Lucrecia Martel e o benefício da incerteza

July 24, 2017 | Autor: Ivonete Pinto | Categoria: Narrative, Sound
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Publicado em revista Teorema nº 08, dez 2005 – pp.28-32

Lucrecia Martel e o benefício da incerteza Eduardo Santos Mendes e Ivonete Pinto*

Com economia espartana e combinação complexa do som, em A Menina Santa a diretora argentina explora as dimensões do desejo ilícito Há certos filmes que nos impactam tanto que melhor seria não vê-los novamente. O risco de descobrirmos algo que possa nos desapontar pode ser uma ameaça. Não foi o caso de A Menina Santa. Vê-lo mais de uma vez significou o contrário: a reafirmação de que se trata de uma grande obra. E se a palavra “fenômeno” não estivesse tão gasta, porque aplicada com promiscuidade a tanta gente, ela caberia como uma luva em Lucrecia Martel. Naturalmente, é uma temeridade atribuir esta expressão a alguém que dirigiu apenas dois longas, mas é da natureza da crítica arriscar-se, não? De qualquer forma, faça o que fizer nos próximos anos, a roteirista e diretora de O Pântano (La Ciénega, 2001) e A Menina Santa (La Niña Santa, 2004) tem seu lugar garantido no panteão dos grandes realizadores. Lucrecia Martel representa um sopro alentador. Seu cinema está dizendo que sim, há coisas que ainda não foram inventadas, há possibilidades ainda não exploradas . Não seria exagero também afirmar que a diretora argentina, de 39 anos, causa estupefação diante do seu total domínio da narrativa e, mais importante, diante da atmosfera que ela constrói através da relação espaço-tempo. O sufoco, o ar pesado, é algo absolutamente concreto, visível, palpável. Como ela consegue isto? Esta pergunta se repete cena após cena de A Menina Santa: Como ela consegue??? Tentemos algumas hipóteses. As três primeiras seqüências de A Menina Santa nos introduzem no que será o cerne do filme: em um colégio católico, meninas adolescentes ensaiam um canto religioso enquanto comentam em segredo a relação amorosa de uma delas; um grupo de médicos chega em um hotel com jeito de decadente no qual acontecerá um congresso de otorrinolaringologistas. A filha da dona do hotel, Amália (María Alche), assiste no centro da cidade a apresentação de um músico que toca teremin, o médico que vimos na seqüência anterior (Carlos Belloso) aproxima-se por trás, abre o casaco e encosta-se nela. É na expressão da menina que está o enigma do filme: medo, curiosidade e prazer. E esta expressão já é o bastante para percebermos a opção corajosa de Lucrecia Martel de entrar num assunto (o assédio sexual, a pedofilia) em que, a priori, todos têm uma posição de condenação, ignorando a complexidade das nuances do tema. Um tema que é tratado preponderantemente no âmbito da legislação e teria que estar, antes de tudo, na filosofia, na antropologia, na religião, na cultura. E é neste sentido que Lucrecia se aproxima do universo de Almodóvar (não por acaso os irmãos Pedro e Agustin são produtores do filme), especialmente A Má Educação (2004), quando coloca em xeque o que é proibido e o que é lícito, o que é certo e o que é errado, sem tomar partido moral do que está em questão. Melhor, Lucrecia nos dá o benefício da incerteza. Parece-nos que só os filmes bons deixam esta sensação de não se ter o que falar.

Os ruins, descobrimos com maior ou menor facilidade o porquê. Não sabemos bem o que pensar da reação da menina, sequer do comportamento do médico, que mais adiante, em ataques de lucidez, vai fugir do assédio da menina. A diretora, em entrevistas, reiterada vezes disse que não quis utilizar o claro-escuro para evitar a dualidade. No entanto, o nome que dá ao médico é Jano, o deus romano das duas faces. Um pervertido que possui um lado repressor-civilizatório e não vai adiante na perversão. A menina, por sua vez, entende que seu papel nesta história é ajudar o médico numa espécie de missão divina, mas ao mesmo tempo possui uma sexualidade aflorada, evidente na seqüência em que se masturba. Seus rosto possui uma estranha dicotomia: às vezes é quase feio, às vezes quase belo. Dualidades. E nesta linha de especulação seria legítimo apontarmos uma relação de espelhamento entre seis personagens, duplos que formam uma polifonia. Helena, a mãe, em sua sensualidade quase vulgar, tem seu contraponto na figura hirta da gerente do hotel. Enquanto uma é romântica (acredita que o médico Jano está apaixonado por ela), a outra é embrutecida e objetiva à exaustão. Já o contraponto de Amalia está na amiga. Se Amália, durante o ensaio da música religiosa, fica impressionada com a frase “o importante é estar alerta ao chamado de Deus”, a amiga reage à mesma frase com ironia. E se em sua perspectiva Amalia entende que pode expiar os pecados de Jano, a amiga prefere, sem culpa, os encontros carnais com o namorado. O próprio Jano tem seu oposto patente no personagem do médico que divide o quarto durante o primeiro dia do congresso. Enquanto Jano é tímido e mal percebe as investidas de Helena, o colega envolve-se sem cerimônia com uma das recepcionistas do congresso. Sussurros sem tradução Para além das dualidades, Lucrecia engendra artifícios para que o espectador não fure com facilidade a nuvem que ela pinta em torno de seus personagens. Em alguns momentos, é como se os personagens falassem outra língua. São estranhos para o espectador e para eles próprios. Como os (longos) diálogos em árabe em O Céu que nos Protege (Bernardo Bertolucci, 1990), sem tradução. Lucrecia nos deixa sem tradução quanto aos movimentos, a psicologia e os sentimentos dos personagens. O não entender é o risco, a sofisticação em Lucrecia. Um não entender que nos arrebata. Não é possível entender o que não conhecemos, mas é possível sentir atração pelo que nos é estranho. Ainda neste aspecto da não tradução, vemos que o mesmo recurso utilizado por Sofia Coppola, e que fez diferença em seu Encontros e Desencontros (2003), é utilizado aqui por Lucrecia. Também num momento-chave, um personagem (Amalia) fala algo no ouvido do outro (Jano). Ao público não é dado conhecer o que foi dito. Se foi uma referência-homenagem ao filme americano, não se sabe, mas em Coppola este momento teve uma carga dramática maior. Em Lucrecia a cena do sussurro no ouvido já está tão recheada de conflito, de tensão, de informações importantes, que resulta num menor peso dramático. Em Encontros e Desencontros o que nos é omitido funciona como enigma sobre o futuro do casal interpretado por Bill Murrey e Scarlett Johansson, e em A Menina Santa funciona como confissão de um pecado. No lugar do confessionário, a cama. De qualquer forma, a valorização da fala omitida não chega a sobrar em cena, pois nada sobra em Lucrecia, tal seu domínio na arte da concisão, da economia de imagens e sons. Lucrecia é espartana, uma santa espartana.

Sucção e oração

Numa primeira visão mais cuidadosa dos dois filmes da diretora, pode-se confundir seu poder de concisão com uma relação audiovisual simplista. Planos de longa duração, sem muita movimentação interna e um mínimo de diálogos. Porém, ao rever os filmes, descobre-se uma combinação muito mais complexa. Se em O Pântano, a super valorização de alguns ruídos como cadeiras ou copos alteravam nossa percepção visual dos objetos, dilatavam a noção de tempo e conversavam com o universo surrealista de David Lynch, em A Menina Santa, a intervenção do som na imagem é feita de forma mais discreta e não menos eficaz. A estranheza gerada pelos enquadramentos sangrados, onde os personagens têm parte de seus corpos estripados da tela é reforçada por uma construção de sons ambientes que, mesmo que verossimilhantes, não pertencem ao universo apresentado. Se na maioria das seqüências passadas no hotel há sempre poucos personagens em cena, fazendo com que os espaços vazios ocupem uma grande parte do quadro, na trilha sonora ouvem-se gritos e conversas contínuas que reverberam por imensos corredores de grande pé direito. A oposição entre o universo despovoado da imagem e o mundo em constante movimento que o cerca não nos permite uma assimilação tranqüila desse espaço. Já o uso da grande reverberação acentua a dilatação do tempo. Alguns dos eventos sonoros comentam a ação, acrescentando-lhe uma ironia e nos dando uma nova leitura ao que vemos. Como na primeira cena do filme onde, durante a pausa da cantora, ouvem-se gritos de comemoração de um jogo que destroem o caráter solene até então construído. Ou ainda na seqüência em que Jano fica desconsertado por ter que dividir o quarto, enquanto uma voz que passa pelo corredor ri abertamente. As relações audiovisuais mais intrincadas acontecem na piscina. São nessas cenas em que ficam explícitos os mecanismos de manipulação de leitura da imagem que Lucrecia realiza através do som. Na nona seqüência de A Menina Santa, vemos Amalia observando Jano nadar. Neste momento o som é composto por uma forte bomba que agita as águas, dando-lhes uma sonoridade de um rio caudaloso e forte. Uma grande sucção modifica o espaço acústico que passa a ser composto de agudos grilos que reverberam pelo salão e uma conversa em tom grave. A tensão, o movimento e o vigor que acompanhavam Jano no começo da cena são trocados pelo estranhamento causado pelos insetos e pelas vozes mal ouvidas. A voz de Helena conversa com Amalia, mas parece que chama a Jano, pois ele se vira em sua direção no mesmo momento. O som de sugar retorna mais fraco e acompanha o médico até que este saia de quadro, enquanto Amalia sussurra uma oração. A câmera, então, acompanha Helena entrar na água, assim como toda a trilha sonora que se cala e nos permite ouvir apenas os movimentos dela andando pela piscina, quase como do ponto de audição de Jano que tudo observa. Quando Helena sai da água e Jano a perde de visão, o ambiente estranho retorna junto com a oração. Mãe e filha conversam em primeiro plano, com um timbre agudo característico do espaço, enquanto em segundo plano há um diálogo grave, descontínuo e reverberado entre duas pessoas. No fim da seqüência, outra sucção marca a volta da oração. Aqui, podemos verificar como Lucrecia Martel altera nossa percepção da mesma cena pela modificação da trilha sonora: inicia-se grave e solene, passa para uma sensação de estranheza, silencia o mundo para que vejamos Helena, e retoma a estranheza, recuperando o caráter solene pela conversa em segundo plano. Esse caráter solene, de conversas quase sussurradas, dos sons graves das vozes que permanecem no recinto, mesmo muito depois de suas emissões cessarem, dá à piscina uma sonoridade muita próxima àquela que se encontra numa igreja, sensação essa revigorada pelas orações de Amalia em primeiro plano.

Piscina-cama É tarefa quase que impossível pensar em A Menina Santa fugindo do sentido religioso. O congresso de médicos, evidentemente, não foi escolha aleatória. Medicina e santidade estão juntas. Quem procura médico ou padre é porque está doente, ou quer evitar a doença, ou o pecado, ou os males da alma. Ter dotado a sua personagem de pura pulsão sexual já seria religião. Mesmo assim, Lucrecia colocou a menina num cenário explicitamente religioso (a escola e as discussões em torno da frase “o importante é estar alerta ao chamado de Deus”), não para que o espectador, eventualmente conservador, pudesse compreender a reação dela ao assédio do médico, mas para embaralhar nossa noção do que é aceitável. De certa forma, a cumplicidade de Amalia para com o desejo de Jano, nos remete a um quê de Santa Tereza D’Ávilla. A santa que tinha encontros pouco ortodoxos com Cristo, atingia êxtases místico-sexuais e é referencial obrigatório no repertório das representações cristãs neste assunto. No aspecto do fílmico-simbólico, é um filme que acontece deitado. Aliás, tanto em O Pântano como em A Menina Santa há a recorrência à piscina e à cama. Vários são os diálogos, em ambos filmes, que transcorrem nestes dois lugares horizontais por definição.Como na cena em que mãe e filha conversam deitadas na cama e na cena seguinte, quando a filha está deitada à beira da piscina olhando para Jano, que nada de costas (deitado). Na última cena de A Menina Santa, Amalia e a amiga estão nadando de costas até desaparecerem do quadro e surgirem os créditos. São personagens, nos dois filmes, contaminados pelo mormaço de onde nos fala Lucrecia: a província de Salta e seu ar pesado, sua lentidão. Uma geografia árida que leva a um refrear do tempo e, como disse Ismail Xavier na entrevista desta edição de Teorema, há uma “letargia e passividade” que tomam conta da cena. Múltiplas seriam as implicações simbólicas desta escolha em torno da piscina e da cama. Desde a água como representação de pureza, até a cama como espaço de prazer, vida e morte. Mas a água em Lucrecia é turva e os lençóis não parecem limpos.

*Professor de Sound-Design da ECA/USP, doutoranda em Cinema pela ECA/USP

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