Louis Dumont e os Subaltern Studies: desconstruções de um cânone.

Share Embed


Descrição do Produto

Louis Dumont e os Subaltern Studies: desconstruções de um cânone. Fabíola Gomes1

Neste trabalho parte-se dos debates inscritos no processo de consolidação da antropologia/sociologia na Índia para exemplificar as características de antropologias outras que possibilitam, a meu ver, o desenvolvimento de uma nova configuração geopolítica de construção do conhecimento envolvendo o sul global. Tratam-se de debates em torno da interpretação de um autor clássico da chamada antropologia hegemônica sobre aquele país, amplamente difundida no ocidente, e as consequentes respostas a essa interpretação por parte dos pensadores indianos. A primeira parte desse exercício tem por objetivo apresentar as críticas ao trabalho de Louis Dumont, oriundas de autores fundantes das ciências sociais não hegemônicas na Índia e de autores importantes no atual cenário acadêmico indiano. Dentre esses autores destaco: T.N. Madam e André Béteille, os quais desconstruíram uma visão totalizante e homogeneizada da Índia proposta por Dumont para compor seu método comparativo que enfatizava a hierarquia do sistema de castas; Partha Chatterjee e Dipesh Chakrabarty, expoentes do movimento intelectual denominado subaltern studies, os quais se debruçam sobre a teorização e a compreensão da modernidade indiana, também se distanciando, desse modo, da teoria dumontiana que enxergou na Índia o domínio da tradição, ideal para contrapor a modernidade ocidental; cito, ainda, Veena Das, autora que alinha as críticas dos autores precedentes a uma reflexão sobre as antropologias dos países centrais que ela denomina “theories of Other” versus as antropologias surgidas em ambientes acadêmicos não ocidentais por ela chamadas de “theories of Self”, essas exercidas em lugares como a Índia e o Brasil. Proponho que as desconstruções das antropologias hegemônicas levadas a cabo em países não ocidentais aliadas a um modo de fazer antropologia do self ou da alteridade próxima quando 1

1

Mestre e doutoranda em antropologia social pelo Programa de Antropologia Social da Universidade de Brasília, PPGAS/DAN - UnB.

somam-se aos diálogos intelectuais horizontais no ambiente do sul global são o celeiro de uma nova configuração geopolítica da construção do conhecimento em termos mundiais, capazes de inaugurar mudanças epistemológicas nas ciências sociais. Inicio pela interpretação de Dumont acerca da Índia e as controvérsias com colegas indianos, as quais estruturaram um debate não só sobre o entendimento antropológico da Índia, mas sobretudo sobre a própria antropologia e seu modo de construir conhecimento.

Breve leitura do argumento de Homo Hierarchicus: Dumont empreende em Homo Hierarchicus uma reflexão acerca da sociedade moderna ocidental e da sociedade tradicional indiana. A oposição e o contraste entre essas duas unidades impor-se-iam em função da necessidade, apontada pelo autor, de que fossem feitas comparações entre a sociedade do próprio investigador e alguma outra sociedade na “tentativa de apreender intelectualmente outros valores” e, consequentemente, formular “nossas próprias instituições numa linguagem comparativa”. Tal comparação permitiria a Dumont colocar em perspectiva a sociedade ocidental e sua pedra angular – o individualismo – ao buscar desnaturalizar interpretações triviais que se tinha acerca da sociedade indiana e de seu sistema de castas – segundo ele sempre confundidas com estratificação social, conceito que se aplicaria às sociedades ocidentais, mas não à Índia. Com esse duplo esforço, Dumont acreditava poder evitar aquilo que ele chama de sociocentrismo. Quanto ao seu método ele explicita: “O postulado comparativo posto em ação aqui pode ser expresso da seguinte maneira: todas as sociedades contêm os mesmos ‘elementos’, ‘traços’ ou ‘fatores’, ficando claro que esses ‘elementos’ podem figurar em cada caso tanto em S quanto em a e são profundamente alterados por sua posição. (...) O que quer dizer, na prática, que se pode encontrar numa sociedade o que corresponde residualmente (em a) àquilo que outra sociedade diferencia, articula e valoriza (em S).” (Dumont, 1997: 295) De acordo com essa ideia geral, seria central a posição do indivíduo como valor na sociedade moderna dita individualista. Por outro lado, haveria a valorização da categoria hierarquia

2

na sociedade indiana, por essa razão entendida e denominada como holista. Nesta forma de se fazer comparação, coloca Dumont, é importante observar tanto aspectos ideológicos quanto não ideológicos quando nos interessa descobrir qual elemento domina ou orienta a ideologia de uma sociedade, pois não existiriam sociedades completamente individualistas ou holistas, mas apenas preponderantemente individualista ou holista. Na sociedade holista, a coletividade, o todo social, seria valorizada positivamente; no individualismo, o valor recairia sobre o indivíduo. Nas palavras do autor: “A casta isola-se por submissão ao conjunto, como um braço que não quisesse casar suas células às do estômago. (...) é a hierarquia que comanda a separação. Para o momento dizemos apenas o seguinte: enquanto que, para nós, a referência fundamental é o elemento, ela é aqui o conjunto.” (Idem: 91) A ideologia predominante no sistema de castas indiano se apoiaria numa estrutura de oposições dinâmicas entre as diferentes castas, marcadas pela heterogeneidade e separação. Já o individualismo moderno estaria, de forma oposta, pautado na noção de igualdade oriunda do igualitarismo político, tornado ideologia e presente na obra de autores como Tocqueville e Rousseau. Assim, afirma Dumont: “Antecipemos duas palavras: as castas nos ensinam um princípio social fundamental, a hierarquia, cujo oposto foi apropriado por nós, modernos, mas que é interessante para se compreender a natureza, os limites e as condições de realização do igualitarismo político ao qual estamos vinculados.” (Idem: 50) Desse modo, Dumont equaciona individualismo e igualdade, fazendo coincidir, ao mesmo tempo, hierarquia e desigualdade. Dumont nos alerta a propósito do perigo de olharmos o sistema de castas como uma forma de estratificação social, esse seria um princípio que diz respeito às nossas sociedades e não à organização social indiana. Para compreender a ordem hierárquica das castas como orientada por um sistema de valores é preciso levar em conta o aspecto religioso daquele sistema. Ao observá-lo destaca-se a oposição entre puro e impuro como princípio de organização, separação e relação entre as castas, de forma a relacionar os grupos à sua função laboral específica:

3

“(...) a execução das tarefas impuras por uns é necessária à manutenção da pureza entre os outros. Os dois pólos são igualmente necessários, embora desiguais. A conclusão é que a realidade social é uma totalidade feita de duas metades desiguais, mas complementares.” (Idem: 106) A desigualdade entre os grupos que compõem o sistema aparece como imperativo desse tipo de organização social que estaria calcado na religião. Há, ainda, além da hierarquia do puro e do impuro, a hierarquia das Varna, distinguidas em quatro categorias: os Brâmanes, Kshatriyas, Vaishyas e Shudras, excluindo-se dessa forma os Intocáveis. A partir de sua leitura do sistema de castas indiano, o conceito que Dumont formula de hierarquia permite vislumbrá-la como algo universal: “Definiremos então a hierarquia como princípio de gradação dos elementos de um conjunto em relação ao conjunto, ficando entendido que, na maior parte das sociedades, é a religião que fornece a visão do conjunto e que a gradação será, assim, de natureza religiosa.” E ainda: “A hierarquia, em princípio, é atribuição de um lugar a cada elemento com relação ao conjunto.” Tal concepção sustenta-se sobre a ideia do englobamento do contrário, isto é, uma maneira de ordenar o mundo social que além de opor elementos (sistema de oposições distintivas) os hierarquiza, de forma a que um elemento englobe o outro, gerando uma relação entre englobante e englobado. Na oposição hierárquica não haveria separação, o englobante seria tão somente o polo mais abrangente da relação. Dumont considera que adotar um valor é sempre hierarquizar, sendo a hierarquia e a hierarquização, portanto, inerentes à vida social. Vemos que sua noção de hierarquia não coincide necessariamente com relações de poder, mas com uma relação lógica de elementos que podem ser englobantes ou englobados, entendidos como uma relação entre conjunto e elemento. Esse ponto será fortemente rebatido por intelectuais indianos, para os quais não se pode negar as relações de dominação presentes no sistema de castas. É a partir da transposição da noção de estrutura da linguística para a antropologia, introduzida por Lévi-Strauss, que Dumont pensa a estrutura. Para esse autor, sem tal noção seria impossível compreender o sistema de castas indiano, uma vez que as castas não seriam 4

compreendidas se pensadas como um sistema em “ordem linear que vai da mais alta à mais baixa”, ao invés de entendidas como “um sistema de oposições, uma estrutura”. O conceito de estrutura teria a capacidade de: “para uma época, para um pensamento, cujo problema essencial é, após um longo período dominado por uma exigência atomizante, recuperar o sentido dos conjuntos ou sistemas, ela traz a única forma lógica disponível agora nesse assunto”. O autor reforça aqui a ideia de totalidade para o estudo da sociedade indiana. Dumont se diferencia de Lévi-Strauss ao pensar as estruturas sociais por sua acepção de consciência e inconsciência: se para Lévi-Strauss a análise estrutural faz sobressair os aspectos inconscientes, ou seja, a estrutura de pensamento é revelada pelo antropólogo que empreende a análise estrutural; para Dumont a estrutura está no nível da consciência. O nível inconsciente seria depositário dos aspectos residuais ou não ideológicos. E, por fim, como a ideologia para Dumont coincide com a estrutura, ela coincidiria com o “pensamento nativo”. Logo se verá que esse pensamento nativo pode assim ser considerado apenas para uma pequena porção da população indiana, aquela que está no topo da hierarquia de castas e teria sido a única escutada por Dumont.

Algumas respostas ao modelo dumontiano: O que Dumont apresenta em livros como Homo Hierarchicus e O Individualismo é uma grandiloquente interpretação sobre a sociedade indiana, tornada célebre em todo o mundo ocidental. Autores indianos, contudo, discordam, em muito, dessa interpretação que construía a Índia, uma civilização milenar, como uma totalidade por ele ficcionalizada, homogênea e sem história. Como pude depreender, pela convivência acadêmica com antropólogos, sociólogos e historiadores em Calcutá, Trivandrum e Nova Délhi – em períodos de pesquisa nos anos de 2009 e 2012 – e pela leitura de textos de pesquisadores daquele país, existe um grande debate em torno das ideias de Dumont sobre a sociedade indiana. A história da antropologia/sociologia indiana e sua

5

consolidação como disciplinas acadêmicas tem tal discussão como um de seus eixos.2 Autores como M. N. Srinivas, A. K. Saran, J. P. S. Uberoi e T. N. Madan emprenharam-se no diálogo com os intelectuais ocidentais que escreviam sobre a Índia – notadamente Dumont e David Pocock, os quais propunham uma sociologia da Índia – passando a propor e desenvolver uma sociologia indiana, na qual os acadêmicos indianos deixariam de ser percebidos apenas como informantes. É possível notar que ideias que aparecem como novidades na obra de Dumont estavam já em discussão entre autores indianos. Por exemplo, a sugestão de que a antropologia deveria se unir à indologia clássica para uma compreensão mais acurada da realidade social indiana, feita por Dumont, já aparecia na obra de outro autor alguns anos da publicação dos livros de Dumont. Nirmal Kumar Bose o antecede nessa proposição e vai mais longe afirmando a necessidade de incluir o impacto do colonialismo no subcontinente indiano para compreendê-lo: “(...) much before Dumont and Pocock, Bose realized the importance of combining ethnology and Indology in the study of Indian society (Béteille 1975). But for him an anthropology of tribes that merely confirmed the Indological perspective was not sufficient, since tribal society had changed following the advent of colonialism. Thus, Bose attempted to integrate history into his scheme, not only to enhance the analysis of social change but also for social reconstruction.” (Pradip Kumar Bose, 2007: 299) A própria inexistência de uma fronteira rígida entre antropologia e sociologia na Índia diz respeito a um entendimento epistemológico que difere do modelo ocidental quando define por seu 'objeto' de estudo o que seria cada uma dessas disciplinas: à primeira caberia estudar as sociedades primitivas ou simples, a segunda se debruçaria sobre o estudo das sociedades complexas. Sobre isso, reflete um dos maiores expoentes da sociologia/antropologia produzida na Índia: “(...) this way of making a distinction [between sociology and anthropology] can lead to confusion. For it applied consistently, what anthropology is to an American will be sociology to an Indian, and what sociology is to an American will be anthropology to an Indian. The distinction 2 A esse respeito, afirma Veena Das: “The authority that Dumont has enjoyed as an interpreter of India to Western scholarship makes his work an appropriate object of study.” (Das, 1995: 26) É também preciso lembrar que na Índia não há uma grande divisão departamental entre sociologia e antropologia: “In my own usages (…) there is a slippage between the terms ‘ethnographic’, ‘anthropological’, and ‘sociological’, and I think the reason is that none of the near divisions often proposed to distinguish between these kinds of texts could be applied to the disciplines of social anthropology and sociology in India.” (idem:idem)

6

will work only so long as all societies, Western and non-Western, are studied only by Western scholars. It becomes meaningless when scholars from all over the world begin to study their own as well as other societies.” (Béteille, 1974:11 apud Uberoi, Deshpande e Sundar, 2007: 7) Essa diretriz foi, de certo modo, imposta aos intelectuais indianos que se viam compelidos a responder Dumont e Pocock quando estes afirmavam que não era possível existir algo como uma antropologia/sociologia indiana, uma vez que a sociologia era uma ciência intrinsecamente moderna que só era possível graças a um ethos de neutralidade/objetividade científica apenas encontrado na sociedade ocidental, a Índia restaria impossibilitada desse exercício por ser uma sociedade intrinsecamente tradicional inábil para o olhar externo que requer a ciência normal. O antropólogo indiano para Dumont estaria limitado ao papel de informante. “If there were no 'external view', no comparison, no objectivity, then there might be as many 'sociologies' as there are different civilizations. But when Dr Madam deplores the fact that Indian scholars have merely 'imitated' the Westerners in the matter of sociology, the statement is ambiguous. Does he mean that Indian scholars could have made an original contribution within the framework of ('Western') sociologies and failed to do so – that may be true –, or does he mean that they should have built up a sociology of their own, basically different from (Western) sociology, in which case he would be entirely wrong? A Hindu sociology is a contradiction in terms.” (Dumont, 1966: 23 apud Das, 1995: 35) A noção de Dumont condiz com toda a formação hegemônica da ciência, que reservou um lugar específico para os saberes que não reproduzem a razão ocidental, como reflete Veena Das: “The future of a sociology rooted in the values of a culture different from the West's is already foreclosed (…). In this way, the fate of Indian systems of knowledge is sealed. They have a place in the history of ideas; they can be intellectually apprehended to provide the means by which 'we' of the West can transcend the limits of 'our' ideology, but they are not resources for the construction of knowledge systems inhabited by the modern Indian. Other cultures acquire legitimacy only as objects of thought, never as instruments of thought.” (Das, 1995: 33) Além dessa imposição, Dumont incorreria em equívocos no que diz respeito a sua lógica de interpretação da sociedade indiana. Muitos discordam da ênfase dada pelo autor à hierarquia que sustentaria o sistema de castas indiano e criticam o que consideram como uma naturalização da hierarquia em seu modelo interpretativo. Mais grave ainda seria o fato de Dumont opor 7

categoricamente igualdade e hierarquia, advogando a desigualdade entre as castas como imprescindível ao equilíbrio do sistema. Não é sem ironia que Béteille retrata o argumento dumontiano: “Dumont constructs a picture of an elaborate hierarchy of castes in which each individual is kept in his place not by means of punishment or the arbitrary exercise of power, but through the universal acceptance of the values of a hierarchical order. In a hierarchical order the Untouchable no less than the Brahmin accepts his allotted place, because thoughts of equality do not disturb their minds.” (Béteille, 1983: 48) O tipo de afirmação trazida por Dumont significava legitimar um dominação já questionada politicamente por movimentos sociais e intelectuais mesmo antes da independência do país, em 1947. A Constituição, de 1950, trazia em seu texto tal preocupação e a tentativa de correção das desigualdades oriundas do sistema de castas, como aponta, dentre outros, Béteille.3 Esse autor busca desarticular a equação entre hierarquia e desigualdade, bem como aquela entre individualismo e igualdade, demonstrando que todos esses valores não são nem necessariamente opostos, nem implicam-se um no outro: “The most striking feature of Indian society today is the co-existence of divergent, even contradictory, belief and values. Hierarchical values are in evidence everywhere; yet people proclaim loudly, and not always insincerely, that equality should be placed above every other consideration. Individuals compete with each other and claim their dues as individuals in a growing number of fields; yet loyalty to caste, tribe, sect, clan, lineage, and family have a continuing, and in some fields an increasing, hold over people.” (Béteille, 1986: 123) Reforçando a ideia de que o individualismo ocidental moderno não tem como consequência a igualdade, Béteille também argumenta que: “Those who trace the historical conditions of the emergence of homo equalis in the West generally overlook the adventures of the same homo equalis abroad. As if the destruction of aboriginal society in Australia and America, the enslavement and brutal use of millions of Blacks, or the imposition of the most unequal conditions between Europeans and natives throughout Asia took place in another epoch or on a different planet.” (Béteille, 1983: 56) Béteille explicita, ainda, que não obstante individualismo e igualdade não coincidam 3 “If there is an overall design in the Constitution, that design may be said to put equality in the place of hierarchy and the individual in the place of caste. Hierarchical values are repudiated, and the commitment to equality is strongly asserted; but the repudiation of collective identities of the kind on which the traditional hierarchy rested in not as clear as the repudiation of hierarchy itself.” (Béteille, 1986: 123)

8

exatamente, a igualdade é um valor que tem desde o século XIX um apego mundial.4 Mas Dumont não poderia ter enxergado essa realidade na Índia, pois buscava ali o contraponto ideal para sua construção da sociedade ocidental, tudo o que ele podia ver era tradição e hierarquia em oposição à modernidade e ao individualismo. Sobre o que afirma Das: “Many Indian sociologists have encountered this difficulty with Dumont. Béteille (1991) summarizes this well, and is worth quoting at length: ‘Dumont says that he has not disparaged India but, in contrast, “vindicated India in the very aspects that made her looked down upon by many in the West.” I do not wish to question his good faith, but it seems to me that what he has tried to vindicate is the world that Indians have left behind, not the one that they are trying to create. He should not feel too surprised, therefore, if some Indians do no find his attempts at vindicating India entirely to their taste. Dumont’s own sympathies lie with traditional India, and hardly at all with modern India. I can see that he has, out of his deep concern with traditional India, tried to force a method for the study of his own society, but it is that very method that has stood as an obstacle to his understanding of contemporary India'.” (Das, 1995: 40) Para Béteille, assim como no caso da Índia é preciso pensá-la como uma sociedade dinâmica e heterogênea, é imperativo olhar para o ocidente tendo em mente seu passado e seu presente. Melhor dizendo, é preciso lembrar que processos históricos acontecem em todos os lugares e olhar para o passado indiano para contrastá-lo ao presente do ocidente não é uma boa medida. Se o fosse, poderíamos escolher contrastar a modernidade indiana com a idade média européia. Aqui o autor faz uma crítica a Dumont em seu método comparativo: “Civilizations do indeed differ form each other, but they also change. Global contrasts become misleading when they direct attention away from historical processes. Hence we must contrast not only India with the West but also the past with the present. We must above all avoid representing a society or a civilization as some kind of unchanging substance that is totally impermeable to influences from outside. The modern world is one in a sense in which the medieval or the ancient world was not.” (Béteille, 1986: 132) Além disso, autores indianos também discordam de que o sistema de castas corresponda eminentemente “a uma manifestação da religião” e afirmam seu viés político e socioeconômico. É o caso, por exemplo, de Suvira Jaiswal que reflete sobre as imbricações do sistema de castas com as

4 “Social equality and individual autonomy may not be as inseparably linked as they were once believed to be, but it is difficult to see how any modern society [entre as quais ele inclui, obviamente, a Índia] can discard or neglect either of these two ends.” (Béteille, 1986: 128)

9

construções de classe e gênero: “It is not possible to agree with Dumont’s strongly idealistic view of caste which makes it ‘above all a system of ideas and values’ embedded in the Indian mind, the Homo Hierarchicus, presenting a perfect contrast to the Western HomoAequalis. In my view hierarchy, defined as separation and superiority of the pure over the impure, of the priest (brahma) over the warrior-ruler (ksatria), which forms the keystone of Dumont’s model, derives from the material context (…). Caste ideology evolves gradually in consonance with changing material conditions and is not a mental invention unrelated to its material roots. Nevertheless, I agree with Dumont that ‘endogamy is a corollary of hierarchy, rather than a primary principle’, although for me caste hierarchy is not simply a matter of superiority of the pure over the impure but a form of exploitation which evolved in the process of enforcing subjection of women and weaker social groups.” (Jaiswal, 2008: 5) Outras críticas bastante severas foram endereçadas a Dumont no que tange à sua suposta escuta do pensamento nativo. O autor tomou como ponto de partida para suas afirmações a visão de uma única parcela da população indiana, os brâmanes, casta (ou varna) que se encontra na mais alta posição da hierarquia social daquele país e dela extraiu as categorias e oposições duais que ele afirma terem validade para todas as castas e explicariam e sustentariam o sistema social indiano. Sobre isso Das afirma: “In positioning the Brahmin as the only voice, Dumont was in fact participating in the creation of a master narrative of Indian society that saw Brahmanic worldviews as somehow representing the whole of Indian society. Why has the Brahmanic worldview been so privileged in the anthropological discourse on India? Richard Burghart (1990) gives an interesting reason for the centrality of the Brahmin as the Other in this discourse. He says that when anthropologists began to look at the Indian subcontinent as an arena requiring interpretation, they discovered 'it was already occupied and defined by local counterparts – Brahmins and ascetics who spoke about the social universe in the name of Brahma'. The encounter between these two modes of constructing knowledge – of the Brahmin and the anthropologist – was of interest, according to Burghart, because 'both types of persons totalize social relations as a system in which they act as knowers and in which their knowledge transcends that of all other actors'.” (Das, 1995: 35) Das desvenda ainda uma estratégia teleológica no pensamento dumontiano quando este alia o princípio da hierarquia ao princípio da totalidade: “It is the link between the principle of totality and the principle of hierarchy which allowed Dumont to accommodate criticisms about his neglect of other values in Indian society, by treating them as empirically present but 10

theoretically residual. Thus, the practices of lower castes were contemptuously dismissed with the following remark: ‘Because barbers shave one another, someone would like to conclude that “equality and reciprocity” have the same importance as does hierarchy in the system’.” (Idem: 34-35) O tratamento dos dados empíricos na obra de Dumont é outro alvo de contestação por parte de acadêmicos indianos que sugerem que seu modelo explicativo fala mais alto que sua etnografia. E que ele tributa à ideologia bramânica um peso preponderante na análise, mesmo quando dados empíricos o contradiziam, nesses casos sua saída teórica era afirmar que os dados pertenciam a uma esfera residual fora da ideologia. “The particular form this had taken in Homo Hierarchicus was reflected in what I described as the unusual design of the book, with a main and a supplementary text, the former constructed theoretically and deductively, and the latter derived from empirical evidence available in India ethnography and constituting a considerable body of elucidatory notes. Ascertaining the fit between the model and the contemporary social reality seemed, I had written, to be only a secondary concern, resulting in the 'devaluation of the ethnographic datum'.” (Madam, 1994: 56) Um dos fundadores da antropologia indiana, Madam afirma que a relação entre ideologia e realidade é problemática em Homo Hierarchicus. Dumont respondeu a essa crítica afirmando que em seu estudo a 'realidade observada' teria sempre dado a última palavra, ao que Madam replicou: “If observed reality indeed has the last word, then this seems to be so only in particular expressions of it, which are predetermined by the ideology. Put simply, this means that all that is observed is not equally significant.” (Idem: 56) O que Madam afirma aqui é que Dumont estabeleceu previamente critérios de validade para a realidade observada dados por seu modelo. Assim procedendo, ele traz à tona, de tudo o que viu, apenas o que corrobora sua teoria, ou seja, o que de mais contrastante em relação ao ocidente ele percebia. “Dumont's relative lack of interest in on-going change is an aspect of the same problem. (…) And he has stated it explicitly, in more than one place, that he considers the continuities in social life in India more significant than the changes. It is obvious that such judgements about the empirical reality are derived from other judgements made at level of 'first principles', which actually go beyond, and indeed confront, the principles that the people being studied themselves enunciate.” (Idem: 57)

11

Basicamente todos os pontos da interpretação de Dumont sobre a Índia e o sistema de castas ali existente foram contestados por estudiosos indianos. As controvérsias, com réplicas e tréplicas de ambos os lados, foram publicadas em periódicos e anais de eventos ao longo de mais de duas décadas. Destaco aqui os artigos publicados na revista Contributions to Indian Sociology, inicialmente editada por Dumont e seu colega inglês David Pocock e que tem, anos mais tarde, sua edição assumida, mediante negociações, por T. N. Madan e outros colegas. Esse movimento de dissenso entre Dumont e os cientistas sociais indianos se inseriu num processo mais amplo que recebeu o nome de “indigenization of anthropology in India”, e que, de modo suscinto, tratou-se da formação de um campo acadêmico que tratasse as questões relativas à compreensão social da Índia – com seus processos históricos, suas variações regionais e de classe – que não reproduzisse um corpo de ideias européias, mas buscasse a partir de dentro um caminho para a construção desse conhecimento. De todo o exposto, espero ter demonstrado que as críticas dirigidas a Dumont resultaram não apenas na desconstrução de uma interpretação vertical e assimétrica da Índia, mas na construção de uma outra antropologia, preocupada com a mudança social, com a escuta dos sujeitos da pesquisa e com a quebra da barreira pesquisador/objeto. É nesse contexto que insiro aqui o pensamento de outros autores indianos comprometidos com a construção de formas de conhecimento alternativos àqueles construídos no mundo ocidental. Falo dos expoentes dos subaltern studies, também preocupados com as questões acima enumeradas. Oriundos do campo dos estudos históricos, “os filhos da meia-noite” 5 deram sua contribuição para a formação de um modo de construir conhecimento “from bellow” em oposição ao modo dumontiano (leia-se ocidental de um modo mais amplo) “from above” (Lotter, 2004). 6 Eles estão também imersos no processo de

5 Esse grupo é chamado de “filhos da meia-noite” em referência ao fato de terem nascido, quase todos os seus integrantes, em 1947, ano da independência da Índia do domínio britânico. 6 “The 'from below' perspective although primarily concerned with subaltern resistance, does not exclude the writing of histories of so called 'great men' as Shahid Amin (1988) demonstrated. In South Asia 'subaltern studies' contrast with an earlier generation of researchers such as Louis

12

“indigenization” das ciências sociais no sudeste asiático e são a parcela mais conhecida dele, uma vez que, ao menos no Brasil, muito lemos de Dumont, mas, infelizmente, quase nada dos autores indianos que o confrontaram, a não ser, em cursos muito raros, um ou outro dos subalternos. Partha Chatterjee é um dos pensadores que se dedicou a escrever a história da Índia da perspectiva subalterna. Ao responder Dumont no que diz respeito ao sistema de castas, ele se afasta não apenas dos antropológos europeus, mas também daqueles de seu país que escolheram mimetizar a antropologia hegemônica dos países centrais: “(...) his [Dumont] object, he says, is to 'understand ' the caste system, not to criticize it. Speaking – necessarily – from within the system of castes, I cannot, unfortunately, afford this anthropologist's luxury, notwithstanding the fact that many Indian anthropologists, in the mistaken belief that this is the only proper scientific attitude to culture, have presumed to share the same observational position with their European teachers.” (Chatterjee, 1993: 178) Sua postura é então, analisar, e criticar, o sistema de castas como alguém subsumido nele7, expondo o que Dumont encobriu ao representar as relações de poder (econômico e político) como tendo um papel apenas “residual” na hierarquia de castas. “Whereas dumont treats the series of oppositions – life in the world/life of the renouncer, group religion/disciplines of salvation, caste/individual – as having been unified within the 'whole' of Hinduism by integration at the level of doctrinal Brahmanism and by toleration at the level of the sects, I will offer a different interpretation that treats these oppositions as fundamentally unresolved – unified, if at all, not at the level of the self-consciousness of 'the Hindu' but only within the historical contingencies of the social relations of power.” (Idem: 181) Dentre as relações de poder, o autor insere aquelas que dizem respeito ao colonialismo econômico e também do conhecimento. Quem conta a história? A quem pertence a modernidade? Esta seria algo universal? É tentando responder a questões como essa que Chatterjee resume o objetivo de outra de suas obras: “Meu argumento é que, por causa da forma pela qual a história de nossa modernidade foi entrelaçada à história do colonialismo, nós nunca pudemos Dumont (1966) who associated with elites thereby helping to construct the writing of South Asian history 'from above'. The later studies have been largely based on privileged access granted by local elites to western middle class researchers.” (Lotter, 2004) 7 Subsumido, embora em uma posição privilegiada, pois Chatterjee é um brâmane.

13

acreditar que houvesse um domínio universal da livre expressão, desvinculado de distinções de raça ou nacionalidade. De alguma forma, desde o mais remoto princípio, tivemos uma intuição perspicaz que, dada a cumplicidade próxima de conhecimentos modernos e regimes de poder modernos, permaneceríamos sempre consumidores da modernidade universal; nunca seríamos levados a sério como seus produtores. É por esse motivo que viemos tentando, por mais de cem anos, voltar nossos olhos para longe dessa quimera da modernidade universal e liberar um espaço em que pudéssemos nos tornar os criadores de nossa própria modernidade.” (Chatterjee, 2004: 57-58) Como que exasperando-se para dar conta de uma infinidade de temas silenciados, ou contados da perspectiva do colonizador, Chatterjee se dedica a estudos de política, história e antropologia, e se propõe a investigar o colonialismo e o pós-colonialismo, o nacionalismo indiano, a modernidade dos povos não-europeus, a democracia nos países descolonizados etc. Um de seus companheiros subalternos, Dipesh Chakrabarty, de igual modo, tenta desvendar os meandros da modernidade e sua intrínseca relação com o colonialismo. Seu intento é quebrar o silêncio estabelecido nos países centrais sobre as diferentes faces do colonialismo e da modernidade, o que ele chama de asymmetric ignorance e que pode ser entendido como o desconhecimento, intencional ou não, das histórias não-ocidentais por parte do ocidente, em detrimento do vasto conhecimento acumulado no mundo não-ocidental sobre a história do ocidente. (Chakrabarty, 1992)8 Um de seus mais recentes intentos nesse sentido é o que ele chamou de provincializing Europe e que tem por consequência de-provincializing non-Europe. Ali, Chakrabarty enfrenta teoricamente o problema da modernidade política em lugares não-europeus e desconstrói a narrativa mítica realizada pela Europa ao se colocar como o berço e fonte dessa modernidade, ao mesmo tempo, colocando países e culturas não-ocidentais no lugar do atraso e ignorância, o que, concomitantemente, foi utilizado como argumento para a continuidade da dominação e exploração

8 “(...) insofar as the academic discourse of history – that is, 'history' as discourse produced at the institutional site of the university – is concerned, 'Europe' remains the sovereign thoeretical subject of all histories, including the ones we call 'Indian', 'Chinese', 'Kenyan', and so on. There is a peculiar way in which all these other histories tend to become variations on a master narrative that could be called 'the history of Europe'. In this sense, Indian 'history' itself is in a position of subalternity; one can only articulate subaltern subject positions in the name of this history.” (Chakrabarty, 1992: 1)

14

colonial, o discurso civilizacional. Na prática, o mito chamado Europa, contado como a história colonial e pós-colonial desse continente, significou o estabelecimento (ou antes, imposição) das ideias e conceitos políticos, sociais e jurídicos europeus em contextos não-europeus. As ideias expressas pelos subalternos aproximam-se, notadamente, de outros movimentos pós-coloniais no campo das humanidades espalhados pelo globo. Conceitos como orientalismo (Said), decolonialidad del poder (Mignolo; Quijano; Escobar), dependência acadêmica (Alatas) são igualmente passos na direção da construção de outras antropologias e de uma nova epistemologia, em que múltiplos saberes locais são incorporados e inspiram os autores em suas buscas e em suas formas de desconstrução da hegemonia dos países centrais. Assim como podemos notar aproximações, distanciamentos são encontrados, uma vez que cada um desses movimentos surge de um lugar de fala – histórica, geográfica e politicamente diferenciado –, tendo em comum, contudo, o fato de refletirem sobre as condições de construção e legitimação de conhecimentos contrahegemônicos a partir das “margens”. Como o próprio Chakrabarty lembra: “But, of course, the margins are as plural and diverse as the centers. Europe appears different when seen from within the experiences of colonization or inferiorization in specific parts of the world. Postcolonial scholars, speaking from their different geographies of colonialism, have spoken of different Europes. The recent critical scholarship from Latin America or Afro-caribbean and other points to the imperialism of Spain and Portugal – triumphant at the time of Renaissance and in decline as political powers by the end of the Enlightenment. The question of post-colonialism itself is given multiple and contested locations in the works of those studying Southeast Asia, East Asia, Africa and the Pacific. Yet, however multiple the loci of Europe and however varied colonialisms are, the problem of getting beyond Eurocentric histories remains a shared problem across geographical boundaries. (Chakrabarty, 2000: 16-17) Assim, chego ao meu último intento: pensar as potencialidades do diálogo horizontal entre todas essas escolas de pensamento com suas diferentes contribuições, experiências e inovações para a consolidação de uma nova geopolítica da construção do conhecimento. Penso que os diálogos no eixo sul-sul sejam uma nova oportunidade para avançar no rompimento das fronteiras dicotômicas ocidente/oriente, razão/representação e sujeito/objeto.

15

Aproximações Índia/Brasil e o diálogo sul-sul A academia indiana se desenvolveu incorporando a produção teórica que chegava dos países ditos centrais e, ao mesmo tempo, respondendo a ela para refletir sobre a realidade indiana, acabando por criar um pensamento próprio e um modo autêntico de pensar-se a si mesmo, que não se reduz a uma única corrente das ciências sociais, de modo bastante semelhante ao campo brasileiro, que se move na tensão entre a produção dos centros hegemônicos e a produção local, como mostram Ribeiro (2005; 2006), Cardoso de Oliveira (2003), Ramos (2005) e Peirano (1999).9 Além disso, outra proximidade entre as antropologias brasileira e indiana pode ser vislumbrada através do que Peirano (1991) chamou de “uma antropologia no plural”, designando por isso a fusão do horizonte universalista, próprio das ciências sociais, aos estilos locais de se fazer antropologia, o que no caso desses dois campos intelectuais inclui um modo de fazer antropologia em que a alteridade próxima é tão frequente quanto a alteridade radical (Peirano, 1999). Na visão dessa autora, a antropologia at home (Peirano, 1998) traz em seu exercício mudanças teóricas e políticas ao afastar-se do exotismo da antropologia clássica, proporcionado pela distância geográfica e cultural presente nas obras daqueles que saíam de seus países para estudar lugares longínquos. Nesse estilo de fazer antropologia (at home) apareceria a figura do pesquisadorcidadão, o que, a meu ver, conforma uma mudança epistemológica, uma vez que o pesquisador passa a se ver muito mais próximo, senão do mesmo lado, dos sujeitos da pesquisa, caminhando assim na direção do rompimento da fronteira nós versus eles. De modo semelhante reflete Das (1995) sobre o fazer antropológico na Índia. Antropólogos/ sociólogos naquele país tiveram que percorrer um longo caminho para conseguir um lugar de enunciação que não fosse o do nativo/informante falando ao antropólogo europeu. Para se desvencilhar completamente do Outro exótico, o cientista social indiano, ou brasileiro ou qualquer outro não-europeu, deve se voltar para as “teorias do Self”, uma vez que a relação estabelecida nas 9 Para uma abordagem comparativa sobre a formação da antropologia no Brasil e na Índia, ver Peirano (1991).

16

“teorias do Outro” (relação nós versus eles) é bastante problemática, como ela afirma: “While the Eurocentric nature of anthropology, as of several other social sciences, has long been recognized, what is unique about anthropology as a discipline is its use of the 'Other' to overcome the limits of its origin and location. If the traditional anthropological vocation may be described as that of 'cultural criticism' (Clifford 1990), its method of arriving at this position through a study of other cultures has been a scaffold for the construction of anthropological knowledge. This is where we meet our first obstacle, for that which is constituted as the Other of the anthropologist is the Self of the society under anthropological gaze. One must ask, then, what this process of making a society available to anthropological gaze does to its Self? Does the consecration of ethnographic authority completely appropriate the voice of the person being studied? As Fabian (1990) puts the question: how does the praxis of writing relate to the praxis of being written about?” (Das, 1995: 24) Essa questão aparece de modo central nesse texto da autora, e ela está ciente de que o fato de ser um “nativo” estudando sua própria “cultura” não é garantia de um resultado diferente do pesquisador ocidental em terreno não-ocidental, mas deve ser algo problematizado para que se consiga chegar a um passo além das “teorias do Outro”. “I should not be understood as saying that there is some kind of ‘given’ or ‘neat’ experience of their own societies available to non-Western anthropologists. I do believe, however, that a frank engagement with the problem is necessary if the inventories of our subject are to include modes of knowing that are different from those within classic models of studying ‘other’ societies.” (Das, 1995: 25) Finalmente, gostaria de argumentar que essas maneiras de fazer antropologia10 possibilitam um encontro que já não necessita ser mediado pelos centros hegemônicos, mas, ao invés disso, permitem um diálogo direto e horizontal entre produções locais, que no encontro já não são apenas locais, mas também globais. Falo aqui de uma outra globalização, chamada por alguns teóricos de “sul globalizado” em alusão à disposição geográfica dos países envolvidos. Até aqui tivemos os seguintes passos na direção da construção de “outra antropologia”: 1) a confrontação dos modelos hegemônicos ocidentais que não reconhecem os saberes e a história dos povos estudados – a não ser como ilustração de suas interpretações e tipos ideais11 – e 2) a

10

Brasil e Índia aparecem aqui por serem os exemplos que conheço mais de perto. Estou ciente, contudo, da existência de antropologias outras em toda a América Latina, e de que elas apresentam as mesmas características gerais que descrevi aqui, como aponta Krotz (2005). 11 Como afirma Das: “The Trobriands exemplified a

17

conformação de antropologias que buscam contemplar teorias do Self e da alteridade próxima – com a consequente diminuição da separação nós versus eles. Desejo falar agora do diálogo direto entre essas diferentes produções locais fundindo-se num horizonte global. As colaborações intelectuais que surgem da orientação sul-sul, apresentam uma possibilidade de instaurar novos processos de construção do conhecimento, alternativos à produção irradiada a partir dos centros hegemônicos econômica, política e cientificamente. Tratam-se de formas emergentes de conhecimento que vão além, a meu ver, dos Subaltern Studies e daqueles estudos nomeados como Decolonialidad del Poder. Conquanto essas duas escolas estejam, política e epistemologicamente, cada uma a seu modo, comprometidas com a descolonização do saber, ambas não mudam a orientação dos diálogos de forma tão abrangente quanto os novos intercâmbios de pesquisa que têm sido realizados ao sul nos continentes americano, africano e asiático.12 Chamo esse diálogo de colaborações, pois além do conhecimento e reconhecimento recíproco dessas produções locais, outro movimento começa a se fortalecer: acadêmicos dos diferentes países no sul vão em busca de experiências de campo em outros locais ao sul. Para além daquilo que Souza Santos (2009) chama de “epistemologias do sul” e os Comaroff (2011) nominam como “theory from the South”, o movimento a que me refiro no presente trabalho é mais próximo do que Ribeiro (2006; 2009) nomeou como “antropologias mundiais”.13 14O que se advoga com

society that did not acknowledge, or was ignorant of, paternity; the Hindus exemplified hierarchy; the Nuer exemplified the principles of segmentary opposition in feud; the Azande showed the ‘rationality’ of the so-called irrational practices, such as witchcraft.” (Das, 1995: 3) 12 Pode-se considerar, ademais, o eixo sul-sul como uma nova ferramenta nas ciências sociais, como argumenta Rosa (s/d), a qual se assemelha, mas ao mesmo tempo difere, dos já citados subalternos e decolonialistas: “A este conjunto de debates, cujas principais linhas já estão razoável traçadas - a ponto de serem reconhecidos nas disputas internas das ciências sociais - se soma agora uma nova alternativa, organizada em torno do rótulo teorias do sul. Mesmo considerando esse novo movimento teórico parte constituinte do grande conjunto acima mencionado, precisamos reconhecer que há aqui a introdução de uma nova ferramenta (poderíamos pensar também em lente) que ainda não havia sido trazida para o centro da disputa geopolítica de nossas disciplinas: o sul.” (Rosa, s/d) 13 Nas palavras do autor: “Algunas de las transformaciones más importantes de la disciplina en el siglo XX se debieron a los cambios em la posición del sujeto de su 'objeto de estudio' por excelencia – es decir, los grupos nativos alrededor del mundo –. Después de vários ciclos de críticas em la disciplina durante las últimas décadas estamos convencidos de que el presente puede ser otro momento de reinventación de la antropología, esta vez más asociado com cambios en las relaciones entre antropólogos ubicados em diferentes partes del sistema-mundo. Un mundo más pequeño ha significado un incremento en el intercambio internacional del conocimiento. En consecuencia, estamos interesados en la posibilidad de establecer nuevas condiciones y nuevos

18

essa proposta é questionar a ideia de uma antropologia única e/ou universal15: “Consideramos que habrá grandes alcances al exponer la disciplina a nuevas posibilidades de diálogo y de intercambio entre las antropologías del mundo. Sin embargo, el alcance de tales logros requiere que sucedan cambios epistemológicos y significativos em las prácticas actuales. Debería quedar claro desde el principio que cualquier movimiento inclusivo y participativo que procure incrementar la diversidad está destinado a perturbar a quienes se han beneficiado de su ausencia.” (Ribeiro e Escobar, 2009: 26) Como uma antropóloga brasileira realizando trabalho de campo etnográfico em territórios indianos sinto-me desafiada a tentar aprender com os autores dos movimentos predecessores citados aqui e não repetir os erros do exotismo, da imposição de categorias universalistas, da recorrência à retórica da alteridade, da separação e subordinação dos valores do “outro” em favor dos “nossos”. Atento, ainda, para singularidades do diálogo específico no eixo sul-sul. Uma das características que trabalhos assim permitem está fundada na relação estabelecida em campo. A receptividade, por exemplo, não só dos colegas em centros de pesquisa, mas dos interlocutores no campo é de um tipo muito diferente daquele em que o pesquisador é um europeu ou um norteamericano. Como reflete Costa Pinheiro, pesquisador brasileiro há dez anos envolvido em pesquisas sobre a colonização portuguesa no Brasil e em Goa: “My Brazilian identity, for example, was something surprisingly helpful for my journeys, both as an academic and a tourist through the country. If, on one hand, I faced the same difficulty as my Indian friends while working at every single document-holding institution, on the other, I felt that coming from such a distant place really got me an extra dose of sympathy from librarians and archivists – my sincere acknowledgments to all of them. 'Where did you say you' re coming from, boy?' was certainly the sentence I have heard the most – and, together with the Indian receptiveness, really opened doors and minds to dialogues. This is something that made me reconsider Gananath Obeyesekere's assertion that intellectuals from South contexts should claim a mutual (postcolonised) identity as a way of reflecting about common scripts of dependency and exploitation. (Costa Pinheiro, 2007: 26) términos de conversación entre los antropólogos em un plano global. (…) Como tal, es parte de una labor más amplia de esfuerzo que llamamos las 'antropologías del mundo'.” (Ribeiro, 2009: 25) 14 Para mais informações e uma visão crítica dos livros de Souza Santos e dos Comaroff, ver Rosa (s/d), que inclui ainda Connel (2007) em sua revisão da literatura sobre o pensamento social do sul. 15 É preciso fazer notar também que Peirano (1991) já chama a atenção para a dificuldade em se pensar a antropologia como única ou universal quando cunha o termo “uma antropologia no plural”. A autora nos faz observar que a antropologia é sempre mais de uma, apresentando cores e nuances locais em cada um dos lugares onde se desenvolveu fora do eixo euro-americano.

19

Ao mesmo tempo, reações opostas eram observadas quando o pesquisador era tomado por alguém vindo de Portugal, como se depreende do trecho seguinte: “Again during my first trip to the country, while looking for some sources on Portuguese colonial strategies in sixteenth to eighteenth century India, I came across some vivid reactions of Indian intellectuals. It was curious to watch a fervent reply of a lady complaining about the bloodiness characteristic of Portuguese colonisers killing nearly every single Indian they came in contact with especially at the Bengal region. This reaction only attenuated when she found out that I wasn't Portuguese myself: 'Then as a Brazilian you must know what I'm talking about. The Portuguese certainly did the same bloody job in South America'.” (Idem: 27) A distinta relação que se estabelece em campo nos estudos de orientação sul-sul pode ser encontrada na prática de pesquisa exposta por Borges (2009) quando se refere a seu trabalho no Brasil e na África do Sul utilizando o que ela chama de etnografia popular. “A definição de etnografia popular apresentada neste texto busca esclarecer um tipo de relação de pesquisa em que o antropólogo é apenas um a mais dentre as pessoas que dedicam boa parte de seus cotidianos a fazer perguntas, formular hipóteses, testar alternativas e a inventar teorias a respeito de suas vidas e da vida dos Outros.” (Borges, 2009: 23) Fazem parte desta noção as ideias de que essa é uma “atuação etnográfica que busca fazer pesquisas junto/com as pessoas que nos recebem em campo, as quais compartilham conosco seu cotidiano de investigação constante” e de que é preciso fazer algo que raramente tem sido feito, isto é, tomar “os interlocutores de campo como companheiros intelectuais” para produzir de modo equânime a teoria etnográfica, esta composta pelas teorias do pesquisador, da disciplina e do interlocutor. Observa-se que o papel destinado por ela às “teorias nativas” não é aquele que Turner (2005) chamou de “exegese nativa”, por exemplo, e que ocuparia um lugar menor na teoria antropológica, sendo a interpretação mais relevante a do antropólogo treinado para desvelar as estruturas invisíveis a outros olhos. “No caso dos estudos a que me dedico, não tenho 'conhecido mais' do que as pessoas com quem faço pesquisa. Tenho meramente deixado de saber tão pouco. Tenho aprendido o quão compensador é evitar as fórmulas canônicas da 'suspeita'. Aquelas que preenchem as lacunas de nossa ignorância com cadeias explicativas que estão 'para além' ou 'por trás' do que nos apresentam os 'nativos', 20

mas que nós [antropólogos] conseguimos (onipotentemente) enxergar.” (Borges, 2009, 39) Depreende-se do trabalho da autora a colaboração entre pesquisadores brasileiros, sulafricanos e pessoas que vivem nos lugares estudados, tanto no Brasil quanto na África do Sul, o que, insisto, deve ser uma das características a orientar a colaboração sul-sul: a horizontalidade no modo de fazer pesquisa. Chamo a atenção também para a diferença entre a produção dos países do eixo sul-sul e aquelas oriundas dos países centrais mesmo por parte de pesquisadores que buscaram superar a separação nós versus eles (no que ficou conhecido como a crise da representação na antropologia) como Latour, Strathern e Descola, dentre outros. Ainda que a contribuição desses autores possa ser bastante importante, continuam a falar, em suas respectivas obras, do que chamam de “continentes etnográficos” para designar os locais em que fazem suas pesquisas, afirmando assim, uma continuidade com o modelo eurocêntrico do pesquisador que sai dos países hegemônicos para o distante lugar do Outro a ser pesquisado. Minha própria experiência de campo e de convívio com intelectuais indianos em seu país, bem como a recepção de alguns deles no Brasil para suas próprias pesquisas, mostram o quanto a produção de ambos os países (calcadas nos passos dados em direção à outra antropologia, enumerados acima) facilita o diálogo e a interação que está criando uma nova geopolítica do conhecimento, graças ao fato de podermos nos entender intelectualmente sem termos de nos voltar sempre e sempre para a produção dos países ditos centrais, o que irá ocorrer quanto mais rápido aprofundarmos reciprocamente o conhecimento das produções dos países envolvidos na globalização do sul. Exemplos de pesquisas e intercâmbios nesse sentido podem ser vislumbrados na revista eletrônica SEPHIS, a qual traz em suas páginas experiências e resultados desse movimento que leva em conta a reinvenção da antropologia no sentido apontado por Ribeiro (2009). O esforço percorrido aqui foi também o de registrar meu processo de aprendizado sobre o desenvolvimento de uma antropologia/sociologia não hegemônica, caso da Índia, seguindo uma 21

inspiração legada por Ribeiro (2005) quando este fala de “antropologias sem história” para referirse às diversas tradições acadêmicas que surgiram e se desenvolveram em diferentes lugares do globo sem constar da história da antropologia (que não podem ser lidas nos manuais de George Stocking Jr., por exemplo) e sobre as quais devemos aprender para aumentar o escopo das contribuições para uma nova antropologia.

22

Bibliografia: BÉTEILLE, A. (1983) The Idea of Natural Inequality and other Essays. New Delhi: Oxford Universtity Press. ____________. (1986) Individualism and Equality [and comments and replies]. Currently Anthropology, Vol. 27, n. 2, April 1986, pp. 121-134. BORGES, A. (2009) Explorando a noção de etnografia popular: comparações e transformações a partir dos casos das cidades-satélites brasileiras e das townships sul-africanas. Cuadernos de Antropología Social, n. 29, pp. 23-42. BOSE, Pradip Kumar. (2007) The Anthropologist as 'Scientist'? Nirmal Kumar Bose. In: Patricia Uberoi, Nandini Sundar, Satish Deshpande (Eds.). Anthropology in the East: founders of Indian Sociology and Anthropology. New Delhi: Permanent Black. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. (2003) O Que é Isso que Chamamos de Antropologia Brasileira? In: Sobre o Pensamento Antropológico. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda. CHAKRABARTY, D. (2000) Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton: Princeton University Press. CHATTERJEE, Partha. (1993) The Nation and Its Fragments – Colonial and Postcolonial Histories. Princeton: Princeton University Press. COMAROFF, J. e COMAROFF, J. (2011) Theory from the South. Or how Euro-America is evolving toward Africa. London: Paradigm Publishers. ___________________. (2004) Colonialismo, Modernidade e Política. Salvador: EDUFBA. CONNELL, Raewyn. (2007) Southern theory: the global dynamics of knowledge in social science. Cambridge: Polity. COSTA PINHEIRO, Cláudio. (2007) Soy loco por tí, India! Reflections, Expressions and Experiences of a Brazilian Living and Researching in India. SEPHIS e-magazine, Vol. 4, n. 1, September, 2007. DAS, Veena. (1995) Critical Events: an anthropological perspective on contemporary India. New Delhi: Oxford University Press. DUMONT, Louis. (1997) Homo Hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações. São Paulo: Edusp. JAISWAL, Suvira. (2008) Caste, Gender and Ideology in the Making of India. Social Scientist, Vol. 23

36, n. 1-2, January-February 2008. LOTTER, Stefanie. (2004) Studying-up those who fell down: elite transformation in Nepal. Anthropology Matters Journal, Vol. 6, n. 2. MADAN, T. N. (1994) Pathways: approaches to the study of society in India. New Delhi: Oxford University Press. PEIRANO, M. G. S. (1991) Uma Antropologia no Plural – Três Experiências Contemporâneas. Brasília: Editora Universidade de Brasília. _________________. (1998) When Anthropology is at Home: The Different Contexts of a Single Discipline. Annual Review of Anthropology, Vol. 27 (1998), pp. 105-128. _________________. (1999) Antropologia no Brasil (Alteridade Contextualizada). In: Sérgio Miceli. (Org.). O Que Ler na Ciência Social Brasileira (1970-1995). São Paulo: Editora Sumaré, v. 1, p. 226-266. RAMOS, A. R. (2005) Sonho de uma tarde de inverno. A utopia de uma antropologia cosmopolita. Journal of the World Anthropology Network, n. 1, pp. 75-80. Disponível em: http://www.ramwan.org/e-journal RIBEIRO, G. L. (2005) A antropologia brasileira entre políticas neoliberais e a globalização. In: Carlos Benedito Martins. (Org.) Para Onde Vai a Pós-Graduação em Ciências Sociais no Brasil. Bauru/São Paulo: EDUSC/ANPOCS. _____________. (2006) Antropologias Mundiais: Para um novo cenário global na antropologia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 21, p. 147-165. RIBEIRO, G. L. e ESCOBAR, Arturo. (2009) Antropologías del mundo: transformaciones disciplinarias dentro de sistemas de poder. In: Antropologías del Mundo. México, DF: Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social. ROSA, Marcelo C. (s/d) Teorias do Sul. (A ser publicado na Current Sociology, no prelo). TURNER, Victor. (2005) Floresta de Símbolos, aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdUFF.

24

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.