Madeleines, Fotografias e Imago Agens

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MADELEINES, FOTOGRAFIAS E IMAGO AGENS Autora: Bruna Penna Mibielli1 Resumo Este artigo apresenta um estudo sobre o potencial de imagens fotográficas atuarem como imago agens: uma imagem forte que surge no tempo presente, capaz de passear pelo vasto arquivo da memória vivente no passado. Tudo pode, em determinada situação, vir a ser uma imago agens: um cheiro, um objeto, um lugar, uma música ou a madeleine de Proust, por exemplo. Mas como se dá o acesso de fotografias à memória? Em uma investigação artística nomeada Quintal, fotografias são testadas como imago agens para esclarecer como se dá o processo de recordação de lembranças. Através da análise de depoimentos acerca de uma fotografia retratando uma vivência pessoal, questões são levantadas sobre a capacidade dessa imagem de acessar a memória do fotografado e do fotógrafo – não só as lembranças vívidas, mas também as que já estão cobertas pelos véus do esquecimento. Palavras-chave: Fotografia, memória, invenção, imago agens. Um episódio muito difundido na literatura que mostra uma imago agens 2 atuando foi feito por Proust em Em Busca do Tempo Perdido – No caminho de Swann, no qual o autor descreve um processo de reminiscência iniciado pela degustação de uma madeleine. “Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio recusei e, nem sei bem porque, acabei aceitando. Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleínes, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleíne. Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma

                                                                                                                1

Doutoranda em Arte Contemporânea do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra. Bolsista CAPES (BEX 1140/15-9). E-mail: [email protected]. 2 Conceito que emerge na literatura da arte da memória e designa imagens capazes de colocar em movimento a máquina da memória. O tema foi trabalhado amplamente pelas autoras Lina Bolzoni em seu livro La Stanza Della Memoria, Frances Yates em The art of Memory e Mary Carruthers em The Book of Memory.

essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreendê-Ia? Bebi um segundo gole no qual não achei nada além do que no primeiro, um terceiro que me trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que busco não está nela, mas em mim. Ela a despertou mas não a conhece, podendo só repetir indefinidamente, cada vez com menos força, o mesmo testemunho que não sei interpretar e que desejo ao menos poder lhe pedir novamente e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um esclarecimento decisivo.” (PROUST, 2002)

O autor acaba por inferir a existência de uma memória natural e espontânea, movida por algo no presente, que ao acaso traz do passado emoções e sensações. A madeleine no chá é um exemplo de uma imagem3 forte, que foi para o personagem, responsável por mover a máquina da memória e trazer lembranças que ele pensara já ter esquecido. Proust descreve detalhadamente a natureza dos movimentos mnemônicos e a ação da imago agens; feito louvável fruto da sua profunda sensibilidade. Outra importante questão que aparece no excerto é que, à medida que o personagem continuava a degustar a madeleine, na tentativa desesperada de experimentar e reviver o passado, percebe ao final a ineficácia do seu ato. Assim a imago agens de Proust funciona ao acaso e é independente de vontades. Tendo a passagem de Proust como um exemplo do funcionamento de uma imago agens, poderia uma fotografia agir da mesma forma? Se a memória for compreendida apenas como uma máquina de rememorar 4 , a fotografia certamente falharia na grande maioria das tentativas. Ela não é uma imagem criada espontaneamente pela memória que consegue tão prontamente acessar lembranças, mas uma imagem à parte, um simulacro, desvinculada da memória em si. Entretanto é preciso notar que a fotografia gera uma necessidade do lembrar e posto isso a dúvida é pertinente: poderia a fotografia ser útil nos processos de reminiscência? A relação entre uma pessoa e seu álbum de família é algo curioso e aponta soluções para as questões até então levantadas. O caso apresentado a seguir é parte de uma pesquisa de campo realizada durante investigação artística e procura saber que tipo de imagens as fotografias acessam na mente. O método é simples: uma pessoa escolhe uma foto de infância e, olhando para essa imagem, escreve todos os pensamentos que passam pela mente, as lembranças que acessa durante o processo de reminiscência iniciado ao olhar                                                                                                                 3

Imagem aqui designa uma totalidade de impressões que podem vir de encontro à uma pessoa. Tudo aquilo que nos cerca (objetos, pessoas, espaços, etc), nós mesmos (o corpo e a mente) e tudo aquilo que temos em nós (as lembranças, as emoções, o conhecimento, etc) são imagens, segundo Henri Bergson em seu livro Matéria e Memória. 4 Para uma máquina que se presta exclusivamente a rememorar caberiam unicamente as imagens fortes e vívidas na memória, o que é em todo caso absurdo, já que toda memória também é composta por imagens veladas e ofuscadas pelos véus do esquecimento.  

 

para a foto. O segundo passo requer que essa pessoa, que aparece na foto, busque o fotógrafo e, sem discutir ou informá-lo sobre nenhuma de suas lembranças, peça-o que olhe a foto e escreva o seu relato. O resultado é um texto escrito pelo fotografado, um texto do fotógrafo e a fotografia que serviu como base para ambos. Eis um exemplo5: Quintal #1 Participantes: Bruna Penna Mibielli (Fotografado) Teresa Carneiro Penna (Fotógrafo) Imagem analisada pelos participantes:

Relato do fotografado: “Sei que eu estava lá no quintal e que mamãe sempre fazia muitas fotos de mim. Ficava lá com a câmera e pedia poses. Eu estava brincando de bola. Sempre adorei bola e o nosso quintal era ótimo pra brincar. Tinha uma parte de cimento e outra parte onde eu lembro de ter uma ameixeira da qual eu adorava as ameixas. Tinha também um quartinho de bagunça onde eu guardava todos os meus brinquedos e minha mini ferrovia que eu amava. Bom... mas mamãe estava lá e pegou a câmera e pediu pra eu fazer poses na frente da decoração do meu aniversário de palhaço que ela tinha feito para festa no dia anterior.                                                                                                                 5

Em anexo pode-se ver a obra como foi apresentada: textos lado a lado com a imagem fotográfica. Para o artigo os textos fazem parte do corpo do texto no intuito de facilitar a leitura e a ligação entre as idéias iniciais e as análises do trabalho. Os textos foram mantidos em língua original e com linguagem informal.

 

Mamãe sempre caprichava em meus aniversários e fazia tudo com muito carinho. Devia ser por isso que ela queria tirar mais algumas fotos na frente da decoração. Talvez porque também estava de dia e dava pra ver melhor. Sei que de repente eu vi uma cobra do meu lado e acho que não tinha me dado totalmente conta do perigo, mas fiquei totalmente paralisada de pânico. No fundo, acho que fiquei paralisada porque mamãe estava batendo uma foto e eu não podia estragar a foto dela. Então fiquei lá firme até que ela clicou... e depois disso não me lembro de mais nada. Aliás... não tenho bem certeza se me lembro desse caso, mas aconteceu de verdade.” Relato do Fotógrafo: “A gente estava lá. Você devia ter uns dois ou três anos no máximo. Estávamos brincando de queimadinha, um jogo que cada um por si queima o outro com a bola. O terreiro era até a metade acimentado e a outra metade a florestinha. Florestinha porque tinha uma parreira, uma ameixeira gigante, uma horta, uma amoreira e o gramado que estava selvagem. O que a gente não sabia era que no gramado tinha um buraco gigante que passava por baixo do quintal e ia por debaixo da casa até na rua. Você se lembra que a casa afundou? - Estávamos jogando na parte cimentada do lado da florestinha... Estávamos jogando bola quando de repente apareceu a “Sucuri”. Na verdade essa cobra é uma cobra que a gente chama de Duas Cabeças, ela tem os olhos e a boca na frente, mas no rabo ela tem duas pintas que se parecem com olhos. É uma defesa dela, pois normalmente se ataca o animal na cabeça e como proteção ela tem essa camuflagem. Ela é toda verde e é uma cobra sem veneno. A cabeça é toda redonda como o rabo. As venenosas tem uma cabeça abrindo em triângulo. A câmera fotográfica não estava muito longe. Não me lembro... Devia estar ali na área de serviço. Não podia estar lá dentro. Ah! Espera! Não foi assim não. A gente estava brincando e eu subi pra pegar a máquina pra tirar a foto sua brincando, quando a cobra apareceu. Você teve um aniversário de circo. Amarramos uns lençóis em formato de circo lá debaixo da árvore. Fiz desenhos de palhaço em tamanho grande e espalhei pela casa toda. Esse dia da cobra foram uns dias depois do aniversário. A decoração ainda estava lá. Acho que faltou falar que você estava lá parada no lugar, gritando, ao berros, com o cabelo em pé e uma cara de terror e eu fiz a foto pra depois ir lá te tirar de perto e matar a cobra... Na verdade não me lembro bem o que fiz com a cobra.”

Extrapolando o estudo das lembranças mais vívidas, é interessante encontrar os momentos de incerteza e dúvida nos textos, quando a memória parece falhar. Eles não tratam unicamente do momento retratado, pois as pessoas parecem misturar todo tipo de informação que estava na memória: os fatos

 

ocorridos antes ou depois do instante da foto; coisas que outros disseram; algo sobre o lugar ou outro incidente que ocorreu ali; objetos que estejam na cena; relações entre as pessoas envolvidas e etc. As possibilidades são infinitas, uma vez que se pode misturar lembranças reais ou inventadas para criar a imagem-lembrança ideal para o momento em que se olhou para a fotografia. Lembranças reais e inventadas ocupam o mesmo espaço e vivem juntas, muitas vezes sem distinção, porque o que parece importar é dar novos significados ao presente e transformá-lo num passado, que é conectado com lembranças que existiam previamente. A relação que uma pessoa tem com a fotografia de sua infância inicia um ciclo mnemônico: a memória é acessada através da machina memorialis (máquina da memória), que é posta em movimento por um interesse capaz de carregar uma imagem forte para o presente, então do presente vem uma nova experiência para alcançar velhas lembranças. Esse processo ocorre porque as pessoas precisam de seus passados para que sejam capazes de ver o que está às suas frentes. Algumas pessoas não se lembram nada sobre a foto em questão, entretanto nenhum dos participantes ousou admitir: “Eu não me lembro de nada!” ou “Esqueci de tudo!”. Isso permite inferir o valor de uma fotografia como uma imago agens, visto que, se a imagem-lembrança buscada não pode ser encontrada, a fotografia, tal qual uma janela aberta para a mente, permite a invenção de lembranças a partir da coleção de outras imagens. Por semelhança e aproximação, outras lembranças são combinadas, mais distantes da primeira imagem em questão, mas ainda servindo para saciar a necessidade de lembrar forçada pela fotografia. É por essa razão é preciso descartar a hipótese de que a memória serve apenas para lembrar e entender que a maior das suas potencialidades é a de ser uma máquina de invenções. Assim valida novamente a idéia de que fotografias podem ser imago agens e o fazem de uma maneira tão autêntica como a madeleine. Proust escolheu na infância, mesmo sem saber, a madeleine mergulhada no chá para ser a imagem especial capaz de tocar a sua alma, caso ele não tivesse assim feito, uma fotografia poderia ter criado a necessidade do lembrar e talvez ele tivesse a oportunidade de criar boas lembranças ligadas àqueles momentos tão importantes. BIBLIOGRAFIA ANONYMOUS – Rhetorica ad Herennium. Loeb Classical Library, Harvard University Press, 1954. ARISTOTLE – De Memoria et Reminiscentia, translated to Aristotle on Memory. (trad.) R. Sorabji, 2nd.ed. EUA: The University of Chicago Press, 2006.

 

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