Má-Consciência e Represetação do Popular no Cinema Brasileiro

May 19, 2017 | Autor: Fernão Ramos | Categoria: Film Studies, Brazilian Studies, Brazil, Film History, Brazilian Cinema
Share Embed


Descrição do Produto

MÁ-CONSCIÊNCIA E REPRESENTAÇÃO DO POPULAR NO CINEMA BRASILEIRO

Fernão Pessoa Ramos

Este texto buscará fornecer um breve panorama da representação do popular no Cinema Brasileiro. Definimos "popular" enquanto representação de uma alteridade, enquanto representação de um outro. Em países europeus, ou norteamericanos, dimensões desta alteridade encontram-se definidas em estudos que trabalham com a representação cultural de minorias como negros, homossexuais, índios, emigrantes, latinos, chicanos, etc. Tentaremos aqui mostrar que a questão das representação das minorias no cinema e na cultura brasileira, apresenta particulares que devem ser realçadas. Algumas temáticas presentes em análises dentro do recorte amplo denominado "estudos culturais", necessitam de mediações para se adaptar a situações históricas concretas experimentadas por países latino-americanos. O próprio conceito "latino", usado correntemente em algumas destas abordagens, pode ser questionado. As especificidades culturais dos países latino-americanos impedem uma constelação histórica e cultural homogênea. Diferenças lingüísticas (entre o espanhol e o português, por exemplo) acentuam o isolamento, sobredeterminado pela forte influência cultural exercida pelos Estados Unidos e Europa. O intercâmbio cultural dá-se individualmente com os países desenvolvidos. Entre si, os vínculos ideológicos e culturais são tênues. Poucas são as oportunidades existentes para se expor produtos culturais brasileiros no México ou na Argentina, ou vice-versa. Expoentes culturais e personalidades de um determinado país permanecem completamente desconhecidos em outro. Tal desconhecimento não existe quando o intercâmbio incide sobre países do primeiro mundo. Na realidade, reina um desinteresse recíproco, que pode ser contraposto ao fascínio que exerce qualquer moda cultural que desponte nos Estados Unidos ou

Europa. Talvez este fascínio seja o traço comum da cultura latina. É, no entanto, preocupante, vermos algumas análises que pressupõem movimentos culturais integrados na América Latina (como um "novo cinema latino-americano" nos anos 70 e 80), trazendo implícito um intercâmbio de idéias e experiências, que existe somente de modo superficial. Esta realidade talvez possa ser conveniente em termos analíticos, mas não tem mais consistência do que a idéia de um cinema europeu ou de uma literatura européia com traços estruturais comuns. Esta realidade ainda é mais aguda quando vista da América não hispânica, de língua portuguesa, ou quando realçamos a distância geográfica (marcada pelos Andes e a Amazônia) e o isolamento histórico do sul do continente com o norte da América Central (particularmente o México). De todo modo, a noção da latinidade, como um instrumento conceitual construído a partir de uma realidade homogênea, é, no meu ponto de vista, bastante frágil. Uma análise mais atenta deve lidar com as mediações necessárias para adaptar temáticas caras aos "estudos culturais" dentro de horizontes históricos e culturais heterogêneos. A questão da representação do "popular" como alteridade, insere-se neste debate ao diluir e misturar os aspectos étnicos e raciais que compõe este debate nos países desenvolvidos. No caso brasileiro, esta alteridade caracteriza-se pelos dilemas que envolvem a representação de uma maioria, bastante diversa das minorias com as quais nos defrontamos na cinematografia norte-americana, por exemplo. É a esta maioria, mais ou menos deserdada quanto aos seus meios de subsistência, que chamamos de "povo". À representação desta camada da população chamamos de "representação do popular". O conceito de "popular" com o qual trabalhamos deve ser distinguido de qualquer significado que implique a realização do valor de um produto cultural no mercado, ou mesmo a aceitação ou popularidade no sentido de um best seller cultural. Quanto falamos em "cultura popular" estamos nos referindo não a uma cultura que atinge vastas camadas da população, através da televisão, por exemplo, mas sim à expressões culturais tradicionais de setores excluídos da população. No caso do cinema, as expressões recorrentes do "popular", conforme vistas por cineastas da classe média, são concretamente o candomblé e outras manifestações religiosas sincréticas, as diversas danças populares; estilos musicais de origem popular, como o samba; esportes como o futebol; as manifestações culturais que giram em torno do carnaval; produções

folclóricas e artísticas regionais tradicionais, em particular as nordestinas; cenários que envolvem habitações populares como as favelas; e a presença de tipos humanos com características étnicas populares como negros, mulatos e, em particular, o que chamamos de "nordestino". A questão da posição da mulher na sociedade, a representação do índio, ou das minorias sexuais, estão, de forma geral, ausentes da temática mais característica do popular. Enquanto alteridade excluída, o "popular" brasileiro é composto principalmente a partir de movimentos migratórios internos e não externos. Em função de seus altos custos, a atividade cinematográfica nunca esteve nas mãos destas parcelas mais pobres e excluídas da sociedade. Se a definição de cinema popular for a de um cinema filmado concretamente pela massa de excluídos, podemos dizer que nunca houve um cinema popular no Brasil. Quando surge na tela, a imagem do povo é filtrada por cineastas que tiveram sua formação vinda de fora do universo popular. Embora esta situação também seja comum em outros países, o fosso social, particularmente forte no caso brasileiro, traz uma tensão particular ao degrau entre "nós" (cineastas e público de classe média) e o "povo". A existência desse "fosso" produz um fenômeno ideológico carregado do que poderíamos definir por uma "máconsciência". Esta "má-consciência" é uma das molas mestras do cinema brasileiro recente, estando presente de modo difuso em toda história do cinema brasileiro, em particular na produção da geração cinemanovista. O movimento de representar o "outro", talvez seja difícil de se dimensionar para uma cultura estruturada em parâmetros distintos da brasileira. Esta má-consciência difusa, presente na representação do "outro", é algo ausente, enquanto forma dominante, da cultura norte-americana, e particularmente de seu cinema. A representação da figura do negro e de outras minorias étnicas, passa por mecanismos de racismo e outras formas de exclusão, ou absorção, mas não tem na má-consciência um traço fundamental. No caso do cinema brasileiro, é em torno dos dilemas existenciais abertos pela representação desta alteridade que chamamos de "popular" que configuram-se algumas das principais obras de nossa cinematografia. A questão da identidade nacional (que percorre de modo recorrente os cinemas não hollywoodianos), expressa-se, em nosso caso, como intrinsicamente relacionada à expressão e incorporação estética da maioria

excluída "povo". Neste movimento de recuperação, está embutido um misto de autoexpiação e piedade, dentro do qual localiza-se o movimento de culpa que chamamos de má-consciência. Na história do Cinema Brasileiro, as manifestações culturais do "povo" aparecem inicialmente como algo negativo, algo que deve ser escondido ou reformulado, antes de ser exibido. No principal veio do pensamento sobre cinema do Brasil dos anos 20, a representação do popular é vista como algo comprometedor que deve ser evitado. As condições de vida precárias da população, suas tradições culturais e mesmo sua constituição física predominante, são apresentadas como aspectos que degradam a imagem que se quer construir de um Brasil desenvolvido. A representação do popular é caracterizada como representação de um universo baixo e disforme que impede a afirmação de um cinema nacional. A esta dimensão do popular sobrepõe-se a elegia do "progresso", do universo urbano e das conquistas industriais. Filmes como "São Paulo, Sinfonia da Métropole", de 1929, apresentam sem constrangimento esta visão. A crítica de cinema da Revista CINEARTE reflete este recorte ideológico que encontramos de modo difuso nos escritos de cineastas e críticos do período mudo. Trata-se de uma visão do cinema que busca dar ênfase à representação do urbano vinculado a uma noção de progresso que, muitas vezes, se opõe à representação das condições de vida do povo, consideradas como "feias e sujas". Este quadro ideológico perdura até o início do sonoro quando paulatinamente transforma-se. Favelas e cortiços, tradições populares como o samba, o candomblé, aparecem como distantes do universo do progresso, da racionalidade e da higiene, devendo ser evitadas. A fisionomia, basicamente mulata, do povo brasileiro é considerada "não fotogênica". Em sua críticas, publicadas na Revista CINEARTE, Adhemar Gonzaga propõe explicitamente que se deixe de lado "esta mania de filmar índios e negros". A luta de Adhemar Gonzaga e Pedro Lima contra o cinema documentário, também caminha neste sentido. Na diferença entre filme "posado" e "natural" está nitidamente embutida a má vontade dos críticos com relação a algumas cenas imprevistas de miséria que podem surgir na tela. À abertura do documentário para o acaso e a improvisação, contrapõe-se o estabelecimento de ambientes "higiênicos",

construídos de modo a estampar a urbanidade e o progresso. O Brasil negro e popular é o Brasil que passa ao largo do progresso e que deve ser evitado. Posições colonialistas e racistas são assumidas sem nenhum receio. Em editorial de 28/4/1926 a revista CINEARTE, na época principal revista de cinema no Brasil, indaga: "quando deixaremos desta mania de mostrar índios, caboclos, negros, bichos e outras 'avis-rara' desta infeliz terra, aos olhos do espectador cinematographico? (...) Ora vejam se até não tem graça deixarem de filmar as ruas asphaltadas, os jardins, as praças, as obras de arte, etc, para nos apresentarem aos olhos, aqui, um bando de cangaceiros, ali, um mestiço vendendo garapa em um purungo, acolá, um bando de negrotes se banhando nus e cousas deste jaez". A partir dos anos 60, há toda uma crítica cinematográfica, com nítida sensibilidade para o universo da representação popular, que se estrutura a partir de um sentimento misto de indignação e espanto, direcionado a este contexto ideológico predominante no final dos anos 20. Esta posição é clara, por exemplo, em Humberto Mauro, Cataguase e Cinearte, livro de 1974, onde Paulo Emílio Salles Gomes estabelece o tom crítico em relação ao viés racista de algumas posições da CINEARTE na década de 20. Podemos considerar, portanto, este contexto como representante da primeira manifestação mais orgânica da questão do popular no Cinema Brasileiro. Esta visão negativa do popular não seria, no entanto, a única em nossa história. Uma segunda expressão, também negativa, da cultura popular irá afirmar-se nos anos 60. Neste recorte, marcado pela quadro ideológico do marxismo, a cultura popular é vista como algo "alienado". Segundo esta visão, as expressões culturais do povo serviriam, em sua grande maioria, como válvula de escape para as tensões sociais, impedindo a tomada de consciência, por parte do povo, de sua condição de excluído. A cultura popular alienaria o povo de uma visão do social que deixaria evidente sua condição de explorado pelo capital. Manifestações culturais como o carnaval ou o futebol são o alvo principal deste discurso que gira em torno do conceito de alienação. Estas manifestações reificariam a atenção e a consciência popular, deslocando participação popular e tomada de consciência de classe, impedindo assim uma visão concreta e não distorcida do universo social da exploração. Podemos, sem esforço, localizar esta visão nos escritos de Carlos

Estevam Martins, principal ideólogo das posições de setores influentes da esquerda brasileira que, nos anos 60, dominavam a produção cultural nos chamados CPCs (Centro Populares de Cultura) vinculados à influente União Nacional dos Estudantes. A predominância, no início da década de 60, de uma visão negativa da cultural popular é rapidamente deslocada por um discurso que afirma seu potencial. Apesar de sua passagem relativamente rápida pelo cenário cultural, a visão da cultura popular com motor da alienação, servindo de solo para posturas reacionárias, deixa marcas profundas. Nos anos seguintes servirá de base para uma espécie de contradiscurso que irá marcar o Cinema Brasileiro na década de 70, com reflexos até os dias de hoje. Na realidade, mais do que uma visão negativa, temos aqui uma visão instrumental da cultura popular. O objetivo central é a transmissão de um conteúdo político à consciência popular, utilizando-se pragmaticamente suas manifestações culturais. Para Estevam, a cultura popular é válida quando presta-se a ser um veículo da mensagem revolucionária. Embora exista uma evidente atração pelo universo popular, persiste uma extrema desconfiança para com as formas autônomas de expressão do povo. A afirmação da cultura popular com "alienada" parece ser o último discurso onde classe média produtora de cinema consegue afirmar um "saber" sobre este outro que é o povo. Este "saber" é a exatamente a sua visão de uma praxis revolucionária que deve ser didaticamente transmitida ao povo. O rápido deslocamento deste quadro ideológico é decorrência dos questionamentos epistemológicos pós-estruturalistas que atravessam as ciências humanas nos anos 60. Já no final da década, parece ficar cada vez mais difícil afirmar um saber sobre a alteridade social, seja ela índio ou povo. O "saber social" para uma praxis revolucionária trazia uma certa inocência: a dos jovens revolucionários de classe média que, a partir de um ponto de vista privilegiado, acreditavam poder definir o que é ou não cultura popular. Esta visão marca o primeiro Cinema Novo, sendo evidente em filmes como Cinco Vezes Favela, produzido pela UNE, União Nacional dos Estudantes, órgão sindical dos estudantes brasileiros. Não é difícil encontrar sua também sua influência dispersa em obras centrais da primeira metade dos anos 60, como Barravento, de Glauber Rocha. Temos nesta obra um embate cheio de ambigüidades e oposições

entre a visão marxista do campo social e a cultura popular espontânea. O dilema apresentado pelo fato da religião popular do candomblé (um sincretismo afrocatólico) ser algo que potencialmente aliena e impede a consciência popular, talvez seja o principal móvel do filme. Este discurso da cultura popular como algo alienante é característico dos Centros Populares de Cultura Apesar de serem conhecidas as arestas existentes entre o CPC e o grupo central do Cinema Novo, é nítida a influência deste estigma alienador da cultura popular nos jovens cineastas. E é esta influência que irá aparecer como elemento central no sentimento de culpa e máconsciência com relação a esta cultura popular, que encontramos presente na obra madura de alguns destes cineastas. As filmografias de diretores como Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos e mesmo Glauber Rocha, têm em seu eixo uma constante necessidade de reafirmação da negação deste período, em que a cultura popular era vista enquanto potência alienadora de uma praxis social responsável. Toda uma geração flertou com esta idéia e a forte carga positiva que a cultura popular adquire, a partir do final dos anos 60, leva, no descompasso entre os dois momentos, a um regime laudatório da representação popular. Neste regime laudatório, podemos distinguir um contradiscurso que traz embutido a má-consciência, gerada pelo fato de um dia ter existido dúvidas sobre as potencialidades desta cultura popular. Ainda no cinema brasileiro, podemos distinguir um terceiro quadro na representação da cultura popular. Trata-se do conjunto de filmes que trabalha com o popular enquanto expressão folclórica. A visão do popular aqui é positiva, configurando-se em um misto de exotismo e exibição de costumes típicos. As expressões do popular que encontramos em filmes de gênero (como o cangaço), em filmes da produtora Vera Cruz (como em Caiçara, Sinhá Moça ou O Cangaceiro) ou em obras como O Pagador de Promessas (direção de Anselmo Duarte) ou Orfeu do Carnaval (Marcel Camus), possuem o traço comum de representar a cultura popular de modo folclórico. A partir dos anos 50 a representação da cultura popular deixa distante o viés negativo, para afirmar-se como um modo de exibição do que é exótico. Neste exotismo, a cultura popular é vista de forma distanciada, mas não negativa. A exibição da cultura popular obtém forte repercussão internacional, trazendo para o Cinema Brasileiro um reconhecimento antes inexistente. Dizemos ser

esta uma representação folclórica do popular, em função da forma de representação exibicionista. A narrativa interrompe a ação ficcional para interpor longas cenas descritivas, onde a tradição popular-folclórica é exibida, sem que haja propriamente, em termos da intriga, uma motivação para tal. A narrativa dos filmes musicais hollywoodianos pode ser citada no horizonte de um parentesco estrutural. Há, nestes filmes, um certo deslumbramento com as formas da cultura popular. Estão ausentes as dimensões da culpa ou má-consciência pela apropriação da cultura de "outrem", mencionadas atrás. A cultura popular é apresentada de modo distante e objetivo, colocada sob a lupa da câmera para ser ampliada. Predomina o tom de se mostrar o lado exótico e desconhecido da cultura de "outrem". Esta ênfase na constituição exótica compõe o centro do aspecto "folclórico", através do qual a cultura popular é representada. Esta exibição do popular como algo folclórico tem seu período histórico restrito entre o início dos anos 50 e meados dos anos 60. Aos poucos torna-se uma manifestação tardia, e muitos cineastas que nela investiram são pegos de surpresa com o deslocamento deste eixo ideológico. A constelação ideológica dominante no final da década de 60, próxima à geração cinemanovista e à emergência da contracultura, encara criticamente tanto a representação folclórica do popular quanto sua visão como fator de alienação. Dentro deste quadro ideológico, mostrar o povo não parece ser mais suficiente. Questionamentos próprios ao estatuto do sujeito na representação, atingem de modo difuso o horizonte ideológico da cultura brasileira. Representar o povo não é mais motivo para vangloriar-se, ainda mais se nesta representação está embutida a visão da cultura popular como algo exótico, a ser exibido numa bandeja. Conforme já mencionamos, ao nos aproximamos do final da década de 60, também é criticada a postura arrogante de se designar a representação do popular como alienada. Os questionamento das noções de saber e poder, passam a ocupar o centro das preocupações, para além dos conteúdos propriamente que a representação do popular expressa. O eixo ético para se representar o popular não mais se refere ao conteúdo ideológico expresso, mas ao recuo do sujeito que sustenta a representação. É este recuo que irá ser valorizado positivamente. O movimento seguinte, que vem colado a estas formulações, é o da afirmação da impossibilidade

de se representar o popular, seguido por diversos filmes onde cai sobre o cineasta/personagem de classe média a culpa e a má-consciência pela assunção da representação de algo que não lhe é própria. Estamos aqui plenamente imersos no que consideramos o veio ideológico dominante do Cinema Brasileiro na segunda metade do século, inclusive na chamada produção da "retomada" na década de 90. A questão que se coloca, passa a ser a de representar esta alteridade que é cultura popular, a partir de um ponto de vista que deve, inevitavelmente, assumir esta cultura enquanto cultura de "outrem". A boa intenção da minoria/mesma/classe média não dilui a culpa pela assunção da representação da maioria/outrem/povo. Pelo contrário, é esta culpa que a dimensiona. Vejamos como este quadro se delineia, de modo mais concreto, através de alguns exemplos. Um dos momentos mais significativos dos dilemas deste horizonte ideológico é o manifesto "Uma Estética da Fome" de Glauber Rocha. "Uma Estética da Fome" foi apresentado inicialmente em Gênova, na Itália, em janeiro de 1965, tendo sido publicado no mesmo ano pela Revista de Civilização Brasileira, uma importante publicação da época. A proposta do diretor é fazer com que a dimensão "popular" incida na própria estrutura narrativa cinematográfica, rompendo com o classicismo de origem hollywoodiana. O horizonte da literatura de cordel e do circo -universos não narrativos onde representações alegóricas podem ser trabalhadas- surgem como alternativas a serem pesquisadas para este trabalho. Indo além, o manifesto "Por uma Estética da Fome" irá colocar-se frontalmente contra a representação folclórica do popular, servida em bandeja para a fruição da boa consciência do público burguês. A proposta do documento é trazer para a tela uma representação miserável, agressiva, deste universo popular que em si mesmo é visto como violento: "only a culture of hunger, weaking its own structures, can surpass itself qualitatively; the most noble cultural manifestation of hunger is violence". Glauber enfatiza que a própria forma narrativa deve embutir esta violência do popular, impedindo (vislumbramos Bretch no horizonte) os procedimentos de identificação do espectador. Um cinema autenticamente popular deve buscar combater a fruição ou a contemplação da cultura popular enquanto "a strange tropical surrealism". A referência ao universo folclórico dos filmes da Vera Cruz é nítida. A metodologia para tal não deixa dúvida sobre o

tipo de representação proposto carregado de violência quando ao conteúdo representado e quando à forma narrativa. Somente a violência narrativa pode quebrar o charme do popular folclórico e constituir o popular enquanto cisão revolucionária: "the love that this violence encompasses is as brutal as the violence itself, because it is not a love of complacency or contemplation buth rather of action and transformation". O resultado prático desta proposta estética, de uma estética da miséria e da fome são filmes "sad, ugly (...) desesperate, where reason does not always prevail". É nítida a distância que o Cinema Novo, e em particular Glauber, toma, neste momento, para com a representação do popular presente em filmes da Vera Cruz ou com o popular que encontramos em Orfeu do Carnaval, obra muito influente na época e combatida de modo unânime pela geração cinemanovista. Significativo do mal estar que "Uma Estética da Fome" sintetiza é o filme Terra em Transe de Glauber Rocha, elemento chave para a compreensão deste contexto ideológico. Nele o protagonista, Paulo Martins, vê-se a volta com os dilemas envolvidos na assunção da representação da vontade popular. A cisão entre o universo do protagonista e o universo popular é nítida e marca a constatação da fratura social como fosso intransponível. A distância para com o popular (às vezes carregado de desprezo) traz em si mesma o desespero do personagem Paulo Martins, carregado de culpa e má-consciência. Em um momento chave do filme Martins tapa a boca de um líder popular e traça uma série de observações desabonadoras sobre sua capacidade revolucionária. No momento seguinte, afunda-se em dilemas existenciais pelo desprezo com que trata e vê o universo popular. Este é o dilema hamletiano da primeira fase da obra de Glauber Rocha que se estende até o final da década (e o exílio) com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro. Também a análise de um personagem chave da obra glauberiana como Antonio das Mortes, e sua evolução/recorrência nos filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol e Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, caminha de modo nítido para o constelar deste sentimento de angústia existencial e culpa em representar ou advogar a causa popular, enquanto modo de expressão de "outrem". A proximidade com a alteridade popular traz, na obra de Glauber, um misto de admiração e estranheza, proximidade e distância, admiração e desprezo ("este é o povo ? xxxx diz Paulo Martins) carregada

de mal estar. Contemporâneo a este contexto, e elemento chave para se compreender a constelação ideológica do período, é o livro Brasil em Tempo de Cinema (com primeira edição em 1967) de Jean-Claude Bernardet. Mergulhado em sua época, Brasil em Tempo de Cinema é um livro militante, que de forma acusatória aponta para a cisão de classe na representação do popular e para impossibilidade ideológica da assunção de "outrem". O discurso crítico do livro está imerso em uma primeira sensibilidade para o quadro ideológico do pós-estruralismo, em seu questionamento característico da noção de sujeito e saber. A idéia central do livro é que o cinema que se busca popular é impossível, na medida em o fosso entre o mesmo/classe média e o outrem/povo é um fosso epistemológico impossível de ser transporte. A postura ética estaria no recuo do sujeito da representação e não na tentativa (que Bernardet localiza em obras chaves da época) de se assumir a voz de outrem e lhe conferir, nesta assunção o real estatuto "popular". O questionamento do "saber" deste mesmo/classe média sobre o que é o "autêntico" popular produzido pelo outrem/povo, constitui o eixo deste livro, que em vários sentidos dialoga e antecede com uma obra chave com Terra em Transe. Ambas as obras estruturam-se de modo a apontar em uma mesma direção: à impossibilidade da representação do popular. O fosso agora é absoluto e intransponível. A única saída seria dar câmeras e meios para o próprio povo construir sua representação. A classe média que faz cinema no Brasil deve-se calar ou mudar de temática, idéia que implica em um grande vazio. A cobrança para com as tentativas de se representar o povo, no lugar do próprio povo, geram um sentimento de má-consciência e culpa que perpassa o cinema brasileiro da época. O clima de desespero é acentuado pela instauração de um regime político autoritário. No final dos anos 60, os filmes "sad, ugly, desesperate", a que se refere Glauber, são a grande maioria no Cinema Brasileiro. Também é desta época o movimento conhecido como Cinema Marginal, onde estes elementos são radicalizados ao extremo. Gritos de horror gratuito, agonias prolongadas, representações disformes, imagens abjetas, sangue e dilacerações percorrem a tela de modo reiterado. A representação do universo do desespero é detalhada e descritiva, carregada ao extremo. A consecução narrativa fragmenta-se completamente. É este sentimento da impossibilidade da

representação do popular que envolve e dá origem ao que chamamos por Cinema Marginal, produção que estende-se no Cinema Brasileiro de 1968 à xxxxxxxxxxx. A questão do popular retorna com toda intensidade no cinema brasileiro contemporâneo, adquirindo caracteres particulares. Em diversos filmes do cinema da retomada, podemos sentir a má-consciência que cerca a representação do popular deslocando-se da constatação da fratura social, para uma acusação que abrange a nação como um todo. Esta acusação configura o que poderíamos chamar de um "estatuto" da incompetência. O estabelecimento deste estatuto possui, como traço definidor, um certo regozijo em sua constatação. Não estão mais em jogo agentes individuais que nutrem algum tipo de dilema ao lidar com a fratura social (como os dilemas épicos dos grandes personagens glauberianos, Paulo Martins e Antônio das Mortes). O grande vilão aqui é a nação enquanto totalidade, de modo indistinto. Especificamente, é o lado institucional do país que aparece acusado. A polícia, em destaque, é representada invariavelmente como incompetente, corrupta e sórdida, do mesmo modo que o sistema institucional de atendimento hospitalar, de limpeza pública, de administração, etc. Existe um certo regozijo na constatação de nossa incompetência, ao qual acresce-se o sentimento de inevitabilidade do caos. Como contraponto à esta constatação, em diversos filmes da retomada, surge a figura do personagem estrangeiro, geralmente um anglo-saxão, que a tudo assiste de um ponto de vista privilegiado, ponderando com frieza o quadro caótico que lhe é apresentado. O personagem anglo-saxão serve como ponto de comparação para a configuração da baixa-autoestima, medida da incompetência nacional. Este sentimento de regozijo da incompetência, e o deslumbramento em exibi-la à autoridade estrangeira, podemos designar através do termo "narcisismo às avessas", talvez uma forma contemporânea de nacionalismo. O termo é importado da retórica de Nelson Rodrigues, que usa-o para descrever a alma do brasileiro a partir de crônicas escritas sobre futebol. A facilidade e o prazer perverso que o brasileiro sente em vaiar a própria seleção (figura especular de realização egóica) surge, para o dramaturgo, como figurando uma espécie prazer na auto-flagelação. A sensibilidade do escritor é rápida ao detectar este veio da nacionalidade, talvez relacionando-o com as cascatas iconoclastas das quais seus textos são repletos. Rodrigues, com o veio agudo e azedo

que lhe é próprio, ainda acrescenta a expressão “complexo de vira-lata” para descrever a relação com o alter-ego estrangeiro. Ao derrubar todo tipo de mito, ao minar repetidamente qualquer ação afirmativa, sobra ao prazer iconoclasta o ataque ao próprio ego, que defende-se exibindo a incompetência da coletividade como algo que lhe é exterior. Para reafirmar esta exterioridade, torna-se necessário marcar cada vez mais a crítica acirrada e horizontal, de modo que a exclusão delineie-se por completo, sem que seja possível a acusação de pertencimento. Tentando se desvinculado do quadro negativo, o crítico contumaz parece dizer: "eu critico de modo acirrado a nação, aí está a prova que devo ser considerado como exterior ao núcleo criticado" (a expressão "só no Brasil....", designa bem esta postura). O "narcisismo às avessas", na realidade, surge como resposta agressiva à uma necessidade nacionalista insatisfeita. É uma forma contemporânea de se lidar com a responsabilidade sobre fratura social que de diversas formas marca a sociedade brasileira. A dicotomia "mesmo/classe média" e "outrem/povo" continua presente aqui na forma da má-consciência. As necessidades de afirmação face a culpa social expressam-se na acusação reiterada da nação incompetente, uma maneira de se afirmar um território de exclusão, onde é possível traçar os limites da responsabilidade social, no qual não nos incluímos. Vejamos como este quadro se delineia no cinema da retomada, a partir de alguns exemplos concretos. Central do Brasil parece ser um bom filme para começar este percurso. Temos, de início, delineado com clareza os pólos classe média/popular: a personagem protagonista (Dora) lê, escreve e locomove-se com agilidade na cidade grande; as figuras populares sucedem-se em sua ingenuidade e analfabetismo. A máconsciência de Dora para com o povo humilde (e, em particular, o garoto) é evidente e sua oscilação constituirá o principal móvel dramático do filme. Na década de 90 não há combustível para a tragédia existencial-política com relação ao popular. A ação política transformadora não está mais no horizonte, mas sim a figuração do sórdido e da incompetência. Em Central do Brasil o movimento da narrativa é claro. Parte de uma visão do país que é acentuada em seu negativismo, para em seguida desenvolver um movimento de redenção pela catarse da piedade. O mais cruel dos crimes (o assassinato de crianças pobres para extração de órgãos), surge como algo

corriqueiro na "central", no coração, do Brasil. Aos pequenos crimes de Dora sobrepõe-se este, maior em escala, em cuja participação existe um "quê" de ação cotidiana normal. Também na "Central do Brasil", o assassinato de crianças que cometem pequenos furtos é corriqueiro. O motor da ação que irá configurar a máconsciência de Dora é concebido para ser pesado ao extremo, refletindo a necessidade de configurar um quadro forte de sordidez na qual a nação, de modo passivo, está mergulhada. É importante mencionar a ausência de qualquer dimensão institucional, que venha tencionar este quadro, combatendo de alguma forma os crimes cometidos. É, no entanto, a partir deste fundo de poço, que a redenção catártica terá espaço para emergir com toda sua força. Dos pequenos ao indizível crime (repetindo: encaminhar uma criança para ser morta e ter seus órgãos extraídos), Dora é movida pela má-consciência, figurando em si o sentimento de classe dos cineastas (e de boa parte dos espectadores do filme) para com o universo popular que circula na Central do Brasil. Mas a figuração da má-consciência é em si mesma algo incômodo, se não há um horizonte no qual possa ser resgatada. É a este resgate que dedica-se a segunda parte do filme. Dora é purgada de suas oscilações sobre o sacrifício do menino (na realidade, ela mesma entrega o menino para ser morto) na seqüência da procissão. Nesta cena ela encontra-se mergulhada fisicamente no povo, embebida em sua fé, compartilhando uma de suas manifestações culturais mais autênticas. A comoção pessoal é vivenciada internamente e tem como resultado a conversão definitiva ao menino. A virada é bem marcada e a dimensão conflitiva que impedia o congraçamento com a causa popular desaparece do horizonte. Até a atriz Fernanda Montenegro parece estar mais a vontade, agora, para realçar seu personagem. Através da catarse pela piedade, explora-se o dilatado espaço entre a sordidez do crime pensado e o tamanho da conversão à causa do menino humilde. O êxtase concentra-se na cena da procissão, mas a figuração da piedade espalha-se pelo filme. A catarse pela piedade é a forma através da qual a narrativa resgata a passividade forçada dos elementos do universo ficcional para com a dimensão sórdida da nação, que assassina suas crianças ou as trafica para o exterior. A nação sórdida e inviável recebe o ônus de sustentar a conformação dos pólos extremos, necessários para a

figuração da catarse pela piedade, forma de redenção da má-consciência pela fratura social incrustrada na representação do popular. O sentimento da nação inviável face a fratura social surge também, com toda sua evidência, em 16060, filme de Vinicius Maynard, onde em uma mesma mansão são obrigados a conviver uma favelada, seus filhos e a família de um rico burguês. Um quadro de sordidez atravessa horizontalmente os grupos representados. O burguês manda matar o marido da favelada por engano e nutre um ambíguo, mas presente, sentimento de culpa por isso (trata-se de uma representação encarnada da má-consciência de classe). A favelada, no entanto, também dá o seu golpe oportunista e sacrifica, até a morte, um de seus filhos, negando-lhe tratamento médico oferecido pelo burguês. Seu objetivo é sair-se bem na história e para tal consegue ter uma outra criança com o filho do dono da casa. Pequenos e grandes crimes sobrepõem-se em um quadro onde predomina a falta de ética. Os personagens são esboçados de modo bastante plano e repetem figuras esquemáticas e artificiais. A configuração da redenção pela catarse da piedade da mulher favelada, ou pela piedade de seu filho morto, não surge no horizonte do filme. Este apenas deixa evidente o caráter horizontal e inevitável do oportunismo. O conflito de classes acaba reduzindo-se a um conflito de golpes. Dentro do quadro esquemático dos personagens, a tendência é de apresentar de um modo mais negativo o grupo burguês. A reunião deste grupo em um jantar para os amigos, quando vão visitar os favelados no porão, lembra, em sua tipificação forçada do burguês, alguns momentos do filme em episódios da UNE, Cinco Vezes Favela. Também lá a tipificação surge como um artifício narrativo, embora exista uma contraposição entre o tipo negativo burguês e o tipo positivo do personagem popular. O significativo é que, agora, a polaridade não mais existe: todos são sórdidos e oportunistas na nação inviável. A preocupação está em delinear um quadro horizontal de sordidez. Este panorama de oportunismo e corrupção percorrendo o conjunto das classes sociais aparece também em Alô?!, comédia dirigida por Mara Mourão. No filme, um alto executivo e sua mulher aplicam golpes diversos pelo país, ao mesmo tempo em que são extorquidos por uma gama ampla de personagens subalternos. Nenhum dos personagens possui referencial ético e o objetivo do filme parece ser o

de apontar para a abrangência desta falta de caráter, nas mais diversas instâncias da sociedade brasileira. A empregada centraliza, em seu próprio interesse, um esquema de extorsão do açougueiro através do controle de empregadas de outros apartamentos. Seu sobrinho é um pequeno estelionatário que aplica um golpe em sua própria patroa, que por sua vez rouba os clientes de sua butique. O patrão tem uma conta escondida na Suiça, na qual deposita valores roubados a seu sócio, ao mesmo tempo em que aplica golpes no mercado imobiliário. A corrente da corrupção é onipresente em qualquer direção que se aponte e marca o horizonte de uma inevitabilidade. Há, no entanto, um certo regozijo com este quadro. O riso de nossa própria incapacidade, é algo presente de modo mais amplo em outras fases do Cinema Brasileiro, sendo um motivo recorrente das chanchadas. Lá, no entanto, surge de forma menos tensa, trabalhando com elementos mais pontuais. No quadro atual, o riso maroto parece ter sido substituído pelo riso nervoso que encobre a necessidade de acusação. Há, no entanto, um ponto de referência que permanece incólume ao quadro sórdido da nação inviável. É interessante notar como o personagem anglo-saxão evolui de uma presença sempre negativa e conspiratória nos anos 60, para vir ocupara um lugar central em filmes chaves do cinema da retomada. O personagem anglo-saxão é agora o ponto de referência, o ponto cego para o qual exibem-se as mazelas da nação inviável e de onde são emitidos julgamentos ponderados e irônicos sobre estas. Este personagem ocupa uma posição central no universo ficcional de filmes como O Que É Isso Companheiro?; Como Nascem os Anjos; Jenipapo; Carlota Joaquina, princesa do Brazil; Bela Donna; Amélia e serve como parâmetro para traçar os limites de exclusão da nação inviável. Na medida em que a fissura social é escancarada com a figuração exponenciada da nação inviável e injusta, este personagem anglo-saxão permanece como o ponto de referência para o qual o caos é exibido. Dentro do movimento, esboçado acima, de recuperação catártica da máconsciência pela figuração do popular, o personagem anglo-saxão surge neste filmes como ponto ético positivo para o estabelecimento da identificação espectadorial.1 Tanto a recuperação catártica, como a identificação com o estrangeiro, surgem como

bóias salvadoras na figuração da nação inviável. O narcisismo às avessas parece não poder cumprir a satisfação egóica de per si. A satisfação obtida na crítica da nação incompetente e no exponenciar da fissura social, centra-se na possibilidade de, uma vez afirmada a posição crítica, dela se excluir. A idéia é escapar do pertencimento ao universo do que se critica pela evidência de que se está criticando. Uma vez colocado fora do círculo o espectador pode rir de sua própria miséria. Este é o mecanismo de identificação, própria ao narcisismo às avessas, que ajuda a compreender parcela significativa da produção cinematográfica (e artística) brasileira contemporânea. Cronicamente Inviável é o filme que consegue delinear de modo preciso este clima, já sintetizado em seu título. A representação da incompetência atinge aqui uma absoluta horizontalidade. Todos são acusados e não se abre uma exceção na qual o espectador possa segurar-se, salvando qualquer intuito de identificação. Não encontramos a porta para recuperação egóica pela catarse da piedade, conforme delineada acima. Nem tão pouco a figura redentora do anglo-saxão, como ponto de referência para o estabelecimento de uma postura crítica construtiva. A nação como um todo é inviável e o filme vai percorrendo, um a um, seus agentes sociais, querendo demonstrar esta tese. Do movimento sem-terra, passando pelas lideranças indígenas, movimento negro, homossexuais, burguesia, professores, Ongs, centros de caridade, projetos alternativos de recuperação de menores, etc., todos são reduzidos à evidência da incompetência, do oportunismo e das intenções sórdidas. Os motivos variam ligeiramente mas o horizonte é o mesmo: o de conformar a inviabilidade da nação através do exibir da incompetência. Qualquer tentativa pontual de se lidar de forma positiva com o caos social é deconstruída com uma ponta de prazer. Encontramos aqui o movimento do narcisismo às avessas em sua forma mais clara. No horror que a exibição horizontal da sordidez e da incompetência configura, resta a negação de pertencimento à coletividade como estratégia de recuperação da autoestima. O filme proporciona a identificação à uma única postura que é a própria atitude crítica, a mesma que é assumida pela enunciação narrativa. Esta parece ser a única instância que permanece incólume, fora da roda. O mecanismo de recuperação egóica é o descrito acima: uma vez que me identifico ao filme (enquanto postura que 1

No capítulo 8 (.xxxxxxxxxxxxx..........) de História do Cinema Brasileiro (ArtEditora, 2001) desenvolvo em

este mantém através da crítica acirrada) posso me excluir de qualquer pertencimento ao universo descrito. A má-consciência pela fratura social, cada vez mais exposta, resume-se a expô-la de modo naturalista e, através do regozijo com a incompetência, identificar-se com quem vê de fora o quadro traçado. O narcisismo às avessas é uma forma de resposta a um nacionalismo insatisfeito que tem com motor a inevitável má-consciência ao lidar com o universo ficcional que gira em torno de personagens e cotidiano popular. A nação incompetente é o alvo que permite o estabelecimento, na outra ponta, do popular idealizado. A relação entre a representação da nação inviável e a figuração exibicionista da cultura popular, fica clara em uma análise mais próxima da obra de Carlos Diegues na segunda metade da década de 90. Apesar de alguns interregnos nos anos 80, a questão da cultura popular sempre foi uma temática presente em seus filmes. O tom fantasista, de conto de fadas, que percorre sua narrativa, agora adquire maturidade e mistura-se dinamicamente a estruturas dramáticas carregadas de tensão. A produção do segundo Orfeu e a visita ao universo da mitologia popular de Jorge Amado (Tieta do Agreste) é significativa desta tendência. Quando a temática do popular re-emerge com força no cinema brasileiro, encontra na sensibilidade estética de Cacá um interlocutor privilegiado. Tieta (1996) é um filme que caminha inteiramente nesta direção, sentindo, talvez em demasia, a intensidade de um reencontro adiado. É tanta a necessidade de exibir a cultura fascinante do povo nordestino que o filme acaba por configurar-se em um aglomerado de espetáculos isolados, sem um fio condutor definido que os conduza. A trama é sacrificada à exibição descritiva e à exaltação da nova atualidade dos mitos populares (inclusive em termos de um interesse renovado do mercado internacional exibidor). Orfeu (1999) é o segundo filme de Cacá na retomada (se não contarmos Veja Esta Canção de 1992), e novamente nos defrontamos com a representação da cultura popular compondo o eixo dramático do filme. É interessante notar a volta de Cacá Diegues a uma obra (Orfeu do Carnaval, Marcel Camus) que, nos anos 50, serviu como ponto de referência negativo para a geração cinemanovista. A representação da cultura popular dentro do modelo que Orfeu do Carnaval assume é definida, na mais detalhe as dimensões do personagem estrangeiro na cinematografia brasileira recente.

época, com adjetivos como "espetacular" e "alienador". O filme de Camus conformou um consenso em torno de como não se devia tratar a cultura popular, encarnando o criticado viés folclórico, mitificado pelo olhar estrangeiro. A retomada por Diegues da mítica de Orfeu -a partir da peça de Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, que transfere o mito grego para o carnaval carioca-, é bem significativa da retomada temática da cultura popular no cinema brasileiro do final de século. Tem-se a impressão de um acerto de contas do autor com a visão da cultura popular com algo alienador, e portanto negativa, que percorre o horizonte ideológico da primeira metade dos anos 60. No segundo Orfeu, a representação do popular ressurge em toda sua intensidade, agora atravessado pelas contradições dos 90. O clima leve do primeiro filme é completamente deixado de lado e o que surge no horizonte é o quadro negro da nação inviável. O controle do morro por gangs violentas de adolescentes, envolvidos com o tráfico, contrapõe-se ao mundo idílico onde o mito de Orfeu ainda tenta encontrar espaço para realizar-se. Tocar para o sol nascer, dentro do quadro da nação inviável, pode parecer contraditório, mas o delicado tom fantasista que percorre os filmes de Cacá faz aqui valer sua força. Misturam-se mito, fantasia e realidade crua. A nação inviável surge representada novamente pela polícia corrupta e insensível. Os preconceitos repetidos pelo sargento que comanda as ações policiais são frisados de modo a marcar o quadro negativo da interferência institucional no morro (Orfeu afirma explicitamente que este tipo de polícia é "a única coisa do estado que sobe o morro"). O sargento é preconceituoso, violento e advoga, entre outras coisas, a esterilização dos pobres e seu extermínio. A cultura popular aparece como manifestação idílica de resgate da identidade, a partir da qual instaura-se o mito de Orfeu e o tom fantasista que permeia o universo ficcional positivo. Temos, em Orfeu, um quadro significativo da dimensão que tem a recuperação da representação da cultura popular para o cinema da retomada. Está ausente a visão purista desta cultura, como matéria prima para a constituição de uma narrativa nacional, que oponha-se à narrativa clássica de tipo hollywoodiano. A abertura para o diálogo com elementos estrangeiros é louvada. Ao mesmo tempo, deve-se realçar a forte presença da cultura popular como manifestação mais legítima

do povo. É ela que estabelece um eixo através do qual uma identidade positiva da favela pode construir-se, opondo-se à coletividade institucional incompetente e ao arbítrio dos grupos armados do tráfico. A favela idílica do primeiro Orfeu desaparece para dar lugar à representação da nação inviável, mas o lado idílico da cultura popular permanece, mesmo dentro da realidade sórdida. Este é o deslocamento central exercido, no mito, pelo segundo Orfeu. A cultura popular (em particular o samba/carnaval), continua idealizada em sua pureza, não mais com raízes necessariamente nacionais, mas servindo como ponto de referência ético dentro do quadro social de sordidez em que se insere. Outro elemento caro à representação da cultura popular, a religião, aparece também tematizada com vigor no filme. O pai de Orfeu converte-se ao fundamentalismo protestante e a mãe permanece adepta das religiões com fortes raízes africanas, como o candomblé. Desde os primórdios do Cinema Novo, o candomblé configura-se como elemento central na representação da cultura popular (já em Barravento podemos sentir a origem protestante de Glauber, debruçando-se de modo ambíguo sobre a intensidade religiosa da mitologia afrobrasileira). Em Orfeu, o fundamentalismo protestante aparece negando a cultura popular, identificada, de modo positivo, com o candomblé. Em pleno desfile da escola, o pai de Orfeu permanece rezando isolado. Também não bebe mais, nem participa de rodas de samba. Nas cenas finais o conflito vem a tona com cada membro do casal solicitando a ajuda de uma entidade divina diferente, face a desgraça que abate-se sobre Orfeu. Em Orfeu sentimos um Cacá Diegues maduro (os primeiros 20 minutos do filme são de uma intensidade extraordinária), navegando com firmeza em uma temática que lhe é particularmente próxima. O reencontro com o universo do popular parece reciclar uma inspiração que estava contida e abre para o diretor um veio estético a ser explorado de modo pleno. Dos excessos de Tieta ao domínio mais contido em Orfeu, é a este referente que Cacá, como diversos outros de sua geração, retornam como a uma aparentemente inesgotável fonte de inspiração. Procuramos traçar neste ensaio um breve panorama da representação do popular no cinema brasileiro. Alguns traços estruturais são recorrentes: o popular como alteridade, como realidade de outrem e a presença recorrente, expressa de modos diversos, de um movimento de má-consciência na representação desta

alteridade. Má-consciência que expressa-se na própria constituição do universo ficcional e nas formas de identificação, abertas pela narrativa, ao espectador. Da tosca visão do popular negativo nos anos 20 e 30, passando pela atração do exotismo no filmes da Vera Cruz e pelos dilemas existenciais de Glauber Rocha, a representação do popular no Cinema Brasileiro reafirma seu papel central em nossa filmografia na década de 90. Em filmes de Walter Salles e Cacá Diegues podemos perceber este resgate, através de mecanismos catárticos que exploram a polaridade inversa estabelecida entre o quadro sórdido da nação e a figuração do elemento popular. No âmago do cinema da retomada está a busca de um redimencionamento da relação de má-consciência para com a fratura social que caracteriza a sociedade brasileira. Também, sintomaticamente, permanece neste cinema algo que poderíamos identificar como uma dificuldade, ou incômodo, em ver nossa imagem representada na tela. O quadro não apresenta traços muito distantes daqueles expressos por Salles Gomes há 30 anos. O diferencial está em que, hoje, a dificuldade manifesta-se não mais através de uma negação em primeira instância do que é exibido. Revela-se, no entanto, através de um mecanismo mais complexo de identificação, estabelecido a partir da fixação de um "foco narrativo crítico" que perpassa o conjunto do filme como uma postura esperta. O espectador, então, passa a identificar-se com o foco "esperto" propriamente, o que garante sua adesão à coletividade dos críticos e permite sua exclusão cômoda do universo negativo descrito. A questão da representação do popular continua a ser, no cinema brasileiro contemporâneo, o eixo através do qual circulam suas obras mais significativas.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.