MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. A memória como desafio para a história do tempo presente: notas sobre narrativas e traumas. História Agora, São Paulo, v.1, n.9, p. 10-31, 2010.

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A memória como desafio para a história do tempo presente: notas sobre narrativas e traumas Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho1

Resumo: Ao abrir sua caixa de ferramentas, o historiador do tempo presente tem ao seu dispor rico instrumental, com especial relevo para a identificação e a análise das questões da memória e da narrativa. Proponho aqui um diálogo sintético entre autores que se debruçaram sobre a memória e a história, bem como sobre a experiência traumática, procurando proporcionar apontamentos iniciais em relação à importância do lembrar e do narrar ao historiador do presente e do imediato e tangenciando a questão da memória como um desafio a este historiador. Palavras-chave: História do Tempo Presente - memória – narrativa

The memory as a challenge to the present time’s history: notes on narrative and trauma Abstract: Opening his toolbox, the historian of present time has at its disposal a rich instrumental, with particular emphasis on the identification and analysis of issues of memory and narrative. I propose here a synthetic dialogue between authors that focused on memory and history, as well as the traumatic experience, seeking to provide initial notes about the importance of remembering and narrating to the historian of the present and the immediate and touching the question of memory as a challenge to this historian. Keywords: Present Time’s History – memory – narrative

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Doutorando em História Social – USP, mestre em História do Tempo Presente – UDESC, especialista em Marketing e Comunicação Social - Cásper Líbero, bacharel e licenciado em História – USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos em História Oral - USP. Contato: [email protected]. 1

De volta para o passado. Talvez esta expressão defina um pouco o tempo permeado por esta memorymania, este momento de potente valorização da memória em que vivemos. Como sugeriu Andreas Huyssen, nossas práticas atuais sobre a memória circulam pela restauração historicizante dos centros urbanos, cidades-museus, explosão das modas retrô e objetos reprô, comércio da nostalgia e automusealização através das vídeo-cams. Este transbordamento da memória se justificaria pelo “desejo de nos ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e pelo fraturamento do espaço vivido” (HUYSSEN, 2000, p. 20).2 A linha de força em se identificar estas práticas da memória está em possibilitar que entendamos melhor a nós mesmos como pessoas inseridas numa espessura de tempo que demanda este enraizamento.

Mas o historiador do presente e do imediato, por ser agente contemporâneo destas temporalidades, tem desafio importante pela frente: como relatar o que observa, vê e escuta sem se ‘contaminar’ com as fontes e comprometer irremediavelmente seu trabalho? Antes de apontar para possíveis respostas, gostaria de sublinhar algumas das discussões sobre a memória e a história, tangenciando a questão das narrativas histórica e de memória e a questão do trauma.

A memória como mecanismo capaz de ancorar o indivíduo psiquica e socialmente pode ser identificada quando Ecléa Bosi narra:

Outro dia, caminhando pelo Viaduto do Chá, observava como tudo havia mudado em volta, ou quase tudo. O Teatro Municipal, repintado de cores vivas, ostentava sua qualidade de vestígio destacado do conjunto urbano. Nesse momento descobri, sob meus pés, as pedras do calçamento, as mesmas que pisei na infância. Senti um grande conforto. Percebi com satisfação a relação familiar dos colegiais, dos namorados, dos vendedores ambulantes com as esculturas trágicas daópera que habitam o jardim do teatro (BOSI, 2009, p. 444).

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Publiquei na edição 7 (2009) de História Agora – Revista de História do Tempo Presente uma resenha intitulada ‘Passados presentes. Da sedução pela memória à análise de nós mesmos’, onde esboço algumas das ideias contidas em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia; de Andreas Huyssen. 2

Ecléa oferece aqui um mapeamento da subjetividade e afetividade transbordantes da memória, onde lembrar funciona como mecanismo de amparo e estabilidade.

Muitos autores fizeram mergulhos nos estudos da memória, dentre eles o filósofo Henri Bergson, para quem através da memória, como lembra Bosi, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora (BOSI, 2009, p. 47).

A rica fenomenologia da lembrança, ou do souvenir (de sous-venir: trazer à tona o submerso) de Bergson sugere que o afloramento do passado combina-se com o processo corporal e presente da percepção, o que para Bosi atribuiría à memória uma “função decisiva no processo psicológico total: a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo ‘atual’ das representações.” Deste modo, “as lembranças estariam na cola das percepções atuais, ‘como a sombra junto ao corpo’. A memória seria o ‘lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas.’ ” (BOSI, 2009, p. 46).

Para Bergson, o passado aflora na consciência na forma de imagens-lembrança, tendo sua forma pura na imagem presente em sonhos e devaneios: o que fez Bergson foi dar à memória estatuto espiritual diverso da percepção. Para este, defrontam-se a subjetividade pura (o espírito), onde se situa a memória, e a pura exterioridade (a matéria), onde reside a percepção. Como contempla Bosi, não há em Bergson a “tematização dos sujeitos-quelembram, nem das relações entre os sujeitos e as coisas lembradas; como estão ausentes os nexos interpessoais, falta, a rigor, um tratamento da memória como fenômeno social” (BOSI, 2009, p. 54).

Mas esta lacuna é de algum modo preenchida pela teoria psicossocial de Maurice Halbwachs, que se propõe a estudar não a memória, mas “os quadros sociais da memória”, onde as relações não se adstringem ao cosmo individual (com seu espírito e matéria), mas à 3

dependência da pessoa com seu meio e grupos de referência, como a família, classe social, religião, escola e profissão. Para Halbwachs, se o indivíduo recorda, é porque no tempo presente seus pares o fazem lembrar: “o maior número de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros homens, no-las provocam” (HALBWACHS, 1990, introdução). Para Halbwachs, a memória individual tem como lastro a coletiva, que por sua vez se amarra à tradição popular, memória coletiva de cada sociedade. Como é conhecido,

nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distinguam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem (HALBWACHS, 1990, p. 34)

Para ele, a memória individual se condiciona à coletiva, aos quadros sociais que o indivíduo compartilha no presente, e o esquecimento só ocorre quando a pessoa se desvincula de determinada comunidade. Para Halbwachs, a memória é algo natural, espontâneo e desinteressado, guardando do passado apenas o que pode ser útil enquanto elo entre este e o presente, enquanto a História é processo interessado, laicizante, racional e político, levando à manipulação da narração desta memória. A memória coletiva não se confunde com a História, termos opostos inclusive na criação da expressão “memória histórica”, e para ele, quando cessa a tradição, quando a memória social e coletiva se decompõe, é que se inicia a História. A História é narrativa de fatos mortos, evocada só quando não há mais tradição nem memória.

Para ele a memória, revelador do presente, é sempre anacrônica, tal como para Beatriz Sarlo, para quem “inscrita na confluência de temporalidades de sua escrita e de seu objeto, a disciplina histórica não se instala comodamente no anacronismo”, enquanto “para as narrações testemunhais o presente da enunciação é a própria condição da rememoração – sentem-se confortáveis no presente porque é a atualidade que possibilita sua difusão” (SARLO, 2007, pp. 57-59). 4

Sobre a discussão entre memória e História, Sarlo contempla que enquanto a primeira não confia numa matriz que não coloca em primeiro plano a rememoração, subjetividade e narrativa, a História desconfia da memória pois esta não se baliza nos supostos metodológicos historiográficos e não contextualiza o rememorado na espessura da duração. Como ela conta, “nem sempre a história consegue acreditar na memória, e a memória desconfia de uma reconstituição que não coloque em seu centro os direitos da lembrança (direitos de vida, de justiça, de subjetividade)” (SARLO, 2007, p. 9).

Já para Pierre Nora, a memória coloca a lembrança em um plano sagrado, possuindo lado afetivo, conduzida por grupos vivos, em permanente evolução, aberta à “dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas”, e também “vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações” (NORA, 1993, p. 9). Para ele, os grupos de memória povoam suas lembranças e reverberam as tradições, enquanto a História dessacraliza a memória por ser uma atividade crítica e problematizadora: A história é reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história liberta, e a torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez, que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo (NORA, 1993, p. 9).

Nora aponta que a memória se reveste da aura sagrada da verdade narrativa, enquanto a História dessacralizaria a memória. Mas pode-se avaliar isto: até que ponto a História contada e apropriada não adquire sentido de sacralidade? De toda maneira, é importante 5

que o plano afetivo (e até criativo) da memória seja levado em conta pelo que anota as narrativas de memória, devidamente acompanhado do exercício crítico historiográfico. Um caminho é o de afastar-se do “dilema paralisante” sobre o caráter coletivo ou individual da memória, ou como diria Paul Ricoeur, alternar a análise entre a “mirada interior”, centrada na subjetividade e afetividade do que lembra e narra e a “mirada exterior”, que ao exemplo de Halbwachs, percorreria as alamedas dos quadros sociais da memória perscrutando nelas suas (re)construções. O que existe para Ricoeur é a atribuição múltipla da fenomenologia da memória com um compartilhamento: a memória tem um caráter individual que pode se associar ao da coletividade.

Para Halbwachs, recordar não é reviver o acontecido, mas sim reconstruir, repensar, refazer as experiências do vivido com as imagens e ideias do presente. Como considera Bosi, para Halbwachs a memória não é sonho, é trabalho, devendo-se duvidar da sobrevivência do passado “tal como foi”: a lembrança é uma imagem que se constrói pelos materiais disponíveis na atualidade, no conjunto de representações que povoam nossa consciência presente. Desta maneira, não se valida a inferência bergsoniana de uma memória intacta e total: esta só existiria caso a pessoa tivesse intacto todo um sistema de representações, imaginários, hábitos e relações com suas experiências anteriores.3

Assim, por mais nítida que pareça uma memória sobre a infância ou adolescência, ela não tem mais o mesmo sentido ou imagem que experimentamos anteriormente, pois não somos os mesmos daquela época: temos novas percepções sobre o mundo e novos juízos de valor.

E a (re)construção do passado não se opera somente através dos quadros sociais da memória: ela também se identifica na narrativa que o indivíduo faz sobre suas experiências. 3

Para Bosi, até a lembrança do sonho, que parece ser a mais distante possível do coletivo (e assim a mais próxima da memória pura de Bergson) não fugiria às determinações do tempo presente. Ela ilustra com o sonho em que um ente falecido aparece vivo: “se o sonho tivesse borrado completamente a dimensão do tempo histórico (dimensão social); se o sonho tivesse imergido à mente do sonhador em um coral simultâneo de vozes, passadas e presentes, como entender a surpresa, que comporta sempre um momento de separação, de estranhamento, de percepção do novo?” (BOSI, 2009, p. 56). Para Bosi, se em Bergson o sonho é ilustrado como exemplo da liberdade pura da memória, em Halbwachs mostra a evanescência das categorias “diurnas” que as secundam. 6

Para Sarlo, há no discurso uma hegemonia do presente sobre o passado, com a formação de dois tipos de inteligibilidade (narrativa e explicativa ou causal), fomentada pela subjetividade e memória. Ela cita Paul Ricoeur, para quem seria “inevitável a marca do presente no ato de narrar o passado”, contemplando que “os tempos verbais do passado não ficam livres de uma ‘experiência fenomenológica’ do tempo presente da enunciação” (SARLO, 2007, p. 49).4

A (re)construção do vivido também imerge da narrativa do próprio historiador. Carlo Ginzburg lembra do comentário de Michel de Certeau, para quem o historiador “escreve, produz um espaço e um tempo, embora estando ele próprio inserido num espaço e num tempo” (GINZBURG, 2007, p. 216). Certeau notou que havia um “discurso sobre câmaras de gás, que tudo devia passar por dizê-lo, mas que além ou, melhor dizendo, aquém disso, havia algo de irredutível, que na falta de melhor, continuarei a chamar de realidade”. Para o autor, “sem essa realidade, como se faz para distinguir entre romance e história?” (GINZBURG, 2007, p. 217).

A elaboração da narrativa histórica também é notada por Georges Gusdorf, para quem Los otros, por muy bien intencionados que sean, se equivocan siempre; describen el personaje exterior, la apariencia que ellos ven, y no la persona, la qual se les escapa. Nadie mejor que el propio interesado puede hace justicia a sí mismo, y es precisamente para aclarar los malentendidos, para restablecer una verdad incompleta o deformada, por lo que el autor de la autobiografía se impone la tarea de presentar el mísmo su historia (GUSDORF, 1991, p. 12).

A pessoa que conta a história de outra provavelmente não saiba do ocorrido tão bem quanto a que narra, muitas vezes reformulando ou dando novos significados àquilo que escuta. Mas daí podemos pensar duas coisas: no caso da entrevista de história oral, é desejável que os escritos retornem ao entrevistado para sua correção e autorização de uso, possibilitando 4

Expus anteriormente algumas das ideias de Sarlo (e de outros autores utilizados aqui) em ‘Grandezas metodológicas para uma História do Tempo Presente a partir de Beatriz Sarlo e seu Tempo Passado’, publicado em 2009 na Revista Intellèctus, da UERJ, ano 8, vol. I. Aproveito e aprofundo algumas destas discussões, lembrando que ainda há muito a ser pensado sobre as relações entre memória e História, especialmente a do Presente, bem como sobre possíveis metodologias para a História do Tempo Presente.

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maior proximidade com o narrado e o ocorrido; outra coisa é que a ‘verdade’ deste entrevistado, ou mesmo dum autobiógrafo, também não tem suporte no acontecido com todos seus detalhes: ele mesmo faz suas seleções e recortes de acordo com o caráter involuntário, descontínuo, fragmentário e criativo da memória. Sua própria narração é assim deformada e incompleta.

E Robert Frank lembra a contemplação de Jacques Ozouf: a narrativa é fonte provocada pelo historiador oral que, ao interrogar a testemunha constrói sua fonte, notando também que “a memória não é somente construção mas reconstrução, através da duração que separa o momento rememorado do momento do relato” (FRANK, 1999, p. 109). Como ilustra Ginzburg, “Croce havia mencionado a distância, sublinhada por Tolstói em Guerra e Paz, entre um acontecimento real – uma batalha, por exemplo – e as lembranças fragmentárias e distorcidas deste, que servem de base para os relatos dos historiadores” (GINZBURG, 2007, p. 228). Croce recorda que “um documento é um fato. A batalha, um outro fato (uma infinidade de outros fatos)” e que “o homem que age é um fato e o homem que conta é outro fato. Todo depoimento dá testemunho de si mesmo, do seu momento, da sua origem, do seu fim, e de nada mais” (GINZBURG, 2007, p. 229), mirando para a distinção entre acontecimento real, memória sobre o acontecido e narrativa sobre o mesmo. Para Croce, o fato e o discurso sobre este se associam mas não são a mesma coisa.

Já Neil Postman aponta para a potência do discurso na construção da narrativa histórica sobre o passado. Para ele, a linguagem, através do uso de definições, perguntas e metáforas, cria cosmovisões e fabrica mundos, sendo “narrativa de poder, durabilidade e inspiração” e o relato “de como tornamos o mundo conhecido de nós mesmos e como nos tornamos conhecidos do mundo” (POSTMAN, 2002, p. 170). Sarlo identifica como construção do passado o que ela chama de “imposição da memória”, ilustrando com o filme Shoah, de Claude Lanzmann, que pressiona psicologicamente sobreviventes dos campos e aldeões poloneses a lembrarem de suas experiências 8

traumáticas. Um processo de rememoração e narrativa mais “espontâneo” e supostamente mais próximo do vivido teria de desencadeado através da pressão exercida por Lanzmann, trazendo à superfície memórias e narrativas que provavelmente teriam esbarrado nos crivos do tabu, do trauma e do interdito. Por estarem vivas, estas pessoas se situam no presente, bem como seus processos de rememoração (e esquecimento) e narrativa. Mais que isto: por residirem em tempo imediato às entrevistas, possuem novo arcabouço de informações sobre os acontecimentos, contaminado pelos dados veiculados pelas mídias e conhecendo mais sobre os fatos ocorridos do que no tempo vivido. Aqui percebe-se a aplicação da reconstrução do passado através dos quadros sociais da memória, como propusera Halbwachs. E ao mesmo tempo, é possível pensar que estas imagens do passado, transmitidas e aprendidas, podem auxiliar a trazer de volta o acontecido, como na proposição do ídeo-motor de Bergson.

O interesse contemporâneo pelas narrativas de sobreviventes de campos de concentração sublinha uma questão que se mostra rica e relevante: a importância em se rememorar e se narrar os traumas do tempo presente. Sarlo se vale de Primo Levi ao entender a memória como matéria-prima dos sentimentos humanos e da indignação: as narrativas de Levi mostram o lado oculto e imoral da guerra e a completitude do desastre bélico através da figura do ‘afogado’ na ‘zona cinzenta’, que para sobreviver, se via forçado a competir com os seus, tornando-se espécie de cúmplice destas mortes. Aqui se aponta para o interdito: até que ponto o que sobrevive se constrange a contar uma experiência traumática como esta?

Ultrapassando a experiência traumática em seus três eixos (acontecido, rememorado e narrado), Levi se vê, como sobrevivente dos campos, na necessidade de narrar como “dever para com todos aqueles que conheceram a função última do campo de concentração: a morte”. Para Levi, por estarem mortos, o testemunho dos ‘sobreviventes’ ” seria sempre incompleto, estes assumindo “a primeira pessoa dos que seriam os verdadeiros testemunhos: os mortos” (SARLO, 2007, p. 35). Ginzburg sublinha que “a memória e a destruição da memória são elementos recorrentes na história” e que para Levi a necessidade de contar e de fazer os outros participarem havia adquirido “antes da libertação e depois, o 9

caráter de um impulso imediato e violento, a ponto de rivalizar com as outras necessidades elementares”, também anotando a urgência que o sobrevivente tem em narrar, o que se corrobora no próprio sentido da palavra testemunha em latim (superstes): ‘sobrevivente’ (GINZBURG, 2007, p. 230). Sobre o indizível da ‘zona cinzenta’, Annette Wieviorka entende que as pessoas não teriam dimensão da extensão da tragédia, não havendo “indizível do lado da emissão da mensagem, mas antes má recepção da parte da sociedade do momento. Esta sociedade, para a autora, não estava pronta em 1945 para entender, “porque não compreendia o inimaginável. Os instrumentos conceptuais que permitiriam a apreensão do fenômeno do genocídio não existiam (FRANK, 1999, p. 114)”. Para ela, o símbolo do horror seria Buchenwald e não Auschwitz. Frank relata que quando surgia numa conversa uma pessoa muito magra, se perguntava: “como está magro, você esteve em Buchenwald?”. A escolha em se inquirir sobre Buchenwald e não Auschwitz, para ela, revelaria a incompreensão da população em relação ao que ocorria em Auschwitz. Para Frank, essa face oculta, indizível ou não, mas não revelada nos documentos escritos só pode ser identificada nos depoimentos orais, cujo relevo estaria em permitir a identificação destas possíveis falhas na recepção da mensagem.

Sarlo salienta que a memória social, pessoal ou nacional, além de representar demandas sociais por respostas, também se identificam como mecanismo de “healing social” ou cura identitária, espécie de catarse de traumas e libertação contra a alienação e massificação midiática que encobririam a verdade. Mas ao se exercer as escolhas típicas do lembrar, o narrador pode também redimir ou retirar de si possíveis culpas, dando a si mesmo aspecto mais “inocente”. Como nota Frank, “em seu mecanismo de reconstrução, a memória assume uma função de desculpabilização e, portanto, de mitificação, e mesmo de mistificação”. Para ele, o trabalho crítico do historiador não se faz, pois, da mesma maneira segundo as diferentes questões de memória (FRANK, 1999, p.112).

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Pesquisadores de áreas como a psicologia podem ajudar a pensar na importância das informações do presente na rememoração, apontando aos quadros sociais da memória, sugeridos por Halbwachs. Elizabeth Loftus conduziu experiências feitas com pacientes sugeridos a crer em lembranças de supostos maus-tratos na infância e comentou que, ao fornecer às testemunhas de um acontecimento informações novas, porém fictícias, suas lembranças com freqüência se transformavam. Loftus argumenta ser difícil estabelecer a veracidade de lembranças traumáticas justamente pela dificuldade de se dissociar lembranças verdadeiras de falsas. Para a mesma, a falsidade só é comprovada quando os fatos contradizem as lembranças. Entretanto, recorrendo a análises estatísticas comparativas, a pesquisadora diz que, de modo geral, as lembranças verdadeiras diferem das falsas pois os participantes usam de um número de palavras superior para descrever as lembranças quando verdadeiras, além de considerá-las mais nítidas. Ainda segundo ela, pode se criar um efeito de inflação da imaginação, onde se misturaria a proposição de determinado evento a acontecimentos reais. Nesse caso, o fato de imaginar um acontecimento o tornaria “mais familiar, e a familiaridade é então falsamente associada às lembranças de infância”. Assim, as “falsas lembranças são elaboradas pela combinação de lembranças verdadeiras e de sugestões vindas de outras pessoas” (LOFTUS, 2007, p. 92). A autora ainda indaga:

não se conhecem ainda os mecanismos exatos da elaboração das falsas memórias. Quais são as características das lembranças induzidas? Essas falsas recordações seriam duráveis? Todos somos “sugestionáveis” ou existem predisposições físicas ou emocionais? Os estudos alertam: os profissionais precisam saber que correm o risco de influenciar seus pacientes e deveriam limitar o uso da imaginação no ressurgimento de lembranças supostamente perdidas (LOFTUS, 2007, p. 92).

Michel Topaloff contempla a polêmica a respeito do uso das narrativas de memória pelos psicólogos estadunidenses. Há uma oposição de ideias entre os proponentes do Movimento das Lembranças Recuperadas (Recovery Movement) e os da Fundação da Síndrome das Lembranças Falsas (False Memory Syndrome Foundation):

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os primeiros se apóiam na ocorrência, nas psicoterapias, de ‘lembranças’ traumáticas até então recalcadas. Já a fundação criada em 1992 denuncia os excessos dos psicoterapeutas que erram ao ver a produção da memória póstraumática como representação autêntica da verdade histórica (TOPALOFF, 2007, p. 93).

Aqui se aponta para a questão da ‘verdade’ que encobre a narrativa da memória, sublinhando desafio ao historiador da proximidade. Como identificar, fazer juízo de valor e criticar a construção da memória e da narrativa do trauma? Uma possível alternativa está em conhecer melhor os mecanismos psíquicos de processamento da memória e da narrativa, e tanto a psicologia como a psicanálise podem dotar o historiador de espinha teórica mais consistente neste sentido.

A experiência de rememorar e contar pode ser relevante ao que sofreu diretamente o trauma, tanto por sua emergência em narrar quanto em um possível processo de superação deste, mas há também o aspecto coletivo do trauma: há uma sociedade ávida em compreender a extensão do inimaginável. Como é possível que seres humanos imputem tanta dor a outros?

A questão da demanda social em obter esclarecimentos a respeito de traumas coletivos é provavelmente o maior fator de emergência da História do Tempo Presente, e neste sentido, Agnès Chaveau e Philippe Tétart explicam que essa produção histórica tem como raízes o “aumento e a aceleração da comunicação, a renovação progressiva da imprensa e da edição, a elevação do nível de estudo e a força dos engajamentos ideológicos, morais, dos anos 5060” (CHAVEAU, TÉTART, 1999, p.17). Assim, no desabrochar da História do Presente estariam o impacto de geração e o fenômeno da demanda social. De modo assemelhado, Sarlo alerta para que “as operações com a história entraram no mercado simbólico do capitalismo tardio” (SARLO, 2007, p. 10), onde “de um lado, a história social e cultural deslocou seu estudo para as margens das sociedades modernas, modificando a noção de sujeito e a hierarquia dos fatos, destacando os pormenores cotidianos articulados numa poética do detalhe e do concreto”. Por outro lado, uma linha de 12

história para o mercado não se limitaria “apenas à narração de uma gesta que os historiadores teriam ocultado ou ignorado, mas também adota um foco próximo dos atores e acredita descobrir uma verdade na reconstituição de suas vidas” (SARLO, 2007, pp. 1112).

Para Sarlo, a memória tem o dever de reconstituir o passado recente com seus traumas, especialmente em relação aos regimes autoritários vividos a partir dos 1960 na América Latina e a partir dos nazi-fascismos. E mais que um dever de estado, fenômenos como o holocausto são vistos também como necessidade jurídica: “é evidente que o campo da memória é um campo de conflitos entre os que mantêm a lembrança dos crimes de Estado e os que propõem passar para a outra etapa, encerrando o caso mais monstruoso de nossa história”. Além disto, a memória seria

um campo de conflitos para os que afirmam ser o terrorismo de Estado um capítulo que deve permanecer juridicamente aberto, e que o que aconteceu durante a ditadura militar deve ser ensinado, divulgado, discutido, a começar pela escola. É um campo de conflitos também para os que sustentam que o ‘nunca mais’ não é uma conclusão que deixa para trás o passado, mas uma decisão de evitar, relembrando-as, as repetições (SARLO, 2007, p. 20).

A memória como caso de estado e conquista social é polêmica, envolvendo interesses dos que querem saber e reivindicar justiça e dos que a querem esconder ou deformar, sendo “campo de conflitos” e relembrando as “memórias em confronto” do sociólogo austríaco Michel Pollack. Ele dá atenção às memórias subterrâneas ou dissidentes, as que recebem a opressão uniformizadora e destruidora das memórias oficiais e anseiam por adentrar no espaço público: as memórias em conflito. Para Pollack, quando a pessoa silencia ou se esquece (ao contrário da ideia de Halbwachs de que o esquecimento é desapego à comunidade), ela está procurando gestionar o dizível e o indizível, e lembrar e esquecer emergem de lugares de disputas, de processos de resistência à dominação, se articulam e rearticulam através de sujeitos individuais e coletivos, havendo assim um enquadramento social da memória.

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Ao comentar sobre a censura do lado da opressão, o sentido dado por Eni Orlandi é que as palavras são proibidas para interditarem a inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas, determinando o que, do dizível, não se pode nem se deve dizer. Para ela, a censura afeta a identidade do sujeito, pois este só pode se ocupar do que lhe é permitido, produzindo sentidos que não lhe são proibidos, interditos (ORLANDI, 2007, pp. 76-79).

Mas a mesma linguagem cria possibilidades do interdito encontrado submerso vir à tona, como nos casos de recusa à censura promovidos pelo samba-duplex de Chico Buarque. Este samba, caracterizado pela bifurcação de sentidos e deslocamento da interdição, faz outros sentidos significarem, dizendo o que é proibido através da simulação do senso comum, do consenso e do estereótipo. Assim, a palavra silenciada (não-dita) e interditada é substituída fazendo com que o silêncio signifique. Analisando canções de Chico e de Paulinho da Viola, Orlandi identificou que há modos diferentes de fazer significar os sentidos interditos. Dentre estas maneiras, está cantar o amor para cantar “outra coisa”, com o discurso romântico encobrindo a crítica política; a metáfora se referindo a fatos históricos; cantar lendas nacionais como em Cobra de Vidro (73); cantar mulheres com seus sentidos políticos (Ana de Amsterdam, Bárbara); usar formas discursivas como a carta, indicando o exílio quando vinda de fora (Meu Caro Amigo) e a repressão quando de dentro; cantar em línguas estrangeiras como espanhol para falar de Cuba, francês e italiano sugerindo o exílio ou em português luso (como em Revolução de Abril). Estes deslocamentos de sentido são apontados por construções linguísticas como a substituição, em que boi significa subversivo: ‘É fora da lei/é fora do ar/segura esse boi/é proibido voar’; repetição de expressões, como ‘preste atenção’, em Cobra de Vidro; jogo com o significante através da rima (ura/ditadura, ela/Mandela), onde silenciando um dos termos (o segundo) se encaminharia ao não-dito; jogo com o significante através da construção de anagramas, como em “diz que tá dura”, que sugere ditadura; metáforas; construções com uso de proparoxítonas, como em Cálice (74/78), que remete ao “cale-se”; relação intertextual, onde se relaciona os sentidos à história da censura de uma música à outra, como em Fantasia (‘Canta mais/preparando a tinta/enfeitando a praça’) e em Chorinho (‘A praça fica 14

cada dia mais vazia’); a resistência operária, como em Linha de Montagem (‘Samba samba São Bernardo/Sanca São Caetano/Santa Santo André? Dia-a-dia Diadema/Quando for, me chame/Pra tomar um mé’); referências à fauna ou flora do Brasil, como em Passaredo com sua referência ao bico calado; e ainda a referência a autores que falavam sobre revoluções, como Orwell e Brecht. E estes sentidos são significados para além do alcance do compositor e intérprete, como anuncia Orlandi ao comentar que a frase ‘Você não gosta de mim mas sua filha gosta’, não foi oferecida por Chico à filha de Geisel, mas sim aos policiais e suas filhas, que ao prendê-lo, pediam autógrafos para suas filhas. Para ela, “Chico já não decide: ele mesmo faz parte dos sentidos que inaugurou” (ORLANDI, 2007, p. 123). Assim, por mais que haja uma intenção em significar, há múltiplas possibilidades de recepção que resignificam o que o portador do discurso imaginou transmitir.

Retornando aos testemunhos do Holocausto e regimes totalitários, cuja memória se constitui em “bem e direito comum, dever do estado e necessidade jurídica, política e moral”, Sarlo entende que não se deve questionar nem “o núcleo de verdade do acontecimento vivido, nem o seu discurso”, fazendo com que tanto a narrativa quanto o narrador sejam protegidos de indagações e questionamentos. Ela entende que

o testemunho, por sua auto-representação como verdade de um sujeito que relata sua experiência, exige não ser submetido às regras que se aplicam a outros discursos de intenção referencial, alegando a verdade da experiência, quando não a do sofrimento, que é justamente a que deve ser examinada (SARLO, 2007, p. 38).

Sarlo advoga que se deve acreditar em sua verdade referencial como sinal de respeito ao que atravessa traumas como o da experiência nos campos de concentração:

o testemunho exige que seus leitores ou ouvintes contemporâneos aceitem sua veracidade referencial, pondo em primeiro plano argumentos morais apoiados no respeito ao sujeito que suportou os fatos sobre os quais fala (SARLO, 2007, p. 38).

Para ela, é importante crer nestes testemunhos como forma de implantação e confirmação do exercício democrático e para a preservação dos direitos sociais. Em outros casos, porém, 15

ela recomenda que se proceda de acordo com os critérios usuais à historiografia. Para Sarlo, “todo testemunho quer ser acreditado, mas nem sempre traz em si mesmo as provas pelas quais se pode comprovar sua veracidade; elas devem vir de fora”. Assim, “a crítica do sujeito e de sua verdade, a crítica da verdade da voz e de sua ligação com uma verdade da experiência que afloraria no testemunho é necessária”, sendo preciso “submeter os testemunhos às regras que se aplicam a outros discursos – a crítica das fontes” (SARLO, 2007, p. 38).

De modo similar, Ginzburg alerta que a análise de testemunhos deve ser feita através da prática historiográfica convencional, em que o valor dos mesmos seja “estabelecido através de uma série de cotejos”, ou de uma série “que inclua pelo menos dois documentos” (GINZBURG, 2007, p. 214).

A importância de comparar as narrativas com outras fontes e documentos é sublinhada por Sarlo, para quem deve haver um equilíbrio entre fontes vivas, massa documental escrita abrangente e materiais como os áudio-visuais. Para ela, fontes sonoras como discursos e fonogramas, visuais como quadros e fotos e mistas como filmes e documentários são ricas e podem dizer mais que as memórias e narrativas testemunhais, dando indícios da manipulação da memória e do discurso narrativo. Para ela, identificar através de documentos escritos não é um vetor reificante da subjetividade, e sim uma forma de se chegar mais próximo de uma “verdade”, que não resulta da submissão a uma perspectiva memorialística oral limitada.

Frank demonstra certa desconfiança em relação à memória como fonte para a História. Para este, a memória “é insubstituível em muitos casos, mas ela é também geradora de erros, de mitos, de mitologia e, evidentemente, o historiador tem muito o que fazer para corrigir e desmistificar” (FRANK, 1999, p. 107), ainda que seja “uma grande sorte para o historiador do presente, graças às testemunhas que interroga, poder fazer a arqueologia da memória

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coletiva” (FRANK, 2007, p. 112).5 Frank aconselha a passar a memória no crivo da crítica, assinalando suas fraquezas, analisando os erros e mitos veiculados por ela, colocando-os em perspectiva histórica.

A análise do historiador deve identificar no discurso falhas, embargos, ausências, falseamentos, selecionando e hierarquizando as informações e as colocando no horizonte histórico. Convém também reconhecer possíveis causas do embargo ou falseamento, entre traumas, tabus, atos falhos, vontades conscientes e inconscientes, lembrando da involuntariedade da memória, como demonstrou Marcel Proust:

está numa brisa chuvosa, num cheiro de quarto fechado, ou no de um primeiro fogaréu, em toda parte onde encontramos de nós mesmos o que nossa inteligência rejeitara, por julgá-lo inútil, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem ter secado, sabe ainda fazer-nos chorar. Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas escondida a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado. É graças a tal esquecimento que podemos, de vez em quando, reencontrar o ser que já fomos, colocar-nos face a face às coisas como o era essa criatura, sofrer de novo, porque não somos mais nós mas ele, é ele quem amava a pessoa que agora nos é indiferente (PROUST, 2002, p. 493).

Para Proust, para quem a memória é desorganizada, descontínua e fragmentária, a melhor parte de nossa memória está em nós, e submerge no presente. Assim, no presente se têm as lembranças colocadas em narrativa. E no caso de um trabalho com história oral, pertencem ao presente todas suas possíveis etapas: elaboração do projeto, entrevista, transcrição, textualização e transcriação, análise, interpretação e colocação na espessura da duração temporal, retorno ao entrevistado e publicação.

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Tendo a memória como objeto, Frank aconselha que se estude os silêncios, esquecimentos e ocultações, diferenciando os mesmos: no silêncio, a pessoa escolhe não falar sobre algo perguntado, sobre fragmento da memória. No esquecimento, deve–se perceber que o mesmo pode ocorrer por esforço consciente, mas também inconsciente. Na ocultação, há o claro e consciente desejo de ocultar, esconder algo, cobrir a fonte de luz e esclarecimento. A ocultação pode ser feita pela memória individual, coletiva ou oficial. Os motivos que operariam o silêncio, a ocultação e o esquecimento costumam ser os mesmos: trauma, tabu social, medo, insegurança e indizível. 17

Para Frank, a memória pode servir ao pesquisador não apenas como fonte, mas como objeto de análise, estudada a partir de suas pausas, certezas e contradições: “a memória é também, para o historiador, tomada globalmente, com suas verdades e mentiras, suas luzes e suas sombras, seus problemas e suas certezas, um objeto de estudo” (FRANK, 2007, p. 112).

Outra forma de construção da narrativa histórica está na força dos interesses políticos no presente e como o passado recente pode ser utilizado para fins políticos. A ideologia fornece uma grade de análise de mundo que se ampara num principio de inteligibilidade, e segundo Jean-François Sirinelli num sentido de história, e deste modo, ao ser confrontado “com essa questão da existência – ou não – de um tal sentido da história”, o historiador deve forçosamente fazer a “interferência – para recusá-las ou fazê-las suas – entre as ideologias que impregnam uma sociedade e as suas preocupações científicas” (SIRINELLI, 1999, p. 84).6

Isto aponta para outro dos desafios que se impõem ao historiador do hodierno que trabalha com memória e narrativa: identificar nos discursos coletados a reverberação destes interesses. Ainda um pouco mais: é necessário que o pesquisador admita sua subjetividade e se perceba como indivíduo interessado e muitas vezes coadjuvante do acontecimento estudado: isto pode auxiliar a adquirir o recuo necessário em relação ao seu objeto de pesquisa.7 6

Essas ideologias construiriam então memórias, histórias e subjetividades. A este respeito também se refere Felix Guattari, que comenta que os sistemas político-econômicos, principalmente o capitalismo, armam tipos de “maquinarias” para construir subjetividades. Essa subjetividade, para Guattari, não é o que o indivíduo tem de mais seu, ao contrário, essa subjetividade é de natureza industrial, maquínica, essencialmente fabricada, modelada, recebida e consumida. Para o autor, a subjetividade é movida e construída pela mídia e inserida no capitalismo, a partir da criação do desejo e do instinto de compra, de uma necessidade de consumo. Mas haveria a alternativa de se lutar contra esse processo de criação de idéias e modismos, de difusão e de recepção através da contra-cultura. Para Guattari, as subjetividades que lutam contra essas modelizações é que devem ser percebidas e estimuladas, pois, segundo ele, estão num “processo de singularização”. 7

Muito há a se falar sobre as possíveis metodologias para uma História do Tempo Presente. Publiquei artigo na 28ª. edição do Boletim do Tempo Presente (UFRJ), intitulado ‘Anotações sobre uma História do Tempo Presente’, onde trago algumas ideias sobre a questão, principalmente inspiradas pelas aulas de Teoria e Metodologia da História do Tempo Presente assistidas durante o mestrado em História do Tempo Presente da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Estas aulas foram ministradas com generosidade pela professora Maria Tereza Santos Cunha, a quem dediquei aquele artigo e dedico também este.

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Considerações finais

A memória é construto importante para a metodologia da História do Tempo Presente, não como verdade a ser posta e imposta, mas como fundante no equacionamento de indagações sobre fatos que procuramos compreender. Em seu estudo, devemos atentar à resignificação e reconstrução da lembrança e da narrativa, a interesses políticos e ideológicos (nossos e do narrador), aos traumas e inquietações, ao indizível e ao silenciamento. Através das conversas com os narradores, alguns destes aspectos transbordam e outros emergem, trazendo riquezas inesperadas.

Quando o narrador esbarra em memórias que não atravessam as fronteiras do silêncio, do embargo, do trauma, como devemos agir? Como tratar a vida privada do que colabora com sua experiência? Deslizar entre o autorizado e o não-autorizado é desafio ao estabelecimento de uma conduta ética ao pesquisador do presente.

Dar voz às memórias e narrativas de experiências traumáticas desafia o investigador do recente ao requisitar dele sensibilidade e exercício crítico: é saber escutar e respeitar os relatos da maneira como são contados, atentos às leituras descontínuas, fragmentárias e afetivas e aceitando nelas a veracidade que alaga a subjetividade da memória e da narrativa. Mas não somos nem memorialistas nem cronistas: somos analistas críticos das fontes e das memórias. Devemos lembrar aos outros o que a névoa do tempo esfumaçou, mas também duvidar do que é lembrado e narrado. É atentar para as zonas cinzentas: o indizível dos que sofreram traumas, tendo em mente que a interdição do discurso também inunda o silêncio dos perpetradores do trauma. É relevante que se identifique as vozes silenciosas dos violentadores.

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O ofício do pesquisador deve-se pautar no exercício crítico de constituição da memória e da narrativa, mas por mais que abramos nossa caixa de ferramentas e nos utilizemos com consistência do que dispomos - análise, seleção, recorte, hierarquização, interpretação e crítica -, nossa pesquisa é atravessada por nossas escolhas e interesses, o que nos constitui como espécies de disciplinadores de memórias e narrativas alheias, expressas nas perguntas que fazemos.

Ao dar voz a estas memórias fragmentárias, seletivas e interessadas em (re)contar, o historiador do hodierno deve atentar ao tracejamento do contorno das narrativas e identificar continuidades e rupturas, mas admitir sua própria subjetividade, o que pode legar um tipo de recuo: este distanciamento se dá não em relação à fonte viva e proteiforme que enseja diferentes graus de interação, mas ao que já imaginamos saber antes de perguntar: é preciso assim, não induzir respostas, é deixar falar, e escutar para se surpreender.

Uma pesquisa de história oral, na qual relembrar, esquecer e narrar são fundadores, é por excelência imbricada com o presente: o tempo da lembrança e da contação é o do agora, como o tempo da análise do pesquisador, e os interesses deste se moldam a partir de suas inquietações e curiosidades, que nascidas em qualquer tempo reverberam no hoje.

A atenção à narrativa é fundamental: ao evocar a memória e contar, organizam-se os sentimentos, processando reaprendizado em relação ao vivido e reconfigurando o passado através das novas informações que possui e da experiência de vida adquirida até o momento da contação. Ao relatar, o contador o faz no presente, incitando reinterpretações sobre o acontecido. Como se diz, ‘quem conta um conto, aumenta um ponto’, o que aponta para a reinvenção do acontecido pelo narrador, mas também pelo condutor da entrevista: boa parcela da história se conserva, mas outra parte é reinterpretação da narrativa.

É bem possível que experiências traumáticas sejam melhor elaboradas na psiquê através das narrativas de memória e que áreas fronteiriças como a psicologia e a psicanálise dotem

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o historiador de maior grade de inteligibilidade em relação ao que escuta. Além disto, estas áreas apontam para o efeito terapêutico que tem no narrar, e às vezes no escutar. Ainda que lembrar seja importante e o saber “não ocupe espaço”, o esquecimento e o segredo contribuem para um amparo psíquico e emocional, e daí o exercício da sensibilidade ao silêncio e ao segredo: atentar a eles é aprender sobre o outro, e apreender o que as lacunas significam faz da memória a dialética do indizível, cujo vazio cheio de significados é matéria-prima ao que estuda a história viva. Para preencher estes espaços, novas conversas, contextualizações e o auxílio de fontes escritas e audiovisuais podem se fazer mister.

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