Máquinas de imagem: arte, tecnologia e pós-virtualidade

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Descrição do Produto

Arlindo MAchAdo

CESAR BAIO

MÁQUINAS DE IMAGEM ARTE, TECNOLOGIA E PÓS-VIRTUALIDADE

CESAR BAIO MÁQUINAS DE IMAGEM

cesAr BAio é mestre e doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, onde realizou pesquisas de caráter transdisciplinar nos campos do cinema, das artes visuais e da tecnologia. Parte deste trabalho foi realizado durante seu estágio de pesquisa no Vilém Flusser Archive, na Universität der Künste, em Berlim, Alemanha. Atualmente, é professor do curso de Cinema e Audiovisual e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará, onde coordena o actLAB – Laboratório de Investigações em Arte, Ciência e Tecnologia.

Este livro que o leitor tem em suas mãos representa o coroamento de uma série de discussões, polêmicas e produções que se estendem pelo menos desde os anos 1960, mas que ganhou um contorno mais definido a partir do final do século XX: tratase de um balanço do que significou o surgimento das tecnologias digitais nos conceitos de cultura, arte, filosofia e modos de vida. O autor, Cesar Baio, atualiza as discussões anteriores colocadas por autores como Vilém Flusser, Edmond Couchot, Peter Weibel, Júlio Plaza, Lúcia Santaella e tantos outros que as formularam num período imediatamente anterior, sobre como tudo se transforma quando se passa para uma existência digital, não apenas nas imagens, sons e textos, mas também na condução do pensamento, dos novos comportamento e modos de produção e consumo, da vida contemporânea, enfim. Ele analisa também uma seleção de novos criadores, nos mais diversos campos das artes, que souberam tirar proveito não apenas das novas tecnologias, mas também das novas formas de sociabilidade e de economia política que se formaram ao redor delas. A ideia é pensar sobre o que podemos hoje ainda dizer mais sobre esse fenômeno e também captar as mudanças que aconteceram nesse universo depois das análises dos primeiros cientistas e artistas. Mas Baio não fica apenas na citação de autores e obras. Ele também interfere na discussão com suas ideias próprias e arrisca suas próprias opiniões sobre o que está acontecendo exatamente agora. É um pensador no legítimo sentido do termo, não apenas um repetidor de ideias alheias. E, além de pensador de peso, ele é também artista, o que explica a facilidade com que ele transita no universo das poéticas contemporâneas. Enfim, trata-se de um livro que o leitor lerá com prazer (porque é literariamente bem escrito), mas no qual poderá entrar em contato com o pensamento mais avançado de hoje.

“Em Máquinas de imagem, Cesar Baio nos proporciona uma acurada leitura da condição contemporânea, atualizando as proposições desenvolvidas por Vilém Flusser sobre os aparelhos técnicos de mediação. Uma perspectiva teórica consistente, radicada na identificação das linhas de forças singularizantes dos fenômenos culturais contemporâneos, considerados a partir da leitura crítica das formulações conceituais predominantes até o início dos anos 1980, mas, igualmente decisivo, desde o ponto de vista da liberdade do artista e do participante implicados na aventura estética. A percepção dos acontecimentos históricos, o pensamento filosófico e a experiência estética encontram-se entrelaçadas nas análises empreendidas por Baio, de modo a proporcionar as condições de existência de um pensamento que se exerce orientado pelo princípio do desafio e da superação, em diálogo direto com a experiência artística processual, desencadeada a partir das disposições singulares das imagens e dos participantes, quando o que faz diferença são as relações instituídas no encontro entre a obra e o seu ativador.” Do Prefácio de Antonio FAtorelli

MÁQUINAS DE IMAGEM ARTE, TECNOLOGIA E PÓS-VIRTUALIDADE

MÁQUINAS DE IMAGEM ARTE, TECNOLOGIA E PÓS-VIRTUALIDADE

CESAR BAIO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7- 5880 S237m

Santos, Cesar Augusto Baio Máquinas de imagem: arte, tecnologia e pós-virtualidade / Cesar Augusto Baio Santos. São Paulo: Annablume, 2015.

208 p.; 16 x 23 cm. Inclui referências. ISBN: 978-85-391-0719-3. 1. Flusser, Vilém, 1920-1991. 2. Semiótica. 3. Comunicação. 4. Comunicação visual. I. Máquinas de imagem. II. Título: arte, tecnologia e pós-virtualidade. CDD 302.2 Índice para catálogo sistemático: 1. Flusser, Vilem, 1920-1991 2. Semiótica 3. Comunicação 4. Comunicação visual

Máquinas de imagem: Arte, Tecnologia e Pós-virtualidade Capa Jeferson Santiago de França Imagem de Capa Surface tension; Rafael Lozano-Hemmer Projeto e Produção Coletivo Gráfico Annablume Annablume Editora Conselho Editorial Eugênio Trivinho Gabriele Cornelli Gustavo Bernardo Krause Iram Jácome Rodrigues Pedro Paulo Funari Pedro Roberto Jacobi 1ª edição: julho de 2015 © Cesar Baio Annablume Editora Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 554 . Pinheiros 05415-020 . São Paulo . SP . Brasil Televendas: (11) 3539-0225 – Tel.: (11) 3539-0226 www.annablume.com.br

Para Doralice e Pedro.

AgrAdecimentos

Este livro apresenta a conclusão de um longo percurso de pesquisa que teve início com a minha entrada no doutorado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP e que agora torno público na esperança de que sua publicação possa disparar outras reflexões, levantar novos problemas de pesquisa e permitir outros encontros teóricos e sensíveis. Como não poderia deixar de ser, as análises e incursões teóricas aqui apresentadas contaram com a colaboração de muitas pessoas. Por isso, gostaria de agradecer professores, colegas, amigos e todos aqueles que contribuíram para esta pesquisa. Entre estes não posso deixar de fazer menção à Ziegfried Zielinski, Marcel Marburguer, Giselle Beiguelman, Antonio Fatorelli, Lúcia Leão, André Parente, Erick Felinto, Diana Domingues, Jarbas Jacome, Chris Sugrue, Jean Dubois, Lucas Bambozzi, Kátia Maciel, Chris O’Shea, Jim Campbell, Golan Levin, Lynn Hughes, Simon Laroche, Laura Beloff, Karolina Sobecka, David Rokeby, Gary Hill, Raphael Lozano-Hemmer, Edmond Couchot, Doralice Baio, Glaucia Santos, Glauco Santos, Walmeri Ribeiro, Fernanda Gomes, Fafate, Juliano Azevedo, Washington Freitas, Tatiana Baruel, Ana Pilchowski, Vera Pilchowski, Eduardo Pane, Edmilson Carvalho, Kátia Moraes, Carolina Natal, Claudia Becker, Margit Rosen, Brigitte Böttcher. Agradeço ao professor Norval Baitello, que acreditou em um jovem estudante com um punhado de ideias, mas sem saber como conectá-las. Agradeço especialmente ao meu orientador Arlindo Machado, pela precisão de suas contribuições e pelas aulas sempre instigantes. Sou grato também ao suporte dado pelo CNPq por meio de uma bolsa de pesquisa.

sumário

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Prefácio Antonio Fatorelli

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Introdução – Arte, Mídia e Vilém Flusser

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Para pensar a arte e a mídia Vilém Flusser, o filósofo que gostava de jogar O método analítico de Flusser A sombra da novidade

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1. Flusser e a imagem: rumo a uma arte dos aparatos

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1.1 Imagem: da forma ao aparato 1.1.2 O artista e a tecnologia: da subversão à invenção

45 45 48 50

1.2 Rumo a uma filosofia do aparato 1.2.1 O dispositivo cinematográfico 1.2.2 O dispositivo como modelo filosófico 1.2.3 Os aparatos culturais e a projeção de imaginários

53 56 58 64

1.3 A arte no mundo codificado 1.3.1 O aparato de ordem tecnológica 1.3.2 A arte e o aparato midiático 1.3.3 O artista: de funcionário a jogador

69 70

1.4 Os artistas e suas máquinas de imagem 1.4.1 Rumo à imagem como projeto

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2. Interfaces digitais: da imersão ao pós-virtual

75 77 85

2.1 A virtualidade e a questão da imersão 2.1.2 Programando espelhos de Alice 2.1.3 Máquinas de transcendência e a gênese do virtual

92 92 94 97

2.2 Repensando a condição da imagem 2.2.1 A imagem: da representação à concretude 2.2.2 A imagem como projeto 2.2.3 A pós-virtualidade da imagem

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3. Imaginários cíbridos

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3.1 Realidade aumentada e a visibilidade do aparato

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3.2 Sistemas perceptivos simulados 3.2.1 A imagem como camada de realidade 3.2.2 Do olhar à cognição 3.2.3 Politizando a questão: obras orwellianas 3.2.4 O sujeito armazenado e catalogado

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3.3 Da análise à interpretação do corpo

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4. A imagem cibernética

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4.1 Operando com formas sintéticas

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4.2 Da imagem sintética à cibernética 4.2.1 A objetivação da imagem 4.2.2 A imagem cibernética: entre a ‘‘coisa’’ e o ‘‘outro’’

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5. Rumo à imagem performativa

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5.1 Repensando o argumento: a outrificação da imagem 5.1.1 Performance: a arte da presença 5.1.2 A presença como linguagem 5.2 Por um regime performativo da imagem 5.2.1 A obra como encontro 5.2.2 O valor expressivo do gesto 5.2.3 Acessando a intimidade

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5.3 Programando comportamentos sensíveis 5.3.1 A imagem performativa 5.3.2 O programa e o performer, entre a determinação e a liberdade 5.3.3 O caso de Sophie 5.4 Novas sensibilidades para novos aparatos

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Conclusão – Notas para uma futura teoria da imagem

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Referências bibliográficas

Prefácio

Antonio FAtorelli

As mutações estéticas e éticas desencadeadas pela cultura digital colocam em perspectiva as definições tradicionalmente associadas aos meios fotográfico, videográfico e cinematográfico, enquanto promovem as condições favoráveis à emergência de um pensamento crítico. Estabelecer essa distância em relação aos dispositivos técnicos engendrados pelas formações culturais precedentes é importante para assinalar, no atual momento de substanciais reconfigurações, o sentido das mudanças em curso e de delinear os estatutos da imagem, do artista e do observador contemporâneos. Sabemos que os ideais de ruptura com as formas culturais hegemônicas, compartilhados por inúmeros movimentos culturais ao longo do período moderno – nomeadamente, as vanguardas históricas (o construtivismo russo, o surrealismo francês, o futurismo, entre elas) e a pop-arte –, encontraram-se frequentemente atravessados pelas manifestações de enfrentamento com as forças oponentes, de modo a comprometer irremediavelmente seus pressupostos transgressores. A busca pelo novo, do mesmo modo que o ideal de constituição de outros paradigmas referidos à experiência contemporânea, encontra-se manifestamente perpassada por essas iniciativas precedentes, sinalizando que o projeto de atualização dos balizadores culturais demanda, na sua formulação, a elaboração de um pensamento duplamente direcionado, igualmente atento às soluções de compromisso com as formas precedentes e às expressões singulares das configurações emergentes. Máquinas de Imagem desenvolve, nesse particular, uma análise instigante convergindo, em um mesmo movimento, as transformações proporcionadas pelas formas imagéticas analógicas, em especial as experiências produzidas pelos movimentos da arte moderna pautados na aproximação entre a alta arte e a baixa cultura, e os modelos cognitivos, simbólicos, sensíveis e políticos singularmente convocados pelos modos de existência das tecnologias digitais.

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Na atual era pós-digital, uma vez assimiladas as trajetórias empreendidas pelas vanguardas históricas, pelos pós-modernistas e pelos defensores, no início dos anos 1980, da revolução do digital, defrontamo-nos com a oportunidade de avaliar de modo crítico o papel das inovações tecnológicas no âmbito dos fenômenos culturais – da arte, do cinema, da literatura, do teatro –, e das formulações teóricas. Neste particular, de promover um pensamento limiar, assinalado pelo duplo exercício das assimilações e das ultrapassagens, singularmente emancipado das antigas proposições dicotômicas fundamentadas na oposição entre termos antagônicos. Importa, no contexto atual, examinar as reconfigurações – estéticas, institucionais, políticas e éticas – promovidas pela disseminação das tecnologias digitais em todos os domínios da vida. Nesse momento transicional, marcado pelo surgimento de novos formatos e pela elasticização dos regimes temporais das imagens, fortemente intensificadas pelas tecnologias digitais, o que se apresenta notável são os novos modos de existência das imagens, seu significativo deslocamento da condição de objeto oferecido ao olhar para o de interface que passa a responder, a agir e a performar em situações dinâmicas de trocas, de tal modo a convocar, de forma implicada, o corpo e a participação do observador. Em Máquinas de imagem, Baio nos proporciona uma acurada leitura da condição contemporânea, atualizando as proposições desenvolvidas por Vilém Flusser sobre os aparelhos técnicos de mediação. Uma perspectiva teórica consistente, radicada na identificação das linhas de forças singularizantes dos fenômenos culturais contemporâneos, considerados a partir da leitura crítica das formulações conceituais predominantes até o início dos anos 1980, mas, igualmente decisivo, desde o ponto de vista da liberdade do artista e do participante implicados na aventura estética. A percepção dos acontecimentos históricos, o pensamento filosófico e a experiência estética encontram-se entrelaçadas nas análises empreendidas por Baio, de modo a proporcionar as condições de existência de um pensamento que se exerce orientado pelo princípio do desafio e da superação, em diálogo direto com a experiência artística processual, desencadeada a partir das disposições singulares das imagens e dos participantes, quando o que faz diferença são as relações instituídas no encontro entre a obra e o seu ativador. A concepção crítica de Flusser sobre o modo de funcionamento dos aparelhos técnicos, inscrita na sua filosofia do aparato, e a sua noção de futuro essencialmente dinâmica apresentam-se cruciais nas análises elaboradas por Baio a propósito das relações engendradas pela cultura digital. Por um lado, a percepção das funções normativas associadas aos aparelhos técnicos, uma vez avaliados os seus desempenhos convencionais, submetidos à lógica do controle social, do aumento do consumo e de manutenção da ordem vigente, possuiu o poder de despertar uma postura crítica em relação ao seu modo de funcionamento, de tal modo a encorajar usos originais e disruptivos desses mediadores, capazes de consignar um sentido verdadeiramente inventivo ao trabalho do criador de imagens. De modo análogo, as proposições de

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Flusser em relação à imagem encontram-se dimensionadas relativamente a um possível, a um desdobramento futuro, sempre de modo a conceber uma ação de interferência, igualmente criativa, por parte do participante, que modifica o modo pelo qual a própria imagem se faz presente. Uma leitura que desloca a imagem do lugar passivo, unicamente referido a um tempo já decorrido, ou às determinações de ordem formal quanto a sua natureza estética, para torná-la maleável, contaminada pelas mutações implicadas numa experiência que é sempre processual e atual. Esses dois balizadores conceituais trabalhados por Flusser – a crítica do modo de funcionamento dos aparelhos e a condição processual da imagem – decorrem da sua original concepção sobre a natureza simbólica dos signos, inclusive dos signos figurativos da fotografia e do cinema, frequentemente confundidos com os sinais naturais. Uma perspectiva radical, que desloca a crítica da imagem e da cultura do âmbito da filosofia da representação, para situá-las no terreno das construções simbólicas. Baio expande essa proposição da imagem como artefato às configurações das tecnologias digitais, apontando para uma vida e uma performatividade da imagem, para o seu vetor projetivo, destacando a sua vocação de alterar o sentido de presença do participante, do mesmo modo que a sua relação com o outro e com o entorno. A perspectiva de análise empreendida por Baio apresenta, nesse ponto, uma inflexão decisiva relativamente aos instrumentais conceituais mobilizados na pesquisa. Trata-se, em primeiro lugar, de assinalar a natureza simbólica de todos os signos culturais de modo a identificar o potencial criativo e transformador dos aparatos imagéticos modernos, uma vez reconhecidos os seus modos próprios de funcionamento, seus códigos e programas, e os pressupostos modelos de conhecimento que atualizam. Em um segundo momento, de considerar os dispositivos de mediação digital – o campo dos ambientes imersivos, da realidade aumentada, da arte cibernética e dos dispositivos móveis em rede – associados a uma outra lógica processual, momento em que a imagem encontra-se especialmente referida ao seu modo constitutivo e aberta a desempenhar funções autônomas. Uma crescente autonomia da imagem que, entretanto, não transcende o âmbito da experiência. De modo inverso, depreende-se que a cada novo grau de autonomia, a imagem passa a desempenhar funções progressivamente relacionadas às instâncias fenomenológicas presentes na experiência sensível, vindo a implicar o corpo do participante, na sua dimensão sensorial, de modo ainda mais inclusivo. A perspectiva analítica empreendida por Baio possibilitou apreender os desdobramentos da experiência contemporânea baseada em mediações tecnológicas desde o ponto de vista de uma radical corporeidade, além de apontar para as inconsistências inscritas nas primeiras formulações, enunciadas no decorrer dos anos 1970, sobre as possibilidades inauguradas pelas tecnologias digitais, fortemente ancoradas no ideal utópico de construção de mundos artificiais, manifestamente emancipadas das instâncias materiais e sensoriais da experiência. Com efeito, no âmbito dos dispositivos tecnológicos, as relações incisivas, inaugurais e complexas instituídas pelas interfaces

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digitais não se encontram voltadas à representação de realidades anteriores à instituição das próprias imagens, nem muito menos, uma vez dimensionada sua condição inaugural e projetiva, direcionadas à elaboração de mundos paralelos alternativos. Uma condição peculiar, intensificada pelas singularidades da codificação sintética, inscritas no domínio que Baio designa de regimes de projeção. A natureza do aparato digital, processual e aberto aos usuários, confere uma substancial margem de atuação por parte do artista, no que tange ao seu domínio sobre os elementos materiais constitutivos dos aparatos, cancelando, ao menos parcialmente, as tradicionais funções de caixa preta, desempenhadas pelos aparatos modernos. Tal singular condição de existência do aparelho contemporâneo favorece a percepção de que, além das questões de consciência mobilizadas na postura crítica envolvendo o seu funcionamento, os próprios aparatos, uma vez observados os sistemas simbólicos e os modelos de pensamento que inscrevem, encontram-se especialmente sujeitos à manipulação criativa. Essas sucessivas aberturas, compartilhadas pelo participante, pelo artista e pelos jogos com os aparelhos no contexto pós-digital, encontram-se investidas de um poder expansivo, ensejando as práticas voltadas ao exercício da liberdade, crítica e criativa, em todos os domínios da experiência contemporânea. Cesar Baio nos oferece, nesse notável livro, um percurso de pesquisa que procede ao recenciamento dos textos clássicos e das recentes investigações consagradas à teoria das imagens, sempre de modo a privilegiar as margens de liberdade do artista, do participante e do programador, consideradas estratégicas nas nossas sociedades contemporâneas avançadas e nos potenciais processos de emancipação estética e política.

introdução Arte, mídiA e Vilém flusser

PArA PensAr A Arte e A mídiA É apenas graças à arte que somos constantemente reinseridos no solo da realidade, solo este encoberto pelos artifícios e artimanhas da situação cultural que nos cerca. A arte é a nossa única janela para a vivência concreta da realidade. (FLUSSER, Aspectos e prospectos da arte cibernética: 5)

Desde o alvorecer da arte contemporânea, as operações na estrutura interna das máquinas de produção e de circulação de imagens e sons sempre estiveram no centro de interesse de gente como Nam June Paik, Wolf Vostel, Bill Viola, Bruce Naumam, Dan Graham, Steina e Woody Vasulka. Sob a influência do Dadaísmo, do Fluxus, da Arte Pop e da Arte Conceitual, esses e outros artistas da época deixaram de lado a utilização simples e instrumental dos aparelhos industriais, para intervir no interior dos circuitos eletrônicos e da organização dos sistemas midiáticos. Boa parte da produção feita entre as décadas de 1960 e 1980 foi dedicada a esse projeto por meio da subversão de aparelhos de TV, câmeras, gravadores de fita K7, da intervenção criativa em programas de TV e transmissões via satélite e, também, da reinvenção dos espaços arquitetônicos de fruição e dos fluxos de imagens e sons da TV, do cinema e dos sistemas de vigilância. Estas foram as estratégias de muitos artistas para discutir os impactos das tecnologias de mediação em uma sociedade na qual a comunicação de massa se consolidava progressivamente, marcada pela concentração de poder, pela padronização industrial e pela homogeneidade do entretenimento em larga escala. No

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entanto, tais práticas ganham outros contornos a partir da virada de século. Em resposta às transformações culturais que se desdobravam e, ao mesmo tempo, influenciavam a incorporação da base técnica digital nos sistemas midiáticos ocorrida na década de 1990, os artistas passaram a reformular suas práticas e suas estratégias de ação. O rompimento definitivo da vinculação entre o suporte técnico e a estética, a facilidade de acesso ao conhecimento necessário para o desenvolvimento de hardware e software customizados, a interatividade das redes fixas e móveis são apenas algumas características que marcam tais transformações. Em termos gerais, esse novo cenário é marcado por uma profunda mudança tanto na maneira como compreendemos e nos relacionamos com as tecnologias de mediação quanto no lugar que elas ocupam na sociedade. No final da década de 1980, Mark Weiser cunhou o termo “computação ubíqua” para designar um estágio futuro da tecnologia no qual nossa relação com os computadores se tornaria mais naturalizada. Os sistemas digitais deixariam de estar restritos aos chamados computadores pessoais e se integrariam às coisas que nos cercam de maneira silenciosa e invisível. A tecnologia recuaria para o plano de fundo das nossas vidas, de modo que passaríamos a nos relacionar de maneira constante e “tranquila” com os equipamentos mais diversos, todos conectados entre si. De fato, atualmente, cada vez mais os sistemas computacionais se miniaturizam, se multiplicam e se inserem de maneira mais íntima à nossa vida. No horizonte da ubiquidade computacional, tudo o que nos cerca passa a incorporar microcontroladores, sensores, conexões em rede, telas e projetores. Com isso, roupas, objetos, corpos, edificações, espaços públicos e privados se transformam em plataforma eletrônica para produção e circulação de imagens, sons e textos. O grau de avanço tecnológico imaginado por Weiser e que começa a se revelar mais claramente no nosso cotidiano agora nos coloca, assim, no alvorecer do que se poderia conceber como “ubiquidade tecnomidiática”, uma condição na qual tudo que está a nossa volta, inclusive nosso próprio corpo, é transformado em uma mídia tecnológica. Embora esta dimensão estética não tenha chamado a atenção de Weiser de início, os desdobramentos da computação ubíqua na produção simbólica colocam em crise a concepção de mídia tal como algo precisamente delimitado e circunscrito a um tempo e a um espaço específico (a sala de projeção para o cinema, a sala de estar para a TV, a galeria de arte para o vídeo). Ao mesmo tempo em que nada mais escapa aos domínios da mediação tecnológica, a mídia passa a se diluir e se fundir em tudo, tornando-se parte indissociável da experiência concreta que temos do mundo. É certo que este cenário desloca radicalmente o que compreendemos como mídia, mas, é preciso dizer, ele também o faz com a maneira como entendemos a imagem, o corpo, o espaço, o outro e a sociedade na qual estamos imersos. Mas, existe outro aspecto desse contexto que não foi previsto por Weiser e que vem se tornando mais evidente nos últimos dez anos. Trata-se do fato de que, para além do aspecto material da incorporação dos microcontroladores e das redes de co-

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municação no cotidiano, a ubiquidade computacional pode ser capaz de transformar profundamente o modo como se organiza o nosso conhecimento sobre a tecnologia. Isso porque, com a assimilação intensiva dos aparatos técnicos nas práticas culturais correntes, a tecnologia perde progressivamente seu caráter enigmático e deixa, pouco a pouco, de ser aquela caixa-preta acessível apenas a uma quantidade restrita de especialistas e corporações que fazem girar a indústria da tecnologia. No mesmo ritmo em que os sistemas computacionais são incorporados no cotidiano, o conhecimento sobre tecnologia tem se popularizado, favorecendo o acesso de um público sem formação especializada a um saber específico. Este processo é acelerado por uma série de ações realizadas por grupos organizados que utilizam a internet como base de produção e difusão de tecnologia. Fundadas na ideia de que o conhecimento deve ser compartilhado e gratuito, multiplicam-se as comunidades que desenvolvem e distribuem tecnologia, oferecem apoio técnico (em fóruns, redes sociais e outros canais) e disponibilizam uma vasta documentação sobre software e hardware de acesso livre. Graças a iniciativas como estas, agora é possível que, com um pouco de tempo e vontade, qualquer pessoa sem formação especializada em tecnologia possa programar aplicativos, montar seu hardware e produzir suas próprias ferramentas e componentes. Dentre os projetos mais difundidos na rede estão o OpenFrameworks, o Processing e o Arduíno1, que simplificam o uso dos poderosos recursos de linguagens de programação complexas como C++ e Java, assim como da microeletrônica. Estas práticas a um só tempo influenciam e se desdobram da multiplicação da produção de aparatos tecnológicos de mediação não industriais, algo que ultrapassa o contexto específico da arte. Uma quantidade cada vez maior de pessoas passa a entender que elas mesmas podem criar máquinas e aplicativos que sejam capazes de auxiliá-las nas tarefas mais diversas, o que intensifica ainda mais o ritmo da incorporação dos sistemas computacionais no dia-a-dia. No campo da arte, essa prática amplia exponencialmente as possibilidades de invenção de máquinas simbólicas experimentais, colocando em outro patamar a pesquisa especulativa por novas formas de imaginar (criar imagens). Embora o contexto atual possa ser relacionado, à primeira vista, a outros momentos históricos em que havia uma efervescência na produção de máquinas simbólicas, tal como aquele do fim do século XIX, por exemplo, que levou à invenção dos aparatos midiáticos que viriam a se estabelecer décadas mais tarde, o cenário atual mantém peculiaridades que podem caracterizá-lo como um momento singular na história da mídia. De fato, em outros tempos também houve uma busca pela invenção de novas formas de produção, registro e transmissão de imagens e sons. A invenção do cinema, 1.

Ainda que estes projetos possam ser superados daqui a certo tempo, eles já conquistaram um papel de relevância na história da disseminação efetiva de conhecimento sobre tecnologias livres.

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do fonógrafo, do rádio e da TV são consequências disso. Contudo, tanto o imaginário que se formava em relação às tecnologias de mediação quanto a extensão do conjunto de práticas especulativas daquela época era outro. Dentre as marcas mais importantes que caracterizam o momento atual estão a força colaborativa e a ideia de que o conhecimento, a produção simbólica e a tecnologia precisam ser livres e acessíveis a todos. Esta forma de pensar, que é potencializada pela comunicação via internet, orienta a cultura do conhecimento livre, do low tech e do Do It Yourself (DIY), e tem corroído a lógica da indústria do entretenimento e do mercado de tecnologia por meio de uma reformulação profunda na maneira de pensar as relações entre tecnologia, mídia e sociedade. Um dos aspectos mais importantes deste cenário talvez seja o fato de que esta mudança paradigmática retira o caráter mágico que por muito tempo mitificou a mídia como algo inacessível e a revela como um campo fértil para a experimentação estética e o posicionamento político. No campo abrangente da arte contemporânea, esta reformulação na maneira de pensar o lugar da tecnologia na sociedade e seus aspectos estéticos e políticos ainda carece de reflexão. Dado que é cada vez mais difícil pensar a cultura contemporânea sem levar em consideração sua permeabilidade à tecnologia, é urgente uma efetiva universalização para o campo geral da arte de problemáticas que por muito tempo foram circunscritas às áreas consideradas como guetos, tais como a da netart, da arte cibernética, da bioarte e da artemídia2 de maneira geral. Diante disso, cada vez faz menos sentido separar as práticas artísticas que se dedicam às questões das mídias e das tecnologias em qualquer campo isolado da arte contemporânea. Por outro lado, torna-se mais evidente que, ao longo da história da arte produzida com (e para) os meios tecnológicos, muitos artistas sempre estiveram voltados de um modo ou de outro às operações no nível dos aparatos midiáticos. Reconhecer isso confere uma nova perspectiva na análise desta produção e permite traçar uma linha que atravesse uma parte significativa da media art a partir da identificação de diferentes estratégias de ação em relação aos aparatos técnicos de mediação. Seja pela subversão dos aparelhos existentes, pela intervenção nos circuitos e fluxos de informação ou pela invenção de aparatos experimentais de mediação, desde a videoarte até as manifestações experimentais mais recentes da artemídia, os artistas sempre es2.

O termo artemídia, em seu sentido amplo, é uma forma brasileira de interpretar (e de recortar) o que é entendido pelo termo abrangente “media art”. A expressão em língua inglesa é usada ao redor do mundo para se referir a um conjunto de práticas criativas que se utilizam das tecnologias para produção, distribuição e consumo de imagens, textos, sons e outros modos de comunicação. Embora muitas vezes seja relacionado à arte, de maneira geral, o termo é aplicado também em áreas como design, propaganda, jogos eletrônicos, entretenimento, desenvolvimento de aplicativos etc. No entanto, uma definição stricto sensu do termo, tal como sugerida por Arlindo Machado, é capaz de conceituar a artemídia de um modo mais preciso. O conceito elaborado por Machado (2007: 7-8) considera artemídia as propostas artísticas que não são apenas feitas com e para os meios de comunicação, mas que, prioritariamente, problematizam, dialogam e produzem intervenções críticas na mídia e nas diversas áreas da tecnologia e da ciência.

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tiveram interessados em se inserir dentro das máquinas de produção simbólica para, a partir desse lugar, propor rearticulações críticas e qualitativas das suas estruturas internas de funcionamento. Entretanto, diante desse novo cenário esboçado acima, o artista é chamado a repensar suas práticas e a si mesmo. Além de ampliar os recursos disponíveis ao artista para a invenção de aparatos técnicos originais, a mudança na maneira de entender a tecnologia aumenta as possibilidades de operação no interior da caixa-preta dos aparelhos industriais, o que permite incursões subversivas mais profundas nos seus circuitos eletrônicos e códigos digitais. Por outro lado, revela-se mais claramente o funcionamento interno das instituições e dos circuitos midiáticos, o que confere mais fôlego aos artistas nas suas intervenções. Mas, se tais transformações conferem um novo olhar às estratégias utilizadas pelos pioneiros e renovam o fôlego das novas gerações, elas também colocam novos problemas ao artista. É muito pouco provável que um artista atento ao seu tempo não se sinta convocado a se posicionar em relação a esse contexto e a pensar o papel que a tecnologia tem assumido na maneira como estabelecemos nossa relação com o outro, com o mundo e com nós mesmos. Se até bem pouco tempo ele se via em posição de refletir sobre aos modelos estéticos, a concentração de poder e os modos de produção da indústria da comunicação de massa, qual deve ser o seu lugar em uma sociedade atravessada pela ubiquidade tecnomidiática? Como não se posicionar de maneira ingênua diante de uma cultura em que a tecnologia atravessa a sensibilidade, o corpo, a sociabilidade, a política, a economia, as instituições e muitas outras dimensões da realidade? Quais seriam as estratégias mais efetivas de ação? Dessas questões desdobra-se uma problemática em relação ao próprio campo da arte e do seu lugar na sociedade. Se tanto a arte quanto a tecnologia investem na criação de aparatos tecnomidiáticos, como seria possível defini-las como campos de conhecimento e de práticas distintos? A arte estaria correndo o risco de ocupar um lugar de ilustração dos recursos tecnológicos mais recentes e dos conceitos científicos em vigor? O artista deve absorver os modelos de pensamento, terminologias e métodos usados no campo de desenvolvimento tecnológico ou resistir a eles? Na criação desses aparatos artísticos, como se estabelece a relação entre liberdade e determinação, entre invenção e automatismo? Essas questões demonstram a urgência de uma atualização no pensamento crítico sobre as relações entre arte, mídia e tecnologia, assim como demandam teorias que possam ajudar a compreender o cenário e as práticas mais recentes. A pesquisa aqui apresentada toma tais questões como ponto de partida para estabelecer conexões entre pensadores, práticas e obras que possam oferecer pistas para melhor compreender o cenário emergente. O primeiro capítulo, intitulado “Flusser e a imagem: rumo a uma arte dos aparatos” busca uma atualização reflexiva dos parâmetros críticos que nortearam historicamente esse campo de produção artística, visando compreender melhor essa problemática frente as suas práticas e ao estado atual da cultura contem-

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porânea. De início, são passadas em vista as teorias do dispositivo cinematográfico (Baudry) e pós-estruturalista (Foucault, Deleuze), a fim de estabelecer parâmetros que permitam avançar rumo ao pensamento de Vilém Flusser 3. A filosofia do aparato de Vilém Flusser pode oferecer um ponto de entrada interessante para pensar as práticas artísticas para além dos determinismos de qualquer ordem. Flusser chama a atenção para a maneira como a organização interna implicada em cada aparato representa, sobretudo, um modo de fazer específico, uma visão de mundo e um modelo de conhecimento que tem dimensões estéticas, mas também, políticas, éticas e, por vezes, sociais e econômicas, entre numerosas outras. Para ele, estas dimensões abstratas acabam por estabelecer certo modo de conceber e estar no mundo que estaria codificado em todos os elementos simbólicos que se projetam de cada aparato. Segundo essa concepção, o aspecto mais importante na análise de qualquer aparato midiático seria justamente esse modelo de conhecimento, pois é ele que confere valor significante ao mundo. Compreender as máquinas de imagem a partir do conceito de aparato de Flusser implica reconhecer as dimensões abstratas que se escondem atrás da materialidade da tecnologia. Mas significa também entender que os aparatos de ordem técnica fazem parte do complexo sistema simbólico que concebemos como cultura, uma vez que estas camadas abstratas se sedimentam tanto em tecnologias como as da câmera fotográfica, do computador ou das redes de TV, quanto no nosso corpo, na escrita, na sala de aula, no estádio de futebol e em tudo aquilo que projeta de si os fenômenos que compõem o “conjunto de todos os fenômenos” kantiano em que estamos imersos, o qual Flusser concebeu como mundo codificado. Esse modo de entender as tecnologias de mediação e a cultura oferece uma perspectiva interessante para pensar a produção artística contemporânea, pois permite compreender estas propostas criativas como uma tentativa de jogar com as camadas abstratas dos aparatos, que permanecem muitas vezes encobertas pelas tecnologias e circuitos midiáticos. Isso acontece tanto quando os artistas atuam diretamente na materialidade das câmeras, sensores, computadores quanto quando eles intervêm na dinâmica interna das instituições de poder e nos fluxos informacionais da mídia, da arte e do desenvolvimentismo tecnológico. Se todo aparato esconde atrás de si a sedimentação de uma série de camadas de ordem social, econômica, política, ética, cognitiva entre outras, o que estes artistas fazem ao criar suas obras é remexer tais camadas, desacomodá-las, reorganizá-las da maneira como acham mais interessante para tensionar suas incoerências, revelar suas contradições e ampliar sua potência dialógica e de criação do comum. Na estrutura sistêmica dessa organização tais obras tornam-se assim, elas mesmas, aparatos de mediação. 3.

Muitos dos seus textos utilizados neste trabalho permanecem não publicados. Estes textos foram acessados durante um estágio de pesquisa no Vilém Flusser Archive, hospedado na Berlin University of the Arts (UDK) sob os cuidados de Siegfried Zielinski. Por isso, nas referências feitas a estes textos aparece diretamente o nome do texto em questão.

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Para estes artistas a tecnologia tornou-se uma linguagem poderosa para pensar o mundo e a nossa condição em relação a ele. Para muitos, inclusive, operar no interior desses aparatos parece ser mesmo a maneira mais adequada para se posicionar frente a um contexto cultural cujas transformações emergem de maneira dinâmica nas dimensões abstratas que atravessam os sistemas de mediação contemporâneos, sejam estes tomados por suas tecnologias, instituições ou discursos. Trabalhem eles usando câmeras e programas disponíveis no mercado para outros fins que não os da indústria do entretenimento, subvertendo as tecnologias existentes, intervindo no fluxo de informação que circula nas redes ou, ainda, programando software e desenvolvendo hardware, o que pode caracterizar este campo é, assim, o deslocamento da produção artística para intervenções qualitativas e críticas nos aparatos técnicos de mediação por meio das camadas abstratas que neles se sedimentam. Atualizando as estratégias dos pioneiros da arte e tecnologia, alguns artistas operam pela subversão de equipamentos analógicos como câmeras e projetores. Com seus trabalhos, artistas como Anthony Mccall, Milton Marques e Julius von Bismarck fazem repensar a lógica das máquinas de captura e exibição de imagens para além das tecnologias empregadas. Por vezes, a inversão da lógica de funcionamento se dá a partir da ressignificação de projetos abandonados, ideias interrompidas e dos aparelhos obsoletos da chamada dead media, como em A Parallel Image (2009) de Gebhard Sengmüller, White Noise (2007) de Žilvinas Kempinas e Visorama (2000), de André Parente. Alguns artistas, no entanto, assumem explicitamente técnicas de “raqueamento”, de circuit bending, de low tech e de gambiarra, tais como fazem Peter Vogel, e, no Brasil, Jarbas Jácome, Ricardo Brazileiro, os coletivos Gambiologia e O Grivo, entre outros. O trabalho desses artistas obriga a repensar tais mídias e, com isso, lançam novas perspectivas para o exame de questões introduzidas pelas tecnologias mais recentes. Estas questões são tratadas de outra perspectiva quando certos artistas passam a operar com as chamadas novas mídias, surgidas a partir das tecnologias digitais. É isso que acontece quando, por exemplo, artistas como Mark Napier, Joan Heemskerk, Dirk Paesmans, Eva e Franco Mattes, Gilbertto Prado, Eduardo Kac e Giselle Beiguelman subvertem a lógica de programação de sites, o funcionamento das redes de comunicação e dos aplicativos on-line para colocar em discussão questões fundamentais do universo das redes digitais, expondo suas fragilidades e questionando suas incoerências. Muitas vezes o curto-circuito entre o analógico e o digital se dá pelo simples deslocamento de técnicas e instrumentos da indústria midiática, tal como o fazem Gerald van der Kaap, Paul M. Smith e Helga Stein com os aplicativos de correção de imagens fotográficas. Em outros casos, a proposta de tomar a arte como um modo de pensar uma cultura atravessada pelas tecnologias e pelos processos de mediação técnica não se dá necessariamente por meio da fisicalidade das máquinas ou da virtualidade do software, mas sim pela imaterialidade de aparatos muitos mais abstratos do que estes. Esses

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projetos se dão geralmente a partir da criação de ações e situações que habilitem intervenções diretas nos fluxos de informação e de poder dos grandes circuitos midiáticos. Essa é a estratégia de artistas como Yuri Firmeza e a dupla formada por Andy Bichlbaum e Mike Bonanno do coletivo The Yes Men. Sem lidar diretamente com a materialidade da tecnologia, mas bastante conscientes dos processos e procedimentos utilizados pelos meios de comunicação, estes artistas têm como objetivo central a criação de imagens midiáticas que, uma vez inseridas nos sistemas de informação, sejam capazes de desarticular certos discursos e revelar realidades profundamente encobertas pelos circuitos da mídia e da arte. Outra estratégia consiste em assumir as tecnologias mais recentes para criar aparatos originais de caráter experimental. O repertório formado por câmeras, projetores, telas e espaços de projeção, que formavam a base de trabalho para muitos artistas até a década de 1980, foi ampliado significativamente pelas tecnologias de sintetização, pós-processamento, sensoriamento, conexão em rede e interfaceamento interativo introduzidas pela base técnica digital. Esses recursos, que não cessam de se expandir, elevam a um grau sem precedentes a potência estética da tecnologia. Com isso, muita gente passou a investir na criação de aparatos técnicos como estratégia para lidar de maneira crítica e poética com a realidade. Este é um projeto que atravessa a produção artística que se dá no campo da cibernética, da realidade virtual, das caves, da realidade aumentada, do vídeo e do cinema interativo. De certa maneira, esses trabalhos antecipam o cenário de ubiquidade tecnomidiática emergente na medida em que, desde muito cedo, eles vêm assumindo práticas de produção de máquinas simbólicas não industriais. A análise das diversas estratégias que surgem com a incursão da arte no interior antes obscuro das máquinas simbólicas, tal como é empreendida nesse primeiro capítulo, revela uma prática comum a todos esses trabalhos. Em vez de se questionar sobre como criar imagens que melhor representem uma dada realidade, esses artistas têm se perguntado sobre como criar aparatos que projetem de si imagens que os permitam melhor entender o que nos cerca, intervir no mundo, transformar sua dinâmica de funcionamento e modificar o modo como ele é compreendido. Tal mudança de postura aponta para uma dobra fundamental na maneira de pensar tanto as práticas artísticas contemporâneas quanto os modos de existência da imagem. Tais práticas rompem com uma postura baseada na tentativa de representação da realidade em favor de outra pautada na projeção de vetores simbólicos que possam tocar o mundo. A imagem é retirada de sua condição de algo a ser observado e é assumida por sua capacidade de atuar sobre o mundo que a encara. Essa passagem deixa ver uma mudança importante no estatuto da imagem, que passa a não mais responder à definição que a toma como a presença de uma ausência, tal como ela é concebida em geral pela filosofia. Ela passa a interessar mais por sua dimensão de presença, pelo que ela opera com sua atuação no mundo, ou, tal como concebeu Flusser, por seu caráter de projeto e de projétil.

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Em termos teóricos, essa hipótese é estruturada a partir da inversão na maneira como analisamos a imagem feita por Flusser. Para ele a fotografia não é um indício da realidade, tal como o é a marca da pata de um cachorro na neve. Segundo Flusser, para entender a fotografia não faz sentido se interrogar sobre sua relação com o objeto fotografado. Em sua filosofia do aparato, Flusser defende que, se quisermos captar o que a imagem significa atualmente, devemos nos perguntar para onde ela aponta, ou seja, precisamos procurar entender o que ela projeta como vetor simbólico rumo a nós, como ela toca nossos corpos, nossa maneira de conceber o mundo e nossa relação com o outro. O exame das estratégias de ação dessas obras demonstra que a inversão de sentido da imagem pode dizer muito da maneira como a arte vem sendo pensada e produzida na contemporaneidade. Esta seria uma marca tão presente que, em alguns casos, tal mudança no estatuto da imagem chega a ganhar contornos formais. Isso acontece em muitas das obras que exploram as tecnologias interativas em uma busca constante por novas formas de interfaceamento entre imagem e corpo. Se for possível identificar algum traço em comum na arte produzida no campo da realidade virtual, da realidade aumentada, da arte cibernética, da locative media e do vídeo interativo este poderia ser descrito como um questionamento constante em termos formais dos modos de existência da imagem. Mais do que o desenvolvimento de novas tecnologias de geração e exibição de imagens, tais explorações criativas têm se apresentado como um amplo campo de especulação sobre a própria natureza da imagem contemporânea, fazendo com que de suas pesquisas e propostas se desdobrem questões de ordem epistemológica, ética e estética. O exame dessa produção permite, assim, discutir formalmente o estatuto da imagem, e revela o caráter emblemático desta produção no campo mais abrangente das práticas artísticas. Privilegiando esses trabalhos, o recorte aqui proposto leva adiante a possibilidade de pensar a imagem em sua condição de projeto. Esta hipótese é pensada a partir das seguintes questões. O que acontece quando o artista passa a não se propor apenas a “fazer imagens”, mas a inventar suas próprias máquinas de imagem? De que maneira as tecnologias digitais e as culturas que com elas se desenvolvem transformam o modo como nos relacionarmos com as imagens? Quais sensibilidades e modelos de conhecimento estão em vigor nessa produção? Seriam os mesmos colocados em jogo na fotografia, no cinema e no vídeo? O passo inicial rumo ao enfrentamento dessas questões é dado no segundo capítulo do livro, intitulado “Interfaces digitais: da imersão ao pós-virtual”, que aborda as teorias e obras feitas em ambientes imersivos, passando pela Realidade Virtual, pelas Cave’s e pelos panoramas digitais, que são conceituados, então, como regimes de absorção. Nota-se que tais dispositivos atualizam o sonho de resgatar nossa consciência da realidade (Heim), vinculando-se a uma tradição que abarca a perspectiva renascentista, o realismo ilusionista do século XVIII e a parte hegemônica da produção cinematográfica. Pautados no ideal de absorver o sujeito em um universo

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simbólico à parte, estas imagens se instituem como universos autorreferentes que existem em paralelo à realidade (ainda que remetam a ela), tal como os mundos incompossíveis de Leibniz. Em contrapartida a estas teorias, a segunda parte do capítulo procura esboçar o que poderia ser chamado de regime de projeção. Para isso, são passadas em vista as abordagens que relativizam a falsa oposição entre “real” e “virtual” e são identificados os aspectos que podem conduzir à superação da dualidade entre “físico” e “informacional”. Entre as questões que motivam especificamente esse capítulo, coloca-se: quais seriam os paradigmas epistemológicos que estariam acumulados em tais imagens? De que maneira esses aparatos materializam as suas dimensões ética e estética? Em um contexto cultural em que as tecnologias e as redes de comunicação deixam de se constituir como espaços passíveis de separação da realidade e passam a se integrar de maneira cada vez mais íntima ao cotidiano, ao espaço e aos corpos, ainda faria sentido pensar a imagem a partir dos paradigmas do virtual? Seria possível compreender a condição atual da imagem fora dos paradigmas da imersão no virtual? A partir dessas questões os regimes de imersão, conforme definidos por Heim, Friedberg e Grau, são problematizados em vista de suas heranças platônicas. Propõe-se, então, pensar a imagem a partir de uma concepção fenomenológica que leva adiante a hipótese da emergência de um modelo estético fundado na presença e na atuação da imagem no mundo que a cerca. Entendida como uma projeção da abstração conceitual rumo à concretude da experiência, a imagem não poderia mais ser entendida a partir de dualidades entre “real” e “virtual” ou entre “físico” e “informacional”, e passaria a se apresentar como um fenômeno que se projeta do aparato para estabelecer relações com os fenômenos de outras naturezas que constituem o mundo. Para tanto, retoma-se o conceito de mundo codificado de Flusser, que compreende a realidade como um sistema hipercomplexo composto dos fenômenos que se projetam de aparatos de codificação de sentido, sejam eles tecnológicos ou não. Na concepção de mundo de Flusser esses fenômenos de naturezas diversas se imbricam, se tensionam e nos atravessam. Nesse contexto, os aparatos técnicos de mediação acabam por ampliar as potencialidades (virtualidades) presentes na nossa experiência concreta do mundo. Tal proposição coloca em crise as teorias que sustentaram a concepção majoritariamente virtual do digital. Entendida como fenômeno que se projeta rumo a nossa experiência, a imagem torna-se assim pós-virtual. Isso, não porque ela perca sua virtualidade (potência de criação de imagens) que a base técnica digital tanto expande, mas sim, porque ela passa a se integrar definitivamente às virtualidades do próprio mundo, não somente àquelas de ordem física e biológica, mas, sobretudo, as de ordem cultural, incluindo aspectos sociais, afetivos, políticos, econômicos, subjetivos, e muitos outros que se apresentam à nossa experiência concreta do que nos cerca. Esse cenário pós-virtual potencializado pela ubiquidade tecnomidiática é o ponto de partida para as análises que se seguem no terceiro capítulo, “Imaginários

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Cíbridos”, que é dedicado às obras que utilizam técnicas de interfaceamento baseadas na realidade aumentada, na computação física e nas redes cíbridas para ampliar a dimensão perceptiva e interpretativa da máquina, por meio de suas interfaces. Nesse capítulo são analisados trabalhos que investem nas tecnologias de análise de objetos, espaços e corpos com o objetivo de vincular a eles, em tempo real, as imagens, sons, textos produzidos no interior dos seus aparatos. Com isso objetiva-se menos oferecer um panorama dos usos destas técnicas e tecnologias do que problematizar a implicação da dimensão de visibilidade da máquina nos aparatos midiáticos atuais. São abordadas obras que lidam com questões decorrentes de aparatos de vigilância, captura, catalogação. Tais obras estabelecem modos de visibilidade baseados na automatização da análise e interpretação daquilo que é captado pela câmera e por outros sensores, segundo o que será então definido como sistemas perceptivos simulados. A partir de uma perspectiva tanto estética quanto técnica busca-se compreender, nestas obras, os modos como são operadas as estratégias de cooptação do corpo pela imagem, apontando para as dimensões políticas e éticas da questão. Visando “expandir” a realidade, estes aparatos acabam por instituir um regime de visibilidade ampliada, que, no campo da arte, passa a ser constantemente problematizado. Levando adiante essas questões, parte-se para a análise de trabalhos artísticos em que a imagem assume a condição de projeto por se dar à experiência por meio de processos de materialização e outrificação. Como um objeto de gênese específica, esta imagem passa a se oferecer à manipulação física por meio de diversas técnicas de interfaceamento e responde ao corpo da mesma maneira que os tantos outros corpos que nos cercam. Essa análise atravessa os capítulos quatro e cinco. Em “A Imagem Cibernética”, a produção em arte cibernética é abordada a partir da perspectiva da materialidade da imagem. O interesse dessa etapa da pesquisa está no estatuto assumido pela imagem em trabalhos que exploram a simulação de objetos, comportamentos e processos cognitivos, feita pelos algoritmos complexos da cibernética de segunda ordem. A partir de então, é retomada a crítica de Flusser à objetividade da cibernética para estabelecer as bases conceituais que permitam pensar os processos de materialização e de outrificação em vigor nas obras analisadas. Por fim, no capítulo final, “Rumo à imagem performativa”, o conjunto de obras tratado até então é contraposto a outro atravessado por processos de outrificação. Trata-se de aparatos artísticos em que a imagem está estreitamente relacionada à estética da performance. Tais obras passam a entender o corpo e a presença (da imagem e do participante) como gestos potentes e sensíveis. São tratados os trabalhos instalativos realizados a partir de interfaces interativas que exploram tanto técnicas de simulação quanto as de criação de sistemas perceptivos capazes de interpretar o participante, conferindo alto valor simbólico a sua presença e aos seus movimentos. Entre as obras analisadas estão as de artistas como Gary Hill, Lucas Bambozzi, Lynn

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Hughes e Simon Laroche, Jean Debois, Damaris Risch, Rafael Lozano-Hemmer, Wen-Ying Tsai, Karolina Sobecka e Chris Sugrue. Nestas análises questiona-se até que ponto este estatuto performativo da imagem coloca em jogo novas condutas éticas, formas de sociabilidade, habilidades cognitivas, sensibilidades e formas de mediação em relação aos objetos e aos ambientes que nos cercam. Para isso, inicialmente são apresentados os principais aspectos estéticos que marcam as artes da performance. Especial ênfase é dada à importância da presença na relação de encontro entre performer e público, assim como às estratégias organizadoras que tornam a performance, em si, um aparato abstrato. Essa base teórica sobre a performance é o referencial principal para a abordagem analítica das obras em questão. A última parte do capítulo aponta para a emergência de certa sensibilidade específica em tais obras, diferentes daquelas colocadas em jogo pela pintura, fotografia, vídeo e cinema. O prazer da observação, pensado principalmente por meio do cinema, é confrontado com outros prazeres estéticos possíveis, visando apontar para o estabelecimento de uma sensibilidade apoiada na presença da imagem e do corpo. Tais obras e seus processos de presentificação aproximam a condição da imagem e do sujeito daquela conferida ao corpo na estética da performance (CoHen, leHmAnn, FisCHer-liCHte), demandando de ambos uma postura performativa pautada no valor significante da presença (GumbreCHt, ZumtHor) e do gesto (Flusser). O exame desses trabalhos a partir da filosofia do aparato permite trazer para o campo estético certos aspectos políticos dos modos de existência que assumimos na sociedade contemporânea. Isso porque os modelos de conhecimento implicados nas imagens desse conjunto de trabalhos estão fundados em sensibilidades e maneiras de entender a si, em relação ao outro e ao mundo, diferentes daqueles modelos da fotografia, do vídeo e do cinema. Cada uma dessas imagens estabelece uma política de existência própria, demanda um corpo específico, entende o outro de forma diferente, elabora o mundo de uma maneira particular e institui subjetividades singulares. Com isso, elas trazem para a dimensão formal a condição performativa da imagem, uma maneira de existir da imagem que se institui na cultura atual e que atravessa de diferentes maneiras grande parte das práticas contemporâneas. Embora não haja tempo e espaço nessa pesquisa para discutir como tal condição performativa ganha corpo nesse conjunto mais abrangente, espera-se que as análises aqui empreendidas permitam oferecer algumas pistas para futuras pesquisas a este respeito.Entendido como parte desse amplo projeto, o exame das transformações do estatuto da imagem nos aparatos tecnológicos de mediação busca oferecer parâmetros iniciais para compreender que, mais do que representar um mundo ou uma versão específica dele, a imagem passa agora a atuar diretamente no contexto em que está inserida, assumindo-se como um modo de pensar, intervir e reinventar o mundo. Dentro do recorte metodológico assumido entre os capítulos dois e cinco, toma-se a condição performativa da imagem delineada de maneira genérica no pri-

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meiro capítulo a partir de um ponto de análise específico: o deslocamento da lógica ocularcentrista para outra voltada ao corpo. A análise destes trabalhos demonstra uma passagem gradual de um modelo de conhecimento pautado na observação para outro fundado no gesto e no corpo. Passa-se do olhar à corporeidade, da representação à performatividade, do valor documental do índice ao valor simbólico e sensorial da presença, do que é visto para o que se desdobra da ação. Um quadro esquemático de como se articulam estes diferentes estatutos assumidos pela imagem identificados ao longo do livro, assim como, suas implicações nos relativos regimes de sentido, de conhecimento e sensibilidade, é apresentado na tabela 1. Contudo, tendo em vista que o eixo central das proposições teóricas realizadas ao longo deste trabalho é estabelecido a partir de Vilem Flusser, torna-se prudente apresentar algumas pontuações introdutórias sobre seu pensamento. Com sua arrebatadora filosofia, Flusser estava atento ao cenário que se erguia com as tecnologias de comunicação e as transformações culturais, sociais e políticas que a partir delas despontavam. Isso o levou a formular uma das mais fecundas bases filosóficas para pensar a dimensão estética da produção midiática contemporânea. Por muito tempo mantido à distância por parte das pesquisas acadêmicas, a originalidade de suas teorias tem desmontado certos preconceitos que se ergueram sobre ele. Flusser deixou uma obra que pode ser compreendida hoje mais claramente do que em sua época, mas que, ao mesmo tempo, demanda uma retomada capaz de atualizá-la frente ao contexto no qual vivemos hoje. Desse modo, antes de tudo, cabe fazer aqui uma apresentação preliminar deste que propôs um dos pensamentos mais férteis para se entender um cenário marcado por uma cultura cada vez mais atravessada pela tecnologia e pela mediação técnica.

Vilém flusser, o filósofo que gostAVA de jogAr Vilém Flusser (1920-1991) nasceu em Praga e imigrou para o Brasil em 1940; aqui, naturalizou-se e viveu por mais de trinta anos, até seu retorno à Europa, no início da década de 1970. No Brasil, seu pensamento floresceu e seus primeiros textos foram escritos e publicados. Seu retorno ao velho continente o inseriu nos círculos de discussões ao lado dos grandes pensadores da época, o que o tornou reconhecido mundialmente. No entanto, boa parte do seu trabalho ainda hoje permanece parcialmente restrita a usuários da língua alemã4 e às poucas pessoas que se propõem a mergulhar nos seus manuscritos em busca de textos, em outras línguas, que permanecem inéditos.

4.

Apenas recentemente, graças à ação de um grupo de editores, a obra de Flusser vem sendo traduzida mais sistematicamente.

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Tabela 1 - Regimes de sentido - parte A A imagem em relação ao aparato

Os processos internos do aparato

Modos de visibilidade do aparato

Ambientes Virtuais

Mundos virtuais que se abrem como dimensões incompossíveis. Imagem vinculada à navegação do participante.

Voltados à construção Aberta ao controle do da narrativa e à participante sobre sua navegação. navegação no espaço virtual. O participante conduz a enunciação da narrativa.

Realidade Aumentada

Sistemas mais ou menos complexos objetificados. Imagem vinculada à visibilidade do aparato

Voltados à simulação de comportamentos mais ou menos complexos vinculando a imagem à fisicalidade do mundo.

Aberta à intervenção objetiva ou criativa na forma e no comportamento da imagem. Analisa o mundo e o sujeito para formar a base para os processos de atualização da imagem.

Arte Cibernética

Sistemas complexos abertos que se apresentam como objetos. A imagem está vinculada aos seus processos de autoorganização.

Voltados à simulação de comportamento, de inteligência e de organismos vivos. Aberto à ação do ambiente externo sobre sistema (incluindo o participante).

Aberta à ação objetiva do participante nos processos generativos da imagem. Carrega de valor conceitual a ação do participante.

Obras Performativas

Sistemas mais ou menos complexos abertos outrificados. Imagem vinculada ao valor simbólico da sua presença e gesto perante o participante.

Voltados à simulação de encontros entre imagem e participante, e ao estabelecimento dos jogos intersubjetivos entre o artista, a obra e o participante.

Aberta à intervenção subjetiva do participante. Interpreta a presença e os gestos do sujeito de modo a carregar de valor significante sua participação.

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Tabela 1 - Regimes de sentido - parte B Fundamentos do regime de sentido da imagem

Figura de subjetividade instituída

Modelo de conhecimento

Ambientes Virtuais

Absorção do sujeito no mundo paralelo da imagem. Relação baseada na exploração do espaço e da narrativa.

O participante é um visitante de um outro mundo, chamado à exploração.

Ciberplatônico. Baseia-se na criação de mundos paralelos e na transcendência do sujeito para o virtual.

Visibilidade Aumentada

Projeção da imagem como fenômeno que adere à realidade como camadas. Relação baseada nos atravessamentos possíveis entre as camadas de realidade.

Interator que intervém sobre a imagem. Chamado a agir sobre a imagem como um objeto.

O mundo é formado por camadas de realidade que se sobrepõem umas às outras de modo a criar uma rede que conecta os diversos elementos que compõem cada uma das camadas.

Arte Cibernética

Projeção da imagem como fenômeno objetificado pelo aspecto auto-referente do sistema. Relação baseada nas consequências da ação do sujeito.

Interator que age sobre a imagem. Ele é chamado a descobrir o que pode se desdobrar a partir de sua ação.

Sistêmica, apoiada na ciência. Parte da cibernética, para entender o mundo como sistema complexo, no qual subsistemas interagem uns com os outros, tendo com objetivo principal a permanência. Apóiase em grande parte na física quântica, nas teorias cognitivas, neurociência e biologia.

Projeção da imagem como fenômeno: um outro equivalente sensível do sujeito. Relação baseada na troca intersubjetiva que se dá no jogo com o participante.

Sujeito Performativo que explora o valor simbólico da sua presença e de seus gestos. Chamado a um diálogo sensível com a imagem.

Sistêmica de base fenomenológica. Compreende o mundo como formado por múltiplos fenômenos que se projetam de aparatos de diversas naturezas formando o tecido cultural. A realidade é concebida como um sistema simbólico hipercomplexo. No entanto, está voltada menos para o aspecto biológico e físico do que ao fenomenológico do indivíduo.

Obras Performativas

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Escritor, teórico e crítico Flusser é antes e acima de tudo um filósofo de originalidade desconcertante e que, por isso, demanda uma apresentação à luz apropriada. Propondo-se desde o início a romper com certas convenções balizadoras dos textos filosóficos, ele passou a despertar extraordinário interesse, inclusive de seus críticos. Filho de professor, logo cedo decidiu desviar-se do estilo acadêmico, preterindo a análise disciplinar dos textos filosóficos para assumir a filosofia como um exercício de cunho enxadrístico, tomando questões filosóficas como objetos de jogo. Com estilo próprio, Flusser elegeu o ensaio como gênero ideal; a partir dele, desenvolveu provocativos jogos de palavras, baseados na lógica e na etimologia, numa linguagem floreada, marcada por um existencialismo muito particular, e por uma maneira própria de aplicar o método de redução fenomenológica para elaborar questões e argumentos. Características estas que, somadas ao seu estilo provocativo e irônico, seduziram muitos intelectuais: artistas, na maioria, mas que também confundiram e aborreceram tantos outros, principalmente os do campo acadêmico. Esta marca pessoal torna qualquer entrada no pensamento de Flusser uma tarefa que envolve certo risco, condição que se constitui também por fatores logísticos e metodológicos. Sabe-se que Flusser conhecia vários idiomas, além do tcheco e do alemão aprendidos na juventude em Praga; também o português, o inglês, o francês, o italiano, o russo e, como muitos afirmam, o tupi. Sua obra é composta por alguns textos escritos em inglês e francês, mas a maioria foi produzida em alemão e em português, este último seu confesso idioma mais desafiador e, por isso, preferido (Flusser, 2007: 75). Para Flusser a língua sempre foi um instrumento para se articular dentro do universo da cultura e dos conceitos. Seus textos eram elaborados inicialmente em uma língua e, em seguida, reescritos em outros idiomas, multiplicando suas principais questões em diferentes versões do mesmo argumento. Em cada nova versão suas ideias eram reorganizadas, transformadas e ampliadas num processo de tradução sem fim, o que dificulta o mapeamento e o estabelecimento de relações entre as diferentes partes de sua produção. Ao contrário da práxis científica, Flusser raramente apresentava suas referências, e muitas vezes tomava como dados alguns conceitos importantes para a compreensão da genealogia dos seus argumentos. Além disso, ele quase sempre jogava com as aproximações e distanciamentos, profundidade e superficialidade. Estas inversões são evidentes em muitos dos seus textos, nos quais são construídos verdadeiros labirintos com idas e vindas de argumentos e contra-argumentos, jogos estonteantes de conceitos e inversões. Como afirma Baitello Jr. (2008), este método em que Flusser subverte seus próprios argumentos inverte o próprio objeto e o olhar do leitor, e é decisivo para os mergulhos mais extensos e profundos nos seus objetos prediletos. Com efeito, mais do que um estilo de escrita, seu texto estabelece um jogo entre consciências, o que representa formalmente a própria base conceitual que cruza o pensamento flusseriano no nível mais abrangente: a existência essencialmente dialógica do humano. Assim como seus textos, sua personalidade e sua maneira de

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pensar (segundo quem o conheceu pessoalmente) eram, em todo o tempo, uma busca de se esquivar da unanimidade, por meio de provocações, atravessamentos, desvios e inversões. Nesse sentido, Flusser desvia seus argumentos da unicidade organizadora do discurso unívoco para conformar seu pensamento como diálogo, no sentido mais bakhtiniano no termo. Nada indica que ele tenha tido algum contato com a obra de Mikhail Bakhtin; entretanto, uma análise do método que Flusser utiliza para elaborar argumentos e formular questões revela uma estratégia baseada no entrechoque de pensamentos independentes, de acordo com o que o pensador russo chamou de “polifonia de vozes plenivalentes” (bAkHtin, 1997). De fato, esta não é uma coincidência. Os pensamentos de Bakhtin e Flusser compartilham referências. Como se sabe, um dos eixos conceituais de Flusser é a filosofia de Martin Buber, para quem a existência humana é baseada no diálogo. Além de Buber, Ludwig Wittgenstein e Husserl, que também aparecem como referência para Flusser, apresentam visões de mundo baseadas no diálogo. Este enfrentamento entre consciências plenas de poder, muitas vezes, é radicalizado ao máximo pela alternância entre pessimismo e otimismo. O que cria uma ambiguidade capaz de desorientar qualquer leitor. Mas tal ambivalência é muito significativa, pois representa a um só tempo a profunda recusa por determinismos de qualquer ordem e sua concepção de mundo como uma complexidade inexplicável. Elaboradas a partir desta estratégia precisamente articulada por Flusser, cada curva do texto, cada inversão, lança o leitor para fora e o coloca de frente com a materialidade da escrita e com o caráter argumentativo das ideias apresentadas, abrindo espaço para geração de suas próprias contra-argumentações, conexões, hipóteses e conclusões. E, justamente, ao se revelar como estrutura é que o texto libera seu leitor. A maneira como se estabelecem os conflitos entre ideias aparece como uma estratégia para dar conta das complexidades e, principalmente, das ambiguidades do mundo tomado em sua total complexidade. Situar-se nessas curvas do pensamento flusseriano é um verdadeiro desafio ao leitor e exige conhecer com certa latitude a genealogia de tais pensamentos.

o método AnAlítico de flusser A partir da linha fenomenológica de Husserl e do pensamento sistêmico da cibernética, Flusser desenvolveu um método hábil para reduzir fenômenos complexos em diagramas conceituais. As estruturas que emergiam em tal processo representavam os pontos pelos quais ele operava suas análises e argumentações de fenômenos complexos como a organização da sociedade, o contexto político e até modelos epistemológicos. Provavelmente, o mais importante diagrama elaborado por ele tenha sido o da escalada da abstração, que esquematiza a evolução dos códigos comunicacionais ao longo da história da humanidade em um modelo conceitual que lhe permitiu articular o conceito de pós-história.

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Suas estruturas, no entanto, são diferentes daquelas do modelo do estruturalismo em vigor na sua época. Os diagramas conceituais de Flusser são derivados das teorias dos sistemas complexos em sua vertente informacional: a cibernética, assim como das teorias quânticas e da termodinâmica. Sabendo da impossibilidade de incluir em uma única análise toda a complexidade do mundo, tendo em vista sua existência sistêmica, a abstração do diagrama pareceu a ele a alternativa mais apropriada. No entanto, graças às heranças do humanismo, ele se desvia da objetividade, retirando das teorias dos sistemas a frieza e a pureza científica para propor um modelo de análise cultural, baseado naquilo que é capaz de tocar a essência humana. (Flusser, Códigos: 16). Ao mesmo tempo em que a força de sua metodologia analítica ofereceu a possibilidade de insights iluminadores, ela também abriu caminho para muitos mal-entendidos, principalmente por conta de interpretações literais do que está sendo esquematizado. Caso não seja compreendida como diagrama, a escalada da abstração, por exemplo, pode ser interpretada como algo de completa incoerência. O equívoco mais generalizado, talvez, tenha sido a repercussão do livro mais conhecido de Flusser: Filosofia da caixa preta que é tomado por muitos, ainda hoje, como um livro sobre fotografia e não como uma abordagem filosófica dos aparatos técnicos de mediação. Como notou Andreas Ströhl (2002: 11), graças à influência de Husserl, Flusser teve pontos de vista privilegiados que o tornaram radicalmente diferente dos mais conhecidos teóricos dos anos 1970 e 1980, muito influenciados pelo pós-estruturalismo e pelo marxismo. Fato este que torna difícil classificar seu pensamento dentro das teorias da mídia. Embora algumas poucas vezes ele pareça se aproximar do filósofo canadense McLuhan e outras do francês Baudrillard, Flusser sempre se manteve à parte da história oficial da filosofia. Isso fez com que, por muito tempo, a importância do seu pensamento fosse circunscrita ao momento histórico específico do alvorecer dos meios eletrônicos. Sua relevância como filósofo vem sendo descoberta aos poucos. Atualmente, é grande sua influência nos estudos europeus da mídia e da arte, principalmente em países de língua alemã. No Brasil, embora suas teorias tenham inspirado muito intelectuais, somente agora estamos tendo acesso às versões em português de textos importantes, necessários para se compreender filosoficamente as ideias de Flusser.

A sombrA dA noVidAde “O novo é horrível, não por ser da forma que é e não por ser diferente, mas por ser novo. (…) O novo é horrível e nós mesmos somos o novo”. (Flusser, 1990: 168 apud ströHl, 2002: 1)

Flusser foi um dos que primeiro a percebeu a importância das tecnologias de mediação em circunstância de ubiquidade computacional e as decorrentes transfor-

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mações culturais, sociais e políticas que daí despontavam. Mas Flusser foi também vítima do novo. Não apenas da novidade de sua perspectiva teórico-filosófica, como mencionado, mas também porque, muitas vezes, seu pensamento foi vinculado aos discursos ufanistas de pregação de certa revolução tecnológica que tiveram muito destaque, nos anos 1990 principalmente. Como ressaltou Ströhl, (2000), muitas vezes, Flusser foi tomado como uma figura cult do admirável mundo novo da mídia, um profeta das tecnologias da informação ou, ainda, um pioneiro radical das novas tecnologias do microchip, do monitor e do computador. Grande parte dessa confusão se dá pela própria noção de novo, que pode ser delimitada a partir de, pelo menos, duas diferentes perspectivas. A primeira trata o novo como aquele que se opõe ao velho, ao antigo, ao passado, para proferir certa ideologia da obsolescência. É este conceito de novo que se mantém à frente do ideal que impulsiona, de uma maneira ou de outra, toda a ideia de modernidade vista em certos discursos artísticos que ganharam força no século XX e que hoje é reformulada e deslocada para as campanhas publicitárias das empresas de tecnologia. Em oposição a esta concepção está aquela disseminada a partir das teorias da informação, para as quais o novo se opõe não ao velho ou ao obsoleto, mas ao redundante. Segundo esta concepção, algo novo surge de operações feitas dentre algo conhecido. Estas operações se dão como processos de associações entre dados ou informações já conhecidas, de modo que destas surja algo da ordem do ainda não conhecido, do não redundante, da invenção. Tal concepção, assumida nas análises de Flusser para dar conta do contexto cultural pós-histórico por ele identificado, parte de uma perspectiva que foge à linearidade causal do pensamento histórico, de modo a colocar em crise categorias como a do antigo, do velho ou do ultrapassado. Esta originalidade, que marca não apenas suas teorias, mas também seu estilo lúdico e dialógico de filosofar, inspira esta pesquisa a olhar para o cenário contemporâneo da arte de um ponto de vista particular, entendendo este como um dos poucos terrenos em que ainda é possível jogar em busca de um diálogo sensível com o outro. Neste trabalho, em particular, esta maneira de ver a arte contemporânea permite identificar propostas que expandem o campo formal das imagens e sons produzidos com meios técnicos para a materialidade do espaço, do corpo, das tecnologias e das redes de comunicação. Esta, que poderia ser tomada como uma arte dos aparatos técnicos audiovisuais, reúne uma série de práticas que assumem as tecnologias de mediação como campo de experimentação em busca de novos regimes de imagem, operando através de uma especulação criativa incessante que visa, sobretudo, estabelecer outras políticas de sensibilidade e outras formas de conhecimento. O capítulo que se segue leva a frente algumas questões referentes justamente às relações que estas práticas e estes artistas estabelecem com a tecnologia e com a sociedade. Como o estágio atual de automatização, fetichização e inserção da tecnologia no cotidiano, na economia, na sociabilidade impulsionam as práticas artísticas a se repensar? Como os artistas têm se posicionado em relação a estas questões? De

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que maneira o conhecimento coletivo, os softwares e hardwares livres e as comunidades que instituem ao seu redor reformulam a relação do artista com a tecnologia? Como a imbricação crescente entre a arte e a tecnologia, entendidos aqui como campos de conhecimento particulares, com métodos e modos de produção próprios, tem influenciado as práticas artísticas? Esta reflexão parte de dois conceitos fundamentais: o de aparato e o de jogo. O conceito de aparato já acumula uma vasta fortuna crítica e teórica, ainda mais se pensado em suas aproximações com a concepção de dispositivo que permeia tanto as discussões sobre o cinema, iniciadas por Jean-Louis Baudry, quanto as discussões sobre as formas de poder da sociedade contemporânea, conforme apontaram Michel Foucault e Gilles Deleuze. Já o conceito de jogo, em Flusser, é tomado como base para pensar uma postura ética diante do estágio atual da cultura, agora baseada em uma enorme quantidade de imagens, tecnologias e informação. Pensar a arte em uma sociedade cada vez mais permeada pela tecnologia e pela mídia implica repensar o lugar assumido pelo artista, seus modos de operação e a maneira como suas práticas se desdobram no mundo. É justamente esta proposta que sempre esteve presente no horizonte da investigação apresentada neste livro. Espera-se que as linhas que se seguem consigam envolver o leitor nessas instigantes questões, que tanto ocuparam o imaginário deste pesquisador ao longo do seu percurso.

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