Louvor e crise da transitoriedade: sobre \'A Montanha Mágica\' de Thomas Mann

August 14, 2017 | Autor: Felipe Catalani | Categoria: Thomas Mann, Realism, Teoría Literaria, Bildungsroman
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Louvor e crise da transitoriedade Sobre A montanha mágica de Thomas Mann Felipe Catalani Hoje, tais reflexões [sobre o progresso] culminam na consideração sobre se a humanidade será capaz de evitar a catástrofe. Progresso, Theodor Adorno

com o perdão da Crítica imanente, que, com justiça, exige que se parta do objeto analisado, gostaria de analisar alguns aspectos do romance A montanha mágica, de Mann, começando com um comentário sobre (mais precisamente, uma citação de) um outro texto seu – a saber, um ensaio de 1952 intitulado Louvor à transitoriedade. A razão disto logo veremos. Thomas Mann inicia seu ensaio declarando que o que ele considera mais importante é a transitoriedade, pois: ela é a alma do ser, é aquilo que proporciona a toda vida, valor, dignidade e interesse, pois ela cria o tempo – e tempo é, pelo menos potencialmente, a dádiva mais alta e a mais útil, aparentada em sua essência com, idêntica mesmo a todo criativo e ativo, a toda vivacidade, a todo querer e aspiração, a todo aperfeiçoamento, a todo progresso para o mais sublime e o melhor. Onde não há transitoriedade, princípio e fim, nascimento e morte, não há

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tempo, - e a falta de tempo é o nada estagnado, tão bom e tão ruim como o desinteressante absoluto.

À primeira vista poder-se-ia dizer que isso são observações de um heracliteano extemporâneo com pitadas positivistas de ideologia do progresso. Mas esta reflexão sobre o tempo ilumina o (e é também iluminada pelo) romance em questão, que, mais de vinte anos antes da elaboração deste ensaio, refletia sobre uma transitoriedade agonizante, um tempo em suspenso. Uma questão significativa para nós seria: que tempo é este? Nosso herói prosaico e ordinário, Hans Castorp, herdeiro e aspirante ao trabalho de engenheiro naval, pretende fazer uma visita a seu primo Joachim Ziemssen no sanatório de doenças pulmonares de Davos-Platz nos Alpes suíços. A visita, que segundo seu planejamento duraria três semanas, acaba se estendendo por sete anos. A recomendação de que Castorp não retorne para “as planícies lá em baixo” e permaneça “lá em cima” parte do médico-diretor, que, nunca tendo conhecido alguém saudável na vida, possui um incrível afã internador, fazendo lembrar as descrições foucaultianas das grandes internações do hôpital général de Paris, que no século xviii chegou a “abrigar” um por cento da população parisiense, entre leprosos, loucos, criminosos e vagabundos. A diferença entre o hôpital général parisiense e o nosso sanatório em Davos-Platz é que, se em um era internado basicamente o lumpesinato urbano de Paris, excluídos da dinâmica (e, por conseguinte, do tempo) social do trabalho, da civilidade, e da saúde mental e física, no outro é a aristocracia e a alta burguesia europeia, um pouco decadentes, que estão internados, doentes, e reclusos da transitoriedade de “lá de baixo”. Ali em cima, o espírito europeu se torna paciente, e a aristocracia convalescente assume ares românticos, principalmente se levarmos em conta a simbologia da tuberculose na tradição do romantismo.¹ De todo modo, o tempo-espaço da montanha aparece como totalmente alienado do tempo-espaço da planície. Tanto o leitor como a personagem principal possuem uma experiência do tempo que se transforma ao longo do romance, ao longo da aclimatação na montanha mágica. O narrador, em seu “propósito”, já convida o leitor ao tempo demorado da narração porvir, que é também, objetivamente, a demora da leitura de um romance 68 

de setecentas e cinquenta páginas. Se, no início do livro, a narração toma uma boa centena de páginas para o primeiro dia de Castorp, o tempo narrativo se dilui na repetição, no hábito, na mesmice que é o ambiente do romance, de forma que o tempo passa a voar – tão rápido como se não passasse – de modo a criar formalmente uma distinção entre o tempo narrado [erzählte Zeit] e o tempo dedicado à narrativa, ou o tempo-de-narrar [Erzählzeit].² E assim se passam os meses, as estações, os anos. Esta suspensão do tempo é sentida como a descrição de hábitos que o nosso herói passa a adotar: Quando voltaram ao quarto de Hans Castorp, depois do almoço, já se encontrava ali, sobre uma cadeira, o embrulho dos cobertores; e nesse dia o jovem serviu-se deles pela primeira vez. Joachim, que já estava habituado a isso, ensinou-lhe a arte de agasalhar-se que todos exerciam ali em cima e os recém-chegados tinham de aprender. Os cobertores deviam ser estendidos, um após outro, sobre a cadeira de repouso, de maneira que um bom pedaço deles sobrasse no lugar dos pés. A seguir, a pessoa estendia-se na cadeira e começava a envolver-se no cobertor superior, primeiro de um lado, a todo o comprimento, até às axilas, depois na parte de baixo, por cima dos pés, o que requeria que a pessoa se soerguesse, se inclinasse para a frente e apanhasse ambas as camadas da extremidade dobrada, e por fim do outro lado, sendo importante ajustar cuidadosamente a ponta dupla da referida extremidade às bordas da cadeira, a fim de conseguir um máximo de regularidade. (mann, 1957, p. 108)

A narração deste ato ritualizado, e de muitos outros dos primeiros dias de Hans Castorp, não será repetida, pois ele será igual ao longo de todos os outros dias dos sete anos que se seguirão. “Quando um dia é como todos, todos são como um só.” (p. 111). A variação no espaço e no tempo não acontece, é o “nada estagnado” e o “desinteressante absoluto” do hábito regular que predomina no romance. segundo semestre 2014 

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O próprio narrador nos conduz a esta reflexão, ao mostrar que “os anos ricos em acontecimentos passam muito mais devagar do que aqueles outros, pobres, vazios, leves, que são varridos pelo tempo e voam” (p. 110). A magia da montanha mágica [Zauberberg] é a suspensão dos acontecimentos, a repetição como um feitiço [Zauber]. A montanha é mágica, ou enfeitiçada, de modo que seu tempo seja circular, um tempo não histórico, mas próximo do tempo mítico, um tempo imensurável. Em dado momento, Hans Castorp abdica até mesmo do uso do relógio de pulso. O tempo retilíneo do progresso, assim como o tempo abstrato e mensurável do trabalho e da atividade, é o tempo “lá de baixo”, da planície, onde a renda dos “lá de cima” continua a render, de modo que as remessas de dinheiro são continuamente enviadas para a montanha. Ora, o condicionamento deste tempo suspenso e mágico não deixa de ser algo sócio-histórico e sedimentado na posição de classe das personagens da montanha mágica; um condicionamento, digamos assim, pouco mágico, e muito pelo contrário, que não deixa de ser evidenciado pelo narrador. Entre aristocratas russos, um notável burguês italiano, um magnata holandês e até mesmo uma princesa egípcia, não há quem esteja envolvido no mundo do trabalho, que é o mundo necessariamente marcado pelo relógio de ponteiro e de ponto. Não que a estadia em Davos do nosso herói em nada heroico seja completamente tediosa. Há, por exemplo, uma aventura amorosa, mas que é prescindível para a estrutura do romance – uma aventura que não configura nenhum destino significante do herói e que possui uma ligação frouxa com o enredo.³ Ao longo do romance, não há acontecimentos propriamente ditos (com a exceção do final, quando o tempo é acelerado – retomaremos o final mais adiante), e sim pequenos episódios narrados por um narrador frio e irônico. A morte é apresentada com indiferença, e, por vezes, com uma comicidade forçada, quase intragável, apesar dela mesma ser um dos temas centrais do romance, assumindo inclusive suas feições metafísicas em relação à forma física do morrer.⁴ Joachim, um personagem central e, por que não dizê-lo, querido pelo leitor, morre sem nenhuma cerimônia: Às seis da tarde foi tomado por uma mania bizarra: com a mão direita, cujo pulso estava guarneci70 

do de uma pulseira de ouro, esfregou várias vezes a colcha, à altura dos quadris, e a seguir, ao retirá-la, ergueu-a e fez um gesto de quem ajunta ou recolhe alguma coisa. Às sete horas morreu. (p. 561)

A descrição dos cadáveres que descem a montanha na pista de bobsleigh também não carece de banalidade, seguido pelo riso de Castorp. Diversas cenas que envolvem morte ou doença são acompanhadas de risos descabidos de algum personagem. O tom irônico destrói qualquer possibilidade de espírito trágico que a morte poderia evocar. Ironicamente ou não, Hans Castorp se rebela, a certa altura, contra a maneira como parte do Sanatório e as pessoas que ali habitam (e quem sabe, como ele mesmo e o próprio narrador) lidam com a morte, pois os óbitos que ali ocorrem são sempre ocultados como se não acontecessem, de forma que a normalidade da rotina sem transitoriedade seja preservada. Afinal, a morte é a expressão maior da transitoriedade da vida, ela mesma um grande acontecimento. O desejo de Castorp de encarar a morte, de moralizar-se, faz parte das contratendências de sua aclimatação na montanha, que durante longo período parece não se realizar de modo pleno, e por outro lado configura uma trajetória do herói que se sensibiliza e se espiritualiza, fazendo d’A montanha mágica um romance na tradição do romance de formação.⁵ Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de sorte que deveríamos andar sempre de preto, com uma golilha engomada em lugar do colarinho, e manter uns com os outros relações graves, reservadas e formalistas, recordando-nos da morte. Gostaria que assim fosse. Acho que isso corresponde à moral. (p. 306)

A música também o sensibiliza em dado momento. Isto, porém, acontece diante de um equipamento de última geração da época que é o toca-discos.⁶ O romantismo que surge é trabalhado por Thomas Mann sempre em chave crítica e irônica; afinal a Europa do início do século xx está à beira de sua desintegração. O horizonte civilizatório segundo semestre 2014 

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e humanizador do Progresso perde sentido – e esta carência de sentido dá o sentido do romance. O tempo em suspenso é o tempo do impasse que antecede a Grande Guerra, o acontecimento que dará sentido à vida e direção ao tempo, numa dimensão catastrófica. Os discursos apologéticos do Ocidente de Settembrini, o iluminista italiano, eram em vão e não puderam convencer. No final do livro já se constata: “O progresso? Meu Deus podia-se compará-lo ao famoso caso do enfermo que estava sempre a mudar de posição porque esperava encontrar algum alívio nisso. Um desejo não confessado, mas muito difundido, secretamente, o de ver rebentar uma guerra era a expressão deste estado.” (p. 722) Nas últimas páginas do livro, a montanha mágica é nomeada enquanto tal, pela primeira vez, após o enunciado do título, como se isso fosse a saída do seu encanto para o acontecimento que retoma o tempo, lembrando o quanto dele passou, e agora acelerado pelo trovão, “o trovão que fez explodir a montanha mágica e pôs na rua o nosso sonhador adormecido.” (p. 742). Todos os convalescentes que estavam ali a esperar a “cura definitiva” antes de descer se precipitam e se locomovem no espaço de forma, literalmente, acelerada: “De cinco mil pés de altura, os seus habitantes precipitavam-se de cabeça para baixo em direção à planície onde os aguardava a prova, suspensos dos estribos do comboiozinho tomado de assalto, deixando atrás de si, se assim fosse necessário, as bagagens que atulhavam os cais da estação.” (p. 745). As últimas quatro páginas são um turbilhão narrativo, um encadeamento veloz de ações e descrições do campo de guerra no qual se perde de vista o nosso herói, cujo destino desconhecemos – vislumbramos sua imagem ao longe, cantarolando (!) sem pensamentos, escapando da morte. Mas, afinal, o que importa não é ele, e sim sua história. E eis que a formação do nosso herói não poderá salvá-lo, fazendo dela uma formação em vão. O narrador se despede dele, e lhe deixa sua mensagem cruel: Certas aventuras da carne e do espírito, que educaram a tua simplicidade permitiram-te vencer no domínio do espírito aquilo a que não escaparás certamente no domínio da carne. (p. 749)

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A transitoriedade, justamente o que Thomas Mann julga o mais importante, criador de todo o ser, promessa do progresso, aparece como a tragédia. A resolução da crise da transitoriedade não é resolução alguma, pois a retomada do tempo histórico e a saída do “nada estagnado” não conduz ao “criativo e ativo”, à “vivacidade” e ao “aperfeiçoamento”, mas à destruição total e à morte. O “elogio/ louvor” (Lob) da transitoriedade é possível no romance como uma promessa (embora duvidosa e quase kitsch) de que algo surgirá após a queda na barbárie: Será que dessa festa da morte, dessa perniciosa febre que incendeia à nossa volta o Céu desta noite chuvosa, também o amor surgirá um dia? (p. 749)

referências bibliográficas

adorno, Theodor. Progresso. In: Palavras e Sinais: Modelos Críticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Ed. Vozes, 1995. heller, Erich. Thomas Mann. Der ironische Deutsche. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1959. lukács, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades ; Ed. 34, 2000. ______. “Narrar ou descrever? Uma discussão sobre naturalismo e formalismo”. In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010. mann, Thomas. A Montanha Mágica. Trad. Herbert Caro. Lisboa: Edição “Livros do Brasil”, 1957. ______. Ensaios. Org: Anatol Rosenfeld. Trad: Natan Zins. São Paulo: Perspectiva, 1998. schmidt, Alfred. Adornos Spätwerk: Übergang zum Materialismus als Rettung des Nichtidentischen. In: Emanzipation als Versöhnung. Org: Alfred Schmidt. Frankfurt am Main: Neue Kritik Verlag, 2002. silva rodrigues, Menegaldo Augusto. A representação do tempo no romance Der Zauberberg de Thomas Mann. Dissertação de mestrado. São Paulo: USP, 2009.

notas

1. “Thomas Mann não poderia ter escolhido um cenário mais apropriado para sua grande crítica do espírito europeu que um sanató-

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rio; não só porque o espírito europeu torna-se um paciente, mas sobretudo porque espírito e doença são aliados tradicionalmente românticos.” (Tradução livre) Erich Heller. Thomas Mann. Der ironische Deutsche. Frankfurt am Main: SuhrkampVerlag, 1959. P. 236. Esta observação sobre a formalização do tempo no romance e os dois planos temporais foi feita na dissertação de mestrado de Menegaldo Augusto da Silva Rodrigues, intitulada “A representação do tempo no romance Der Zauberberg de Thomas Mann”. Este, por sua vez, atribui a análise a Günther Müller e à retomada feita por Paul Ricoeur em Tempo e Narrativa, e também por Benedito Nunes em O tempo da narrativa. Entretanto, apesar de filosoficamente sensível em muitos aspectos, esta linha de análise parece carecer de um esforço de reflexão histórica sobre o condicionamento social do tempo. Espero não forçar a mão, mas já forçando, ao fazer uma analogia (um pouco anacrônica) com a análise que Lukács faz da corrida de cavalos em Naná de Zola: “[...] esta descrição, com todo o seu virtuosismo, não passa de uma digressão no interior do romance. Os acontecimentos da corrida são apenas frouxamente ligados ao enredo e poderiam facilmente ser suprimidos, já que sua ligação com o todo consiste apenas no fato de que um dos muitos amantes passageiros de Naná se arruinou em consequência da descoberta da negociata.” Georg Lukács, “Narrar ou descrever? Uma discussão sobre naturalismo e formalismo”. In: Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Expressão Popular, 2010. “Sterben ist physisch, der Tod metaphysisch.” (Morrer é físico, a morte, metafísica. (Tradução livre)) Esta passagem encontra-se num texto de Alfred Schmidt, de temática um pouco distante do nosso objeto: “Adornos Spätwerk: Übergang zum Materialismus als Rettung des Nichtidentischen”. Como observa Erich Heller no seu já citado Zauberberg-Gespräch, diálogo settembriniano sobre A Montanha Mágica, se no Wilhelm Meisterde de Goethe o herói passa de um gênio a um membro útil da sociedade, Hans Castorp passa de membro útil da sociedade a gênio. O professor Jorge de Almeida (que ministrou um curso sobre crise do romance, que deu origem a este ensaio) interpreta A Montanha Mágica como um romance de formação negativa, no qual o herói aparece já formado, pronto para encarar o mundo (do trabalho), e é deformado ao longo do romance, atingindo com isso simultaneamente uma outra formação. Ainda o texto de Heller.

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