deve ao fato de muitos designers não guiarem seus projetos a partir de um conhecimento sobre o público leitor, mas a partir de pressupostos teóricos fundamentados pela percepção da forma, segundo a Teoria da Gestalt. Especialmente no que tange ao design do livro, percebemos que o trabalho do designer é permeado pelos diálogos com o autor, o editor, e, supostamente, com o leitor. Contudo, verificamos que, enquanto o autor e o editor influenciam diretamente o trabalho do designer, algumas abordagens consideram um leitor implícito, idealizado pelo designer. Diante do distanciamento entre o designer e o leitor, consideramos a importância de se pensar o papel do designer como agente cultural, tendo em vista que seu campo de atuação envolve a construção de significados. A partir da compreensão de que a cultura é uma teia de significados em que os indivíduos influenciam e são influenciados (Geertz: 1989), aliada à noção de que os indivíduos se constituem a partir do sentimento de pertencimento a um grupo (Elias:1994), é possível propor a reflexão sobre o impacto da ação do designer diante de públicos, culturas e etnias diferentes da sua própria. Neste sentido, buscamos entender a participação do designer como agente cultural na formação das práticas de leitura e escrita a partir do estudo de um público Guarani constituído no Projeto de Escolarização dos Agentes de Saúde. Mediante a observação de um grupo de leitores formado por agentes de saúde e professores do povo Guarani, verificamos que estes leitores apresentam uma série de características que os distinguem de outros leitores. Entre as características observadas, destacamos por um lado a importância conferida à identidade étnica, a preocupação com as tradições culturais e religiosas, suas relações com o tempo e o espaço de aprendizagem. Por outro lado, notamos a paciência, a capacidade de conviver pacificamente com outras culturas, o respeito e o bom humor. Diante destas características notamos que o processo de apropriação da leitura e escrita, que vem da cultura não índia, ou seja, de

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

103

Juruá para os Guarani, é favorecido quando situado numa relação dialógica. Pelo acompanhamento dos encontros presenciais do curso de escolarização, notamos a formação de um universo híbrido (Canclini. 2001), formado pela interação entre indivíduos e culturas, a partir do qual há o acesso aos conhecimentos Guarani e Juruá. Desta forma, as práticas sociais de leitura são constituídas considerando este universo. Assim, desconsideramos a possível aculturação deste grupo a partir da aquisição da escrita ao partilharmos da noção de apropriação de Chartier (1996), pela qual vemos a leitura como uma prática social adequada ao universo simbólico da cultura em que se insere. Acreditamos, acreditamos que, assim como na oralidade, as práticas sociais de leitura e escrita Guarani apresentam configurações específicas que participam de sua identidade cultural. Portanto, considerando que a falta de diálogo entre as culturas pode causar o desconhecimento, a negação, a frustração, a desilusão e o retrocesso que inviabilizam a leitura, procuramos aproximar o designer do universo dos leitores. Desta forma, destacamos, através do exemplo do Álbum Seriado Caminho das tradições, prevenção de DST/AIDS nas aldeias Guarani M´bya do Estado do Rio de Janeiro, a produção em co-autoria como estratégia possível para dar voz a estes leitores. Diante da experiência de partir das ilustrações e do roteiro do vídeo elaborado pelos leitores, observamos um produto influenciado por várias vozes e identidades com um objetivo único: a prevenção de Aids e das DST. Pela mescla das vozes, surgiu um objeto que dialoga com a tradição de transmissão do conhecimento Guarani, ao estimular a oralidade, conduzindo a uma leitura oralizada (Martín-Barbero: 2001) manifesta por um grupo de leitores/autores a um grupo de leitores/ouvintes. Neste projeto, privilegiamos o processo através de um método estabelecido ao longo da produção, e não a priori, voltado para a constituição de um contexto híbrido, da mescla de vozes, e de um produto que seja fruto destas práticas sociais. Outrossim, vislumbramos uma nova possibilidade de estudo em futuras pesquisas ou desdobramentos, a partir da hipótese de que a produção coletiva do livro favorece a identificação com os leitores. Esta identificação não se dá apenas pelo fato de colocarmos os leitores como autores, mas por favorecer a criação de vínculos simbólicos a partir do estabelecimento de uma prática social, ligada à leitura e à escrita, da qual emergem significados que participarão da mediação da leitura. Por este viés, diferenciamos o design do livro do Design da Leitura (Farbiarz e Farbiarz:2005). No primeiro caso, encontramos conceitos como legibilidade, conforto e clareza (Hendel:2006), que primam apenas por uma forma de

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

104

leitura que já pressupõe o leitor que já se apropriou das práticas sociais de leitura e escrita. Neste sentido, entendemos que o design do livro busca resolver apenas questões ligadas ao reconhecimento dos caracteres e à percepção do texto enquanto forma gráfica, favorecendo apenas à alfabetização. Já o Design da Leitura distingue-se pelo caráter formador, que prima não apenas pela alfabetização, entendida como apropriação da tecnologia de leitura e escrita, como também pelo letramento (Soares:2000), entendido como apropriação das práticas sociais de cultura e escrita. Com a proposta do Design da Leitura, vislumbramos as possibilidades de investigação das condições de recepção, do reconhecimento dos agentes da produção, mediação e recepção, assim como o entendimento das diversas esferas de mediação, desde a mediação da cultura às mediações do suportes, que conduzem a diversas possibilidades de linguagem. Portanto, vemos diante do Design da Leitura um amplo campo de pesquisas que consideram os leitores, os suportes e os contextos em que se inserem. O designer nesta perspectiva não é invisível, mas participante de um contexto e busca o diálogo com os conhecimentos presentes nele, a fim de traçar estratégias que contribuam com as práticas de leitura e escrita.

105

Referências Bibliográficas BARROS, A.M. et al. Quando o índio reinventa o olhar: notas sobre o uso das imagens e da escrita In BARROS, A. e CASTRO, R. (org.) Ara Reko: memória e temporalidade Guarani. 2ª ed. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2005. páginas 89-101. _______.Formação de professores Guarani Mby'á, o sujeito da imagem e o objeto do olhar. Anais do 26. CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, Belo Horizonte-MG, setembro de 2003. São Paulo: Intercom, 2003. [cd-rom] [disponível online em: http://hdl.handle.net/1904/4981] BARTHES, Roland. Semântica do objeto, In: A aventura semiológica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 205-218

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

_______. A retórica da imagem. In O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte, UFMG, 1998. BEHRENS, Roy. Art, Design and Gestalt Theory. Leonardo Online San Francisco, 17 de nov. 2004. Seção Journal Archives. Disponível em: Acesso em 15 nov. 2005. Também disponível em < http://cit.dixie.edu/vt/vt2600/gestalt.html> Acesso em 23 dez.2006. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5ª ed.; São Paulo: Perspectiva, 2004. CABRAL, Fabrícia. John Ruskin e Aloísio Magalhães, para além das “Artes e Ofícios” e do Design Gráfico. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISA E DESENVOLVIMENTO EM DESIGN, 7, 2006, Curitiba. Anais...Curitiba, 2006. CANCLINI, Nestor G. Consumidores e Cidadãos. RJ, UFRJ, 2001. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O Trabalho Antropólogo. UNESP/Paralelo 15, São Paulo, 1998.

do

CHANDLER, Daniel. The Sapir-Whorf Hypothesis. In The Media and Communications Studies Site, University of Wales, Aberystwyth, 1995. Disponível em: Acesso em: nov. 2005. CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita São Paulo: Editora Unesp, 2002.

106

_______ et al. Cultura escrita, literatura e História. Porto Alegre: Artmed, 2001. _______. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas nos séculos XIV e XVIII, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. _______. Práticas da leitura (org.) São Paulo: Estação Liberdade, 1996. COELHO, Luis Antonio. Mudando de patamar: a pesquisa no design, In InfoDesign – Revista Brasileira de Design da Informação, 2005. Disponível em: Acesso em: nov. 2005.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

DA MATTA, Roberto. O ofício do Etnólogo, ou como ter “Anthropological Blues” in NUNES, Edison de O. A aventura sociológica, Rio de Janeiro: Zahar, 1978. páginas 23-35. ELIAS, Norbert, A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro : J. Zahar, c1994. _______. Mozart, sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. (organizado por Michael Schröter, tradução:Sergio Goes de Paula) FARBIARZ, Jackeline Lima; FARBIARZ, Alexandre. Design da leitura: uma questão de conduta. Revista Brasileira de Design da Informação Infodesign Sbdi, Curitiba, 2005. _______; _______. (2004). O designer como mediador entre o livro e o leitor. In: Anais do P& D Design 2004. São Paulo: FAAP. FISH, Stanley. Why no one´s afraid of Wolfgang Iser. In COBLEY, Paul (editor)The communication theory reader Nova Iorque: Routledge, 1996. p. 407-425. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.. Rio de Janeiro : Imago, 1974 GANDELMAN, Marisa; FERNANDES, Luis Manuel Rebelo; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O Poder do conhecimento na economia política global: o regime internacional da propriedade intelectual, da sua formação às regras de comércio atuais. 2002. 206 p. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. HAVELOCK, Eric A equação oralidade – cultura escrita: uma forma para a mente moderna. In OLSON, David R. e

107

TORRANCE, Nancy Cultura escrita e oralidade. Paulo, Ática, 1995.

São

HELLER, Agnes, O Homem do Renascimento, Lisboa: Editorial Presença, 1984 HESKETT, John. Desenho Industrial. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. ISER, Wolfgang. The act of reading Londres: Johns Hopkins University Press, 1984. _____, Talk like whales: a reply to Stanley Fish. In COBLEY, Paul (editor)The communication theory reader Nova Iorque: Routledge, 1996. p 426-434. LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1998

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

LADEIRA, Maria Inês. História, Nomes e Lugares. In INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Enciclopédia dos Povos Indígenas [verbete Guarani Mbya] 2003. Disponível em: < http://www.socioambiental.org/pib/epi/guaranimbya/hist.sht m> Acesso em 15 dez. 2006. ______. Relações de Contato. In INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL. Enciclopédia dos Povos Indígenas [verbete Guarani Mbya] 2003. Disponível em: < http://www.socioambiental.org/pib/epi/guaranimbya/jurua.sht m > Acesso em 15 dez. 2006. LEON, Márcia.; NOJIMA, Vera Lúcia; YUNES, Eliana; PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO. Departamento de Artes e Design. Aspectos visuais do livro didático: uma leitura. 2001. 137 f. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Artes e Design. MARTÍN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2001. MOREL, Cristina. et al. Escolarização de agentes indígenas de saúde e de saneamento: uma experiência de EJA em aldeias guarani. In BARROS, A. e CASTRO, R. (org.) Ara Reko: memória e temporalidade Guarani. 2ª ed. Rio de Janeiro: E-Papers Serviços Editoriais, 2005. páginas 103-118. NIEMEYER, Lucy. Design no Brasil origens e instalação. 2ª ed.; Rio de Janeiro: 2AB, 1997. NOGUEIRA, José Francisco Sarmento; RIPPER, Jose Luiz Mendes; PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO. Departamento de Artes e Design. Etnodesign: um estudo do grafismo das cestarias do M'byá Guarani de Paraty-Mirim (RJ). 2005. 134 f. Dissertação (Mestrado em Artes e Design) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

108

NUTI, Regina, NEVES, Maria Apparecida.; PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO Departamento de Educação. A linguagem na relação professor-aluno: uma analise a luz da teoria de Vygotsky. 1990. 176f. + anexo Dissertação (Mestrado) - Pontificia Universidade Catolica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação. PIAGET, Jean,. Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro : Forense, 1967 RIBEIRO, Milton. Planejamento Visual Gráfico. 1. ed. Brasília: Linha Gráfica, 1983 SES-RJ – SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Acessória Estadual de DST/Aids. Caminho das tradições, prevenção de DST/AIDS nas aldeias Guarani M´bya do Estado do Rio de Janeiro”. SES-RJ, Rio de Janeiro, 2006.

PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0510327/CA

SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura guarani. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Bele Horizonte, Autêntica, 2000. TEIXEIRA, José Carlos B.; CIPINIUK, Alberto.; PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE JANEIRO. Departamento de Artes & Design; Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Gênese do campo do design no Brasil. 1997. 76f. Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Artes. VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In NUNES, Edison de O. A aventura sociológica, Rio de Janeiro: Zahar, 1978. páginas 36-46. VIGOTSKY, Lev.; COLE, Michael. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: M. Fontes, 1984 WOLFF, J. A produção social da arte. Tradução por Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1982.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.