Lourenço de Castro: a alma de um português perdido na África

July 15, 2017 | Autor: Gutemberg Lima | Categoria: African Literature, Colonialism, Portuguese Literature, Mia Couto
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Lourenço de Castro: a alma de um português perdido na África
Gutemberg de Queirós Lima

"O torturador necessita da vítima para criar verdade nesse jogo a duas mãos que é a fabricação do medo" (Vinte e Zinco, p. 15).

A epígrafe acima que inicia o capítulo 19 de Abril em Vinte e Zinco, segundo Gabriela Pinheiro, está vinculada ao personagem da obra, o português Lourenço de Castro. O personagem é o protagonista do romance, que transcorre em uma vila moçambicana. Agente da PIDE, assim como o pai, Joaquim de Castro, Lourenço é um personagem com certo grau de complexidade criado por Mia Couto, que apenas pela sua concepção, se torna uma figura incomum, pois como salienta Flavia Paiani, se trata de um protagonista português elegido por um escritor moçambicano. Lourenço é uma personalidade que está em volto do jogo de torturador-torturado, que acaba por predominar na obra.
A princípio, um acontecimento deve ser avaliado para se compreender os traços psicológicos da personagem. No caso, a morte de seu pai, Joaquim.
Joaquim levava os negros de helicóptero, de mãos amarradas e quando atingiam determinada altura, os empurrava com um pontapé para o oceano. Em um dia sob o olhar de Lourenço, Joaquim foi arremessado junto, em função de uma cilada preparada pelos prisioneiros negros. (PINHEIRO, 2009)
Esse fato demarca a entrada de Lourenço a PIDE quando mais velho, em vingança e memória do pai. Aqui há então, outro ponto a salientar da personalidade da personagem. O enaltecimento da memória de Joaquim pelo filho, que se observa na ânsia de Lourenço em deixar o canto do pai intacto na mesa de jantar, como se este pudesse chegar a qualquer momento.
Outro importante aspecto de Lourenço era a paixão que sentia por Irene, sua tia. A portuguesa, irmã de Dona Margarida, representa algumas inferências, de acordo com Gabriela Pinheiro, por sua assimilação a cultura moçambicana. Irene se envolvia com o mulato Marcelino, que fora apanhado pela PIDE.
O próprio Lourenço o torturara, por desconfianças e pela afeição dele por sua tia. Irene dava inadmissíveis licenças ao mulato Marcelino. O sobrinho se atiçava de rancores. (COUTO, 1999: 77). Dessa forma, segundo Paiani, surge então um triangulo amoroso na história, entre Irene, Marcelino e Lourenço.
Entretanto, a característica mais marcante de Lourenço de Castro é o embate de personalidade que o mesmo perpassa. Para Pinheiro (2009, p. 37) "a personagem Lourenço vive um conflito de personalidade, quando durante o dia, diante de todos assume um papel autoritário e violento, mas, à noite, junto à mãe Margarida, demonstra temor e perturbação.".
Segundo Denise Marcon, o também chamado Transtorno Dissociativo de Personalidade, é um estado no qual um individuo apresenta aspectos de duas ou mais personalidades, e que cada uma dessas personalidades possuem diferentes formas de interação com o meio. Vê-se então que Lourenço age exatamente dessa forma, pois é um ator com ações discordantes. Em seu trabalho, se caracteriza como agressivo, violento. Mas á noite adota um caráter infantil. Essa infantilidade é evidenciada na forma como sua mãe, Margarida, o trata. O uso de termos no diminutivo como "cavalinho" e "almofadinha", comprova isso.
Junto a essa "criança interior", Lourenço compartilha com a mãe o medo quanto as práticas religiosas dos moçambicanos. A aflição de Margarida pelo excesso de salivação quando o filho dorme, e a alteração do umbigo de Lourenço são provas desse temor.
Na obra, Lourenço sobre um grande abalo psicológico, quando o cedo Andaré Tchuvisco, um dos personagens do romance, o revela que seu Joaquim abusava sexualmente seus negros. Lourenço tem suas "crenças" abatidas daí em diante, e os sentimentos de angústia e melancolia o tomam, e isso torna-se crucial para os próximos passos dados pela personagem.
Logo após esse momento, mais um aspecto interessante é demonstrado nos capítulos finais, em que Lourenço, após 25 de abril e a queda do regime, se vê sem caminhos. Já não possui vínculos com a África e com Portugal. Em termos, Lourenço de Castro se encontra desterritorializado.
Por fim, Lourenço tem uma morte um tanto mal explicada. O cego Tchuvisco, o encontra morto na prisão, com os negros agora libertos. E ao perguntar sobre o autor de tal ato, tem como resposta que cada qual matou o da sua raça. Para Kalewska (2008, p. 219) a morte de Lourenço obceca até mesmo o narrador, mas o acontecimento não obteve um efeito de catarse, purificação.
Em suma, Lourenço de Castro é um personagem que se desenvolve em meio a conturbações. A morte do pai e a exaltação pelo mesmo, a paixão incestuosa pela tia, a dupla personalidade, marcada por agressividade e insegurança, e o seu trágico fim, fazem de Lourenço uma figura marcante e complexa. Provavelmente propício para um estudo mais aprofundado.




REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
COUTO, Mia. Vinte e Zinco. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1999.
KALEWSKA, Anna. Quem matou o branco em Vinte e Zinco de Mia Couto? O ser ou não ser de duas culturas num drama (quase) sem catarse. Instituto de Estudos Ibéricos E Ibero-Americanos da Universidade de Varsóvia (IEI e Ib UV), Polónia, 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014.
MARCON, Denise. Dupla personalidade - Sintomas. 2012. Disponível em: . Acesso em: 13 abr. 2014.
PAIANI, Flavia Renata Machado. Mia Couto e a reescrita da história: o 25 de Abril em Vinte e Zinco. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, São Paulo, v. 2, n. 4, p.96-107, out. 2010. Semestral
PINHEIRO, Gabriela Ferreira. Vinte e Zinco, de Mia Couto: reconstruindo a identidade moçambicana. 2009. 57 f. TCC (Graduação) - Curso de Letras, Departamento de Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2009.
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Trabalho requerido mediante conclusão da disciplina Literatura em Língua Portuguesa I, lecionada pela doscente Dra. Izabel Cristina dos Santos Teixeira. 2013.3 (2014).
Bacharelando em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), Ceará, Brasil.

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