Lógica e Paixão. Abelardo e os Universais

August 27, 2017 | Autor: M. Carvalho | Categoria: Universals, Peter Abelard
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(

MARIO SANTIAGO DE CARVALHO

LÓ GΙ CA E ΡΑΙΧΆΟ Abelardo e os Universais

TITULO

Lógica e Paixáo. Abelardo e os Universais

AUTOR

Mdrio Santiago de Carvalho

COLECÇAο

Maiéutica / 4

DESENHO DA CAPA Vasco Berardo CΟΜΠΟSIÇAO

Grafismos - Pedro Bandeira

IMPRESSAO

Imprensa de Coimbra, Lda.

DEPύSΤΤΟ LEGAL ISBN EDIÇAO E DISTRIBUIÇAO

169207/01 972-798-010-4 Edições MinervaCoimbra - Rua dos Gatos, 10 3000-200 Coimbra Codex - Portugal Τel. (351) 239 826 259 / (351) 239 701 117 - Fax (351) 239 717 267 Email: Iivrariaminerva@mail. telepac.pt

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2001

APRESENTAÇÃO

Reúnem-se aqui dois estudos, desiguais por natureza, que se ocupam de um linicο autor, o curioso e interventiνο filósofo do século XII Pedro Abelardo. O primeiro trabalho, «Ler Abelardo», não tem outra preocupaçãο além da de permitir ao leitor um eventualmente primeiro acesso à figura do pensador, desse modo introduzindo o segundo estudo. Concentra-se, pois, numa apresentação divulgadora da sua vida e da sua obra, tomando em contexto o título «autobiográfico» Ηίstόría das Minhas Calamidades. Por esta razão, acrescentou-se também, em Apêndice, um Mapa e um Quadro Cronológico. O segundo capítulo, «Qualquer coisas que nas coisas não é τιmα coisa», pretende ser uma apresentação nova do consagrado tema dos universais, tal qual a leitura do nosso autor no-la permite fazer. Não obstante 0 contexto académico universitário preciso que acolheu este último trabalho, afigura-se-nos que ele tem pleno cabimento na presente colecção, «Ιaiêutica», dado o tema dos universais ser objecto do actual Programa de Filosofia do Ensino 7

LOGICA E PAIXAO. Abelardo e os Universais

Secundario, na sua Unidade Ερistémicο-Ontológica, «Realidade e Verdade». Defende-se, primeiro, uma alteração no modo de apresentar e colocar o chamado «problema dos universais». Depois, pretende-se que a sua raiz, que muito (atrever-nos-íamos a dizer: que quase tudo) deve a Abelardo, nos força a considerar tal questão no 'ambito do que chamamos a «diferença linguística». Não sei se a propósito, lembraria uma referência inusitada sobre a (in ) utilidade desta proposta. Na obra Otras Inquisiciones, Jorge Luis Borges, confronta a novidade do nominalismo patrimonial reconhecer-seo quanto este movimento lógico-filosófico deve a Abelardo) com a sua alegada vitória actual «tan vasta y fundamental que su nombre es inútil. Nadie se declara nominalista porque no hay quien sea otra cosa»'. Como se vera, o tema também comporta uma extensao hermenêutica endógena (como via de acesso ao abelardismo) e, exogenamente, uma aplicaçao social, ou mesmo política, de um pathos metafísico ocidental sui generis. É esta última razoo que une o «nome da rosa» ao horizonte passional da lógica.

Mario Santiago de Carvalho

i LUIS

BORGES, J. - «De las Alegorías a las Novelas» in Otras Inquisiciones (Madrid 21979) 156 e 155.

Talvez não se ande muito longe da verdade se dissermos que de todas as obras que Abelardo escreveu sό a História das minhas Calamidades pode ser lida sem aparente dificuldade2. Esta carta autobiográfica explicitamente escrita, depois de 1131, para consolaçãο de um amigo (Abelardo teria então pouco mais de cinquenta e dois anos) costuma ser editada com a sequência de cartas que Heloísa escreveu após ter tido conhecimento da Historia (Epístolas 2, 4 e 6) e bem assim das respostas às mesmas dadas pelo próprio Abelardo ( Epístolas 3, 5,7 e 8). Este número de oito cartas (a Historia contada como Epístola 1) foi recentemente aumentado com mais cento e treze, mas esta descoberta ainda não é de atribuição consensuali.

2

Abélard. Historia calamitatum. Texte critique avec une introduction,

ed. J. Monfrin (Paris 1959). Traduções portuguesas: Lisboa 1972 e São Paulo 1973. Citamos a partir da edição brasileira, abreviada HMC, na tradução de Ruy Afonso da Costa Nunes. 3 Cf. MEWS, C.J. — The Lost Letters ofHeloise and Abélard. Perceptions of Dialogue in Twelfth- Century France (New York 1999). 11

LÓGICA E PAIXAO. Abelardo

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Pedro Abelardo é porém autor de muitas mais obras de arte e de filosofia (as suas composições musicais como os

Planctus e Epithalamica estão editadas em disco) algumas das quais referidas na sua Historia, que aquí introduziremos. Nascido por volta de 1079 perto de Nantes, Le Pallet, Abelardo recebeu a primeira educação no Loire junto de Roscelino de Compiègne (¡1120/25). Permitimo-nos remeter para o Quadro e para o Mapa apensos adiante. Eis como ele narra o seu despertar para as letras e as humanidades que

c os Universais

a prerrogativa dos primogénitos, renunciei completamente à corte de Marte pαra ser educado no regaço de Minerva. E. visto que eu preferi as armas dos argumentos dialécticos a todos os ensinamentos da filosofia, troquei as outras armas por essas e antepus os choques das discussões aos troféus dasguerras. Por isso, perambulando pelas diversas províncias a travar debates, onde quer que ouvisse dizer que florescesse o estudo dessa arte, tornei-me um émulo dos peripatéticos». ( HMC 249)

o fizeram voltar as costas a uma carreira militar:

«Sou oriundo de um lugarejo situado na entrada da pequena Bretanha, afastado creio que oito milhas a oeste da cidade de Nantes e que se chama propriamente Le Pa//et. Tal como a natureza de minha terra οu de minha família, eu me distingui tanto pela vivacidade do espirito e pelo talento como pela facilidade para ο estudo das letras. Meu pai foi um pouco versado nas letras antes de haver cingido o cinturão de soldado e mais tarde abraçou com tanto amor as letras que se dispôs afazer com que nelas fossem instruidos, antes dos exercícios militares, quaisquer filhos que tivesse. E, sem du'vida, assim foi feito. Por isso, tratou com tanto mais cuidado da minha formação quanto mais me dedicava ο seu afecto, uma vez que era o seu filho primogénito. Eu, na verdade, quanto mais longe e mais facilmente me adiantei nos estudos das letras, tanto mais ardentemente a elas me apeguei, e fui seduzido por um tão grande amor por elas que, abandonando aos meus irmãos a pompa da glória militar junto com a herança e 12

O seu professor, Roscelino, deve ter chegado a Loches por volta de 1093, depois de ter sido acusado de heresia em Soissons, e de uma breve permanência em Inglaterra. Na verdade, Anselmo de Cantuária, então arcebispo dessa cidade inglesa, havia tido o cuidado de refutar a tese dialéctica de Roscelino ( sobre as voces e não sobre a verdade) na obra sobre

A Inear-

naςdο do Verbo (De incarnatione Verbi).

DIALÉCTICA

O interesse que decerto o ensino de Roscelino despertou em Abelardo levou-o a dirigir-se a París, o centro mais importante para o estudo da dialéctica.

«Finalmente cheguei a Paris, onde essa disciplina conseguira florescer ao máximo, junto a Guilherme, a saber, o de Champeaux, meu preceptor, reputado então como 0 principal expoente nesse magistério, tanto pela fama como 13

LOGICA E ΡΑΙΧΑΟ.

Abelardo c os Universals

de facto. Com ele me demorei algum tempo; de início fui bem aceito, mas logo depois lhe pareci muito incómodo quando tentei refutar algumas das suas opiniões e acometi contra ele a argumentar frequentemente, sendo que, por vezes, eu parecia levar a melhor nas discussões. Por certo, aqueles mesmos entre os nossos condiscípulos que eram considerados como os principais sofriam com indignação tanto mais quanto eu era tido como o último pelo tempo da idade e do estudo. Daí começaram as minhas calamidades que continuam até agora, e quanto mais longe se estendia a minha fama mais se inflamava a inveja dos outros contra mim.» (HMC 250)

Guilherme de Champeaux deixara Notre-Dame em 1108 e havia-se instalado em São Victor, uma importante comunidade canónica regular, onde por certo Abelardo o antagonizou uma vez mais. A verdade é que, como ele mesmo confessa, Abelardo aspirava a dirigir uma escola de dialéctica:

«Por fim, aconteceu que, presumindo do meu engenho acima das foras da idade, eu aspirava à direcção de uma escola sendo ainda um adolescente, e imaginava o lugar em que realizaria esse piano, a saber, na então famosa cidade de Melun, que era sede real. Meu jd mencionado mestre pressentiu isso, tendo envidado esforços para afastar para bem longe de si a minha escola. Maquinou ocultamente com todos os meios de que dispôs para, antes que eu me afastasse da sua escola, prejudicara preparação da minha e me arrebatar o lugar previsto. Mas como entre 14

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Abelardo e os Universais

as pessoas influentes da terra eu contava ali com alguns partidários, confiado no seu auxilio consegui quanto desejava, sendo que a inveja manifestada por ele angariou para mim a aprovação de muitas pessoas. No entanto, em consequência desse meu tirocínio na escola, o meu nome começou a difundir-se de tal modo na arte da dialéctica, que não apenas a fama dos meus condiscípulos, como também a do próprio mestre, reduzida pouco a pouco, acabou por se extinguir. Daí resultou que, presumindo eu próprio cada vez mais de mim mesmo, transferisse 0 mais depressa possível a minha escola para Corbeil, mais próxima da cidade de Paris, para que daí certamente, a minha indiscrição promovesse assaltos mais frequentes de discussão. Não havia, porém, transcorrido muito tempo quando, por causa do ardor descomedido pelos estudos, e atingido pela doença, fui obrigado a retornar à terra natal; afastado da França durante alguns anos, eu ainda era procurado mais ansiosamente por aqueles que o estudo da dialéctica espicaçava.» (HMC 250-251) Antes portanto de se entregar ao estudo da teología, por volta de 1113, como se vê Abelardo pratica com sucesso a lógica e o seu ensino. Nessa qualidade são inúmeras as obras que escreve, pelo que só podemos destacar algumas, as de maior relevo: breves glosas literais ao património mais antigo da lógica, a Isagoge de Porfírio, as Categorias e Interpretação de Aristóteles e As divisões de BoéciΟ. Datando de cerca de 1102-12, e portanto provavelmente sendo o seu primeiro trabalho editado, estas 15

LOGICA E PAIXAO. Abelardo e os Universais

Glosas Literais4 não devem ser as chamadas Introductiones parvulorum (í. e. Introduções à Dialéctica para os jovens) a que Abelardo se refere na sua obra maior intitulada Dialectica5. Citaremos ainda mais três obras de importância reconhecida: a Logica Ingredientibus ou Glosas sobre Porfirio, Categorias e Periermeneias (1113/25)6; as pequenas Glosas ou Logica Nostrorum petitioni sociorum (1112-25) e o 7}atactus de intellectibus que se dedica ao estudo da produção dos pensamentos na mente mediante um processo em cinco fases: sensação, imaginação, pensamento, conhecimento e juízo$. Quais são as suas principais teses em lógica'? Convém em primeiro lugar ter presente que Abelardo se integra no âmbito da logica vetus, a lógica antiga (cujo principal património literário já referimos e ao qual haveremos de voltar detidamente no capítulo a seguir). Apresentando-se como professor (expositor) desta arte Abelardo nãο se limitou a repeti- Ia e inovou nalguns dominios. Tal como Cicero Abelardo define a lógica ου dialéctica ( para ele estes dois termos dizem o mesmo) como a arte de 4 Pietro

Abelardo. Scritti di Logica, ed. M. dal Pra (Roma 1954).

5 PetrusAbaelardus.

Dialectica, ed. L. M. de Rijk (Assen 1956).

G PeterAbaelards Philosophischen Schriften. 1. Die Logica Ingredientibus, ed. B. Geyer (Münster 1919-27). Tradução portuguesa: Lágica para Principiantes (São Paulo 1973 e Petrópolis 1994). 7 Peter Abaelards Philosophische Schriften.2. Die Logica Nostrorum Petitioni Sociorum, ed. B. Gever (Münster 1933). 8 Abélard. Des intellections, ed. P. Morin (Paris 1994). 9 Vd. JOLIVET, J. — Arts du langage et théologie chez Abélard (Paris 1969).

LOGICA E PAIXAO. Abelardo

e os Universais

avaliar e distinguir entre argumentos válidos e inválidos, seja em que domínio da ciência for, bem como a de explicar a razão pela qual eles são οu não válidos. A lógica não trata das coisas, mas é evidente para o autor que 0 estudo destas é importante por causa do sentido das palavras que se usam nas proposições. As proposições usadas nos argumentos podem ter a forma de um silogismo οu de uma consequência. Estes assuntos serão objecto de tratamento pormenorizado no capítulo seguinte. Escrita a pensar na educação dos seus sobrinhos, a obra

Dialectica dedica-se a vários dos temas ela lógica: as partes da oração, as proposições, os silogismos. As partes são os chamados cinco predicáveis de Porfírio (género, espécie, diferença, próprio e acidente), as dez categorias de Aristóteles e a significação. Quer as proposições quer os silogismos podem ser ou categóricos ou hipotéticos. Pormenorizando mais, deveremos dizer que a palavra (vox) é dotada de uma materialidade e de uma significação; ela é as sim simultaneamente som e (no caso de ter sentido) comunicação interiorizada. Na Logica Nostrorum Abelardo substitui a designação latina vox pela de sermo. O sentido das palavras é duplo: aponta para a realidade e para um conceito e, por isso, significar consiste em produzir um conceito (generare intellectum) que tenha correspondência com a realidade. O pensamento entronca assim com a linguagem e com a realidade. Nestes processos de correspondência cabe obedecer às regras da gramática e da dialéctica, além de intervir um procedimento cognitivo de natureza primeiro sensível e depois intelectiva.

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Aisciardo e os Universais

À semelhança do que acontece com as palavras também as proposições remetem quer para o real quer para o pensamento. Uma proposição verdadeira é aquela que nos diz como é que uma coisa é na realidade (embora o verbo ser possa também ter um conteúdo existencial e dizer que uma coisa é ou existe): "uma sereia é uma entidade mitoldgica". Mais importante do que 0 domínio existencial, e além do facto de a proposição revelar como é que uma coisa é compreendida, está o sentido da proposição (dictum propositionis). De notar que este sentido nem é o que está fora do intelecto nem o acto do intelecto pelo qual a proposição é dita, mas antes o conteúdo objectivo daquele acto. Enquanto uma proposição categórica ("João é homem") perde a sua validade se aquilo que é dito deixar de existir, numa proposição hipotética ("Se o homem ώ, é animal") isso não sucede; ela é independente da realidade embora não do sentido οu da compreensão que se tem das coisas (intellectus de rebus). A relação de consequência não é uma coisa, é um facto lógico. Igualmente importante na lógica abelardina é a sua teoria ou concepção sobre os universais, assunto que abordaremos com vagar no capítulo a seguir. A lógica nãο se opõe ao estudo das coisas (physica), mas é evidente que as provas científicas, quer sejam feitas com base na relação entre termos (tópica), quer seja com base na relação entre proposições antecedentes e consequentes ( silogística), tem o seu ponto de partida na existência das coisas. Partindo embora da existência destas coisas, idealmente, a lógica é independente dessas existências. 18

L6GCA

C ΡΑΙΧΑΟ. Abciardo e os Universais

TEOLOGIA A lógica tem também uma relação com a teologia, pois, como dissemos, a dialéctica permite distinguir a verdade da falsidade. Esta distinção é essencial para a religião e Abelardo opôs-se sempre àqueles que ou condenavam a contribuição da dialéctica para a compreensão do dogma ou faziam um mau uso dela levando a teologia para os terrenos da heresia. Essencial ώ, por conseguinte, a contribuição das artes da linguagem ao serviço das maiores e mais elevadas matérias teológicas. Na História Abelardo introduz a sua aprοxímaçãο pessoal à teologia da seguinte maneira:

«Ora, aconteceu que eu me aplicasse, de início, a discorrer sobre o próprio fundamento da nossa fé por meio de analogias propostas pela razao humana, e que eu compusesse para os meus alunos um tratado Sobre a Unidade e a Trindade de Deus. Eles me pediam argumentos humanos e filosóficos, e insistiam mais naqueles que pudessem ser entendidos do que proferidos, dizendo ser supérflua a prolaçao de palavras sem a compreensão das mesmas, e que nao se pode crer naquilo que antes nao se entendeu, e que é ridículo alguém pregar aos outros o que nem ele próprio nem aqueles que ensina podem compreender como intelecto.» (HMC 268) Não foi sό o Tratado sobre a Unidade e a Trindade de Deus, hoje em día conhecido por Theologia Summi Boni, que Abelardo 19

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convocasse uma certa assembleia, sob o nome de concilio, na cidade de Soissons e me fizesse vir e trazer comigo aquele tratado que eu compusera sobre a Trindade. Eassim se fez. Antes, porém, que eu ali chegasse, aqueles meus dois citados rivais haviam-me difamado de tal maneira junto ao clero e ao povo que no primeiro dia da minha chegada quase me lapidaram e aos poucos discípulos que me acompanharam, dizendo que eu havia ensinado e escrito que há três deuses, tal como lhes fora inculcado.» (HMC 268-69)

escreveu no âmbito teológico10. Como se percebe pela citação anterior da História, este primeiro escrito também teve a preocupação de refutar o mau uso que, alegadamente, Roscelino fazia da dialéctica para pensar os mistérios da Trindade. Tratava-se de heresia triteísta pela qual o autor de Compiègne havia sido condenado, conforme dissemos anteriormente. Roscelino contra-atacou Abelardo acusando-o de sabelianismo, quer dizer, de identificar as três Pessoas com uma só. Abelardo conta a sua versão dos acontecimentos, na sequência do contra-ataque:

«Quando muitas pessoas viram e leram esse tratado, o contentamento foi geral, jd que ele parecia satisfazer a todos quanto a esse assunta. E visto que essas questões pareciam as mais difíceis entre todas, tanto maiorse julgava a subtileza da sua solução. Vai dal e os meus rivais profundamente excitados reuniram contra mim um concllzo, destacando-se principalmente entre eles aquetes dois velhos conspiradores, a saber, Alberico e Lotulfo, que depois da morte dos seus e meus mestres, Guilherme e Anselmo, pretendiam reinarsozinhos depois deles e também suceder-lhes como seus herdeiros. Como ambos dirigiam escola em Reims, através das suas contínuas sugestões concitaram contra mim 0 seu arcebispo Raul para que, de concerto com Conão, bispo de Preneste, e que então desempenhava a função de legado na Gd/ia, ιο Peter Abaelards Theologi ' z Summi Boni, ed. H. Ostlender (Münster 1939); cf. JOLIVET, J.- La Théologie dÁbélard (París 1997). 20

Abelardo e os Uníveεsaís

A fim de responder a esta ilegitima identificação entre a sua doutrina e a de Roscelino, Abelardo compõe a Theologia Scholarium entre 1130 e 1140, que não passa de uma refundição alargada de uma redacção intermédia intitulada Theologia Christiana de 1121-1133". Na sua ultima versão, a Theologia Scholarium divide-se em três livros (Fé, Sacramento e Caridade) e d nela que Abelardo argumenta que "Pai", " Filho" e "Espírito Santo" são nomes para designar o poder, a sabedoria e a benignidade do supremo bem que d Deus. De notar que d na Theologia Christiana que a palavra "teologia" é usada pela primeira vez na sua acepção moderna (para Agostinho, v.g., "teologia' tinha o sentido pagão de "discurso sobre os deuses"). O trânsito abelardino da lógica para a teología d perfeitamente natural. Ele ocorre primeiro sob a leccionação de Anselmo de Laon (não confundir com o já referido Anselmo ιι

PetriAbaelizrdi Opera Theologica ΙΙΙ, Ed. E. M. Buytaert e C. J. Mews ( Turnhout 1987). 21

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de Cantuária ou de Aosta, o célebre autor do argumento dito ontοlógicο12) e depressa autonomiza-se. Embora injusta, eis a sumária apreciação que Abelardo faz do teólogo de Laon: «... retornei à França, principa/mente para estudar a

doutrina sagrada, guando ο meu já mencionado Mestre Guilherme se destacava como bispo de Châlοns. Nesse ensino, entretanto, o seu Mestre Anselmo de Laan desfrutava então da mdxima autoridade por leccionar havia muitos anos. Então fui ter cam esse velho que conquistara um grande nome mais pela sua longa pratica do que pelo engenho ou pela memória. Sc alguém vinha bater à sua porta, incerto, para consulta-lo sobre alguma questão, voltava mais incerto. Na verdade, parecia admirável aos olhos dos seus ouvintes mas era nulo aos olhos dos que lhe faziam perguntas. Tinha uma elοcuςãο admirável, mas era vazio de conteúdo, oco de pensamento. Quando acendia afogo, enchia a sua casa de fumaça mas não a iluminava. Sua Arvore parecia toda vistosa na sua folhagem aos que a olhavam de longe, mas revelava-se infrutífera aos que a observavam de perto e com cuidado.» (HMC 253-254) Biograficamente Abelardo leva-nos a crer que a sua independência como teólogo começa ainda debaixo do tecto de Anselmo de Laon por causa de um desafio dos colegas: 12 Cf. Santo Anselmo. Praslogian. Trad., introd. e comentários de C. Macedo (Porto 1996). 22

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e os Uisivcrsais

«Aconteceu que, certo dia, depois de algumas conferências sobre as Sentenças, nós estudantes gracejássemos uns com os outros. Vai dal que um deles me perguntou com intenção sorrateira, a mim que ainda nãa estudara senão livros de filosofia, o que eu achava das lições sobre os livros sagrados. Respondi que, decerto, o estudo dessas obras era muito salutar, pois através da sua leitura chega-se a conhecer o modo de salvar a alma, mas que eu muito me admirava de que para aqueles que são instruidos não bastassem, para entender as expasições dos Santos Padres, os seus próprios escritos ou os comentários, de tal modo que não precisassem evidentemente de um outro ensino. Muitos dos presentes caíram no riso e perguntaram se eu poderia fazer isso e se ousaria empreender tamanha tarefa. Retruquei que estava pronto para me submeter à prova se eles ο quisessem. Então, a gritar e a rir ainda mais, exclamaram: 'Por certo que nós aprovamos. Vamos procurar e entregar-te ο comentário de algum passo pouco conhecido da Escritura, e assim comprovaremos o que prometeste". Todos concordaram, então, na escolha de uma profecia muito obscura de Ezequiel. Al, tomando ο comentário, convidei-os logo para minha aula no dia seguinte. Houve alguns que, contra minha vontade, me davam conselhos, dizendo que eu nao devia me apressar a cumprir o prometido, mas que, como eu era ainda inexperiente, devia velar par muito tempo a esquadrinhar e a confirmar a minha exposição. Indignado, porém, respondi que não era do meu costume avanςar par meio da prática, mas sim por meio do engenho, e acrescentei que ou eles não 23

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Abelardo e os Uisiversajs

adiariam o comparecimento à minha aula conforme a minha decisão ou eu desistiria completamente de tudo. Sem dívida, poucas pessoas estiveram presentes à minha aula, jd que parecia ridículo a todos que eu, quase absolutamente inexperiente na ciência sagrada, dela viesse a tratar tão apressadamente. Entretanto, minha aula encantou de tal modo a todos os que a ela compareceram que eles a exaltaram com extraordinários elogios e me compeliram afazer comentários de acordo com o teor da minha exposição. Logo que ouviram isso, aqueles que não estiveram presentes começaram, à porfia, a concorrer à segunda e à terceira aula, e todos se puseram igualmente muito solícitos a copiar os comentários que eu começara afazer desde o seu início no primeiro dia. Em consequência disso, esse velho senhor, abalado por violenta inveja e já estimulado então contra mim pelas instigações de alguns, como lembrei acima, começou a perseguir-me pelas minhas aulas sobre a ciência sagrada, não menos que anteriormente o fizera meu Mestre Guilherme pelas de filosofia». (HMC 254-55) Apesar da perseguição do próprio Anselmo, o sucesso de Pedro Abelardo como teólogo e exegeta difundiu-se.

GlosassobreEzequiel (1113-14), Abelardo comentou também o Hexaemeron (1133-36), a Carta de São Paulo aos Além das

Romanos (1133-36), além de ter composto vários Sermões, οu para os irmãos de S. Gildas ou para as monjas do Paracleto ( 1127-36), de ter comentado o Pai Nosso, o Símbolo dos Apóstolos e o de Atanásio. 24

LÓGICA E ΡΑΙΧΑΟ. Abclardo e os Universals

Entre as inúmeras teses teológicas de Abelardo, destacaremos apenas as seguintes. É convicção do autor que os termos técnicos da filosofia de um Aristóteles ou Porfírio v. g. não servem para falar de Deus. Por outras palavras: quando usadas para falar de Deus as palavras perdem o seu sentido habitual ou original e sofrem um tratamento semântico, a translatio, que consiste numa transposição do sentido. Sc Dcus é ίnefável, dizer que Ele é "Senhor" só pode ser sustentado metaforicamente. Sc nãο se tomar em consideração este procedimento, as formulações teológicas da fé cristã não podem ser correctamente compreendidas. Sobretudo, no caso da Trindade, conforme já antecipámos, designações como "substância", " pessoa", "pai", etc. não podem ser cabal οu devidamente usadas se nos confinarmos ao património clássico da filosofia grecolatina. Mais: o mistério trinitário põe desafios. Por esta razão, ao pensar a questão da diferença e da identidade (Deus é uno por essência e numericamente plural em pessoas), Abelardo dá-nos versões distintas. Assim, na Theologia Summi Boni ele apresenta seis modos da relação: a) algumas coisas identificamse por essência; b) outras, idênticas em número; c) outras, por definição; d) ou por semelhança; e) por imutabilidade; f) pelo seu efeito. A estes modos correspondem seis sentidos diversos de diferença (diversum): a) diferença essencial (a parte não é o todo); b) diferença em nάmerο (Sócrates, Platão); c) diferença por definição (substâncίa e corpo); d) por semelhança ( espécie e género); e) por mudança (ora Sócrates está de ρé, ora sentado); f) por efeito (coisas que agem distintamente). Não obstante a radical diferença entre Deus e as criaturas, também há semelhanças. Habitualmente nomeia-se Deus 25

L6GICA E ΡΑΙΧÃΟ.

Abelardo c os Universais

LÓGICA E PAIXÃO.

empregando as mesmas palavras que usamos para designar as criaturas. Destarte, além do método das translationes em teología também se recorre aos sfmi!es e às analogías. De notar que, graças à Criação, as criaturas têm os traços de Deus, convicção que permitiría estes procedimentos metódicos.

CRÍTICA HISTÓRICO-LITERÁRIA Lugar à parte entre as obras da teología merece o Sic et Non, sobretudo pelo seu prefácio, o qual introduz o método critico que qualquer estudante de teología deve seguir para procurar a νerdade13. Datável de entre 1121 a 1132, o

Sim e

Não colige para cima de duas mil citações devidamente classificadas, o que pressupõe urn método de trabalho em equipa e um acervo bibliográfico riquIssimo. Entre os métodos preconizados no prefacio, destacamos: a resolução das dificuldades dos textos ao nivel da lógica (mediante a determinação do sentido das palavras que os autores usam) e ao nivel da história (porque o intérprete deve questionar as circunstâncias da escrita e do seu autor)14. Esta atenção à história levou Abelardo a criticar urn dos aspectos mais relevantes da tradição histórica do império franco-romano, a atribuição da abadía de Paris ao apostolo 13

14

Peter Abailard. Sic et Non: Α Critícal Edition, ed. B. B. Boyer e R. MacKeon (Chicago 1976-77). Cf. CARVALHO, M. S. de- «Introdução à analéctica diaporética» Caderno de Filosofias 6/7 (1994) 44-47 para uma tradução do texto. Remetemos também para a nossa obra (no prelo) Α Síntese Frdgil. 26

Abelardo e os Universais

Dinis. A este propósito, reporta-nos na História, o seguinte, pensando em todos (a maioria) quantos sustentavam acriticamente aquela atribuição:

«De facto, aconteceu, por acaso, que urn dia, enquanto eu estava lendo, deparei com uma certa passagem de Beda no seu Comentário dos Actos dos Apóstolos, no qual ele diz que Dionísio, o Areopagita, fora bispo de Corinto e não de Atenas. Essa afzrmaςãο parecia ser-lhes muito contraria, pois eles se vangloriavam ele que o seu Dionísio ( fundador do mosteiro) era o Areopagita e que a história dele indicava haver sido bispo de Atenas. Quando fiz esse achado, apresentei a alguns dos irmãos que me rodeavam, em tom de brincadeira, aquele testemunho de Beda, que se opunha à nossa tradição. Eles, porém, profundamente indignados, disseram que Beda era um escritor muito mentiroso e que o seu abade Hilduíno era tido como testemunha mais digna de fé, pois havia percorrido a Grécia durante muito tempo para investigar esse assunto e, tendo chegado à verdade, removeu completamente qualquer dúvida quando descreveu os feitos ele Dionísio. Então, quando urn deles me procurou com insistência e com perguntas importunas para que eu dissesse o que pensava sobre essa contenda entre Beda e Hilduíno, respondi que preferia a autoridade ele Beda, cujos escritos são seguidos par todas as igrejas latinas. (HMC 274-75) " Depois disso, os monges ficaram enfurecidos porque lhes parecia que Abelardo queria tirar-lhes a glória, negando que o Areopagita fosse a seu patrono. Foram ter com a 27

LÓGICA G PAIXAC.

Abelardo c os Universais

LÓGICA

abade e reuniram-se em conselho, após o qual ftzeram a Abelardo sérias ameaças, dizendo que iam envia-lo ao rei para que fosse punido como homem que atentara contra a glória do reino e pusera a mão sobre a sua coroa».15

Ε PAIXÃO.

Abelardo c os Universais

encantados pela suavidade das tuas melodias, não deixavam de recordar o teu nome. Eis a principal razão pela qual as mulheres suspiravam pelo teu amor. E dado que a maior parte dessas canções celebrava os nossos amores, expandiram o meu nome, como num relâmpago, por varias terras e provocaram contra mimo ciúme de muitas mulheres. 17

CANÇÕES E POEMAS De cerca de 1136 data a composição de três livros de hinos mais estrito, referiremos os trabalhos atribuídos a Abelardo

especialmente compostos para Heloísa, Hymnarius Paraclitensis. Como sería natural, os temas bíblicos inspiram poemas como

no âmbito artístico 16 . Como se sabe, a sua amante Heloísa

o

Antes de passarmos para as obras de filosofia em sentido

não se poupa a elogiar-lhe dotes inigualáveis de poeta e de escritor. Eis as palavras dela numa das célebres cartas enviadas já do mosteiro do Paracleto:

Reconheço que possulas, em concreto, dois dons que podiam atrair para tio coração de qualquer mulher, versejar e cantar (sabemos bem como estes dons faltam totalmente nos outros filósofos). Era graças a eles que descansavas das fadigas dos exercícios filosóficos, como que brincando, e deixaste-nos inúmeras canções poéticas, ritmadas pelo amor. A doçura requintada das letras e das músicas fazia com que as canções fossem frequentemente cantadas, ao mesmo tempo que sem cessar fazia com que 0 teu nome andasse na boca de toda a gente. Mesmo os iletrados, 15 Sobre a passagem e o autor em causa, vd. CARVALHO, M.S. de — Pseudo-Dionísio Areopagita. Teologia Mistica (Porto 1996) 27-29 e passim. 1ό Cf. MEWS, C. J. — PeterAbelard (Aldershot 1995) 38-41. 28

Carmen figurαtum, sobre a Incarnação; o Lux orientalis, em louvor de Maria; e seis Planctus sobre temas veterotestamentários com forte componente humana. Além de poder ter escrito composições destinadas à liturgia do Paracleto (o Ordinale ou Diurniale Paraclitense e o Breviario), Abelardo é

sequentiae (nas quais se celebrizou também Híldegarda de Bingen); de um diálogo baseado no Cântico dos Cânticos sob um coro de virgens, Epithalamica; de um De profundis, além do célebre Carmen adAstrolabium (Astrolábio é o filho autor de

que Abelardo teve de Heloísa), um poema moralizante segundo o modelo dos Disticha Catonis.

História Abelardo alude a um poema para Heloísa, Carmina amatoria (c. 1117) e continua, como já dissemos, Na

em aberto a possibilidade de se lhe poder atribuir a autoria de mais cartas de amor e outros poemas para a sua mulher.

Abélard. Lettres et Vies. Introduction, traduction, notes, bibliographie et chronologie par Y. Ferroul (Paris 1996) 102.

17 Heloise et

29

LÓGICA L PAIXAO. Abelardo e as Universais

LOGICA

Com efeito, um dos pontos centrais da sua autobiografia (o que lhe dá actualidade ou legibilidade justamente como sinal da individualidade do autor) tem a ver com as páginas dedicadas ao caso Heloisa cujo desfecho trágico reorientará a vida de Abelardo e os seus interesses filosóficos. do triste episódio merece uma citação mais longa:

Ο pitoresco

«Havia na cidade de Paris certa mocinha chamada Heloísa, sobrinha de um cónego chamado Fulberto, que quanta mais a amava tanto mais cuidadosamente procurava que ela se adiantasse em toda a ciência das letras, tanto quanta possível. Pelo rosto ela não fazia md figura, mas era a primeira pela riqueza dos seus conhecimentos. De facto, quanta mais esta vantagem da ciência literaria é rara entre as mulheres tanto mais servia de recomendação à mocinha e a tornara famosíssima em todo ο reino. Ponderadas então todas as coisas que costumam cativar os amantes, pensei em uni-la a mim pelo amor muito cómodo e acreditei poder conseguir isso de modo fácil. Por certo que eu era, então, pessoa de grande nome e me destacava pelo encanto da juventude e da aparência de tal modo que eu não temia ser repelido par qualquer mulher que eu dignasse favorecer com meu amor. Acreditei que essa mocinha cederia diante de mim tanto mais facilmente quanta eu sabia que ela possuía e amava a ciência das letras. (...) Ora, todo inflamado de amor par essa mocinha, procurei a ocasião pela qual ela se me tornasse familiar pelo convívio 30

C ΡΑΙΧΑΟ. Abebsrdo e as Universais

doméstico e quotidiano e assim a arrastasse a ceder mais facilmente. Para que isso acontecesse, tratei como mencianada tio da moça, par intermédio de alguns dos seus amigos, para que ele me recebesse em sua casa, que ficava próxima da minha escola, par um preço qualquer que ele estipulasse, alegando na verdade a pretexto de que o cuidado da minha casa prejudicava os meus estudos e que a excessiva despesa me onerava. Ele era muito avarento e muito preocupado com que a sua sobrinha progredisse sempre mais nos seus estudos literários. Por meio dessas duas fraquezas obtive facilmente ο seu consentimento e consegui o que desejava, uma vez que ele, defacto, era todo ambição de dinheiro e acreditava que a sua sobrinha aproveitaria alguma coisa do meu ensino. Rogando-me por causa disso com muita insistência, acedeu aos mens votos muito além do que eu ousaria esperar e concorreu para ο amor, confiando-a inteiramente à minha orientaçãο para que todas as vezes que me sobrasse algum tempo, depois de voltar da escola, tanto de dia coma de noite, eu me consagrasse a ensina-la. Sc eu percebesse, porém, que ela fosse negligente, então que eu a castigasse severamente. Nessa matéria fiquei imensamente admirado com a sua grande ingenuidade, ο que não me cspanton menos que se ele cοnfzasse uma tenra ovelha a um lobo faminto. Quando ele a entregou a mim, fda apenas para ensina-la mas, também, para castigá-la severamente, que outra coisa fazia do que dar passo livre absolutamente aos meus votos e oferecer ocasião, ainda que fda quiséssemos, para que eu dobrasse mais facilmente cam ameaças egalpes aquela 31

LÓGICA fi PAIXÃO. Abelardo e os Uniνcrsaώs

que eu não pudesse vencer com carícias?Mas haviam duas coisas que principalmente lhe desviavam a atenção de qualquersuspeita vergonhosa, a saber, o amor da sobrinha e a fama passada da minha continência. E Abelardo continua o relato:

Que mais direi? Primeiro nós nos juntamos numa casa e depois no espírito. Assim, com a desculpa do ensino, nós nos entregávamos inteiramente ao amor, e o estudo da lição nos proporcionava as secretas intimidades que o amor desejava. Enquanto os livros ficavam abertos, introduziam-se mais palavras de amor do que a respeito da liçãο, e havia mais beijos do que sentenças; minhas mãos transportavam-se mais vezes aos seios do que para os livros e mais frequentemente o amor se reflectia nos olhos do que a lição os dirigia para o texto. Ε para que não despertássemos suspeitas, o amor de vez em quando vibrava aosgolpes, não a cólera, não 0 ódio, mas o encantamento. Em suma, que direi? Nenhum grau do amor foi omitido por nós dois apaixonados, e tudo ο que o amοr pôde imaginar de insólito fοi acrescentado e, quanta menos tínhamos experiência dessas alegrias, tanto mais ardentemente nelas nos demorávamos e tanto menos nos cansávamos disso. Ε quanto mais essa volúpia me dominava, tanto menos eu podia consagrar-me à filosofia e ocupar-me da escola. Para mim era muito aborrecido ir à escola ou nela permanecer, como era, igualmente, muito diflcilρΡara mim ficar em ρΡé, enquanto dedicava as vigílias nocturnas ao 32

L6CICA L• PAIXAO. Abelardo e os Ui,jversais

amor e as horas diurnas ao estudo. As aulas, então, tinham em mim um expositor negligente e indiferente, de tal modo que eu jd nada proferia servindo-me do engenho, mas repetia tudo mecanicamente, e jd não passava de um repetidor dos meus primeiros achados e, se fosse possível ainda achar algo, seriam versos de amor e não os segredos da filosofia. A maior parte desses versos, como tu ρΡrόρrio o sabes, ainda são repetidos e cantados em varias regiões, principalmente por aqueles aos quais encanta semelhante vida. Não é fácil imaginar quanta tristeza, que gemidos e lamentos foram os dos meus alunos, quando perceberam a preocupação, ou melhor, a perturbação do meu espírito por causa disso». (HMC 257, 258-59) Preocupado com a reacção do tio de Heloísa, Fulberto, Abelardo propõe-lhe a solução fácil de um casamento (entretanto havia nascido um filho, de nome Astrolábio, e crescia a raiva de Fulberto). Heloísa argumenta contra essa solução:

«Ela jurava que seu tio nunca podia ser aplacado por satisfação alguma, como mais tarde ο reconhecemos. Ela também indagava queglória ia tirar de mim, uma vez que esse casamento me acabaria com o prestígio e humilharia igualmente tanto a ela como a mim. Ε ademais, que pun4ao ο mundo deveria exigir para ela, se ela lhe arrebatava tão grande luzeiro? Quantas maldições, quantos prejuízos para a Igreja, quantas lagrimas dos filósofas seguir-se-iam desse matrimónio! Quão indecoroso e lamentável seria ver que um homem como eu, que a natu33

LÓGICA C PΑΙΧΑΟ. Abelardo

reza criara para todos, me dedicava a uma sό mulher e me sujeitava a tanta indignidade! Ela abominava veementemente esse matrimónio que por todos os motivos seria ignominioso e pesado para mim.» (HMC 261) E, dando mostras de uma cultura e erudição hterárίa ímpar, Heloísa argumentava ainda mais, perguntando:

«Com efeito, que relação pode haver entre estudantes e criadas, escrivaninhas e berços, livros ou tabuinhas de escrever e uma roca, estiletes ou penas e fusos? Por fim, quem poderia, aplicando-se às meditações sagradas ou filosóficas, suportar σ vagido das crianças, as cantarolas das amas que as embalam e a multidão barulhenta da família composta de homens cc/c mulheres? Quem poderia também tolerar aquelas contínuas e desprezíveis sujeiras das crianças? Os ricos podem safar-se bem da situação, dirds, uma vez que os seus paldcios ou vastas moradias possuem repartições, e jd que a sua opulência não sente as despesas nem se perturba com as preocupações quotidianas. Mas eu digo que a situação dos filósofos não é a mesma que a dos ricos, nem aqueles que se dedicam às riquezas ou se envolvem com as coisas profanas têm tempo para os deveres sagrados ou filosóficos. Por isso, filósofos célebres do tempo antigo, desprezando completamente o mundo e fugindo do século mais do que abandonando-o, proibiam a si mesmos todos os prazeres, para repousarem apenas nos braços da filosofia. Um deles, que por sinal é σ major, Séneca, declara ao instruir Lucílio: 34

L6GΙCΑ C I'AIXAO.

e os Universais

Abelardo e os Universais

"Não deves filosofar sό por teres tempo disponível... Tudo deve ser posto de lado para que nos dediquemos a essa actividade para a qual nenhum tempo é suficientemente longo... Não importa muito se deixas de fazer ou se interrompes ο estudo da filosofia; com efeito, ela não permanece quando é interrompida... Epreciso resistir às ocupações, que não devem ser adiadas, mas removidas". Por conseguinte, os que entre nós se dizem verdadeiramente monges sustentam agora por amor de Deus aquilo que nobres filósofos entre os pagãos suportaram por amor da filosofia». (HMC 262-263)

Seja como for, os argumentos eruditos de Heloísa não encontram qualquer eco aos ouvidos do seu amante. O matrimónio realiza-se secretamente para não beliscar a reputação de Abelardo e ambos se separam imediatamente: ele em Paris ela em Argenteuil. A mais vil desgraça abaterse-á sobre ele:

ouvido o que se passara, o tio dela e os seus parentes ou cúmplices acharam que eu jd zombara imensamente deles e que, ao fazê-la monja, eu queria desembaraçarme dela facilmente. Donde, profundamente indignados e mancomunados contra mim, certa noite, enquanto eu repousava e dormia num quarto retirado da minha residência, tendo corrompido com dinheiro o meu servidor, puniram-me com a vingança mais cruel e vergonhosa, cc/c que ο mundo tomou conhecimento com ο maior espanto, isto é, cortaram aquelas partes do meu corpo com as quais eu havia 35 perpetrado a façanha que eles lamentavam. «Tendo

LÓGICA G ΙΑΙXΑΟ.

Abelardo c os Universais

LÓGICA G PAIXAO.

Imediatamente depois disso, eles fugiram e dois deles, que puderam ser presos, foram privados dos olhos e dos órgãos sexuais, sendo um deles o meu servidor jd mencionado que, enquanto permanecia comigo a meu serviço, foi levado à traição pela cobiça». (HMC 265)

artes liberais uma espécie de anzol como qual, sob o engodo do saber filosófico, eu os atraía ao estudo da verdadeira filosofia, tal como a História Eclesiástica, de Eusébio, recorda que costumava fazer Orígenes, o maior dos filósofos cristaos. Todavia, como o Senhorparecia ter-me concedido nao menos facilidade na Escritura divina do que na profana, minha escola, por causa dos dois cursos, começou a crescer extraordinariamente, e todas as outras, a declinarem de modo impressionante. Com isso eu provoquei contra mim de modo especial a inveja e o ódio dos mestres, que, sempre que podiam, me tiravam a autoridade, ao me lançarem em rosto, enquanto eu estava ausente, principalmente duas coisas: que é muito contrario ao objectivo de um monge deter-se no estudo dos livros profanos, e que eu presumia arvorar-me em mestre da ciência sagrada sem ter tido a orientação de um professor. Queriam desse modo que me fosse proibido todo o exercício do casino e, para conseguir isso, atiçavam incessantemente os bispos, os arcebispos, os abades e todas as pessoas de nome, na vida religiosa, ao seu alcance». (HMC 267-68)

Após a brutal tragédia ambos tomam votos. Na sequência da descoberta da História Heloísa passará a escrever-lhe reclamando-lhe primeiro a sua presença, depois a sua assistência espiritual e conselhos. Quanto a Abelardo, prosseguirá uma vida de ensino e investigação recheada de peripécias perigosas, perseguições insidiosas e escritos contundentes'`.

«Desse modo, devido aos seus constantes pedidos e à importuna pressão, e devido à intervenção do meu abade e dos irmãos, retirei-me para uma casinhola a fim de consagrarme da forma costumeira ao ensino. Na verdade, acorreu uma tal multiddo de estudantes às minhas aulas que nem o lugar lhes permitia acomodação nem a terra bastava para os alimentos. Ali, o que era mais conveniente ao meu estado de vida, eu me aplicava grandemente ao estudo da ciência sagrada mas sem ter abandonado totalmente o ensino das artes seculares com as quais eu estivera mais habituado e que eles reclamavam bastante de mim. Fiz das 18

VERGER, J. Abelardo. Escolar

no

claustro" in BERLIOZ, J. (agres.)

— Monges e Religiosos na Idade Média, trad. (Lisboa 1996); LE GOFF, J. — Os Intelectuais na Idade Média, trad. (Lisboa 2a ed. 1984). 36

Abelardo e os Universais

FILOSOFIA Na filosofia a que Abelardo se dedica não houve só lugar para a lógica de Aristóteles, de Porfirio ou de Βoécio. Uma parte

Timeu de Platão era-lhe acessível e uma imagem do platonismo chegava-lhe via Macróbio, via Βoécio (A Cοnsοlaçao da Filosofia), e viaA Cidade de Deus de Agostinho. Outros do

autores

37

LÓGICA E ΡΑΙΧΑΟ.

Abelardo e os Universais

LÓGICA C PAIXAO.

citados (v. g. na História) serão os pagãos Ovídio e Lucano ou os eclesiásticos Jerónimo e Beda o Venerável. Embora provavelmente distando entre sí de muitos anos duas obras filosóficas devem ser devidamente referidas,

Collationes, mais conhecidas pelo título descritivo Dialogo entre um Filósofo, um Judeu e um Cristao e que os estudiosos datam imprecisaantes de terminarmos. São, em primeiro lugar, as

mente entre 1125 e 1142. 0 filósofo dialoga primeiro com o judeu e depois com o cristão, confrontando os respectivos caminhos para alcançarem o Supremo bem e definindo o bem e o mal19. A redacção destas conferências assinala um ponto importante no que diz respeito à sua consciência da diferença entre o interesse focal pela

divinitas, da parte do cristão, e o

interesse pela ethica, por parte do filosofo. São dois distintos caminhos para atingir o Bem supremo, mas o acento tónico posto na lei natural (comum aos patriarcas e aos filósofos) determina uma simpatía reconhecida para com os gentíos e a sua sabedoria que os preceitos do Evangelho apenas vieram reformar, mas não alterar. Nas já citadas obras da Teologia Abelardo admitía que os pagãos, usando apenas a razão natural, haviam alcançado verdades fundamentais sobre Deus e até mesmo sobre a Trindade (antecipada v. g. pela

Alma do

Mundo em Platão). De igual modo, admitira a superioridade moral de muitos filósofos pagãos. Na argumentação de Heloísa contra o casamento revela-se uma inusitada familiaridade com alguns desses autores. Não é de excluir a possibilidade de 19

Petrus Abaelardus. Dialogus inter Philosophum, Iudaeum et Christianum, ed. R. Thomas (Stuttgart 1970). 38

Abelardo e os Universais

Abelardo encarar a vida monástica e preconizó-la para os seus monges à luz de exemplos requintados de comportamentos filosóficos sobretudo estóicos. Já num dialogo que precede as

Collationes, intitulado Solilóquios, Abelardo experimentava os paralelos entre cultura pagã e cristã, da seguinte forma: a palavra Cristão deriva de Cristo, Cristo é sabedoria (sophia), logo um cristão é um filósofo ou amante da sabedoria. Ou de outra maneira: como Cristo é o Verbo e o Verbo d o Logos, os cristãos são lógicos e por isso fιlósofos20. A estratégia preconizada para se passar dos escritos dos filósofos pagãos aos dos autores sagrados é a interpretação. Aqueles escrevem sob a forma de fábulas e a letra deve ser superada porque está repleta de mistérios e apresenta-se sob o véu mitico que apela para uma leitura mística. Já dissemos que as Teologias e o Sim concretizam tal estratégia.

e

0

Não aplicam, desenvolvem ou

Nas Collationes, que reflectem uma divisão da historia em 3 períodos, de enorme fortuna (o da lei natural, o da lei escrita dada a Moisés, e o período da Graça inaugurado por Cristo), lê-se, em primeiro lugar, que cabe ao filosofo enunciar a ética como amor a Deus e ao próximo inscrita na lei natural. O filosofo prossegue sustentando que a lei judaica ώ, por isso, desnecessária em relação à lei natural. Com o cristão, o filosofo debate a natureza do Bem supremo e recorda que, enquanto os filósofos tratam desse tema na ética, os cristãos fazem o mesmo em sede da teología (divinitas). O fιldsofΟ admite ainda 20

Peter 4belard. Soliloquium. A Critical Edition, ed. C. S. F. Burnett in Studi Medievali 25 (1984) 857-94 (corn tradução). 39

LOGICA 8 PAIXAO.

Abelardo e os Universals

LOGICAL PAIXAO.

Abelardo c os Universals

mais: se os cristãos definem ο Bem supremo como aquilo que, uma vez alcançado, nos torna felizes (sendo o supremo mal o oposto), também os filósofos não-cristãos o haviam definido como virtude οu felicidade supremas. Sugere-se a possibilidade de estarmos perante uma diferença termino lógica. O filósofo prossegue levantando a questão de saber se o Bem οu o mal supremos se podem alcançar nesta vida οu

fixação naquilo que o homem considera ser o mal. A nãο-

só numa vida futura. O cristão consegue persuadi-!o de que o Supremo Bem consiste na felicidade (de que os Epicuristas falavam) obtida após a morte. Alcançada a noção de eternidade, neste plano, passa-se a discutir a natureza em si do Bem supremo, e o fιlósofο aceita que Deus ώ o supremo bem e que a felicidade consiste na visão de Deus. Posto que ο bem ώ definido, pelo cristão, como ο que nãο

não correspondeu o consentimento de uma ruptura com Deus.

substancialidade do mal situa-se no mesmo plano da modalizaçãο das acções. Tal como o status na lógica, o consentimento não é uma res, não é urna coisa: aqueles que crucificaram Cristo — escreve Abelardo - nãο pecaram se julgaram que a sua acção era a correcta, tal como Heloísa não deve ter pecado ao amar Abelardo se ao seu desejo por ele

impede o benefício do que quer que seja, qualquer acção deverá ser moralmente neutra e o que valoriza οu desvaloriza uma acção ώ a intenção com que ela é decidida. Provavelmente, a última obra de Abelardo é dedicada à ética e tem o curioso título délficο Conhece-te á ti mesmo21. Ora, esse título traduz perfeitamente o ideal de uma ética interiorizada dominada pela ideia de intenção οu consenti mento. Esta concepção formal leva Abelardo a admitir que uma acção nada acrescenta ao mérito do agente. Apenas a intenção que se conforma à lei de Deus pode ganhar mérito para o homem. O pecado não ώ nem o vício, nem uma vontade má, nem um desejo mau ou a concupiscência. Pecado ώ a 2ι PeterAbelard`sEthiCs, ed.

D. E. Luscombe (Oxford 1971). 40

41



I I



QUALQUER COISA QUE NAS COISAS NÃO É UMA COISA Abelardo e a pergunta pelo universal

Α.

φνσισ κρντtεεσθαι φιλει ( Heraclito, Frag. 123) secundum litterae superficiein (...) ρleιια rnysteriis ( Abelardo, Theologia Summi Boni I, 5)



1. Tal como hoje urn lider polfiico ου urn denunciador social incómodo οu urn autor de versiculos satânicos οu até mesmo urn costureiro de reputação internacional de costurnes duvidosos, Pedro Abelardo (1079-1142) foi vitirna de várias tentativas de assassinato. Qualquer leitor, decerto acidental, da `autobiografia' abelardina provocantemente intitulada História das Minhas Calamidades, não deixará de ficar surpreendido com a repetição deste fatal destino de Sócrates, não obstante depressa vir a compreender como, a urn vincado esrilo de individualidade 'ecce horno', subjaz uma obsessiva identifίcação entre novidade e rivalidade. A uma leitura mais 45

LÓGICA C

ΡΑΙΧÃΟ. Abclardo e OS

LÓGICA L Ρ'ΑΙΧΛΟ. Abelardo c

Universais

escutante compreenderá, por fim, o apertado lígame entre pensamento genuino e vida própria οu autêntica. Conhecido quase universalmente pelo episodio trágico motivado pela sua Ιigaçãο sentimental a Heloísa, louvaminhado pela velha historiografia racionalista do século XIX como figura liberal e pela sua inovadora contribuição espiritual — perspectiva que assim desenhava em forte negativo o retrato injusto de um sofista que a erudição eclesiástica do século XVIΙΙ lhe outorgara—, as mais recentes investigações deixaram de atravessar uma tão apressada vontade de juízo e, devolvendonos Pedro Abelardo ao ambiente urbano setentrional de uma geografia bem localizada no tempo, permitem-nos hoje

us Universais

ainda não há muito, «que a teologia de Abelardo e até a sua personagem deixaram de ser vistas com os olhos de Bernardo ou de Hauréau, sendo agora consideradas com a simpatia serena e lúcida que é devida a cada momento representativo da história do pensamento.»~3 Significativamente, porém, o interesse que a publicação

em día captar um autor que interessa à teología e à ética, à história da epistemologia dos séculos posteriores à tradução

da Dialectica de Pedro Abelardo, em 1956, por L.M. de Rijk, suscitou (a quem ficaremos a dever um trabalho inigualável sobretudo no âmbito da historiografia da lógica médίοlatina24), e que as escassas páginas da «edição» de 1836, pelo célebre V. Cousin, impediam-nos de avaliar cabalmente, não veio abalar a importância outrora concedida pela historiografia de Oitocentos ao contributo de Abelardo para o famigerado «problema dos universais». Com a exuberante imaginação que

latina das primeiras páginas do Organon, e não menos à

se lhe reconhece, no 'best-seller' medievo-detectivesco O Nome

história e à fιlosofia da linguagem22.

da Rosa, U. Eco volta a aludir a esse mesmo tema, já que

A propósito do primeiro domínio referido e da figura humana do autor, aquele que tem sido seguramente o seu

se deve de facto a Abelardo, a propósito de Porfírio, o exemplo do «nome da rosa quando já nãο existem rosas», i.e., a questão de se saber «se é necessário que os géneros e as espécies, enquanto géneros e espécies, tenham alguma coisa que se lhes sujeite pela denominação ou, se essas coisas denominadas

intérprete contemporâneo mais fiel, Jean Jolivet, concluía,

22

Α melhor obra de conjunto sobre Pedro Abelardo continua a ser a de MARENBON, J. - The Philosophy of Peter Abelard (Cambridge 1997); em síntese: LUSCOMBE, D.E. - «Peter Abelard» in DRONKE, P. (ed.) - A History ofTwelfih-Century Western Philosophy ( Cambridge 1988) 279-307. Α melhor biografia é a de CLANCHY. M. T. - Abe/are!. A Medieval Life (Oxford 1997), em síntese: MEWS, C.J. - PeterAbelard (Aldershot Brookfield 1995); sobre 0 tema da lição JOLIVET, J. -Αbélard οu la théologie Bans le langage (Fribourg Paris 1994), reedição do seu Arts du langage et théologie chezAbélard (Paris 1969). 46

23 24

JOLIVET, J. - La Théologie dÁbélard, trad. (Paris 1997) 17; MEWS, C.J. - Peter... 26. PetrusAbaelardus. Dialectica First complete editioń of the Parisian Manuscript with an Introduction by L.M. de Rijk (Assen 1956, 2 1970). Uma amostra representativa daquele interesse, entre nós, em tradução, ώ a do casal KNEALE, M. &. W. - 0 Desenvolvimento da Lógica, trad. (Lisboa 21980) 47

LOGICA Η ΡΑΙΧÃΟ. Abclardo c ns Univcrsais

fossem destruídas, se poderia, ainda, o universal, consistir apenas no significado intelectivo. »25 2. É a essas páginas do vasto universo da lógica que nos propormos hoje voltar, embora o façamos sensibilizado: primo pelo horizonte coevo concentrado na £ilosofia da linguagem e no seu problema filosófico-linguístico secular, a saber: que significado tem para a clara compreensão do estado de coisas a palavra determinada que lhe está expressamente assοciadα?2G A este propósito convém logo frisar ser incontroversa a importância da pergunta sobre o ser dos universais na origem da crise nominalista: ao eliminar a pretensão directa objectiva de todos os enunciados predicativos, o nominalismo remeteu a questão do sentido dos enunciados para a exρeriencia.27

Secundo, pela nossa situação ρens ίνel — na aceρçãο de Unterwegs zur Sprache — que nos faz interrogar desconstruindo; de facto, Heidegger entendía que a atenção ao sítio (Ort), uma forma de atenção que ao mesmo tempo o mostre e lhe de ouvidos, deverá culminar numa pergunta que questiona aquele que a

LOGICA C ΡΑΙΧΆΟ. Abclardo e os Uníversaís

faz 28 . De onde, a impossibilidade voluntária de nos aproximarmos assepticamente ou de um modo `objectivo' da querela e do problema dos universais como se na solução a apresentar adiante não habitasse um sujeito vivo. Tertio pela conspícua interacção didáctica, no fim de contas assaz contingente, de querermos desmesuradamente encontrar a partir da solução abelardina ao problema dos universais uma possível chave, ponto arquimédico, pedra angular οu condição de leitura do vasto conjunto literário do cavaleiro da dialéctica29. E na triangulação deste horizonte que o conjunto dos propósitos enunciados deverá chegar a explicar todo o tom plangente das primeiras páginas da História das Minhas Calamidades de acordo com as quais teria sido a lógica a causa de Abelardo se tornar odioso aos olhos do mundo,

odiosum me mundo reddidit

logica. Habitualmente costuma-se explicar esta paixão do adio recorrendo ao testemunho do seu arqui-inimigo Bernardo que em carta ao cardeal Haimerico acusava Abelardo de «... com a razão natural pretender examinar os temas santos que ο entendimento da fé apreende prontamente (...) Ele — prossegue

25 PEDRO

ABELARDO - Lógica para Principiantes, trad. R.A. da

C. Nunes in Os Pensadores VII (São Paulo 1973), doravante: LPP 242-43 e 216 (existe nova trad. de C.A.R. do Nascimento: Petrdpolis 1994); cf. CLANCHY. M.T. - Abe/am'... 102. Edição latina da LPP in GEVER, B. - Peter Abaelards philosophischen Schrflen L Die «Logica Ingredientibus» (Munster i. W. 1919); trad. francesa por GANDILLAC, M. de - Αbélard. Oeuvres choisies (Paris 1945) 77-127. 26 SIMON, J. -Filosofa da Linguagem, trad. (Lisboa 1990) 41. 27 SIMON, J. - Filosofia... 33-34. 48

Bernardo — suspeitando até de Deus, não quer crer senão no 28 HEIDEGGER, M. - Acheminement vers la parole, trad. (Paris 29

1986) 41. A bibliografia especializada sobre os universais é obviamente vastíssima; além dos títulos mals particulares, adiante citados, referirei tão-sό ο já clássico LIBERA, Α. de - La Querelle des universaux. De Platon à la fin du Moyen Age. Des travaux (Paris 1996) e, em português, o breve resumo de BLANCHE, R. - História da Lógίca de Αristóteles a Bertrand Russell, trad. (Lisboa 1985) 137-38 bem como o tratamento do problema em Abelardo feito por COXITO, A. A. - Lógίca, Semântica e Conhecimento na Escohistica Peninsular 49

LOGICA C PAIXAO..Abelardo e

os Universais

que foi previamente investigado pela razão.»

LOGICA H PAIXAO.

i0

Na sua base,

porém, o projecto de Abelardo era bem mais modesto. Semelhante a uma terapia adequada a um diagnóstico sobre a verdade ou a falsidade, conforme se 16 na Dialectica31.

Pré-Renascentista (Coimbra 1981) 42-48. Poderá ainda, com vanta-

30

gcrls, teledescarregar-se 0 local http:// www. ρvspade. com/Logic/ does/univers.pdf. PL 182, 543. Para a crítica de Abelardo aos opositores à dialéctica, vd. Dialectica 469-71; Theologia Summi Boni III, 5. Tarnbéιn se poderá consultar Theologia Christiana III 4-55; Theologia Scholarium II 2. Cf. LUSCOMBE, D.E. - «Peter...» 279.

Abelardo e os Universais

Distintamente, o nosso propósito nãο passara por interpretar Abelardo a partir do olhar do seu belicoso censor, mas antes em considerar a perspectiva do discurso da vítima de calamidades que intervém na lógica e se torna odioso. Se se considerar ousadia misturar paixão e lógica só nos valera a multissecular protecção do autor que estudamos cujo renome não saberíamos dizer se se deve mais ao dominio das artes da paixão οu perícia na arte da lógica. Para levarmos a bom porto o tríplice escopo anunciado dividiremos a exposição em duas partes principais. Na primeira — pars destruens (B) — que tal como a segunda Sc assume como um elogio à investigação em história da filosofia e ao seu

31

Dialectica 153, 1-5: «Neque enfim in eo quod dialeticus est ac secundum artem proprietate complexionis instructus, de veritate seu falsitate constructionis ambigit; sed si quis ambigerit, dubitationem argumentis suis auferre debet. Non itaque díaleticorum est interrogare, sed comprobare potius.» Ibid. 24-31: «... quod de veritate propositarum questionum queritur, cuius inveStigatio dialeticorum est propria. In hoc huius artis principale negotiurn existit quod per argumenta ipsius veritatem aut falsitatem veraciter convinci nus. Unde ad earn solas orationes eas pertinere clarurn est in quibus veritas aut falsitas continetur. Hee vero sunt propositiones quas supra diximus enuntiationes, quarum diffinitioneιn in Topicis suis Boetius secundum verum aut falsum ira proponit.» Em qualquer caso, isto não invalida o facto de se poder fazer uma leitura benévola das queixas de Bernardo — por exemplo, ainda na Dialectica, quando procura mostrar como ώ que as regras da lógica perrniteln distinguir OS nomes das realidades οu a abstracção da substância, de maneira a resolver o mistério trinitário, Abelardo põe em paralelo as Pessoas da Trindade com os três nomes de Cícero esquecendo que πão ώ o mesmo falar-se de três Pessoas distintas e de uma só corn três nomes ( Dialectica 470, 18-24: «... et Pater sit Deus, et Filius Deus et Spiritus Sanctus Deus rettissime credantur, non tarnen plures Dei sunt confitendi; quippe eiusdeιn Divine Substancie illa cria nomina sunt designativa. Sic quoque cum et Tullius homo vere dicatur et rursus Cicero et iterum Marcus homo nomínetur, nequaquam tamen 50

invejável dinamismo, mostraremos como a habitual caracterização do problema dos universais segundo uma tripla solução ( realismo, conceptualismo e nominalismο32), quer em sede pedagógica quer em sede bibliográfica, d empobrecedora e deve ser afastada. A segunda — pars construens (C) — pretendera recolocar o não-realismo abelardino no quadro do que chamaríamos a diferença linguística, quer dizer, a assunção fundamental, por parte do autor do século XII, da diferença Marcus et Tullius et Cicero homines sunt, cum eiusdem substancie vocabula sint designativa, et plum quidem sola vote, non signifiεαtione, diversa substantie.» Cf. CLANCHY, M.T. - Abelard... 108-109; vd. em particular LUSCOMBE, D.E. — «Peter...» 295-97. 32

Vd. PEDRO da FONSECA - Isagoge Filosófica, introdução, edição do texto larino e tradução de J.F. Gomes (Coimbra 1965); COPLESTON, F. - História de la Filosofia 2. De San Agustín a Escoto, trad. (Madrid 1983) 143-160. Pondo de parte a desigrιação de'conceptualismo' mas tarnbérn de `realismo moderado', vd. VIGNAUX, P. - A Filosofia na Idade Média, trad. (Lisboa 1994) 80-83. 51

LÓGICA E PAXAO. Abelardo c os Uisjversak

entre a verdade das coisas, só conhecida por Deus, e a correspondente verdade linguística aberta e acessível ao homem embora não ao alcance da sua absoluta cοmpreensãο33. O discurso da segunda parte obrigar-nos-á a concluir com um epílogo (D) relativo ao horizonte no qual nos atrevemos a ler a temática do não-realismo. Substituímos desta maneira a paixão do ódio pela paixão do amor, i.e., correspondendo ao nosso terceiro propósito, justificaremos a atenção pela ética e a prática do discurso ecuménico no autor. Irresistivelmente, somos sensível ao conspícuo acolhimento (que podia fazer lembrar 0 de Beda o Venerável) de Arnaldo de Brescia, por parte de Abelardo, quando aquele na sequência de Latrão 11(1139) abandona Itália, expulso de Brescia, para se refugiar perto de quem em breve morrerá, depois de unia vida de ódios, calamitosas perseguições e intensa e plurimoda actividade de escritor. 3. De facto, com Pedro Abelardo não estamos perante alguém que possa ser reduzido οu encerrado numa História da Lógica. Não olhamos um homem cuja única resposta ao complexo problema do amor no Ocidente — e pensamos nas 33

MOOS, P. v. - «Abaelard» in FLASCH, K. et al - Das Licht der Vernunft. DieAnfánge derAufklärung im Mittelalter (Miinchen 1997) 38; sublinhando os limites do conhecimento hurnano, no autor, vd. GREGORY, T - «Considérations sur `ratio' et 'natura` chez Abélard» in Pierre Abélard, Pierre le Vénérable. Les courants

philosophiques, littéraires et artistiques en Occident au milieu du XII` siècle. Abbaye de Cluny, 2-9 juillet 1972: Colloques internationaux du C.N.R.S. (Paris 1975) 569-584; e LIBERA, A. de - LArt des généralités. Théories de l'abstraction (Paris 1999) 394-443. 52

LÓGICA E PAIxAO. Abelardo e os Universais

soluções dο fiñamor, do amor cavaleiresco οu do amor fatal — passa pelo exemplo consolador de um amor sacrificial vívido em plena contingência (e que alguém já quis comparar ao de Beauvoir e Sartre34) entre amargas trocas epistolares, pedidos lancinantes de auxílio daquela inteligente Heloísa que na Historia Calamitatum d figura económica dramática sem igual. Sc só se pode fazer justiça a um intelectual como Abelardo tomando em consideração a totalidade da sua obra35, à nossa frente convoca-nos um meditativo autor que vibrava e fazia vibrar quem com ele convivia (como recordava corn saudade numa carta a sua impossível mulher), tanto com composições poéticas e musicais quanto com poemas e cartas de amor36 Perante nós ergue-se o escritor recalcitrante e inovador de pelo menos 3 Teologias (a Sum mi boni, a Theologin Christiana e a Scholarium), do manual de conflitos Sic et Non, de dois diálogos filosóficos (Soliloquium e Collationes οu Dialogus), de exegeses imediatamente polémicas sobre a Escritura e a ética. Ou ainda o autor de sumários, sejam de teologia, de exegese e, de novo, de ética, entre os quais lembraríamos os que versam as epístolas paulinas ou o Hexaemeron além

34 FERROUL, Y. - «Introduction», in Helο se et Abélard. Lettres et vies ( Paris 1996) 32-33. 35 Cf. LE GOFF, J. - Os Intelectuais na Idade Média, trad. (Lisboa 21984) 38. 36 Respectivamente: Hymnarius Paraclitensis, Carmen faguratum,

Planctus, Sequentiae, Epithalamica, De profundis, Carmen ad Astrolabium, entre mais hinos vários sejam destinados ao Ordinário do Paracleto sejam a Maria, e Carmina amatoria, Epistolae duorum amantium e Hebet sidus (`Carmina burana' 169). 53

LÓGICA E PAIXAO. Abelardo

LÓGICA C PAIXAO. Abelardo e os Universais

das várias Sententiae37. Em suma: perante nds ergue-se urn perisador de compromissos actuantes para quem quase nada do seu tempo permaneceu na estranheza (a polifacetada criação artística, a produção epistοlοgráfΙca, a lógica, a exegese teológica οu a ética); urn intelectual situado no seu tempo

e os Universais

Β.

1. Contumaz empreendimento de Abelardo em rnatéría dialéctica é o seu não-realismo οu arrealismο38. A designação pela negativa colide frontalmente com a maneira convencional

histórico e pessoal e, por isso, dotado da coragem de dar as respostas por esse tempo reclamadas. Mas tudo isto, certamente, com urn acervo filosófico de confrangedora escassez: uma

de se apresentar as três principais soluções do problema dos

Timeu, Calcídio, Macróbio, A Consolação da Filosofia, A Cidade de Deus e pouco mais.

literário-filosófica que foi a sua.

pequena parte do

universais. Expliquemos a conveniência do excêntrico designativo tratando o autor e os textos recolhidos nα situação históricoEm contraste com algum platonismo quadrivial do século — cuja expressão mais alta é sem dúvida a tentativa de conciliação do platonismo cοsmοlógicο `científico' com as tendências idealistas e místicas de Chartres3' —Abelardo é uma personagem que trilha desassombradamente o percurso trivial: deve ter

Grammatica (hoje perdida), ninguém duvida da sua orgulhosa competência retórica (comentou as Tópicos de escrito uma

Βοéciο e cita o comentário aos de Cícero), mas foi inigualavelmente nα dialectica, no exame da predicação a que subjaz o estudo da construção (matéria na qual não deixou de superar 37

Respectivamente: Glossae super Exechielem, Sermones, Expos tio

Oration is Dominicae, Expositio Symboli Apostolorum, Expositio in Hexaemeron, Commentaria in Epistolam Pauli ad Romanos, Anthropologia `Tropologia, Problemata Heloissae cum Petri Abelardi Solutionibus, Ethica Scito teipsum; Epistolae várias, e Parisienses, Quoniam nisso, οu o Libersententiarum. Cf. MEWS, C.J. - Peter... 4572. As datações das obras são controversas; seguimos em qualquer caso hipótese mais consensual de C.J. Mews; assira: Dialectica: 1117-19; TheologiaSummiBoni: c. 1120; Sic et Non: 1121-32?; Theologia Christiana: 1121-33?; Co//ationes: 1125-42?; Historia Calamitatum: 1132/33 - 35?; Theologia Scholarium: 1130-40; Commentaria in Epistolam Pauli as Romanos: 1133-36?; Ethica 'Scito teipsum : c. 1139. Vd. Quadro em Apêndice. 54

38

39

A desigπaçãο «não-realismo» foi usada por J. Jolivet em 1969 e adoptada posteriormente por urn grande número de especialistas e intérpretes. LEMOINE, M. - Théologie et Platonisme au XII siècle (Paris 1998) 116. Para urn estudo das artes, vd. AA. VV. - Arts Libéraux et Philosophie au Moyen Age. Acres du Qυatrième Congrès Internarional de Philosophic Médiévale (Montréal Paris 1969) a actualizar com CRAEMER-RUEGENBERG, I. & SPEER, A. (hrsg.) - Scientia' und árs' im Hoch- und Splitmittela/ter (Berlin New York 1994). 55

LOGICA L' PAIXAO. Abelardo c os Universais

LÓGICA E PAIXÃO. Abelardo c os Universais

sed indifferenter). E visto que neste mesmo assunto a

o ambiente gramatical do século imediatamente anteriοr40) que o seu relevo intelectual se nos apresenta de urna inexcedível importância. Sc precisássemos de testemunhar uma aplicação das três ciências do trivium encontra-la-íamos no «Prólogo» do Sic et Non por nds traduzido em 19934'. Do crepitante relevo da dialéctica nos primeiros anos do século XII dá-nos conta uma passagem da Historia Calamitatum Mearum que diz o seguinte, na tradução de Ruy Costa Nunes corrigida por nds aqui e ali: «Além de outras tentativas das nossas discussões, eu o constrangi [sc. a Guilherme de Champeaux] a modificar ( commutare), οu melhor a destruir (destruere) a sua antiga opinião a respeito dos universais (de universalibus sententiam). Na verdade, ele era de ορίηίãο [la], a respeito da comunidade dos universais, de que a mesma coisa está essencialmente, toda inteira e ao mesmo tempo em cada um dos seus indivíduos, de maneira que não haja neles nenhuma diversidade na essência a não ser a variedade pela multiplicidade dos acidentes. Então ele corrigiu de tal modo essa sua opinião que, em seguida, afirmava [lb] que a mesma coisa esta não essencialmente mas indiferentemente (non essentialiter GARLANDUS COMPOTISTA - Dialectica. First Edition of the Manuscripts with an Introduction on the Life and Works of the Author and on the Contents of the Present Work by L.M. de Rijk (Assen 1954). 41 CARVALHO, M.S. de - «Introdução àλnaléctica Diapοrética» Caderno de Filosof/as 6/7 (1994) 44-47; JOLIVET, J. - La Théologie... 76.

respeito dos universais sempre foi esta a principal questão entre os dialécticos, e tão importante que também Porfírio, na sua Isagoge, ao escrever sobre os universais, não se aventurava a resolvê-la (...), quando Guilherme corrigiu, ου melhor, quando, coagido, abandonou essa opinião, as suas aulas caíram em tamanha negligência que mal incluiriam outras questões de dialéctica, corno se 0 resumo inteiro dessa arte consistisse na tese sobre os universais.»42 Comecemos por observar os pontos seguintes no texto acabado de citar: í) Abelardo destrói uma velha 0ρiπi ο de Guilherme de Champeaux (c. 1070-1122) sobre os universals; ii) na sequência desta crítica arrasadora Guilherme alterou a sua ορiηiãο; iii) a dificuldade do tema (na agenda filosófica do século XII) nãο deixou sequcr que outrora Porfirio o tivesse resolvido. Nãο d preciso recordar que, aqui, `dialectica', se nada tem que ver com o que depois de Hegel, de Marx οu de Engels adoptou o mesmo nome, também não tem cquivalcntc no sentido que lhe deu Platão, além de não ser completamente identificável com o de Aristóteles. Praticamente sobreponível a `lógica', no jogo da linguagem da época, estamos perante

40 Vd.

56

42

PEDRO ABELARDO - História das Minhas Calamidades (Carta Autobiograβca), trad. R.A. da C. Nunes (São Paulo 1973); Abélard. Historia Calamitatum, ed. Monfrin (Paris 1959) 65. Poderá também ver-se BRASA DÍAZ, M. - «Disidencias de Pedro Abelardo» Revista Esρafiola de Filosofia Medieval 1 (1994) 109-131. 57

LOGICA L• PAIXAO. Abclardo e os Universals

uma ars οu scientia sermocinalis, quer dizer, num âmbito que hoje chamaríamos gramática e linguística, quer enquanto saberes vestibulares quer enquanto meta-saberes. Numa acepção urna vez mais escassa, valha a verdade, de horizonte de nãο difícil enumeração43. Designada, nas esteiras longínquas de Agostinho e do estoicismo por dialéctica (expressão que Boécio preferia decerto pensando no Sofista 253d), qualquer tirocínio nessa arte sό era então possível, primeiro, com duas obras aristordlicas que Boécio havia traduzido e comentado no século VI,

Categorias e A Interpretaςάο44; depois, aquele treino continuava com a Isagoge que Porf~rio concebera para introduzir a edição do Organon (designadamente as quinque voces: género, espécie, diferença, prόρriο e acidente); por último, pelos tratados de Boécio dedicados aos silogismos (categóricos e hipotéticos) e

topoi retóricos acompanhados dos respectivos comendrios aos Tópicos de Cícerο45 aos

43

44

45

Cf. PEDRO ABELARDO - Dialectica, ed. de Rijk 146, 10-17. À enumeração da Dialectica pode apenas acrescentar-se ο De d~jnitiοne de Mdrio Vítorino (então acribuido a Boécio) e as Institutiones grammaticae de Prisciano. TWEEDALE, M.M. - «Abelard and the culmination of the old logic» in KREΤΖΜAΝΝ, N. et al. (ed.) The Cambridge History of Later Medieval Philosophy (Cambridge 1988) 143-157. Ou seja: respectivamente, uma introdução aos elementos da proposição (termos e expressões) e uma analise dos dez géneros do ser, e urn estudo lógico-gramatical do nome e do verbo, bem corno uma teoria da proposição (afirmativa, negativa, universal e singular) e dos seus modos (possível, contingente, necessiria e suas negações). Cf. CHADWICK, H. - Boezio. La consolazione della musica, della logica, delia teologia e delta filosofa, trad. (Bologna 1986) 147 sg.

LÓGICA E PAIXΑΟ.

Abelardo c OS Universals

Este corpus da logica uetus que culmina em Abelardo haviase constituido acidentalmente como uma estranha miscigenação entre analítica aristotélica e dialéctica estoica que a ausência dos restantes quatro tratados do Organon nao ajudava a esclarecer. Uma pergunta imperiosa sería portanto esta: o que Abelardo poderia pensar e fazer com esta escassa, bizarra e contingente conjugação literaria, com uma tão «magra bagagems>46? Para tudo dificultar, acresce que o seu entendimento da Idgica, além de remeter para o referido duplo âmbito do sermocinalismo, leva-o a não excluir a physica (a explicação do uso das palavras exige a investigação das propriedades das cοisas47), aspecto que ο não deixará eximir-se à psicologia da significação, ao proprio problema da intelecção e, naturalmente, οntοlοgia.4R Problemas a mais, portanto, com instrumentos de resolução a menos! Tudo indica, pois, que na temάtica

de universalibus desaguavam àguas rurbulcnras de varios e distintos rios de tradições, pelo que não sería tarefa menor encontrar na discussão do assunto um meio de discriminar filοgéneses e analisar níveis prοblemάticοs. A nãο ser que sigamos recente sugestão de Y. Iwakuma que atribui a Abelardo

LIBERA, A. de - LArt... 283. Abelardo afirma ter lido as Refutaςões e os PrimeirosAnallticos (Cf. JOLIVET, J. -Abélard... 5), mas rão é difícil verificar que o desejάvel eco destas obras nãο encontrou nele qualquer membrana propagadora incclecrualrncnce sensível (Cf. de RIJK, L.-M. - Logica Modernorum. A Contribution ta the History of Early TermέnistLogicI (Assen 1962) 620, 27-29 para urn diálogo de univocatiane entre um certo mestre Pedro e um Mestre Albéricο). 47 Cf. LPP 208. 48 TWEEDALE, M.M. - «Abelard...» 143. 46

59

LOGICA E PAIXÃO.

Abelardo e os Universais

a criação do problema dos universais, atendendo ao facto de se não encontrar anteriormente à Logica Ingredientibus nenhum texto que examinasse a dúvida de Porfírio no plano de uma interrogação sobre 0 que é o universal («quid est universale?») e de, apόs aquela obra abelardina, todos os dialécticos se sentirem obrigados a responder-lhe.49 Se assim for, os três pontos que destacámos na citação anterior não passam de uma invenção que se quer historicamente justificadora, reconstrução de uma autobiografia que se ficciona para fundar um percurso repleto de sentido. O ambiente escolar urbano em que Abelardo cresce, se impõe e lhe exige uma tomada de posição sobre «a principal questão para os dialécticos» ainda carece de investigações mais aprofundadas além de se aguardar um estabelecimento crοnοlόgico mais consensual das diversas obras abelardinas5σ. Na impossibilidade de fazermos tudo isto, limitar-nos-emos a seguir a obra de iniciação ou introdução à logica que IWAKUMA, Y. - «Pierre Abélard et Guillaume de Champeaux dans les premières années du XII'' siècle: une étude prélímínαíre» in BEARD, J. (org.) - Langage, sciences, philosophie au XII' siécle (Paris 1999) 118. 50 Para o ambiente logico cοetâneο, designadamente para as ροsições dos vocales, reales e nominales, além do artigo de M.M. Tweedale já citado, vd. cumulativamente IWAKUMA, Υ. - «Twelfth-Century Nominales. The Posthumous School of Peter Abelard» Vivarium 30 (1992) 97-109; IWAKUMA, Y. & EBBESEN, S. - «Logicotheological Schools from the Second Half of the Twelfth-Century. Α List of Sources» ibidem 173-210; MARENBON, J. - «Vocalism, Nominalism and the Commentaries on the Categories from the EarlierTwelfth Century» ibidem 51-61; NORMORE, C. - «Abelard and the School of the Nominales» ibidem 80-96. 49

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LOGICA Ε

PAIXÃO. Abelardo e os Universais

Abelardo compôs, eventualmente entre os trinta e quatro e os quarenta e seis anos de idade, restringindo-nos às glosas dedicadas a Porfírio, as quais, como se sabe, conhecerão ainda um paralelo distinto no Portugal do século XVI pela mão segura de Pedro da Fonseca. 2. É óbvio que Abelardo lê Aristóteles e Porfírio à luz de Boécio (sécs V-VI). Nada de estranho há nisto; jd se chamou ao século XII cetas bοetiana51. O que hd sim de assinalável é o facto de «os problemas filosόficos debatidos nas Categorias, e mais concretamente ainda na Isagoge, não nascerem de interrogações gerais sobre o mundo.» Quer isto dizer que «as grandes divisões filosόficas entre Reales e Vocales/Nominales não são decididas, no início, quanto ao facto de saber se existe outra coisa além dos particulares, mas sobre a maneira de explicar os textos de Aristoteles e de Porfirio, de os expor in re (como tratando inteiramente de coisas) ou in voce (como tratando inteiramente sobre as vozes ou as palavras)»52. Questão de hermenêutica ou de exegese, pois, e não tanto problema ontologico, o que não deve surpreender se nos lembrarmos que Abelardo também foi um teorico da interpretação quer nas Collationes quer sobretudo no Sic et Non. «Graças a Boécio, que lhes transmitiu o problema do skορόs das Categorias, característico dos comentarios da baixa Anti-

M.-D. - La théologie an douzième siècle (Paris 31976) 142. 52 LIBERA, Α. de - L'Art... 286; também MARENBON, J. - The philosophy... 108-116. 5 1 CHENU,

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LÓGICA C PAIXAO. Abelardo e os Universais

guidade, os lógicos do século XII tiveram acesso a uma problemática escolar, irenicamente superada pela fórmula porfiriana — de vocibus res significantibus — utilizada pelo comentador latino, problemática que, no entanto, eles transformaram numa verdadeira alternativa filosófica, apelando a uma decisão nitida a favor das palavras ou das coisas, quer dizer, das palavras, das coisas e dos conceitos. De maneira quase caricatural, os dois principals mestres de lógica de Abelardo, Roscelino de Compiègne e Guilherme de Champeaux, instalaram-se nos extremos: Roscelino defendendo a exegese

in voce, Guilherme a exegese in re. A primeira tarefa positiva de Abelardo foi pois a de decidir entre dois métodos de leitura de Aristóteles e de Porfirio, não a de escolher entre duas ontologias, o nominalismo e o realismo.»5i O texto da Historia Calamitatum mearum citado anteriormente refería-se à tese oposta à de Roscelino, a de Guilherme de Champeaux. O seu rebelde discípulo confessava-nos tê-lo vencido (ao que quiçá não teriam sido estranhas as armas da retórica54) e informava-nos que a crise da exposição in re aguardava uma alternativa que recuperasse um outro paradigma trivial. A não ser — de novo teremos de repetir a precaução — que a Guilherme nunca tivesse passado pela cabeça perguntar «o que é um universal?» antes da discência presencial de Abelardo e que, para contra-atacar, apressadamente lançara mão do Monologion de Anselmo aí haurindo a A. de - LÁrt... 286. . a propósito SILVA, J.C.S. de - «Sócrates e Burnello» Caderno de História e Filosofia da Ciência 7/2 (1997) 144-178; cf. LPP 220.

53 LIBERA, 54 Vd.

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LίGΙCΑ C PAlXAO. Abelardo e os Universais

soluçãó realista que Abelardo acaba de relatar55. Seja como for, é entre a sententia rerum e a sententia vocurn (ou sententia vocum seu nominum, na terminologia, indiciadora de dificuldades, de Otão de Freising56) que Abelardo intervém e, a crermos no seu próprio relato calamitoso-exemplar, paradoxalmente, com tanto sucesso quanta infelicidade. 3. De urna maneira menos apelativa do que na História das Minhas Calamidades, embora mais técnica e segura, na Lógica para Principiantes Abelardo amplía a questão e sistematiza-a. Convém notar que é na sequência desta intervenção que o autor exporá de seguida as várias posições realistas que critica. Vamos aludir em primeiro lugar à ampliação e depois a essas posições e, desta maneira, ao πύcleo da critica a elas dirigida. A crermos em Abelardo esta história começa com o neoplatónico Porfírio (235-305), e, na verdade, o futuro quer da querela quer do problema dos universais impôs uma passagem abstencionista da Isagoge ou introdução às Categorias de 55

Cf. IWAKUMA, Y. - «The Realísιn ofAnselm and his Contemporaries» in LUSCOMBE, D. E. et al. (eds.) - Anselm: Aosta, Bee and Canterbury (Sheffield 1996) 120-135. Para urna exposição da ρrοblemática do Monologion, vd. XAVIER, Ma.L.L. de O. - Razão e Ser. Três Questões de Ontologia em Santo Anselmo (Lisboa 1999)

passim. 56

A referência ao ambiente da lógica no século XII colhe-se in Gesta Friderici Imperatoris I, 47; para uma introdução divulgadora da obra historiográfica de Οtãο, vd. NUNES, R.A. da C. - «Reflexões sobre a `Crônica ou História das Duas Cidades'» Notandum III/6 (2000) 4560 [= http:// www. hottopos. corn]. 63

LOGICA E PAIXAO.

LÓGICA E PAIXAO. Abelardo e os Universais

Aristόteles57. Apoiado em Boécio Abelardo relata que Porffrio formulou três questões sobre os géneros e as espécies, a saber: [A] se existem, subsistunt (i.e. se têm verdadeiro ser, verum esse) οu são puras concepções do espírito, in intellectu (o equivalente a mera opinião, in opinione); [B] no caso de existiremn, se são essências corpόreas οu incοrpόreas, essentiae

corporales sint an incorpora/es?

[C] se estão separadas dos objectos sensíveis οu se fazem parte desses objectos,

separata sint a sensibilibus an in

Abelardo ε

os

Uιιíversais

são bem conhecidas, menos divulgada tem sido esta ampliação abelardina traduzida numa quarta pergunta. No elenco, salta imediatamente à vista, e sobretudo atendendo à inclusão desta derradeira questão, que Abelardo antevê a possibilidade de se afastar do realismο.59 Também não é dificil perceber-se que esse afastamento, condição de uma opção pelas palavras contra as coisas, introduz na definição de universal o tema da significação e da intelecção,

ex significatione intellectusG°. Posto perante o problema do

eis posita? Na continuidade, Abelardo levanta uma quarta pergunta relativa à permanência dos universais no caso de jd nãο existirem as coisas por eles denominadas. É o referido exemplo do nome da rosa58. Se as três primeiras perguntas de Porfírio e de Boécio

Cf. Porphyrii Isagoge et in Aristotelis Categorias commentarium consilíis ( ed. A. Busse, Berlin 1887) 3-32 (texto grego), 25-51 (trad. lating de Boécio); cf tarnbém Boethii In Isagogem Porphyrii commenta copiis a G. Scheps comparatis suisque usus recensuit S. Brandt (Viennac Lipsiae 1906). Em portugu'es sό se ροde assinalar a trad. de P. Gores: Porfírio. Isagoge (Lisboa 1994). Sobre a filosofia de Porfírio, vd. LLOYD, A.C. - «The Later Neoplatonists» in The Cambridge History ofLater Greek and Early Medieval Philosophy, ed. by ΑΗ. Armstrong ( Cambridge London 1980) 283-93. 58 Logica Ingredientibus... 8: «Possumus sic exροnere `et circa ea constantie', ut quartam quaestionem adnectamus, scilicet utrum et genera et species, quamdiu genera et species sunt, necesse sit subiectam per nominationem rem alíquam habere an ipsis quoque nominates rebus destructis ex significatione intellectus tune quoque possit universale consistere, ut hoc norren 'rosa', quando nulla est rosarum quibus commune sit.»; LPP 216; cf. também LIBERA, Α. de - LÁrt... 300. 57

59 Segundo alguns intérpretes, também é possível reconhecer-se em Abelardo a opção porfiriana pela tese da subsistência οntolόgica: afastando a alternativa do universal in intellect'.bus, pergunta se o universal subsisten pode ter uma essência corρόrea ou incorpórea e adere a esta última hipdtese para mais adiante responder em favor da separação ontológica, dado que (numa concepção neoplatonica) o género tem precedência sobre a espécie e esta sobre o individuo: cf. BERTELLONI, F. - «Status...quod non est res'. Facticidad del ` status' como fundamento de la universalización de lo real en Pedro Abelardo» Mediaevalia. Textos e Estudos 7-8 (1995) 157. 60

Ainda segundo os mesmos intérpretes, aquele ύltίrno problema derivaria da destruição da unidimensionalidade ontológica do universal em Porffrio mercê da introdução da dimensão gnosiológica da responsabilidade de Boécio; como se este tivesse superado a disjunção porfιriana entre subsistentia e intellectus pela conjugação de ambos, o que revelaria urna visão absolutamente positiva sobre intellectus: BERTELLONI, E - «Status...» 160: «Pues, en efecto, para Boecio, la alternativa que formula la primera pregunta acerca de los universales ya no es, cono 10 había sido para Porffrio, Ia exclusion — según la forma 'aut-aut' — entre subsistentia por una parte e intellectus por la otra, sino la inclusion conjunta de subsistentia e intellectus; asf, en la primera parte de la primera pregunta, Boecio pregunra por la subsistentia onεologica de un universal que conocemos (intellectus), mientras que en la segunda parte de esa 65

L6GICA C PAIXAO. Abelardo c os Unívcrsaís

nome da rosa, se Abelardo lhe retira a dimensão denominativa, dando uma resposta negativa à possibilidade de nomear o que deixou de existir, j nãο faz o mesmo no respeitante signifίcaçãο intelectiva; de outra maneira nãο teria qualquer significado dizer-se «nenhuma rosa existe».G1 No horizonte esta decerto um capitulo para o qual Abelardo contribuiu enormemente (o estudo dos tipos de proposições), mas a atenção ao local em que ο problema dos universais se resolve não nos deve cegar em relação ao horizonte que possibilita a sua leitura, a saber: o de que a contenda entre reales e norma/es põe em jogo a questão da fundamentação, certamente numa das suas metamorfoses epocais. Tudo somado, no seu próprio contexto primitivo, é como se a destruição do realismo platónico tivesse como consequência inevitάvel uma filosofia da linguagem ( designação que tomamos no sentido mais lato). Destarte, o primeiro e mais urgente desafio imposto pela substituição de uιna ontologia das coisas, leva à necessidade de se precisar ο sentido e o alcance do importantissirno texto do infcio do

LOGICA C ΡΑIXÃο. Abelardo

tes psychés οu intentiones animaeG2 que fundamentariam a linguagem. Antes porém de aqui chegarmos consideremos a crItica aos realismos contemporâneos na medida em que ela ilustra e consubstancia a substituição das coisas pelas palavras. 4. Nessa autêntica memoria condolda de posições conflituais que ώ a Lógica para Principiantes, Abelardo pormenoriza ο que no texto citado da História aparecia mais imbricado: [la] «alguns tomam a coisa universal da seguinte maneira: colocam uma substância essencialmente a mesma em coisas que diferem umas das outras pelas formas; essa ώ a essência material das coisas singulares nas quais existe, e ώ uma sό em si mesma, sendo diferente apenas pelas formas do seus inferiores. De facto, se acontecesse de se separarem essas formas, nãο haveria absolutamente diferença das coisas que se separam umas das outras apenas pela diversidade das formas, uma vez que a essência da matéria é absolutamente a mesma. Por exemplo, nos homens individuais, diferentes em número, existe a mesma substância de

Per hermeneias. Tratava-se al da subordinação do nίvel da linguagem sonora (phonaz) ao do pensamento, os pathémata misma primera pregunta presenta a la imaginatio como alternativa a excluir. As', mientras Porffrio descarta la alternativa del universal in intellecti bus y afirma la alternativa del universal como subsistentia, Boecio, en cambio, afirma un universal que es sirυltάneamente subsistentia e intellectus y descarta totalmente la alternativa del universal producido por una cassa imaginatio.» 61 LPP 242. 66

e os Universais

62

ARISΤ0ΤΕLES - Organon. Periérmeneias 1 16α (trad. P. Gomes, Lisboa 1985): «As palavras faladas são simbolos das afecçôes da alma, e as palavras escritas são sImbolos das palavras faladas (...) ainda que as afecções da alma de que as palavras são signos primeiros (ρrótos), sejam idênticas, tal como são idênticas as coisas de que as afecçôes referidas são imagens.» 67

LÓGICA L' ΠΑΙΧΑΟ.

Abelardo e os Universals

homem que aqui se torna Platão através destes acidentes, e a1í, Sócrates...»' Posto que uma origem da querela se bebia numa passagem do Peri hermeneias e numa outra da Ιsagοge C4 , de acordo com o relato do invejável mas inconveniente aluno de Guilherme, na opinião deste, o universal era uma essência material ( tomando `matéria' no sentido aristotélico lógico e não no sentido `materialista' habitual) mnodalizada pelas diferenças, pela diversidade das formas acidentais. Por outras palavras: pressupõe-se a assimilação das diferenças a formas e a consideração do universal como matéria lógica das diferenças.GS Na hipótese de estas formas se separarem dos seus substantes, isso inviabilizaria qualquer dissociação ου individυaψο (a substância de urn homem, v.g. Platão ou Sócrates),

LPP 218; cf. também Dialéctica 341, 9-10 e 33-35. Tal corno chegou até nós, a Logica Ingredientibus comρόe-se de urn comentário à Isagoge, urn outro às Categorias, urn terceiro ao De Interpretatione (editados por Geyer), e dο principio de urn comentário ao De d i rentiis tορicis (editado por M. Dal Pra). O esquema ou estrutura argumentativa da parte principal (vs. Porffrio) da LPP dedicada ao probletuas dos universais encontra-se em LIBERA, A. de - LArt... 293-297. 64 ARISTÓTELES - Per hermeιτeías 7, 17 a 39-40: «... e denomino universal isso cuja natureza é a de ser afirmada de vários sujeitos...»; PORFIRIO - Isagoge I, 6: «Deveras, entre os categorelnas, uns só se predicam de urn άnicο ser, como os indivíduos, por exemplo Sócrates, este homem, esta coisa; os outros predicam-se de vários seres, sendo 0 caso dos géneros, das espécies, das diferenças, dos próprios e dos acidenres, que possuem caracteres comuns e nib particulares a urn individuo.». 63

68

LÓGICA

ε PAIXAO. Abelardo e os Universais

mas também a própria predicação categοremática. Segundo Guilherme a opção seria esta: ου o realismo ou o silêncio. A Lógifa diz-nos ainda mais qualquer coisa sobre a tese realista criticada: por natureza, o universal é incorpóreo, não sensível e simples na sua universalidade, apesar de existir todo ao mesmo tempo inteiro nas diferentes coisas e singular em acto, corpóreo e sensível através dos acidentes. Das várias observações críticas de Abelardo a esta posição radical estamos a destacar apenas uma, a que não admite que os indivíduos se constituam como tais (se individuam ou sejam aquilo que são) pelos seus próprios acidentes, hipótese em que os" acidentes precederiam os indivíduos. Por outras palavras (ainda as do autor): se o indivíduo Sócrates não pode existir sem os seus acidentes, tal como o universal homem não pode existir sem as suas diferenças, então Sócrates não d o fundamento dos seus acidentes tal como o universal homem não o é das suas diferenças.»66 Οu se quisermos resumir os argumen tos de Abelardo contra o realismo, revelando como eles assentam nos princípios de não-contradição e de identidade: «uma res universal seria uma realidade contraditória; dizer 65

Cf. LIBERA, A. de - LÁrt... 311-319 para a apresentação da tese da essência material, além de Guilherme de Champeaux também partilhada por Clarembaldo de Arras; para a análise desta tese, das suas alternativas e da critica de Abelardo, vd. também BERTELLONI, F. - «`Status...» 153-175.

66

Dito de outra maneira: «se urn indivIduo não pode ser considerado como o sujeito dos seus acidentes, uma substância que se supôe ser essencialmente a mesma em cada indivíduo não pode ser 0 sujeito universal e ύníco de uma pluralidade de formas acidentais.» (LIBERA, A. de - L'Art... 328). 69

L6GICA

Γ

PAIXAO.

L6GICA

Abelardo ι os Universais

que todo o ser real é individual quer simplesmente dizer que todo o ser real é determinado, isto d, idêntico a sí, não pode ser outro diferente de si».67 Sensibilizado por este absurdo «físico» somos informados que Guilherme chegou a mitigar a tese anterior [la] propondo a alternativa da chamada «indiferença da essência» [lb]:

Γ

I'AIXAO.

Abelardo ι os Universals



por isso que remeter a mesmidade nos diferentes para o plano da indiferença parece ser o canto de cisne do realismo, ao julgar fundar por indiferenciaψο real toda uma estonteante mutação a que o século XII assiste corn desassombro feliz. 1. de facto o que sucede com Gosselino de Soissons (ο PseudoJoscelino: t 1151) que defendía [2] a sententia de cοllectiοne69 e com Gualter de Mortagne (t 1174) defensor da [3] sententia de

[1b] «afirmam que as coisas singulares nãο apenas são

cοnvenientia70:

diferentes umas das outras pelas formas, como são pessoalmente distintas nas suas essências (...) [e] como admitem serem todas as coisas tão diversas umas das outras, de tal modo que nenhuma delas participa com a

69

outra nem da mesma matéria essencialmente nem da mesma forma essencialmente, conservando, todavia, ainda, ο conceito universal, dizem que as coisas diferentes são as mesmas, não por certo essencialmente, mas indiferentemente, tal como afirmam que os homens individuais distintos uns dos outros são os mesmos ( idênticos) no seu ser de homens, isto d, nãο diferem pela natureza da humanidade.» 68 Talvez espantosamente para quem desconheça o espírito do século XII, esta segunda versão da tese guilhermina era assaz discutida. De facto a coisa não seria para menos, 67 VANNI ROVIGHI, S. - «Intentionnel et universel chez Abélard»

in GANDILLAC, M. de et al. - Le Dialogue, La Philosophie de la Logique. Actes du Colloque de Neuchâtel (Genève Lausanne Neuchâtel 1981) 21-22. 68 LPP 222. 70

70

«Alguns — lê-se também na Logica Ingredientibus no passo que transmite [2] — supõem que o universal consiste apenas numa colecção de múltiplos elementos (...). Dizem que todos os homens tomados em conjunto, ao mesmo tempo, constituem aquela espécie que é o homem, e todos os animais, tomados ao mesmo tempo, formam aquele género que é o animal, e assim por diante.» Atribui_sc a Gosselino urn De generibus et speciebus (ed. incompleta in COUSIN, V. - Ouvrages inédits dÁbélard, París 1836, 507-550); cf. LIBERA, A. de - L'Art... 309 para a questão da atribuição. Diziam os defensores de [3] (LPP 223) ser «a espécie não apenas urn conjunto de homens mas, também, os indivíduos enquanto são homens e, ao afirmarem que a coisa quc é Socrates se predica de muitos, tomam tal afirmaçâo em sentido figurado, como se dissessem (...) cora ele combinam οu ele ρrόprίο combina com muitos. Quanta ao número de coisas, csrabe!eccm que existem tantas espécies e géneros quantos indivíduos», mas achando «que o número dos universais é menor do que o dos individuos.» Cf. HAUREAU, P. - Histoire dela philosophie scolastique (París 1872) 345-361. A edição de Quoniam de generali atribuída a Gualrer encontra-se em HAURÉAU, P. -

Notices et &traits de quelques manuscrits latins de la Bibliothèque Nationale (Paris 1892) 298-320. Como se sabe, os designativos das teorias acima foram relativamente contestados por LIBERA, A: de LÁrt... 340-67, que interpreta a cese dica de convenientia [3] como urna segunda modalidade da tese de collectione [2]. 71

L6GlCA E ΡΑΙΧΑΟ. Abelardo e os Uιιiversaís

L6GICA 6 PAIXAO. Abelardo e os Universals

Sc acrescentάssemοs a estas alternativas o relato de João de Salisbúria (Metalogicon II, 17)71 sobre a tese de Bernardo de Chartres, de acordo com a qual sd as ideias existiam verdadeiramente (ou entendidas à maneira de Séneca como «modelos eternos do que a natureza faz existir» ou ainda, à maneira augustinista, como «formas exemplares, razões eternas de todas as coisas») teríamos talvez ο panorama completo da situação plural dos realismos nos alvores da centúria. Seja como for, dirse-ia que o eventual requinte ou sofΙsticaçãο das duas posições, [2] e [3], não escapa àquele destino fatal do formalismo, quantas vezes historicamente repetido (haja em vista as criticas de Aristóteles ao pitagorismo, as de Hegel a Schelling ou as de Marx a Prοudhon72 ), destino sempre a ameaçar de vacuidade o corajoso e maduro exercício do pensar que foi também apanágio daqueles tempos73. 71

Cf. JOHN OF SALISBURY-Metalogicon, ed. C.C.J. Webb (Oxford 1929); JACOBI, K. - «Logic (íi): the latter Twelfth Century» in DRONKE, P. (ed.) - Α History... 227-33; RANA DAFONTE, C. «ΕΙ tema de los universales en Juan de Salisbury» Revista Española de Filosofia Medieval 6 (1999) 233-39. Sobre a posição de Bernardo, vd. JOLIVET, J, - «Platonisrne et sémantique, de Bernard de Chartres aux Porrétains» in MARMO, C. (ed.) - Vestigia, Imagines,

Da mais vasta crítica às νάrias hipóteses realistas ressalta fundamentalmente que para Abelardo a lei da identidade deve ser levada a sério no plano da ontologia. Dito de outro modo: o realismo de Guilherme e seus discípulos menores implica a reificação da pluralidade numa unidade incompatível com a ordem ontológica natural, a physica. Longe de universalizar, o realismo é acusado de evacuar o múltiplo e de ser improcedente em matéria de fundamentação. Para Abelardo, pois, o realismo é contraditório, senão (como se dizia decerto com humor) Sócrates seria Burnello, ou seja, a res — animal — seria racional em Sócrates e irracional num asno. De onde ο sentido extraordinariamente vivo (ao qua! haveremos de voltar) da singularidade, e se é comum chamar-se ao projecto nominalista de Ockham, no século XIV, uma verdadeira filosofia do singular, não nos sería difícil vermos no arrealismo de Pedro Abelardo as primícias de um projecto de futuro historicamente ρrοdutivo.74 De uma maneira muito acertada,

species [2], por seu lado, é ainda mais claro na dificuldade atávica em se afastar do realismo jά que as espécies e os géneros deverão ser a Γnatéria que funda as entidades a eles subsumidas lúnitando-se a relativizar a universalidade da comunidade. Sobre estas posições menores, vd. TWΕΕDΑLE, M.Μ - «Logic (i)...» 222; e sobretudo LIBERA, A. de - LÁrt... 309-67.

Verba. Semantics and Logic in Medieval Theological Texts (XIIth XIVth Century). Acts of the Symposioum on Medieval Logic and Semantics, San Marino 24-28 May 1994 (Turnhout 1997) 9-18. Cf. RλΜΒΑLDI, Ε. - «Dialéctica» in Enciclopédia Einaudi 10, trad. ( Lisboa 1988) 98-99. 73 Tudo indica que enquanto no Tractatus `Quoniam de genera/i' [3] Gualter parece levar mais a sério a teoria de Abelardo (posto que admite as coisas como singulares), recusando embora cair no sermonismo nominal ao defender que o universal, o género ou a espécie, não έ urn nome mas urn status, o autor de Degeneribus ac 72

72

74

Cf. JOLIVET, J. - «Αbélard et Guillaurne d`Ockharn, lecteurs de Porphyre» in Le Dialogue... 31-54, para uma análise das «dίferenças estruturais» entre os dois autores no que concerne à questão dos universais; em resumo poder-se-ά dizer que Abelardo cede ainda o passo ao platonimso e que Ockham, pela teoría da suppositio, assegurava a desvinculação do concciro de signifιcaς iο da inevitάνel atracção platónica. 73

LÓGICA C Ι ΑΙΧΑΟ.

Abelardo e os Univcrsais

LÓGICA 1? PAIXÃO.

Abelardo e os Universais

J. Marenbon designou por naturalismo fundamental (strong naturalism) esta tese abelardina segundo a qual ο mundo é constituído por membros de espécies naturais que pertencem aproblematicamente às respectivas espécies.75 Contudo nãο é sd uma ontología da singularidade individual que se descortina ( sintonizante com a atmosfera urbana sócio-cultural do século XII). É ainda a produção de teoría sobre um nível filοsόficο-linguístico preciso, o que implica uma cóncepçãο sobre a linguagem e sobre o conhecimento intelectual, ou, mais fundamentalmente, sobre o próprio pensar. Recordemos de novo que a Historia Calamitatum mearum nos lega uma forma literária perfeitamente acessível da consciência da individualidade dramaticamente construída ou faccionada, como se o autor (qual anti-Pirandello) tivesse deveras encontrado a sua personagem. Referimo-nos, naturalmente, à capacidade de aprender com o sofrimento provocado pela calamidade infligida. Isto fez com que Abelardo, como teremos de ver, evoluísse de um pensador urbano para um pensador monástico, forma tοροlógica e institucional que empregamos aquí para descrever uma outra evolução, a relativa à crescente interiorizaψo, ao aprofundamento da intencionalidade e à individualidade como lei da universalidade.

universalidade, não são nomes vazios.76 Consequentemente, Abelardo começa a desenvolver a sua própria tese não-realista dividindo gramaticalmente os nomes (apelativos e próprios) e ligando esta divisão àqueloutra respeitante à dialéctica, universais e singulares. O nosso autor encontra-se agora temporária mas justificadamente sob o signo de Prisciano, o príncipe das mais de mil páginas de gramática.77 Serd preciso lembrar que a ligação da dialéctica à gramática havia sido uma invenção processual carlovíngia?78 A questão ώ que o universal, objecto do dialéctico, ώ um nome, mas tem uma função própria nas frases que são por sua vez objecto do gramático; nesta conformidade, a refutação dos realismos ou a resposta ao problema dos universais une-se na rede da arte da linguagem79. Isto exige ο reconhecimento da essência da predicação e, portanto, a sua respectiva caracterização. «Ser predicado — escreve Abelardo na Logica Ingredientibus 80— é poder ser verdadeiramente ligado a alguma coisa em virtude da enunciação do verbo substantivo no presente.» Confrontados com o desafio de universais vazios, ο advérbio veraciter ώ que dá que pensar, por isso que, para além da

5. Consideremos, primeiro, o nível filosófico-linguístico. Uma vez determinada a impossibilidade do realismo, sería preciso demonstrar que as palavras, às quais se atribuirá a

76 Cf.

75 MARENBON,

J. - The philosophy... 117-18. 74

LIBERA, A. de - L'Art... 366. Institutiones Grammaticae, ed. M. Hertz in KEIL, H. (ed.) Grammatici Latini (Leipzig 1855). 78 LAW, V. - Grammar and Grammarians in the Early Middle Ages ( London New York 1997) 154-163. 79 JOLIVET, J. - Abelard... 58-59. so LPP 226. 77 Vd.

75

L6GICA C PAIXAO. Abelardo

e os Universals

chamada «ligação de cοnstrιιçãο» (hoje diríamos: sintáctica) de que os gramáticos se ocupam, na «ligação de predicação» está em causa a «natureza das coisas e serve para demonstrar a verdade do seu estado.» Assim, perante a afirmação «ο hornem é pedra», inatacável do ponto de vista sintáctico-gramatical, o dialéctico seria obrigado a declaró-la inadequada porque a força da enunciação não corresponde à natureza das coisas. O que ώ que, porém, faz com que já a proposição «Sócrates é homem» corresponda à natureza da coisa? Evidentemente, cada homem, e, portanto, também Sócrates, uma «coisa» distinta dos outros pela sua «essência» e «formas». Dito de outra maneira: é da essência da predicação a fidelidade ao real mediante a vigilância sobre o modo corno ele inevitavelrnente sό aparece, sό Sc exterioriza οu fenomenaliza rio acto de dizer; todavía, este acto está longe de circunscrever as modalidades possíveis da fundamentação. Daqui a teoría

LOGICA C PAIXAO. Abelardo

ora, por fim, como equivalente à noção alexandrino-boeciana de incοrporal.81 Antes de tudo mais, eis as palavras que introduzem a teoria do `estado' οu `estatuto': «... dizer que coisas diferentes combinam é dizer que coisas singulares são ou não são a mesma coisa, como ser homem ou ser branco ou não ser homem ou não ser branco. Parece, porém, inadmissível que tornemos a combinação das coisas corno se ela não fosse alguma coisa, como se uníssemos no nada (in nihilo) aquelas coisas que são (ea quae stint), isto ώ, quando dizemos que este e aquele combinam entre sí nο estado de homem (in statu hominis), ou seja, no facto de que são (in

eo quod sunt) homens. (...) Chamamos estado de homem o próprio facto de ser homem, que não é urna coisa e que também dizemos ser a causa cornυιn da imposição do nome aos indivíduos, conforme eles próprios combinam entre si uns coιn os outros.»s2

abelardina do estado ou estatuto (status), segundo a qual todos os homens combinam (conveniunt) não «no horneen» mas «no facto de ser homem» (in

e os Universals

esse hominem).

O texto transcrito acaba de admitir o que parece inadmissível, C.

abhorrendum autem videtur, quad convenientiam rerum secundem id qualquer coisa que nas coisas não é uma coisa,

1. É, por conseguinte, altura de explorarmos a solução de Abelardo, a teoría do status. Ela tem-se afigurado aos mais reputados especialistas ora como uma reinterpretaçãο da teoría boeciana da abstracção; ora como uma retoma da nοçãο estóica de lekton associada à ρrοblernática do dictum propositionis; ora como o substituto da nοçãο porfiriana de `comum'; 76

s1

LIBERA, A. de - LÁrt... 461, 373 (sobre lsagoge 11, 15: trad. port. 83). VANNI ROVIGHI, S. - «lntentionnel...» 29; IWAKUMA, Y. - «`Enuntiabilia in Twelfth-Century Logic and Theology» in Vestigia... 19-35, para a história do lekton nο século XII, introduzindo as várias opiniões de albericanos, melidunenses, parvípontanos, porretanos e nominais.

82 LPP

230. Vd. TWEEDALE, M.M. - «Abelard...» 154. 77

LÓGICA C PAIXÃO. Abelardo

e os Universais

accipiamus quod non est res aliqua. Como se, ao recusar o realismo, outra alternativa nãο restasse senão a de optar pelo nada, tamquam in nihilo ea quae sunt uniamus. Todavia, não d in nihilo que se funda o que d. Tratou-se antes, como vimos, de superar a gramática pela dialéctica e de dar à dialéctica um fundamento não-realista que permitira sustentar que a atribuição anterior, «Socrates d homem», se funda não numa res, mas num status. É claro que tem toda a legitimidade perguntar-se por uma garantía empírica para a linguagem; do ponto de vista gramatical ela exprime-se mediante a adopção de uma proposição infinitiva, non in homine, sed in esse hominem. Mas como entre a gramática e a dialéctica se reconheceu um suplemento paralelo àquele que se detecta na diferença entre ο som e o sentido de uma qualquer palavra, ou, de outra maneira, entre o significante e o significado, a ponte entre as duas disciplinas, ocorrendo proposicionalmente, introduz ο facto proposicional infinitivo, que lembra as proposições modais, mas que não passa de um acidente da sintaxe latina. Pode ser justamente por causa desse suplemento que Abelardo chega a substituir ο termo utilizado para designar os universais: a palavra latina vox cede a vez ao vocábulo sermo.83 Tal como vem mostrando Jolivet, desde 1969, 83 Cf. JOLIVET, J. - Αbέ/ard... 62. Cf. GEVER, Β. -PeterAbaelards philosophische Schriften (Münster i. W. 1933) 522. Para uma tradução parcelar dessa Lógica (GlossulesuperΡorphyrium), vd. FERNÁNDEZ, C. - Los Filósofos Medievales. Selección de Textos. Vol. II (Madrid 1980) 140-148. Sobre o significado e alcance da alteração do designativo, vd. JOLIVET, J. -Αbélard... 62-64; MARENBON, J. - Thephilosophy ... 176-80 relativiza, tal como nόs, essa modificação onomástica. 78

LÓGICA E PAIXÃO. Abelardo-e

os Universais

semelhante alteração pode estar ligada ao aprofundamento do problema intelectivo inerente à apreensão do significado. A ser assim, a alteração ou suplemento revelaría que a fundamentação não passa exclusivamente pela garantia empirico-linguística, mas carece de uma garantía objectiva cuja conjugação promove «uma descrição empirista do conhecimento intelectual e uma doutrina platonica dos arquétípos».84 Em alternativa a esta solução de Jolivet, pode porém acentuar-se ο facto, evidenciado por A. de Libera, da proximidade entre a noção de «comum» em Porfírio (Isagoge II 15) e o status em Abelardo. Nesta eventualidade, o status não passaria de uma «constelação de propriedades», «a estrutura repetida» em cada indivíduo de uma mesma espécie natural, uma «certa combinaçãο de propriedades particulares» postas pela natureza, o que nos remetería na mesma para um fundamento real que não d uma coisa.85 Seja como for (e entre estas duas opções extremas nãο cabe decidir o que um pensamento evolutivo gerou), o que há, evidentemente, de particular nesta proposta de Abelardo é o facto de ela se situar frente it questão inaugural do Peri hermeneias, a submissão dos phonai aos pathemata tes psyches, 84

JOLIVET, J. - Abélard... 60. Mais recentemente, ID. - «Sur les prédicables et les catégories chez Abélard» in Langage, sciences... 165-75.

85

LIBERA, A. de - LÁrt... 374: «I1 y a donc un fondement réel à ce qu'on appelle le statut d'homme, même Si ce statut n'est pas lui-même une chose: ce fondement réel, ce sont les mortalités particulières, les rationalités particulières, etc., qui sont, elles, des choses authentiques, identiquement combinées en chaque individu humain.» 79

L6GICA }3 PAIXAO.

Abelardo e os Universais

LOGICA C ΡΑΙΧΑΟ. Abelardo c os Universais

no âmbito de uma tradição que passa por retomar Alexandre de Afrodisias e Boécio conjugados com a gramática de Prisciano sob o motivo de Porffrio. Resultado de uma tal conjugação? Toda a crítica ao realismo ser discutida a um nivel linguístico de base relevante na questão da significação (0

οj cium

que antes da tradução da Metafísica, o De Trinitate de Boécio consagrara a divisão aristotélica das ciências em função dos modos possíveis de cada urna considerar separadamente os seus objectos (metafísica, matemática e física)."" Ninguém entre nós ignora, por exemplo, que esta tricotomia epistemoldgica

Comentário do chamado Curso Conim-

signifzcandi consiste em provocar uma intelecção): Dito de

ainda fará autoridade no

outra maneira: o facto de à plasticidade οntοgnοseοldgica da alma (a alma que é de certo modo todas as coisas"6) não poder ser alheia uma tomada de posição sobre o pensamento e o

bricense nos séculos XVI e XV1I89. Naquele cenário histdrico,

conhecimento

coubcra a Alexandre a responsabilidade de «interpretar (...) a produção dos universais com base no modelo de abstracção dos seres matemáticos.» 90 Esta seria uma acepção precisa de

iniludivelmente perante um tríptico linguístico, uma descoberta trivial em contexto histdrico).

célebre passagem de De anima III, 7, 431b 16-19, de acordo com a qual «a abstracção é urna operação mental que consiste em conceber como separadas da matéria as coisas que não

(pathemata tes psyches) também enquanto acontecimentos da linguagem (phone > vox> sermo, eis-nos

são porém separadas da matéria» que está na base da doutri2. Terá sido curta a viagem de phone a sermo? Sobrcrudo, terá ela corrido o risco de encavalitar o que em Aristdteles parece ser um patamar analítico de subordinações? Das autoridades referidas, Boécio e Prisciano não suscitam hoje em día qualquer dúvida. É o proprio Abelardo que a eles alude explícitamente. Recentemente acaba de ser reposto o lugar desse eterno ausente da historia da filosofιa ocidental que é Alexandre de Afrοdίsias"'. O que veio porém fazer a epistemologia alexandrina? Para podermos responder temos de lembrar 86 Cf. 87

ARISTÓTELES - De anima III 8, 431 b 21.

LIBERA, A. de - L'Art... 288. Como tese gcral, A. de Libera susεenta que Abelardo se integra na tradição do alexandrinismo ocidental que desconhece, v.g., a teoria da indiferença da essência (recolhida pelo alexandrinismo oriental de urn Avicena). Sobre Alexandre, vd. MERLAN, Ph. - «Greek Philosophy from Palto to Plotinus« in The Cambridge History of Later Greek... 116-123. 80

na dos universais e da abstracção de Alexandre a Abelardο.91 O nosso autor toma posição explícita nesta complexa tradição relativa ao conhecimento e à abstracção. Quer na

Logica quer no De intellectibus, embora mais claramente nesta obra do que naquela, Abelardo lembra a tese da impossibilidade de o homem atingir o acto da pura intelecção que sd é apanágio de Deus: LIBERA, A. de - LÁrt... 32-35. Vd. CHADWICK, H. - ßoezio... 149, relativamente à partilha da divisão nos círculos neoplatónicos pré-boecianοs. 89 Cf. Curso Cοnimbricense L Pe. Manuel de Gόis: Moral a Νicόmacο, de Aristoteles. Introd., estabelecimento do texto e trad. de A.A. de Andrade (Lisboa 1957) 14 sg. 9 0 LIBERA, A. de - LÁrt... 45. 9! LIBERA, A. de - LÁrt... 41. A passagem acirna entre aspas ώ, evidentemente, a de Aristdteles De An. 111, 7, 431b 16-19. 88

81

LÓGICA C Ρ'ΑΙΧΛΟ.

Abelardo e os Unvcrsais

«Portanto, concepções dessa espécie, obtidas por abstracção, são bem atribuídas à mente divina mas não humana, porque os homens, que conhecem as coisas

raramente ou nunca se elevam a uma simples compreensão dessa espécie, e a apenas através dos sentidos,

apreensão sensível dos acidentes impede-os de conceber puramente as naturezas das coisas. Deus, porém, a quem todas as coisas que criou são conhecidas claramente por si mesmas, e que as conheceu antes que existissem, distingue os estados individuais na sua própria realidade, e a sensibilidade nãο serve de empecilho para Ele, que ώ o único ser a possuir verdadeira inteligência. Donde provém que os homens, naquelas coisas que eles não apreenderam pelos sentidos, tem mais opinião do que compreensão, o que nós aprendemos pela própria experiência.»92 1

Sc a fonte identificada é imediata, Boécio, nãο h dúvida

LOGICA C PAIXÃO.

Abelardo c os Universais '

que a distinção entre intellectus e intelligentia (esta última característica de uma ciência divina) se reencontra em insuspeitos contemporâneos de Abelardo como Isaac de Stella, Alcher de Claraval, Alão de Lille, Ricardo de São Victor ou Gundisalvo.94 Só a fonte comum, Boéciο, e designadamente a sua Consolatio Philosophiae, parece explicar este estranhíssimo acordo autoral95, no qual se vê ο lógico e urbano aristotélico Abelardo a ceder ο passo quiçá ao teólogo ou mesmo ao monge οu ao místico platónico. Todavía, a tradição boeciana ensinara também o acordo Platão/Aristóteles, segundo o qual quando este «diz que os universais existem sempre nos sensíveis visa a existência em acto. Aristóteles quer portanto dizer que a natureza (de) animal só existe em acto nos sensíveis e se atribui a esta natureza o vocdbulo

universal é por uma espécie de

transfert — ώ que aquilo que é verdadeiramente universal ώ o nome que indica essa natureza e não a própria natureza, a qual só é dita universal segundo um modo figurado do discurso. Em contrapartida, aquilo que visa Platão ώ a

que esta tese remonta pelo menos ao primeiro livro da Metafisica (12, 982b 28- 983a 10) onde se ensina que a ciência procurada «que tem o seu fim em si própria» ώ de «posse mais do que humana». É alias curioso reparar, como recorda Libera, que muitas das introduções à Filosofia em moda no século

subsistência natural da natureza em si mesma ou por si mesma,

XIII (como a Diuisio scientiarum de Arnaldo da Provença) ν ο buscar quase literalmente a Abelardo o adagio desta ciência remota93, mas seguramente é ainda mais estranho verificar-se

entre Platão e Aristóteles, pois aquilo que o aluno nega

isto ώ, o facto de que o seu ser permanecería idêntico mesmo que ela não fosse sensível. E este ser natural que, em Platão, releva do vocdbulo `universal', i.e., que reclama o emprego de um nome universal para ο designar. Não há assim desacordo

do ponto de vista do acto, o mestre sustenta-o do ponto de vista da aptidão natural.»96 94 LIBERA,

92 LPP

234. Os sublinhados são nossos. 93 LIBERA, A. de - LÁrt... 435.

Li

82

A. de - L'"4rt... 436-440. A. de - L'Art... 440-444. 96 LIBERA, A. de - L'Art... 450. Os sublinhados são do autor. 95 LIBERA,

83

LÓGICA Ε PAIXAO.

LÓGICA C PA!XAO. Abclardo ι os Universak

Consonante com este putativo acordo hά urna passagem da ilustrativa Lógica, apesar de dificil interpretação: «Por isso Βοéciο atribui essa dupla capacidade ao espirito de poder, pela sua razão, compor o que esta efectivamente separado, e de desunir ο que se encontra composto, sem se apartar, contudo, em nenhuma das duas operações, da natureza [real] da coisa, mas percebendo apenas aquilo que pertence à natureza da própria coisa. Sc assim não fora, não se trataria de razão mas de opinião, isto ώ, se a inteligência se afastasse do estado (status) da coisa.»97

Abelardo c os Universais *

οu junta a um singular ou substância primeira.'" Alias, a ji mencionada ligação a Prisciano e ao primeiro livros das

Construções (Institutiones grammaticae) que textualmente decorre de imediato da discussão sobre a significação logo a seguir à apresentação da teoria da status — revela como era possível uma leitura dos universais separados dos sensíveis: «Trata-se neste passo de Dcus — explica Abelardo — como de um artesão a ponto de compor alguma coisa, que concebe de antemão em sua Dente a forma exemplar da coisa a ser composta. (...) Esta concepção comum, todavia, ώ bem atribuída a Deus mas não ao homem, porque aquelas obras são estados (status) gerais

Na passagem supracitada surge o termo

status.

Adernais, a

distinção entre opinião e inteligência, com a precisão de que esta capta a natureza da própria coisa através de um duplo processo οu «capacidade do espírito», que compõe ο que está separado e desune o quc esta composto, gυererά dizer que quando alguém ouve uma expressão como «este homem» a sua atenção compõe a natureza `hornero' a uma certa substância particular e esta actividade pressupõe urna dada abstracção ( desunir) relativamente a «homem porque «hornem» orienta o espírito para a natureza `Homem' tomada em sentido absoluto. A particularidade é exterior à essência ou natureza da coisa tornada em si mesma, ο que revela cono Abelardo distingue dois tipos de intelecções, um sobre a natureza absolutamente considerada outro sobre a natureza composta 97 LPP

237.

οu especiais da natureza ρrόρrios de Deus e nf.o do artífice...» De notar a assimilação do universal anterior ao múltiplo como um

conhecido por Deus, masa que o homem

nãο pode ter acesso por um acto de abstracção (pois Deus conhece-o por simples intelecção não por abstracçãο)100. Acresce — como anotam outros intérpretes — quc o emprego da noção assaz ρolissémica de `status' nãο remete apenas para a ρrοblemάtίca da abstracção, mas tαmbém para um outro incorporal de longa tradição, o lekton, rapidamente assοcίάνel à questão do dictum propositionis. Não ώ este o lugar para

9" Cf. LIBERA, Α. 99 LPP 233. ι00 Cf.

84

status

de - L'Art... 471-72.

LIBERA, Α. de - L'Art... 481. 85

LÓGICA E PAIXAO. Abelardo

LÓGICA E PAIXÃO. Abelardo e os Universais

e os Universais

tratar de tão complexa noção estóica101 que na

Dialectica

(§ 5.8) Agostinho de Hipona traduzira por dici bile (enuncíável) e definira como aquilo que é captado pela mente a partir de uma palavra e se mantém na própria mente.102 Há já muito que Jolivet introduziu a possibilidade de se interpretar o n iοrealismo abelardino no plano de uma região do real totalmente exterior à categoria de coisa e que, por sua vez, é o fundamento ou o lugar da verdade, o dictum propositionis (o que diz a prορosíção)1Õ3 . Abelardo pode mesmo ter sido o primeiro autor a introduzir na lógica o termo dictum. 104 Em termino logia fenοmenológica que aqui se justifica dado o seu emprego

das

res extra animam (as coisas) e da res in anima subjective

(o acto da intelecção). O certo 6 que Abelardo nãο conheceu nem o

De Anima,

nem o De Memoria nem sequer a Metaphysica e só podia aperceber-se destes horizontes mediante Boécio (dos comentários às obras analíticas is Consolação da Filosofia passando pelos tratados teológicos). Por tudo isto, ainda é mais admirável o facto de as glosas a Porfirio mencionarem uma crítica a Boécio 106.

entre os intérpretes deste temário, dir-se-Ia que se procedeu

3. Abelardo acusa-o de confundir e perturbar a questão dos universais introduzindo-lhe argumentos sofísticos. Vale a pena reproduzir essa passagem que ainda lembra o estilo

nοemizaçãο (de noema, distinto de noese) do status (o

da História:

status

sería um dictum sem sujeito), eventual paralelo daquela terceira

«... é principalmente Boécio nos seus Comentarios quem faz essa confusão pelas transferências, (...) de tal forma que certamente ele parece abandonar a caminho certo

(tertia) dimensão praeter rem et intellectum que 6 a significação.'Ο5 Regressaríamos, embora por uma via longa, à interrogação sobre o estatuto ontológico das aristotélicas agora entendidas como

intentiones animae,

res in anima ao mesmo tempo distintas

ao tentar exprimir o que são os géneros ou as espécies. (...) Na investigação das questões aquí, a fin de resolver

perturba-o por meio de algumas questões e de argumentos sofísticos para nos melhor o problema, ele [Boécio]

101 Cf. KNEALE, M. & W. - 0 desenvolvimento... 142-62. 102 Cf. KIRWAN, Ch. - Augustine (London New York 1989) 57-59; COSERIU, E. - Die Geschichte der Sprachphilosophie von der Antike bis zur Gegenwart. Eine Ubersicht. I (Tübingen 1975) 124-26. A introdução do termo latino enuntiabile, para dizer dictum, parece ficar a dever-se ao parvipontano Adão de Balsham, vd. NUCHELMANS, G. - Theories of the Proposition: Ancient and Medieval Conceptions ofthe Bearers of Truth and Falsity (Amsterdam London 1973) 169. 103 JOLIVEΤ, J. -Abélard... 70-72. 104 IWAKUMA, Y - «Enuntiabile...» 31. 105 Cf. VANNI ROVIGHI, S. - «Intentionnel...» 28. 86

ensinar, pouco depois, a nos desembaraçarmos delas. E ele faz uma proposta inadmissível ao dizer que se deve negligenciar todo cuidado e a investigação á respeito dos géneros e das espécies, como se dissesse que evidentemente aquelas coisas que parecem ser géneros e

106

Cf. LIBERA, Α. de - LÁrt... 486-92. 87

LOGICA C PAlXAO. Abelardo e os

LOGICAL PAIXAO. Abelardo e os Universais

Universais

espécies nãο podem ser ditas voaibulos, seja quanto à sígnificaçãο das coisas, seja quanto ao intelecto.»107 O. texto citado é claro e nãο hά razão para nos desviarmos muito da interpretação comum segundo a qual o que efectivamente Abelardo reprova a Βοéciο ώ urn uso indevido da linguagem, basicamente por falar das coisas conferindo-lhes atributos dos nomes οu das palavras («a confusão pelas transferências»). Nο fim de contas, se a universalidade de urn nome depende da existência da pluralidade das coisas que ele nomeia, qualquer universalidade que as palavras confiram às coisas nãο passa pela transferência das propriedades das coisas para os nomes. Uma tal transferencia só se dά como universalidade tão vazia quanto cega em relação à pluralidade. E que, nα

Eis, por conseguinte, a tese não dita de Abelardo, de acordo com a nossa leitura. Nο processo de significação» habita a figura da fundamentação: se o universal ώ exclusivo da linguagem, a pluralidade é coisa real que se diz universalmente mediante urn efeito de desrealizαΟο. Tal efeito deve exprimir urn ideal de fundamentação aberto ao multiρ!ο, uma universalização nãο «realizada». Julgamos portanto que se deve dizer que a «falta de cuidado» que o casal Kneale atribuiu a Aristóteles nα origem da «confusão» do problema dos universais (distinguir 0 que se diz acerca das palavras e acerca das cοisas)109 não sd não pode ser assacada a Abelardo como sobretudo lhe deve ser atribuída a responsabilidade pela limpeza do problema. Basta ler as palavras seguintes da que precedem imediatamente a aludida crítica a Bοéciο:

Lógica

verdade, as coisas nãο têm qualquer universalidade passive! de ser comunicada aos nomes e, além do mais, a significação de urn nome nãο lhe advém exclusivamente das coisas: ... a multidão das próprias coisas é a causa da universalidade do nome porque (...) não é universal senão

universalidade que a coisa confere à palaνra, a própria coisa nάο a tem em si mesma e, por certo, apalavra nao tem significaç-ãο por causa da coisa e urn nome é julgado ser apelativo de aquilo que contém muitas coisas; entretanto, a

acordo coma multidão das coisas, embora nãο digamos que as coisas signifiquem ou que elas sejam apelatwas.»108

«Deve-se notar, porém, que, embora a definição do universal ou do género ou da espécie inclua apenas palavras, estes nomes, todavia, são às vezes transferidos

para as suas coisas, como quando se diz que a espécie consta do género e da diferença, isto ώ, a coisa da espécie provéιn da coisa do género. De facto, quando se desvenda a natureza das palavras quanto à significação, ora se trata das palavras, ora das coisas, e frequenterente os nomes destas são transferidos reciprocamente para aquelas. Por esta razão, principalmente, o tratamento ambíguo tanto da lógica quanto da gramάtica induziu em erro pelas transposições dos nomes muitos

107 LPP

243. Os sublinhados são nossos. 108 LPP 245. Os sublinhados são nossos. 88

109 KNEALE,

Μ. & W. - Ο desenvolvimento... 200. 89

L6GICA G l'AIXAO.

Abelardo e os Uiiivcrsais

LOGICA

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