MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Anotações sobre a “inclusão” de travestis e transexuais a partir do nome social e mudança de prenome. In: MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque (Org.). Dossiê (In) Visibilidade Trans 1. História Agora, São Paulo, v.1, n. 15, p. 29-59, 2013.

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Anotações sobre a “inclusão” de travestis e transexuais a partir do nome social e mudança de prenome1 Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho2

Resumo: Apresento neste artigo, algumas observações acerca da “inclusão” de pessoas travestis e transexuais através do uso do nome social em órgãos da administração pública e da retificação (ou mudança) de prenome. Para tal, fundamento-me em entrevistas realizadas com duas advogadas, Márcia Rocha (autodeclarada travesti) e Karen Schwach (responsável por parte dos processos aprovados de mudança de prenome de transexuais em São Paulo), além de documentação jurídica e bibliográfica. Palavras-chave: travesti - transexual - nome social - retificação (mudança) de prenome

The “inclusion” of transvestites and transsexuals through social name and name change. Brief conversations with lawyers and other sources Abstract: I present here, some observations about social “inclusion” of transvestites and transsexuals to use the social name and the rectification of civil registration, or change of first name. In order to do that, I based my discourse on legal and bibliographical documentation, as well as interviews with the lawyers Márcia Rocha (self-declared transvestite), and Karen Schwach (responsible for much of the approved change of civil registration of transvestites and transsexuals in São Paulo). Keywords: transvestite - transsexual - social name - rectification (change) of civil registration

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Agradeço a João W. Nery, Simone Ávila e Rosa Oliveira pelos diálogos em relação à “inclusão” de travestis e transexuais. Alguns comentários foram agregados/referenciados em notas de rodapé. Dedico este texto a Walleria Suri e Marina Luisa Almeida: na semana em que terminei o mesmo, em outubro de 2012, ambas me contaram sobre a retificação de seus prenomes. Versão preliminar deste trabalho foi publicada na Oralidades – Revista de História Oral da USP (Dossiê Direitos e Diversidades). 2 Doutorando em História Social pela USP, mestre em História do Tempo Presente pela UDESC, especialista em Marketing e Comunicação Social pela Cásper Líbero. Contato: [email protected].

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Introdução Neste trabalho, procuro apresentar duas possíveis formas de inclusão social de travestis e transexuais – o uso do nome social e a retificação (ou mudança) de prenome3 – sinalizando para avanços e limitações e identificando uma inclusão entre aspas, marcada pela incompletude e caráter paliativo. Tal artigo é dividido da seguinte forma: na primeira parte, apresento sinteticamente o conceito de entre-gêneros (MARANHÃO Fº, 2012c), que sinaliza para algumas das múltiplas situações de trânsito identitário de gênero (lembrando que estes conceitos, como outros relacionados às identidades em geral, devem ser desnaturalizados e colocados sob rasura). O conceito de entre-gêneros refere-se a diversas situações de mobilidade identitária de gênero, dentre estas, as de pessoas que se identificam como travestis e transexuais, sujeitos deste artigo. Em seguida, identifico algumas das resoluções e leis que procuram assegurar o uso do nome social de travestis e transexuais, e considerações sobre a retificação de prenome (ou mudança de nome), agregado entrevistas com as advogadas Márcia Rocha e Karen Schwach. Comento, de modo introdutório, sobre a Carteira de Nome Social, do Rio Grande do Sul, a Lei de Identidade de Gênero argentina e a PL que propõe a Lei de Identidade de Gênero brasileira, intitulada Lei João Nery. Ao final, trago considerações que não se pretendem conclusivas, especialmente por ser este um termo em fluxo e ebulição. Após as referências, o/a leitor/a4 poderá consultar uma listagem das resoluções e leis abordadas.

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Como comenta Jaqueline Gomes de Jesus, no caso da retificação de registro civil, este “não se restringe ao nome civil ou prenome, ele se refere também ao “sexo” atestado nos documentos (o governo brasileiro ainda não adota o conceito de “gênero” na documentação).” Ressalto que neste artigo, me concentrarei mais especificamente à adequação do nome civil/prenome. 4 Sobre a linguagem inclusiva adotada no texto: entendo que a “diferença” entre os “sexos” e os “gêneros” é construída, inclusive pelo uso do idioma português, e que nossa linguagem é masculinista/androcêntrica, privilegiando o uso de referentes no masculino mesmo para se referir a pessoas e termos femininos. Por esta razão, escolho utilizar os artigos definidos (a/o, as/os) e indefinidos (uma/um, umas/uns) concomitantemente para me referir a vocábulos que podem ser femininos e/ou masculinos. Em relação a experiências identitárias nas quais os sujeitos (entre-gêneros e cisgêneros) percebem-se e/ou declaram-se como do gênero feminino ou masculino, utilizo-me do artigo como a pessoa se define.

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1. Entre-gêneros Convencionei anteriormente (MARANHÃO Fº, 2012c),5 como entre-gêneros as pessoas que vivenciam diferentes trânsitos e bricolagens de gênero. Como expliquei, tais pessoas – como todas as outras –, tem atribuídas a elas, na gestação de suas mães e/ou no seu nascimento, não só um gênero como um sexo. Por terem um gênero atribuído/designado

na

gestação

e/ou

nascimento

que

não

as

contemplam

(feminino/masculino) e se identificarem com o gênero distinto, vivenciam experiências entre-gêneros: Estão entre o gênero de atribuição e aquele o qual se identificam e/ou se expressam.6 Há também as pessoas que se encontram entre o gênero de designação e os dois outros gêneros, com os quais se expressam e/ou identificam. Dentre as múltiplas formas de deslocamentos de gênero possíveis, podemos destacar as que também se enfeixam sob termos guarda-chuva como trans*7: travestis, transexuais, transexuais pre-op, transexuais pos-op, transgêneros/as, trans, transpeople, FTMs (female to male), MTFs (male to female), trans homens, homens trans, trans mulheres, mulheres trans, crossdressers, transformistas, drag queens, drag kings, queers, genderqueers, genderfluids, transeuntes de gênero, bigêneros/as, multigêneros/as, pangêneros/as. Todas essas classificações são produções e/ou produtos de autodeclarações identitárias. Pessoalmente, creio que estas não deem conta da multiplicidade e hibridismo identitário das experiências pessoais. Podem, assim, ser entendidas como recursos didáticos (pessoais e sociais) para entender determinadas vivências individuais e coletivas, mas

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Para maiores esclarecimentos, ler Apresentando conceitos nômades: entre-gêneros, entre-mobilidades, entre-sexos, entre-orientações, História Agora, v. 15, 2012. 6 Tal definição não deve ser entendida de modo essencialista: é possível que existam pessoas que se declarem travestis, transexuais e/ou em outras situações de mobilidade identitária de gênero, e não acreditem ter identidade diversa da designada na gestação e/ou nascimento. As classificações relativas às múltiplas expressões de gênero devem partir, especialmente, do autoentendimento e autodeclaração individuais. 7 Até onde identifiquei, o termo trans* trata-se de termo “nativo”, criado por coletivos ativistas estadunidenses. Entretanto, tal informação merece análises mais aprofundadas posteriormente.

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insuficientes para contemplar a riqueza de características identitárias das pessoas8. Dentre estas e muitas outras possibilidades de autodeclarações, destacam-se no contexto político brasileiro contemporâneo as/os transexuais e travestis.

2. Sobre a importância do nome Grande parte das declarações e representações identitárias de pessoas entre-gêneros, especialmente travestis e transexuais, giram em torno da adequação do nome à sua expressão/identidade psíquica e social de gênero. A utilização do nome adequado à constituição emocional e psicológica da pessoa pode ser feita de modo independente – a partir de como ela se identifica e é reconhecida socialmente – ou a partir de dispositivos jurídicos que asseguram e autorizam tal adaptação, como o uso do nome social e a retificação de prenome9. O nome reitera diretamente as normas de gênero, remetendo a uma identidade feminina ou masculina (com exceções a nomes ambíguos, como Darci). Assim, receber o nome “Carolina” estimula uma pedagogia das convenções sociais relativa “ao que uma Carolina deve fazer”, isto é, como esta deve se portar de modo “feminino”. Ser chamado de “Carlos”, por sua vez, aciona outros dispositivos e reiterações de gênero de como “ser masculino”. Pessoas que não se identificam com o sexo ou/e gênero que lhes foram imputados, muitas vezes têm o desejo de serem chamadas através de nome que represente sua expressão de gênero – afinal, o nome é um dos principais “cartões de visita” que se tem. Daí a importância do nome social e da retificação do prenome.

3. O uso do nome social

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Trânsitos identitários estão longe de ser prerrogativa de pessoas que se identificam em mobilidades de gênero, e devem ser entendidos a partir das autoidentificações. 9 No Rio Grande do Sul, há também a Carteira de Nome Social, que comento sinteticamente ao final do artigo. Dou breves explicações, também, sobre uma iniciativa argentina de inclusão de travestis e transexuais, a Lei de Identidade de Gênero. Esta, como lembra Jaqueline Gomes de Jesus, é relevante não porque “mude” a identidade de alguém, como se costuma referir, mas por reconhecer legalmente tal identidade. Comento também sobre a recente PL de Identidade de Gênero brasileira (Lei de Gênero João Nery).

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O nome social é aquele pelo qual pessoas autoclassificadas trans* (ou variações, como trans, transexual, travesti ou transgênero) preferem ser chamadas cotidianamente, refletindo sua expressão e/ou identidade de gênero, em contraposição ao seu nome de registro civil, dado em consonância com o gênero ou/e o sexo atribuídos durante a gestação e/ou nascimento.

3.1 Algumas das resoluções acerca do uso do nome social10 3.1.1 Em âmbito federal Administração Pública Federal O uso do nome social tem sido legitimado por diversas entidades governamentais. Em nível federal, há algumas resoluções. A Administração Pública Federal, através do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, assegura, na Portaria nº 233, de 18/05/10, o uso do nome social por travestis e transexuais, em determinadas situações.11 Ministério da Saúde O Ministério da Saúde, a partir da Portaria GM 1820/2009, artigo 4º, dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde, garantindo o direito de “identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente do registro civil sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença ou outras formas desrespeitosas ou preconceituosas”. O Conselho Federal de Serviço Social, através da Resolução CFESS 615, de 8/09/11, dispõe sobre a

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Não pretendo, neste artigo, abordar exaustivamente as instâncias governamentais que legislaram sobre o uso do nome social por travestis e transexuais. Ofereço aqui apenas um panorama sintético. 11 “Art. 2° Fica assegurada a utilização do nome social, mediante requerimento da pessoa interessada, nas seguintes situações: I - cadastro de dados e informações de uso social; II - comunicações internas de uso social; III - endereço de correio eletrônico; IV - identificação funcional de uso interno do órgão (crachá); V - lista de ramais do órgão; e VI - nome de usuário em sistemas de informática.

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inclusão e uso do nome social da/o assistente social travesti12 nos documentos de identidade profissional. A Resolução 14/2011, do Conselho Federal de Psicologia, assegura às pessoas transexuais e travestis o direito de inclusão do “prenome que corresponda à forma pela qual se reconheça e é identificada, reconhecida e denominada” em seu meio social.

Ministério da Educação O Ministério da Educação (MEC), através do Parecer Técnico 141/2009, responde favoravelmente à comunicação interna 652/2009 do Gabinete da Secad, que encaminha memorando com solicitação da ABGLT (Associação Brasileira de gays, bissexuais, lésbicas, travestis e transexuais) para manifestação por meio de Resolução à medida adotada por estados e municípios em relação à adoção do nome social em registros escolares. Portaria nº. 1.612 do Ministério da Educação, de 18/11/11, assinada pelo então ministro Fernando Haddad e publicada pelo Diário Oficial da União nº 222 de 21/11/11, assegura “o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito do Ministério da Educação”, entendendo por nome social “aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são identificadas pela sociedade”, garantindo o uso do nome social mediante requerimento da pessoa interessada. 13

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Ressalto que, de modo geral, as pessoas que se referem travestis, são aquelas que tiveram “sexo” e “gênero” designados socialmente como masculinos, e transitam para o polo “oposto”. Há, entretanto, pessoas que “nasceram mulheres” e que se deslocam para o masculino, e se designam travestis masculinas. Uso as aspas aqui para sinalizar a precariedade de tais termos, entendendo os mesmos como social e culturalmente construídos, e não naturalizados. 13

Isto se dá nas seguintes situações: cadastro de dados e informações de uso social; comunicações internas de uso social; endereço de correio eletrônico; identificação funcional de uso interno do órgão (crachá); lista de ramais do órgão e nome de usuário em sistemas de informática. Complementa-se dizendo que “os agentes públicos deverão tratar a pessoa pelo prenome indicado, que constará dos atos escritos”. Disponível em: . Acesso em 21 nov 2011.

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O uso do nome social no caso de discentes, é adotado por algumas universidades e institutos educacionais,14 como Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mais recentemente, a Universidade Nacional de Brasília (UnB).15 Marcelo Caetano da Costa Zoby, em 20 de setembro de 2012, “ganhou o direito” de usar o nome social na UnB, abrindo precedente na instituição, 16 mas corroborando uma concepção autorizativa do uso do nome social: Os órgãos públicos, com maior ou menor “benevolência”, reconhecem e “permitem” este tipo de direito.

Marcelo Caetano da Costa Zoby, estudante da UnB. 17

3.1.2 Em âmbito estadual 14

Como lembra Jaqueline Gomes de Jesus, “as universidades federais são subordinadas ao Governo Federal, logo, em função da Portaria do MP, elas deveriam estar adotando o nome social pelo menos para os seus servidores públicos”, o que, em geral, também não ocorre. 15 UFSC aprova uso de nome social a transgêneros e transexuais. Disponível em: . CEP aprova resolução que assegura uso de nome social. Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2010. 16 Como cita o site da UnB: “estudante do segundo semestre de Ciência Política, Marcelo Caetano nasceu mulher, mas se reconhece como homem. Em janeiro ingressou com pedido de uso do nome que adotou na Câmara de Ensino de Graduação. Após passar pela Procuradoria Jurídica da Universidade, que reconheceu o direito de uso do nome social, o pedido foi encaminhado ao CEPE, onde foi votado nesta quinta-feira, 20 de setembro. ‘A utilização do nome social visa promover, de fato, a igualdade prevista no artigo 5º da Constituição Federal de 1988’, argumentou, em seu parecer, o relator, pr ofessor Arthur Trindade Costa, do Departamento de Sociologia. O pedido feito por Marcelo Caetano e aprovado pelo CEPE tem caráter geral e, portanto, abre precedente em benefício de alunos e alunas que fizerem a mesma reivindicação.” CEPE garante a estudante direito de usar nome social em documentos. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2012. 17 CEPE garante a estudante direito de usar nome social em documentos. Disponível em: . Acesso em: 24 set. 2012.

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Administração Pública Direta e Indireta Em nível estadual, há decretos da Administração Pública, como o 1675, de 21/05/09, do Estado do Pará, que “determina aos órgãos da Administração Direta e Indireta o respeito ao nome público dos transexuais e travestis”, a Lei Ordinária 5916, de 10/11/09, do Piauí, que decreta e sanciona que “as pessoas travestis e transexuais têm direito à identificação por meio do seu nome social, quando do preenchimento de fichas de cadastros, formulários, prontuários e documentos congêneres, para atendimento de serviços prestados por qualquer órgão da Administração Pública direta e indireta”, e o Decreto 35.051, de 25/05/10, de Pernambuco, que “dispõe sobre a inclusão e uso do nome social de travestis e transexuais nos registros estaduais relativos a serviços públicos prestados no âmbito da administração pública estadual direta, autárquica e fundacional”, e o 43065/2011, do Rio de Janeiro, “assegura às pessoas transexuais e travestis capazes, mediante requerimento, o direito à escolha de utilização do nome social nos atos e procedimentos da Administração Direta e Indireta” deste Estado. O Decreto Estadual nº 55.588/2010, de 17 de março de 2010, do Estado de São Paulo, governado por José Serra à época, “dispõe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo”. Tal decreto considera “que toda pessoa tem direito ao tratamento correspondente ao seu gênero; e que transexuais e travestis possuem identidade de gênero distinta do sexo biológico”e assegura “o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito da Administração direta e indireta do Estado”. A partir do Decreto nº 22.331, de 13/08/11, publicado no Diário Oficial do Estado do Rio Grande do Norte e assinado pela governadora Rosalba Ciarlini, as repartições públicas deste Estado passam a aceitar o uso de nome social de transexuais e travestis. Através de portaria assinada em 6/08/12, a Bahia passa a assegurar o direito ao nome social aos seus servidores. Assistência Social e Cidadania Há Portarias de Secretarias de Assistência Social e Cidadania que asseguram tal direito. A 26/2009, do Piauí, “determina o registro do nome social de travestis e transexuais em documentos de atendimento” de suas unidades, a 220/2009, da Bahia, resolve que o 36

SUAS (Sistema Único de Assistência Social) “passe a registrar o nome social de travestis e transexuais em fichas de cadastro, formulários, prontuários e documentos congêneres”, a 438/2009, do Amazonas, declara “que os travestis e transexuais, deverão ser cadastrados e terão reconhecidos seus nomes sociais”, e a 041/2009, da Paraíba, determina o registro do nome social “em fichas de cadastro, formulários, prontuários e documentos congêneres”. Serviços de Saúde O uso do nome social também é assunto dos Serviços de Saúde estaduais. A Resolução 188/2010, da SESA – Paraná, resolve pela inclusão do nome social em suas unidades, enquanto a Resolução 208/2009, do CREMESP (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), através da Resolução nº 208, de 27 de outubro de 2009, assegura, em seu artigo 2º, “o direito de usar o nome social, podendo o (a) paciente indicar o nome pelo qual prefere ser chamado(a), independente do nome que consta no seu registro civil ou nos prontuários do serviço de saúde”. Secretarias de Educação Diversas Secretarias Estaduais de Educação (SEDUCs) resolveram sobre o uso do nome social. A Portaria 016/2008 – GS, de 10/04/08, da SEDUC do Pará, estabelece em seu artigo 1º, que “a partir de 02 de janeiro de 2009, todas as Unidades Escolares da Rede Pública Estadual do Pará passarão a registrar, no ato da matrícula dos alunos, o prénome social de Travestis e Transexuais”. Em 03/04/09, a Resolução CEE/CP n.º 5, fl. 19, do Conselho Estadual de Educação (CEE) de Goiás, dispõe sobre “a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos registros”, destacando o objetivo de “garantir o acesso, a permanência e o êxito desses cidadãos no processo de escolarização e de aprendizagem nos documentos escolares internos”, tendo a/o aluna/o travesti ou transexual que “manifestar, por escrito, seu interesse da inclusão do nome social no ato de sua matrícula ou ao longo do ano letivo”. O mesmo Conselho, na mesma data, dá o Parecer nº 04/2009, de 03/04/09, fls. 20 a 22, determinando que “as escolas do sistema educativo de Goiás, em respeito à diversidade, à dignidade humana e à inclusão social, incluam o nome social de travestis e transexuais”, a partir da “manifestação por escrito

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do interessado, que deverá acompanhar seu dossiê escolar, ficando excluídos o diploma e o histórico escolar”. O CEE do Mato Grosso, em 21/07/09, a partir do Parecer-Plenária nº 010/2009, fls. 12 a 14, decide sobre a “inclusão do ‘nome social’ de travestis e transgêneros nos registros escolares”, e pela autorização do acréscimo do nome social de “travestis e transgêneros nos registros escolares acadêmicos, exceto no histórico escolar e no diploma, em que constará, tão somente, o nome civil”. O Parecer nº 277/2009 do CEE de Santa Catarina, de 11/08/09, fls. 17 e 18, resolve sobre a “abertura de Campo específico nos documentos escolares para inclusão do nome social dos travestis e transexuais”, decidindo favoravelmente pela “elaboração de Resolução específica dispondo sobre a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares das instituições vinculadas ao Sistema Estadual de Ensino”. Em 1/10/09 o Ministério Público do Paraná (MP-PR), através de seu Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Proteção à Educação, dá parecer favorável à inclusão do nome social em registros escolares, contemplando reivindicações da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), encaminhando “pronunciamento sobre a possibilidade de utilização nas escolas do chamado ‘nome social’, por maiores de 18 anos com orientação sexual distinta da constante dos documentos oficiais”. O parecer do MP-PR destaca que o uso do nome social é autorizado apenas nos registros escolares internos, não contemplando documentos como diplomas, históricos escolares, atestados e declarações. A alteração nestes “somente poderá ocorrer após a alteração do nome civil do interessado, o que depende de ação judicial com decisão definitiva”. Tal orientação concorda com o disposto no art. 57 da Lei 6015/73, que disciplina os Registros Públicos no Brasil: “qualquer alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa”. Para o MP-PR, a decisão sobre a inclusão do nome social nos documentos internos das escolas paranaenses, decidida no parecer da promotora de Justiça Hirmínia Dorigan de Matos Diniz, ocorre de acordo com a Constituição Federal, que em seu inciso IV e artigo 3º, tem como objetivo “a promoção do bem de todos, sem preconceitos de 38

origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Para a promotora, “a utilização do nome social, em alguns momentos da vida acadêmica dos alunos que sofrem essas práticas preconceituosas, pode se constituir em uma prática afirmativa de acolhimento, promovendo a inclusão e a sua permanência com sucesso”.18 O MP-PR, no Parecer nº 04/2009 – CAOPEduc, fls. 35 a 45, considera que diante da urgência em instituírem-se políticas consubstanciadas em práticas que conduzem à minimização e, quiçá, à erradicação do preconceito, assegurando-se às pessoas dignidade em suas relações sociais, aqui especialmente consideradas as relações escolares, com o objetivo transverso no combate à evasão provocada pela exclusão, garantindo a permanência com sucesso no sistema educacional é recomendável a inclusão do nome social adotado em razão da orientação sexual e identidade de gênero pelos cidadãos com 18 anos completos e identidade nos registros estritamente internos das escolas.

O CEE do Paraná, no Parecer 01/09, de 8/10/09, fls. 26 a 34, normatiza o uso do nome social de alunos requerentes nos documentos internos das escolas, desde que os educandos sejam maiores de 18 anos. Regulamenta a inserção do nome social, além do nome civil, nos documentos internos do estabelecimento de ensino nos termos das recomendações do Parecer n.º 04/09 do Ministério Público/PR de 21/09/09 (anexo a este Parecer), aos alunos travestis e transexuais maiores de 18 anos, que requeiram, por escrito, esta inserção.

Em 9/10/09, a SEDUC do Estado do Maranhão, através do Ofício 731/2009, atendeu pedido de Toni Reis, presidente da ABGLBT, em relação ao uso do nome social nos registros escolares estaduais. O Parecer 739/2009, do Rio Grande do Sul, aconselha as escolas de seu Sistema Estadual de Ensino que adotem o “nome social escolhido pelo aluno pertencente aos grupos transexuais e travestis”. Em 15/12/09, a Resolução nº 132, fls. 15 e 16, do CEE de Santa Catarina, dispõe “sobre a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares internos”, destacando, em seu Artigo 5º,

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Parecer do MP-PR apoia inclusão de “nome social” em registros escolares. 01/10/2009. Disponível em: . Acesso em: 05 de abril de 2012.

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que “o (a) aluno (a) poderá requerer, a qualquer tempo, por escrito, a inclusão do seu nome social nos documentos escolares internos”. A Resolução 32/2010, do Tocantins, de 26/02/10, resolve que suas unidades de ensino podem (grifo meu) “incluir nome social de travestis e transexuais em seus registros escolares”. O CEE de Alagoas, na Resolução nº 53/2010, fl. 24, determina a “inclusão do nome social das travestis e transexuais nos registros escolares internos das escolas do Sistema Estadual de Ensino do Estado de Alagoas”, garantindo “o acesso e a permanência desses cidadãos (ãs) no espaço escolar”. O mesmo CEE, a partir do Parecer 115/2010, de 23/03/10, solicita a inclusão do nome social nos registros escolares. A Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal determina a inclusão do nome social através da Portaria 13, de 9/02/10, na qual o estudante maior de idade deve manifestar o desejo de inclusão por escrito, e o menor, mediante autorização por escrito de pais ou responsáveis. O CEE do Espírito Santo aprova, em 2011, resolução que permite a inclusão do nome social de travestis e transexuais nos diários de frequência das escolas do Estado. O nome social é inserido entre parênteses, após o nome de registro do aluno. Destaca-se que, em alguns relatórios e pareceres, menciona-se a maioridade dos requerentes (e sua capacidade jurídica) como condição para o pedido de uso de nome social no ensino público. A questão da maioridade tem provocado tensões e negociações. Em 16/02/12, o CEE do Paraná dá parecer negativo à solicitação de uso do nome social Fernanda Lima, feita por Cristiane Aparecida de Lima, mãe de uma aluna, de 17 anos:19 Declaro e autorizo o Colégio Estadual Dom Pedro […], a empregar, fazer constar nos documentos escolares, tais como: boletins bimestrais, livros de chamada, lista de presença, entre outros, o nome social do meu filho, “FERNANDA LIMA”, em substituição ao nome civil RUAN CARLOS DE LIMA […], nascido aos 17/07/1994. Declaro ainda que, estou de pleno acordo com o citado acima, uma vez que, é identificação própria do meu filho RUAN CARLOS DE LIMA, portanto

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Opto por designar Fernanda a partir do modo como a mesma se define e declara, isto é, no feminino.

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declaro que esta nova forma de tratamento no meio escolar, para nós, mãe e filho, não gerará discriminação social. 20

O indeferimento do pedido tem como justificativa a menoridade da filha da requerente. Este se dá “por não atender o disposto no Parecer 01/09-CEE/PR, já citado, vez que o aluno em tela não possui o requisito basilar, por ser menor de 18 anos.”21 A decisão da Câmara, confirmada pelo seu presidente Oscar Alves, aprova o voto da relatora Clemencia Maria Ferreira Ribas e de mais sete conselheiros, favoráveis à negação do pedido. O único voto contrário ao indeferimento foi do conselheiro Arnaldo Vicente, que considera: ainda que se trate de indivíduo menor, é demasiado o sofrimento que se lhe impõe ao não permitir que em documentos internos e na relação do ambiente escolar seja identificada sua identidade feminina. São inegáveis, quiçá devastadores e irrecuperáveis os efeitos nocivos decorrentes deste sofrimento à sua trajetória escolar e pretendida pelos sistemas de ensino, qual seja: o do aproveitamento dos estudos de atualidade, nas faixas etárias conforme preconizadas na LDB (artigos 4º, 29, 30, 32 entre outros), e, sobretudo, para “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, conforme dispõe o art. 2º dessa mesma Lei. Contudo, é inegável que a proteção desse direito não pode vulnerabilizar o personalíssimo direito ao nome, por meio de decisão que tenha condão de perenidade. II – VOTO DO RELATOR. Diante do exposto, este Relator corrobora os termos normativos do Parecer CP/CEE nº 01/09. Entretanto, de forma casuística, para assegurar o direito à dignidade humana, em respeito à persecução do direito público subjetivo de acesso e permanência à educação de qualidade e, considerando que não há afronta do direito ao nome, entendo que a inclusão do nome social “FERNANDA LIMA” a RUAM CARLOS DE LIMA é medida protetiva de suas

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Parecer negativo de solicitação de uso de nome social por menor. Processo nº 2213/2010, Parecer CEE/CEB nº 74/12. Protocolo nº 10.509.798-0. Aprovado em 16/02/2012. Câmara de Educação Básica. Interessada: Secretaria de Estado da Educação do Paraná - SEED. Município: Curitiba. P. 4. 21 Parecer negativo de solicitação de uso de nome social por menor. Processo nº 2213/2010, Parecer CEE/CEB nº 74/12. Protocolo nº 10.509.798-0. Aprovado em 16/02/2012. Câmara de Educação Básica. Interessada: Secretaria de Estado da Educação do Paraná - SEED. Município: Curitiba. P. 5.

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necessidades, bem como assegura-lhe a garantia dos direitos individuais e fundamentais preceituados na Carta Magna. É o Parecer. 22

O indeferimento do pedido de uso do nome social a Fernanda Lima é apenas um dentre os muitos casos de interdições a solicitações como estas, demonstrando o entendimento da necessidade da maioridade, ainda que eventualmente algum/a juiz/a possa autorizar tal uso. De todo modo, ressalta-se que casos como estes são decididos de forma subjetiva e de acordo com interesses e entendimentos distintos. Vivemos um momento de diferentes negociações e agenciamentos ao redor de questões relativas às minorias políticas. No caso do uso do nome social por travestis e transexuais, estas tensões envolvem estas pessoas, esfera pública, organizações ativistas trans e TLGB, advogadas/os, juízas/es, médicas/os, profissionais da área “psi”,23 acadêmicos/as, mídia, e outros sujeitos ou instituições. 24 O CEE do Ceará, através da Resolução nº 437, de 2012, é outro dos órgãos governamentais que dispõem “sobre inclusão do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares internos do Sistema Estadual de Ensino”.

25

Em 3/07/12, a

SEDUC do Pará, juntamente com a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), lança campanha pela efetivação do uso de nome social nas escolas da Rede Pública Estadual de Ensino. Esta SEDUC já havia previsto, através da portaria 16 de 2008 e do decreto 1675 de 2009, o respeito ao uso do nome social, inclusive no ato da matrícula, mas identificou que a maioria das unidades escolares desconhece ou descumpre tais regulamentações.26 Tal campanha demonstra a incongruência entre as resoluções que

22

Parecer negativo de solicitação de uso de nome social por menor. Processo nº 2213/2010, Parecer CEE/CEB nº 74/12. Protocolo nº 10.509.798-0. Aprovado em 16/02/2012. Câmara de Educação Básica. Interessada: Secretaria de Estado da Educação do Paraná - SEED. Município: Curitiba. P. 10 e 11. 23 A expressão “psi”, utilizada por diversas/os pesquisadoras/es, costuma referir-se aos saberes psicológico, psicanalítico e psiquiátrico. 24 A Conferência Nacional LGBT, por exemplo, realizada em junho de 2008, em Brasília, e apoiada pela Secretaria de Direitos Humanos e diversos ministérios, teve como um de seus principais assuntos o uso do nome social, contribuindo para o aprofundamento e midiatização da questão. Aqui, sigo a subversão da sigla LGBT, utilizando TLGB, como fazem alguns/algumas ativistas trans*, procurando dar maior visibilidade a esta categoria. 25 Resolução do Conselho Estadual de Educação para nome social de travestis e transexuais. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2012. 26 PA: Campanha defende o uso de 'nome social' de travestis e transexuais. Disponível em: Acesso em: 6 jul. 2012.

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regem a inclusão do nome social e sua efetiva realização nas escolas paraenses – o que é reproduzido Brasil afora.

3.1.3 Em âmbito municipal Administração Pública O Decreto 3902/2009, de São João Del Rei-MG (23/01/09), determina a observação e o respeito ao uso do nome social de travestis e transexuais, a Portaria 384/2010, de João Pessoa-PB, o Decreto nº 006/2009, de Picos-PI (26/02/10), “estabelece o direito ao uso e tratamento pelo nome social às travestis e transexuais (...) na rede de ensino, saúde e assistência social”, o Decreto 51180/2010, de São Paulo (14/01/20), “dispõe sobre a inclusão e uso do nome social de pessoas travestis e transexuais nos registros municipais relativos a serviços públicos prestados no âmbito da Administração Direta e Indireta” e a Lei 5992/2009, de Natal-RN (28/10/09) “institui a observância do nome social das travestis e transexuais da administração pública municipal”, agregando ainda as entidades “da iniciativa privada”. Educação e Saúde Em relação às Secretarias Municipais de Educação, há o Parecer CME nº 052/2008, de Belo Horizonte (23/07/09) trata da inclusão do nome social nos registros escolares das escolas municipais, a Resolução CME/BE Nº 002/2008 (17/07/09), da mesma cidade, dispõe sobre os parâmetros para tal inclusão, dentre estes, em seu artigo 1º, que “a partir de 2009, todas as unidades escolares da RME/BH deverão incluir nos registros dos diários de turma, nos boletins escolares e demais registros internos das instituições de ensino, entre parênteses, na frente do nome constante do registro civil, o nome social, pelo qual a travesti e o/a transexual se identifica”. A Portaria n.º 03/2010, de 4/1/10, fls. 25, da Secretaria Municipal de Educação de Fortaleza/CE resolve, no Artigo 1º: “Aos travestis e transexuais será assegurado o direito de utilização do nome social, segundo a livre escolha do (a) interessado (a), nas escolas da rede municipal de ensino”. Em relação aos Serviços de Saúde, uma das iniciativas é a da Portaria/SS/GAB/Nº 026/2010, de Florianópolis (18/05/10), que determina “que os serviços de saúde do 43

município de Florianópolis adotem um novo campo nas fichas de saúde dos usuários, onde se poderá colocar o nome social se assim o desejarem, respeitando sua identidade de gênero”. A garantia do direito ao nome social é uma das formas pelas quais o Poder Público atende parte das reivindicações de pessoas travestis e transexuais. Outra destas é a retificação de prenome, que trato na parte seguinte, de cunho mais empírico que teórico, a partir de entrevistas com duas advogadas, Márcia Rocha e Karen Schwach.

4. Mudança de prenome ou retificação de prenome Lembrando que tanto o nome como o corpo são dois dos principais referentes identitários dos sujeitos, a possibilidade de transformações corporais de forma segura a pessoas trans (como a cisgêneras) é outro direito que deve ser assegurado em sua plenitude. Ainda que cirurgias como a de redesignação sexual, por exemplo, sejam demandas importantes de muitas das pessoas entre-gêneros, especialmente de quem se declara transexual, a maior solicitação por parte desta população é a de retificação do prenome, fundamental para o enfrentamento da redução de sua vulnerabilidade social. A mudança de prenome, mais que o uso do nome social, visa atender às pessoas entregêneros, especialmente as transexuais,27 que entendem que seu nome original, dado em consonância com o sexo/gênero determinados em seu nascimento e por sua aparência genital não está de acordo com sua identidade/identificação ou expressão de gênero. A mudança de prenome ocorre judicialmente mediante decisão de procedência proferida na ação de retificação de registro civil que é a “via jurídica competente para alterar o prenome no assento de nascimento”. 28 Como explica Vieira, não há no Brasil uma lei específica “que tutele o direito do transexual em adequar seu nome e sexo de conformidade com sua identidade de 27

Juridicamente, no Brasil, a retificação de registro civil costuma ocorrer, salvo exceções, mediante laudo médico que atesta o “processo transexualizador”. Há ainda juízes que só permitem a modificação após a efetivação da cirurgia de transgenitalização. 28 Carta explicativa geral. SOS Dignidade. Elaborada por Karen Schwach. Encaminhada para meu email em 19 de abril de 2012. Este trabalho de pesquisa, como Schwach explicou, foi apresentado pelo SOS Dignidade no Congresso Internacional de AIDS, realizado em Washington, EUA, no ano de 2012.

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gênero,” e assim, os agentes do direito se valem de dispositivos legais gerais, como a Lei 9708/98, “que tutela o direito do indivíduo em substituir o prenome que lhe atribuíram ao nascer, que caiu em desuso, por seu apelido público notório.” (VIEIRA, 2012, p. 383). A advogada Karen Schwach29 explica que a retificação dos registros civis dos transgêneros é o tratamento do indivíduo em conformidade com o ditame constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana, com impacto profundo na auto-estima desta população. Constata-se uma enorme importância do nome na autoestima, representando um meio de inclusão social. Cem por cento dos indivíduos que responderam o questionário apresentado pelo SOS Dignidade relataram aumento na autoestima e qualidade de vida, e 75% disseram que passaram a sentir menor ansiedade com relação a cirurgia de transgenitalização, concluindo-se que esta operação deixa de ser vista como a única forma de inclusão social.

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Sobre a importância da retificação do prenome, Penso que as travestis sofrem ainda mais preconceitos que as transexuais, vez que as/os transexuais ou sentem-se homens (FTM) ou mulheres (MTF), já as travestis carregam um dualismo de serem as duas coisas, o que não é bem compreendido pela sociedade. O SOS Dignidade constatou, através de pesquisa, que a retificação do prenome de indivíduos transexuais diminui a ansiedade com relação à cirurgia de transgenitalização que, apesar de continuar sendo importante para elas/eles, deixa de ser vista como a única forma de inclusão social. 31

Até surgirem as reivindicações desta população entre-gêneros, a possibilidade de ajuizar uma ação de mudança de prenome era permitida em casos em que a pessoa se dizia exposta a situações vexatórias (o que é um dos argumentos utilizados por tais pessoas e seus/suas advogados/as), de erros no momento do registro, de portadores de

29

Schwach é membro da Comissão de Justiça e Paz do Estado de São Paulo e atua como advogada no projeto SOS Dignidade, fundado por Barry Michael Wolfe, através da ONG Instituto Cultural BARONG. Segundo Schwach, o SOS Dignidade “tem como missão resgatar a dignidade de indivíduos em situação de vulnerabilidade, em especial, travestis e transexuais.” Schwach representa o SOS Dignidade no Comitê de Combate e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, na qualidade de membro suplente de Wolfe. 30 A mudança de nome em indivíduos transgêneros em pauta na Conferência Internacional de Aids. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2012. 31 Entrevista concedida a mim em 19 de abril de 2012.

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doenças graves expostos à proteção e de beneficiários do Programa de Proteção às Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, qualificados na lei 9.807/99. O novo Código Civil, através da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, permite a mudança do prenome, desde que não sejam alterados os sobrenomes de pai e mãe. Conforme explicou Schwach, “apesar do fundamento da demanda variar de acordo com as necessidades e particularidades de cada caso”, os fundamentos jurídicos da retificação de registro civil são a notoriedade, onde o sujeito é conhecido “por nome diverso daquele do documento, tanto no trabalho, como no convívio social” e o constrangimento, suportado pela incongruência entre o nome registrado no documento de identificação e a aparência da pessoa, condição que acarreta a exposição da mesma a situações vexatórias, “caracterizando, ainda, violação ao princípio da veracidade registrária que deve ser interpretado sob o prisma do princípio da dignidade da pessoa humana para garantir a adequação do documento à pessoa e não da pessoa ao documento”.32 Sobre o constrangimento, Schwach explica que A dificuldade suportada pelos transgêneros e a situação vexatória a que são expostos, quando da apresentação dos documentos com o nome de registro em total discrepância com a aparência e personalidade de seu respectivo portador, enseja o questionamento acerca da aceitação legal e social da classificação de gênero pelo sexo biológico. Já foram relatados por diversos transgêneros o tratamento marginalizado a que são submetidos, chegando ao ponto de serem, até mesmo, impossibilitados de fazerem uso de cartão de crédito, tudo porque o atendente não acredita que o indivíduo é o mesmo daquele cujo nome consta no cartão e demais documentos de identificação, sendo que muitas vezes tais situações culminaram no Distrito Policial.

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Como reforça a advogada Márcia Rocha, com experiências na área LGBT, fundadora e diretora da ABRAT (Associação Brasileira de Transgêneros), e autodeclarada travesti,34 “o principal argumento jurídico para a mudança do prenome está no artigo 1º, nº III da Constituição Federal, é o referente à Dignidade da Pessoa Humana”. Para a mesma, o

32

Carta explicativa geral. SOS Dignidade. Elaborada por Karen Schwach. A mudança de nome em indivíduos transgêneros em pauta na Conferência Internacional de Aids. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2012. 34 Márcia Rocha apresenta-se também com seu nome de batismo, Marcos Cesar Fazzini da Rocha. 33

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constrangimento da apresentação de documentos que não condizem com a aparência da pessoa fere diretamente tal princípio constitucional. 35 Dentre a documentação que deve ser entregue pelo/a interessado/a no processo de retificação de nome, constam certidões das Justiças Militares Estadual e da União (no caso de pessoas em trânsito de gênero designadas com o sexo masculino no nascimento e/ou gestação), de distribuição criminal, de execuções criminais, negativa de dívida ativa e de quitação com a Justiça Eleitoral. Dependendo da natureza da restrição apontada pelas certidões e demais documentos que instruem a ação de retificação de registro civil, o pedido pode ser prejudicado, o que demonstra a necessidade de que a pessoa não deva nada para a Justiça. São necessárias ainda, carta dos pais ou de alguém da família e amigos, namorados e namoradas confirmando a notoriedade da pessoa pelo nome pretendido, com firma reconhecida da assinatura do declarante e escrita de próprio punho, e cópia laudo médico/psicológico ou declaração médica psicológica atestando ser transexual.36

Sobre a documentação, Schwach explica: o laudo/declaração médica/psicológica por profissional devidamente habilitado para atestar que o indivíduo é transexual e que a mudança do prenome trará benefícios à pessoa. Tal exigência se faz necessária vez que os profissionais do Direito não são peritos para analisar tal questão, sendo incompetentes para tanto. Os demais documentos são certidões a fim de que o Juiz certifique-se sobre eventual existência de pendência em nome do interessado (a), eventualmente existindo uma pendência de dependendo de sua natureza, o Juiz manda oficiar o respectivo órgão competente sobre a retificação no prenome do indivíduo, valendo lembrar que o número dos documentos, tal como RG e CPF, por exemplo, permanecem inalterados. 37

35

Entrevista concedida a mim em 06 de setembro de 2012. Os demais documentos são: cópia autenticada da certidão de nascimento atualizada, cópia do RG e CPF, cópia da reservista, certidão da Justiça Federal 3° Região, certidão trabalhista do Estado de São Paulo, certidão do distribuidor cível do Estado de São Paulo, certidão do distribuidor cível, Executivos Fiscais, do Estado de São Paulo, certidão dos 10 Cartórios de Protesto de Letras e Títulos de São Paulo, certidão da Justiça Federal do Estado de São Paulo, comprovante de residência, documentos de escola ou do trabalho com o nome pretendido, se tiver, e por fim, fotografias (atuais). Carta explicativa geral. SOS Dignidade. Elaborada por Karen Schwach. 37 Entrevista concedida a mim em 19 de abril de 2012. 36

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Em relação ao laudo médico atestando a condição de transexualidade, há quem considere que a questão da legislação acerca da transexualidade se dá a partir de dois pólos, o do reconhecimento e o da autorização. Para Missé e Coll-Planas, quanto mais próximo o legislador estiver de um entendimento patologizante em relação à transexualidade, maiores as exigências para que os transexuais tenham seus direitos assegurados, e quanto maior a concepção de que a transexualidade se combina com os direitos humanos, menores as dificuldades. (MISSÉ, COLL-PLANAS, 2010). Edvaldo Souza Couto relata alguns dos primeiros casos de retificação de registro civil. O primeiro que ele identifica data de 1985, quando o juíz de Mangaratiba (RJ) autorizou que Celso William dos Santos passasse a se chamar Luciana dos Santos, que teve também seu sexo alterado na documentação.38 A dupla retificação (de sexo e prenome), segundo Vieira, ocorre após a realização da cirurgia de redesignação de sexo. Vieira atesta o fato a partir da reprodução de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça de São Paulo: “tendo o recorrente se submetido à cirurgia de redesignação sexual, nos termos do acórdão recorrido”, existe, “portanto, motivo apto a ensejar a alteração para a mudança de sexo no registro civil”. A decisão ainda aprova a alteração de “seu assento de nascimento a fim de que nele conste o sexo feminino, pelo qual é socialmente reconhecido” (VIEIRA, 2012, p. 383). Como Bento argumenta, não há no Brasil leis que regulamentem o processo transexualizador, mas convencionou-se, apoiado em concepções autorizativas adotadas internacionalmente pelas esferas médica e jurídica (muitas vezes ultrapassadas), que após a realização da cirurgia de redesignação de sexo, poderia se iniciar o processo jurídico de mudança de documentos, “o que pode levar anos, uma vez que o parecer depende da compreensão que o juiz tem da transexualidade”. (BENTO, 2008, p. 72). Bento diz que a primeira proposição apresentada “na Câmara dos Deputados que tinha a transexualidade como objeto foi o projeto de lei (PL) nº 70-B/1995, do deputado José 38

Em 1989, a justiça do Recife permitiu a mudança de prenome de Severino do Ramo Afonso para Silvia do Ramo Afonso. Em 1994, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu ganho de causa a Rafael A.A., que passa a ser reconhecida como Rafaela. Couto também relata o que seria a primeira mudança de nome de um transexual FTM (female to male), quando Maria Teresa Araújo recebe a autorização para se chamar Luiz Henrique Araújo. Como Couto comenta, o parecer do legista Badan Palhares sobre a transexualidade de Luiz Henrique foi fundamental para o aceite do juiz responsável. (COUTO, 1999, p. 73).

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Coimbra”, que excluía a realização das cirurgias de transgenitalização do crime de mutilação, e em seu artigo 2º permitia a modificação do registro a partir da cirurgia de transgenitalização e mediante autorização judicial. Previa ainda que na averbação nos registros de nascimento e de identidade deveriam constar que a pessoa era transexual. Segundo Bento, na prática esta lei inviabilizaria que homens transexuais tivessem seus documentos alterados, já que a grande maioria não chega a realizar a cirurgia de neofalo.39 E a averbação da condição de transexual no registro civil não agradaria aos transexuais, pretendentes a ter no documento o prenome e o sexo que combinariam com a sua identificação de gênero. Esta lei exemplifica uma concepção autorizativa, ao limitar a transexualidade à cirurgia e decisão judicial. (BENTO, 2008, p. 75). Bento também comenta que em 2006, a Câmara dos Deputados acolheu o PL nº 6655/06, apresentado por Luciano Zica, alterando a lei nº 6015, de 1973, que dispõe sobre os registros públicos, incluindo a possibilidade de se substituir o prenome de transexuais. Para este, seria necessário laudo médico constatando o “transexualismo”, apresentado no momento de solicitação de alteração. Contudo, a alteração não abrangeria a anotação sobre o sexo da pessoa. Semelhantemente à citada acima, esta lei mantém a concepção autorizativa por exigir o laudo médico, ainda que, segundo a autora, se combine com uma concepção de “reconhecimento”, aproximando-a das legislações de outros países. Para Bento, “em nome da suposta segurança jurídica, produz-se uma noção de cidadania deficitária”, não produzindo direitos plenos. (BENTO, 2008, p. 75). Márcia Rocha apresenta outras informações. Como explica, a dupla retificação nas certidões de nascimento não é prerrogativa de transexuais: Há também casos de mudança de nomes de travestis, e de transexuais que não se submeteram à cirurgia, principalmente no Rio Grande do Sul. Há também casos, raríssimos, de transexuais que conseguiram a mudança tanto do prenome como do sexo no documento, como a Maitê Schneider. Na certidão dela, consta que

39

Sobre tal cirurgia, João W. Nery lembra que “a cirurgia de faloplastia é ainda considerada experimental, mas só para os transhomens. A cirurgia realizada é a de trangenitalismo, palavra desconhecida e que não é sinônimo de transexualizador”. Comentou também sobre a mastectomia, termo comumente conhecido, mas equivocado, pois não há a retirada da mama, como no câncer. A cirurgia feita pelos homens trans é a mamoplastia masculinizadora, que é uma cirurgia reparadora.

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ela é do sexo feminino e não existe qualquer anotação. Ela pode até casar. Se não me engano, a Roberta Close também conseguiu isso. 40

Uma das travestis que conseguiram alterar o nome sem passar pelo processo transexualizador é Marcelly Malta. Segundo Simone Ávila (ÁVILA, 2011, p. 445), Malta foi a primeira a conseguir tal feito, em fevereiro de 2011, gerando jurisprudência por ter sido o primeiro caso. 41 É importante ressaltar que as retificações dependem diretamente do entendimento do/a juiz/a sobre o tema. É este/a quem acaba determinando se o/a transexual ou travesti é “merecedor/a” de ter a retificação de seu nome efetivada. Como Schwach comenta, Infelizmente, apesar do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da supremacia deste perante as demais normas infraconstitucionais, ainda assim, vemos muitos juízes proferirem decisões que contrariam o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Essa variedade de entendimentos me remete ao livro de Cesare Beccaria, escrito no ano de 1764, chamado Dos Delitos e das Penas, vez que ficamos mesmo a mercê e ao livre-arbítrio do julgador, condição que ainda perdura nos dias de hoje. Isso tanto é verdade que, apesar de existirem muitas decisões que concederam a transexuais o direito de retificação do prenome, mesmo sem terem se submetido a procedimento de transgenitalização, por considerarem o constrangimento suportado por tais indivíduos, quando da apresentação de seus documentos, ainda assim, nos deparamos com decisões, tal qual a proferida pelo Juízo Cível de Campinas que entendeu que o transexual não sofre constrangimento, quando da apresentação de seus documentos com o nome de registro de seu nascimento, ou seja, que isso não caracteriza situação vexatória, razão pela qual indeferiu a retificação de registro oferecida por Giuliana.

42

O processo decisório sobre a questão está diretamente relacionado, portanto, com o entendimento e interesses do/a juíz/a. Este/a envolve-se em uma cadeia de pessoas que normatizam os direitos das outras, caracterizando-se pelo seu discurso autoritário

40

Entrevista concedida a mim em 06 de setembro de 2012. Escutei tal narrativa da própria Malta, durante o evento Unidas pela Cidadania, realizado em Curitiba, PR, em novembro de 2011. Entretanto, outras travestis narraram que Malta não foi a primeira. Em artigo posterior, procurarei identificar estas vozes aparentemente dissonantes. 42 Entrevista concedida a mim em 19 de abril de 2012. Todos os nomes referidos na entrevista de Schwach foram trocados por nomes fictícios. 41

50

(ORLANDI, 1987, passim), como o de professoras/es, médicas/os e líderes religiosos/as. O Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual argumenta sobre a retificação de prenome, propondo a ampliação do direito aos intersexuais e retirando a condição usual da cirurgia de transgenitalização: Art. 39 - É reconhecido aos transexuais, travestis e intersexuais o direito à retificação do nome e da identidade sexual, para adequá-los à sua identidade psíquica

e

social,

independentemente

de

realização

da

cirurgia

de

transgenitalização.43

Como se percebe, porém, a retificação de registro não avança em relação a outras expressões identitárias entre-gêneros. Para se enquadrar no Estatuto da Diversidade Sexual, a pessoa deve se declarar travesti, transexual ou intersexual (lembrando que há pessoas intersexuais que se entendem e/ou declaram em trânsitos de gênero – e outras que não se veem em deslocamentos de gênero) – e nem todos os sujeitos em situações de mobilidade de gênero se identificam de tais formas. O Estatuto da Diversidade Sexual (que talvez devesse ser chamado Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero), que poderá ser aprovado pelo Congresso em forma de lei de iniciativa popular, propõe, dentre outras coisas: Art. 1º - O presente Estatuto da Diversidade Sexual visa a promover a inclusão de todos, combater a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero e criminalizar a homofobia, de modo a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos. Art. 2º - É reconhecida igual dignidade jurídica a heterossexuais, homossexuais, lésbicas,

bissexuais,

transexuais,

travestis,

transgêneros,

intersexuais,

individualmente, em comunhão e nas relações sociais, respeitadas as diferentes formas de conduzirem suas vidas, de acordo com sua orientação sexual ou identidade de gênero.

44

43

Estatuto da Diversidade Sexual. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2012. 44 Estatuto da Diversidade Sexual. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2012.

51

Entretanto, talvez seja interessante repensar alguns pontos. No primeiro artigo, o termo homofobia não é adequado, visto que grande parte das pessoas mencionadas, tanto entre-gêneros quanto intersexuais (que podem ou não se definir em trânsitos de gênero)45 não se declaram homossexuais. Tal termo reforça a confusão entre identidade de gênero e orientação sexual. Outro ponto estaria no artigo posterior. Ao comentar sobre a igualdade jurídica, ainda que a maior parte das orientações sexuais esteja ali referida, em relação à identidade de gênero, só surgem as associadas ao trânsito ou hibridismo de gênero. Melhor seria se as demais pessoas, cisgêneras, também fossem referidas. Outras tensões/negociações podem ser identificadas em relação, por exemplo, às opiniões de sujeitos trans sobre a dupla retificação de registro (prenome e sexo). A maior parte do movimento ativista trans tem posição favorável. Outras pessoas, como Márcia Rocha, são contrárias: Pessoalmente, como advogada e estudiosa das questões transgêneras, não sou a favor da alteração do sexo na certidão de nascimento sem que haja alguma anotação, por dois motivos: O que está “trocado” nos transgêneros é o gênero, um aspecto psíquico e social, em desacordo com seu sexo biológico. O sexo biológico do indivíduo não muda, seus cromossomos não mudam, há muitos aspectos físicos que não se alteram. Ora, a partir do momento que o Estado modifica uma certidão de nascimento, está atestando uma inverdade, pois aquela pessoa nasceu, sim, do sexo que estava corretamente registrado. Esta pessoa posteriormente desejou ou necessitou adequar seu físico ao gênero com o qual se reconhece, bem como seus documentos. Se essa pessoa, por exemplo, casar-se sem contar ao cônjuge seu passado, estará cometendo um delito chamado “erro essencial quanto a pessoa”, que consta no artigo 1.556 do Código Civil, que permite a anulação do casamento se houver “erro essencial quanto à pessoa do outro”. A tipificação deste artigo descreve exatamente a ocultação de fatores importantes quanto à sua identidade. O casamento é anulável e o Estado seria cúmplice no crime, além de corresponsável civilmente. 46

Na ocasião da entrevista com Schwach, a mesma apresentou e comentou sobre duas listas de processos realizados através do SOS Dignidade, uma referente a processos 45

A intersexualidade é ainda confundida com orientação sexual ou identidade de gênero.

46

Entrevista concedida a mim em 06 de setembro de 2012.

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cíveis, e outra, a processos criminais. O conjunto das duas listas configura 65 ações, sendo que na primeira, constam 46 casos até fevereiro de 2012, com 35 ações de retificação de registro civil. Destes 35 processos, 34 foram deferidos e referiu-se sucesso na retificação, com exceção do caso da pessoa identificada como Giuliana, cujo processo foi oferecido, originalmente, pela Defensoria Pública de Campinas, tendo o SOS Dignidade interposto Recurso de Apelação em favor de Giuliana para a revisão da sentença de primeiro grau ainda não julgada. Todos os demais processos foram julgados pelas 1a e 2a Vara de Registros Públicos do Foro Central da Capital do Estado de São Paulo, pelo/a juiz/a Guilherme Madeira e Renata Mota. Schwach referiu ter entrado após a data final da lista com dez processos de mudança de nome, sendo sete naquela mesma semana, e tendo mais cinco a dar entrada em breve. 47 Passando os olhos na lista de processos cíveis fornecida por Schwach, ressalta-se o fato de que a maioria dos prenomes escolhidos tem relação direta com o prenome de batismo. Assim, há Adrianos que passam a se chamar Adrianas e Eduardos que se tornam Marias Eduardas. No caso de prenomes que não tem correspondência direta no feminino, muitas vezes a letra inicial do nome é mantida. 48 Identifiquei que boa parte dos prenomes escolhidos (quinze) são duplos, como Ana Carolina e José Francisco, por exemplo. Isto pode sinalizar para o esforço de reforçar a identificação feminina ou masculina. Da lista constante de 35 processos de retificação de registro aprovados, 31 são de pessoas que se identificam como mulheres trans, e quatro, como homens trans. 49

47

Schwach comentou que o juiz Guilherme Madeira, da Vara de Retificação de Registros Públicos, “foi quem deu a primeira sentença de mudança de nome de travesti em São Paulo, em 2008 ou 2009”. 48 Identifiquei esta relação em muitas/os pessoas entre-gêneros. O uso do nome que a pessoa julga mais adequado nem sempre encontra suporte por parte de seus pares, como familiares. Conversando com Josiane Ferreira de Souza, a Josi, cantora evangélica da ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), soube que algumas pessoas não a chamavam por tal nome, mas pelo de registro, Josué. Parte da história de Josi, ponto zero de minha pesquisa de doutorado, é referida em artigos do ano passado. (MARANHÃO Fº, 2011 a, 2011 b). 49 A lista a que tive acesso é referente a fins de abril de 2012, mas em um artigo na internet, Schwach atualiza a informação: “o SOS Dignidade representou, desde 2009, 51 indivíduos transgêneros (45 homem para mulher e 6 mulheres para homens) em Ações de Retificação de Registro Civil, oferecidas perante as Varas de Registros Públicos da Comarca Central da Capital do Estado de São Paulo, 15 delas ainda em trâmite e 36 já concluídas com sucesso.” A mudança de nome em indivíduos transgêneros em pauta na Conferência Internacional de Aids. Disponível em: . Acesso em: 06 out. 2012. Algumas pessoas que

53

Sobre os processos de retificação de prenome que conduziu, Schwach comentou sobre um em especial, o de Vera, mulher transexual que teve uma filha quando ainda se identificava como homem e era casada/o. Como Schwach explicou, há uma tendência nos Tribunais a alterar a certidão de nascimento da/o filha/o de transexual que tem seu prenome retificado, por ação de retificação de registro civil, para que conste tal retificação, a fim de garantir o estado de filiação. No caso da filha de Vera, esta solicitou que o nome do pai não fosse modificado nos documentos deste. A decisão proferida pelo juiz Guilherme Madeira considerou a questão um falso dilema e, em total consecução da Justiça, julgou procedente o pedido conforme requerido por Vera e sua filha, solucionando a questão da preservação da filiação, determinando que se fizesse uma anotação sigilosa à margem da certidão de nascimento de Vera, atestando a existência da filha, e disponibilizando conteúdo da averbação caso esta necessitasse. Como percebemos nos discursos de Rocha e Schwach, há uma série de negociações que envolvem os solicitantes de retificação de registro civil e seus pares, tanto juízes como parentes. A retificação de registro civil demonstra ainda as negociações entre autorização e reconhecimento do poder público em relação às diferentes identidades de gênero: as expressões de gênero trans são reconhecidas, mas só se efetivam juridicamente a partir da permissão e autorização de juristas. Além dos processos movidos em relação à retificação de registro civil e incorporação de nome social em órgãos públicos, há outros processos envolvendo indivíduos travestis e transexuais (comuns também a pessoas cisgêneras).

5. Outros tipos de processos relacionados a travestis e transexuais

se declaram homens trans, por vezes, designam-se de formas diferentes, como trans homens, ou FTM (female to male), por exemplo. O mesmo ocorre em relação às mulheres trans. Algumas se denominam MTF (male to female), mulheres trans. O termo trans, aqui, é diminutivo de transexual, não funcionando no caso de trans*, termo guarda-chuva). Há também pessoas que discordam do gênero e/ou do sexo que lhes foi atribuído na gestação e/ou nascimento e declaram-se, simplesmente, homem ou mulher. Evidentemente, é fundamental que quaisquer destas auto-declarações (ou outras possíveis) sejam respeitadas.

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Travestis e transexuais, assim como qualquer pessoa cisgênera ou entre-gêneros, podem envolver-se em processos cíveis e criminais.50 Schwach me apresentou processos como ações de indenização por danos morais, ações associadas ao constrangimento de não uso do nome social, à discriminação, e de exoneração de pensão alimentícia: Atualmente, o SOS Dignidade está trabalhando em uma Ação de Indenização por Danos Morais a ser oferecida em face do Hoje Jornal que publicou uma matéria e no texto referiu-se a um indivíduo transexual da seguinte forma: “nome-de-guerra Jocasta, traveco”.51 Vale lembrar que tal fato gerou, ainda, processo administrativo pela prática de homofobia que foi julgado procedente para condenar o Jornal. Ocorre que a indenização imposta em processos administrativos de homofobia não fica com o ofendido, destinando-se a instituições de caridade. Recordo-me do caso da Sílvia, que enfrentou grande constrangimento nas reuniões de seu condomínio residencial, porque os moradores se negavam a chamá-la pelo nome social ou permitir que a mesma compusesse a mesa de trabalhos. A estratégia foi fazer uso da má administração do condomínio para reivindicar todos os direitos de Sílvia. Assim, oferecemos ação de prestação de contas, de anulação de assembleia e de retificação de ata de assembleia e, tudo isso obrigou o condomínio a se reunir a fim de decidir como pagar o advogado para se defender. A partir de então, Sílvia passou a ser chamada pelo nome social e a compor a mesa de trabalhos. Um dos casos de discriminação mais absurdos foi de uma trans chamada Marcela, que morava junto com seu companheiro Júnior, em uma unidade do CDHU, em Itanhanhém. Ambos são deficientes visuais, sendo certo que Júnior tem apenas sensação luminosa e Marcela é totalmente cega. Em um dia de chuva forte, formou-se uma grande poça de água na entrada do edifício, obrigando Júnior a usar a entrada dos fundos, local onde havia um grande 50

Dentre os processos cíveis, por exemplo, há ações de indenização por danos morais e materiais, de execução por quantia certa contra devedor solvente, de prestação de contas, de anulação de assembleia condominial, de reintegração de posse, de despejo por falta de pagamento, de embargos do devedor, de revisão de alimentos conforme antecipação de tutela. Lista de processos cíveis. SOS Dignidade. Elaborada por Karen Schwach. Em relação aos processos criminais, há ações penais relativas a atos obscenos, crime de difamação e perturbação do trabalho ou sossego alheio, queixa crime decorrente de discriminação por porte de deficiência física, recurso de apelação interposto em face de sentença penal condenatória, habeas corpus com pedido liminar, recurso ordinário constitucional, pedido de progressão de regime, queixa crime, execuções criminais e inquéritos policiais. Lista de processos criminais. SOS Dignidade. Elaborada por Karen Schwach. 51 No caso de Jocasta, mantive o nome original, já que se trata de título de matéria jornalística. Lembro que os demais nomes citados por Schwach foram substituídos por fictícios.

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buraco que acarretou a queda dele. Por tal razão, o casal resolveu tampar o buraco, construindo uma rampa no local. Ocorre que o prédio se organizou para obrigá-los a desfazer a obra, o que foi feito. Não satisfeitos, a vizinha do casal lavrou, ainda, boletim de ocorrência por difamação em face de Marcela, alegando, ainda, que não havia diferença entre o casal e os demais moradores, o que, em minha opinião, caracteriza discriminação por não haver respeito pelas diferenças existentes entre as pessoas. Retificamos o nome de Marcela mediante Ação de Retificação de Registro Civil transitada em julgado. Acredito que tenhamos a Ação de Execução mais peculiar dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, a de execução de um cheque sem fundo dado a um travesti a título de pagamento por um programa sexual. Isso porque prostituição no Brasil não é crime. Nós ganhamos a causa, o que foi um grande alvoroço entre os funcionários do Cartório. Este outro é um caso de uma trans que tinha um salão de cabeleireiro, que ficou devendo aluguel, mas a gente fez um acordo que foi devidamente cumprido e o processo já foi extinto. Este é de uma transexual que tem um filho, a Roberta, que morava com a mãe, mas resolveu morar com ela, e então pedimos a exoneração da pensão alimentícia, já que agora ela está sustentando o adolescente que mora com ela. Fiquei admirada com a carta que o filho adolescente escreveu para o Juiz, referindo-se ao pai como mãe e a tratando pelo nome social.

Apresentou ainda casos de acusações de ato obsceno, denúncia de tráfico de pessoas, acusações de roubo, homicídio doloso decorrente de injeção de silicone industrial, tentativas de homicídio: Já este caso é de uma denúncia de tráfico de pessoas onde aproximadamente 80 travestis foram levadas ao DHPP, na qualidade de vítimas, porém conduzidas de camburão, razão pela qual as vítimas acionaram o SOS Dignidade. Pergunto-me se nem quando é vítima, travesti é tratado com dignidade. Na ocasião fiquei como curadora das adolescentes e solicitei ao Comitê de Combate e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas o encaminhamento das adolescentes ao Conselho Tutelar e/ou ao sistema de proteção à testemunha, conforme o caso. Um dos meus primeiros casos no SOS Dignidade foi a defesa de uma travesti, que, hoje em dia, é minha amiga, e na época foi acusada de ato obsceno. Na ocasião, Vivian alegou sofrer perseguição por parte de membros da polícia que impediam seu trabalho nas ruas. Após anos de amizade, posso garantir que ela não é do tipo que fica nua na rua, o que me leva a crer que ela de fato pode ter

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sofrido perseguição. Ora, expor os seios, a bunda ou qualquer outra parte íntima do corpo é ato obsceno, salvo no Carnaval, o que é uma grande hipocrisia! Tivemos o caso de uma travesti que foi acusada de roubo, mas foi absolvida. O caso de Camila trata-se de uma acusação de homicídio doloso decorrente de um procedimento de injeção de silicone industrial. Ela aplicou silicone industrial nas nádegas de Tatiane, que acabou falecendo por choque anafilático, vez que o silicone acabou entrando na sua corrente sanguínea. Desde o início, esclareci à Camila que nossa linha de defesa seria a desclassificação da imputação para homicídio culposo, por culpa consciente. Também não poderia ser diferente, afinal Camila não pegou uma arma e atirou contra Tatiane, o que caracterizaria homicídio doloso, e, se alguém quisesse matar outra pessoa, certamente não seria com uma injeção de silicone industrial na bunda! A defesa no Tribunal foi bem interessante porque trouxemos a discussão sobre o silicone industrial e até mesmo o Promotor confessou ser um tema pouco conhecido por ele, que ao final, concordou com a desclassificação da imputação para homicídio culposo. Camila foi condenada, mas teve a pena privativa de liberdade substituída por pena de multa no valor de um salário mínimo. É um tanto quanto intrigante se compararmos este caso com outro, em que não conseguimos tirar Patrícia da cadeia, onde ficou presa por quatro anos, aproximadamente, por ter, supostamente, roubado um celular. Este é o caso da Laura, transexual, indicada pela dra. Lúcia, psicóloga do CRT, que nos procurou para que resolvêssemos o problema jurídico vivenciado por Laura naquele época. Laura ficou presa por quatro anos e, quando posta em liberdade, teria que comparecer perante Juízo da Comarca de Guarulhos a fim de apresentar-se, no prazo de 24 horas contados de sua soltura. Entretanto, Laura acabou não comparecendo por ter sofrido com os males decorrentes do HIV. Passado o prazo estabelecido pelo Juiz para que Laura se apresentasse, ela ficou com medo de fazer isto, e ser presa novamente. Assim, explicamos ao Juiz a razão do atraso e acompanhamos Laura na data em que tinha de se apresentar, tudo para garantir a liberdade de Laura e a execução da Justiça. Ocorre que ela sequer tinha onde morar e, por ser viciada em “crack”, não se recordava mais onde moravam seus pais e sua família. Conseguimos localizar a família de Laura, em Minas Gerais, e hoje ela reside com os mesmos, que estão a apoiando na luta contra o vício do “crack” e no seu tratamento médico decorrente do HIV. Laura nunca se interessou em mudar de nome, chegando a afirmar “vou mudar de nome pra que? Vou continuar sendo homem”, revelando que ela, mesmo sendo travesti, sente-se bem preservando sua masculinidade.

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Representamos uma vítima de tentativa de homicídio praticado pelo excompanheiro de uma travesti, na qualidade de assistente de acusação. Mas o caso não chegou a terminar visto que o Réu acabou falecendo antes do final da ação, aparentemente, por ser viciado em “crack”. Por tal razão, não oferecemos ação de indenização pelos danos suportados pela cliente.52

Como percebemos, travestis e transexuais, como quaisquer pessoas entre-gêneros ou cisgêneras, necessitam de atendimento jurídico em relação a várias questões, além do uso do nome social e da retificação de prenome. Estes, ainda que importantes no enfrentamento da redução da vulnerabilidade de tais pessoas, são dispositivos legais que devem ser efetivados e aperfeiçoados. Dentre algumas das iniciativas de aprofundamento dos direitos relativos ao nome, configuram-se a Carteira de Nome Social, no Rio Grande do Sul – e a Lei de Mudança de Identidade de Gênero, citando um exemplo próximo e recente de um país vizinho, a Argentina.

6. Outras iniciativas em relação ao nome de travestis e transexuais 6.1 Carteira de Nome Social Em 17 de maio de 2012, Dia Estadual de Combate à Homofobia, o governador Tarso Genro, do Rio Grande do Sul, instituiu a Carteira de Nome Social, que serve como identificação nos serviços públicos do Estado e tem o mesmo valor e função da Carteira de Identidade, constando os números do Registro Geral (RG) e do Cadastro de Pessoa Física (CPF). Para Raquel Gomes, chefe de gabinete da Secretaria de Segurança Pública, a Carteira de Nome Social vai muito além do uso de nome social em órgãos públicos, possibilitando, por exemplo, o retorno às escolas, já que “muitas travestis ou transexuais deixam de estudar pelo constrangimento.”53

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Entrevista concedida a mim em 19 de abril de 2012. Comenta-se ainda que “para a efetivação do nome social, as pessoas interessadas deverão procurar o Departamento de Identificação do Instituto Geral de Perícias (IGP), em Porto Alegre, ou os postos do interior do Estado.” Travestis e transexuais poderão usar carteira de nome social. Disponível em: . Acesso em: 18 maio 2011. 53

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Tarso Genro, com Marcelly Malta e Simone Rodrigues, que recebeu simbolicamente a Carteira de Nome Social. 54

Para Hailey Kaas, ativista trans*, a Carteira de Nome Social é um retrocesso, pois “traz no verso um texto que faz referência ao decreto que claramente “denuncia” a pessoa como sendo trans*”, e “além de não prevenir nenhum preconceito – pois a pessoa fica claramente marcada como trans* – como anormal, como um sujeito apartado – ainda é conivente com uma política de separação entre pessoas cisgêneras (as que não são trans*) e transgêneras, em vez que trabalhar em prol da real igualdade”.55 É observável ainda o reforço à confusão entre orientação sexual e identidade de gênero no dia escolhido pela Secretaria de Segurança Pública para instituir a Carteira de Nome Social: o Dia Estadual de Combate à Homofobia.

6.2 Lei de Identidade de Gênero da Argentina Uma lei de maior impacto, também recente, pode ser observada na Argentina. Em 9 de maio de 2012, este país promulga a Lei de Identidade de Gênero, que permite travestis e transexuais corrigirem seu nome e sexo no registro civil sem a necessidade de avaliações ou intervenções médicas. 54

Tarso institui Carteira de Nome Social para travestis e transexuais. Disponível em: . Acesso em: 18 maio 2012. 55 Carteira de Identidade para Nov@s apartad@s:Medida do RS indica retrocesso. Disponível em: . Acesso em: 20/11/12.

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Segundo esta lei, “identidade de gênero” é definida como a “vivência interna e individual tal como cada pessoa a sente, que pode corresponder ou não ao sexo determinado no momento do nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo”.56 Assim, não é necessário que a pessoa tenha feito alterações corporais para pleitear a mudança de prenome. Basta seu entendimento e autodeclaração como alguém de gênero distinto do que lhe foi atribuído na gestação e/ou nascimento. Suas identidades/expressões de gênero são, assim, mais respeitadas.

6.3 Lei de Identidade de Gênero – Lei João W. Nery Em 20 de fevereiro de 2013 o deputado federal Jean Wyllys (do PSOL-RJ), protocolou na Câmara Federal um projeto de lei semelhante à Lei de Identidade de Gênero argentina. Trata-se da Lei de Identidade de Gênero João W. Nery.57 O projeto foi relatado por Érika Kokay (PT/DF). Este projeto, caso aprovado, garantirá o reconhecimento à identidade de gênero de todas/os brasileiras/os que vivenciam distintos trânsitos de gênero – sem a necessidade de avaliação e atestado médico, psiquiátrico, psicológico, psicanalítico, intervenções cirúrgicas ou autorização judicial. Ainda assegura o acesso à saúde e o direito à família. O mesmo dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6.015 de 1973. Decreta que: Artigo 1º - Toda pessoa tem direito: I - ao reconhecimento de sua identidade de gênero; II - ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero;

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Congresso da Argentina aprova lei de identidade de gênero. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2012. Como explica o site, “com a vigência da medida, a mudança de sexo não necessitará mais do aval da justiça para reconhecimento, e o sistema de saúde deverá incluir operações e tratamentos para a adequação ao gênero escolhido”. O vídeo “Lei de Identidade de Gênero” apresenta narrativas de pessoas entre-gêneros sobre o tema: www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=7PXyaE3d5N0. 57 Como João W. Nery comentou a respeito, “a luta maior é por uma lei de mudança de identidade de gênero, como foi feita na Argentina, que não só desvincula a mudança do nome e sexo da cirurgia, como permite até menores terem acesso à mudança”.

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III - a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s prenome/s, da imagem e do sexo com que é registrada neles. Artigo 2º - Entende-se por identidade de gênero a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo. Parágrafo único: O exercício do direito à identidade de gênero pode envolver a modificação da aparência ou da função corporal através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, desde que isso seja livremente escolhido, e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de fala e maneirismos. Artigo 3º - Toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero auto-percebida. Artigo 4º - Toda pessoa que solicitar a retificação registral de sexo e a mudança do prenome e da imagem, em virtude da presente lei, deverá observar os seguintes requisitos: I - ser maior de dezoito (18) anos; II - apresentar ao cartório que corresponda uma solicitação escrita, na qual deverá manifestar que, de acordo com a presente lei, requer a retificação registral da certidão de nascimento e a emissão de uma nova carteira de identidade, conservando o número original; III - expressar o/s novo/s prenome/s escolhido/s para que sejam inscritos. Parágrafo único: Em nenhum caso serão requisitos para alteração do prenome: I - intervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial; II - terapias hormonais; III - qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico; IV - autorização judicial. Artigo 5º - Com relação às pessoas que ainda não tenham dezoito (18) anos de idade, a solicitação do trâmite a que se refere o artigo 4º deverá ser efetuada através de seus representantes legais e com a expressa conformidade de vontade da criança ou adolescente, levando em consideração os princípios de capacidade progressiva e interesse superior da criança, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. §1° Quando, por qualquer razão, seja negado ou não seja possível obter o consentimento de algum/a dos/as representante/s do Adolescente, ele poderá recorrer a assistência da Defensoria Pública para autorização judicial, mediante procedimento sumaríssimo que deve levar em consideração os princípios de capacidade progressiva e interesse superior da criança. §2º Em todos os casos, a pessoa que ainda não tenha 18 anos deverá contar com a assistência da Defensoria Pública, de acordo com o estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Artigo 6º- Cumpridos os requisitos estabelecidos nos artigos 4º e 5º, sem necessidade de nenhum trâmite judicial ou administrativo, o/a funcionário/a autorizado do cartório procederá: I - a registrar no registro civil das pessoas naturais a mudança de sexo e prenome/s;

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II - emitir uma nova certidão de nascimento e uma nova carteira de identidade que reflitam a mudança realizada; III - informar imediatamente os órgãos responsáveis pelos registros públicos para que se realize a atualização de dados eleitorais, de antecedentes criminais e peças judiciais. §1º Nos novos documentos, fica proibida qualquer referência à presente lei ou à identidade anterior, salvo com autorização por escrito da pessoa trans ou intersexual. §2º Os trâmites previstos na presente lei serão gratuitos, pessoais, e não será necessária a intermediação de advogados/as ou gestores/as. §3º Os trâmites de retificação de sexo e prenome/s realizados em virtude da presente lei serão sigilosos. Após a retificação, só poderão ter acesso à certidão de nascimento original aqueles que contarem com autorização escrita do/a titular da mesma. §4º Não se dará qualquer tipo de publicidade à mudança de sexo e prenome/s, a não ser que isso seja autorizado pelo/a titular dos dados. Não será realizada a publicidade na imprensa que estabelece a lei 6.015/73 (arts. 56 e 57). Artigo 7º - A Alteração do prenome, nos termos dos artigos 4º e 5º desta Lei, não alterará a titularidade dos direitos e obrigações jurídicas que pudessem corresponder à pessoa com anterioridade à mudança registral, nem daqueles que provenham das relações próprias do direito de família em todas as suas ordens e graus, as que se manterão inalteráveis, incluída a adoção. §1º Da alteração do prenome em cartório prosseguirá, necessariamente, a mudança de prenome e gênero em qualquer outro documento como diplomas, certificados, carteira de identidade, CPF, passaporte, título de eleitor, Carteira Nacional de Habilitação e Carteira de Trabalho e Previdência Social. §2º Preservará a maternidade ou paternidade da pessoa trans no registro civil de seus/suas filhos/as, retificando automaticamente também tais registros civis, se assim solicitado, independente da vontade da outra maternidade ou paternidade; §3º Preservará o matrimônio da pessoa trans, retificando automaticamente também, se assim solicitado, a certidão de casamento independente de configurar uma união homoafetiva ou heteroafetiva. §4º Em todos os casos, será relevante o número da carteira de identidade e o Cadastro de Pessoa Física da pessoa como garantia de continuidade jurídica. Artigo 8º - Toda pessoa maior de dezoito (18) anos poderá realizar intervenções cirúrgicas totais ou parciais de transexualização, inclusive as de modificação genital, e/ou tratamentos hormonais integrais, a fim de adequar seu corpo à sua identidade de gênero auto-percebida. §1º Em todos os casos, será requerido apenas o consentimento informado da pessoa adulta e capaz. Não será necessário, em nenhum caso, qualquer tipo de diagnóstico ou tratamento psicológico ou psiquiátrico, ou autorização judicial ou administrativa. §2º No caso das pessoas que ainda não tenham de dezoito (18) anos de idade, vigorarão os mesmos requisitos estabelecidos no artigo 5º para a obtenção do consentimento informado. Artigo 9º - Os tratamentos referidos no artigo 11º serão gratuitos e deverão ser oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelas operadoras definidas nos incisos I e II do § 1º do art. 1º da Lei 9.656/98, por meio de sua rede de unidades conveniadas.

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Parágrafo único: É vedada a exclusão de cobertura ou a determinação de requisitos distintos daqueles especificados na presente lei para a realização dos mesmos. Artigo 10º - Deverá ser respeitada a identidade de gênero adotada pelas pessoas que usem um prenome distinto daquele que figura na sua carteira de identidade e ainda não tenham realizado a retificação registral. Parágrafo único: O nome social requerido deverá ser usado para a citação, chamadas e demais interações verbais ou registros em âmbitos públicos ou privados. Artigo 11º - Toda norma, regulamentação ou procedimento deverá respeitar o direito humano à identidade de gênero das pessoas. Nenhuma norma, regulamentação ou procedimento poderá limitar, restringir, excluir ou suprimir o exercício do direito à identidade de gênero das pessoas, devendo se interpretar e aplicar as normas sempre em favor do acesso a esse direito. Artigo 12º - Modifica-se o artigo 58º da lei 6.015/73, que ficará redigido da seguinte forma: "Art. 58º. O prenome será definitivo, exceto nos casos de discordância com a identidade de gênero auto-percebida, para os quais se aplicará a lei de identidade de gênero. Admite-se também a substituição do prenome por apelidos públicos notórios." Artigo 13º - Revoga-se toda norma que seja contrária às disposições da presente lei. Artigo 14º - A presente lei entra em vigor na data de sua publicação.

O texto é seguido de uma justificativa, em que Wyllys e Kokay narram: As palavras visibilidade e invisibilidade são bastante significativas para a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Pertencer a esta “sopa de letras” que representa a comunidade sexo-diversa (ou a comunidade dos “invertidos”) é transitar, ao longo da vida, entre a invisibilidade e a visibilidade. Se para lésbicas e gays, serem visíveis implica em se assumirem publicamente, para as pessoas transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, a visibilidade é compulsória a certa altura de sua vida; isso porque, ao contrário da orientação sexual, que pode ser ocultada pela mentira, pela omissão ou pelo armário, a identidade de gênero é experimentada, pelas pessoas trans, como um estigma que não se pode ocultar, como a cor da pele para os negros e negras. Travestis, transexuais, transgêneros e intersexuais não têm como se esconder em armários a partir de certa idade. Por isso, na maioria dos casos, mulheres e homens trans são expulsos de casa, da escola, da família, do bairro, até da cidade. A visibilidade é obrigatória para aquele cuja identidade sexual está inscrita no corpo como um estigma que não se pode ocultar sob qualquer disfarce. E o preconceito e a violência que sofrem é muito maior. Porém, de todas as invisibilidades a que eles e elas parecem condenados, a invisibilidade legal parece ser o ponto de partida. O imbróglio jurídico sobre as identidades “legal” e “social” das pessoas travestis, transexuais e transgêneros provoca situações absurdas que mostram o tamanho do furo que ainda existe na legislação brasileira. Graças a ele, há pessoas que vivem sua vida real com um nome — o nome delas, pelo qual são conhecidas e se sentem chamadas, aquele que usam na interação social cotidiana —, mas que carregam consigo um instrumento de identificação legal, uma carteira de identidade, que diz outro

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nome. E esse nome aparece também na carteira de motorista, na conta de luz, no diploma da escola ou da universidade, na lista de eleitores, no contrato de aluguel, no cartão de crédito, no prontuário médico. Um nome que evidentemente é de outro, daquele “ser imaginário” que habita nos papeis, mas que ninguém conhece no mundo real. Quer dizer, há pessoas que não existem nos registros públicos e em alguns documentos e há outras pessoas que só existem nos registros públicos e em alguns documentos. E umas e outras batem de frente no dia-a-dia em diversas situações que criam constrangimento, problemas, negação de direitos fundamentais e uma constante e desnecessária humilhação. O livro “Viagem solitária”, maravilhosa narração autobiográfica de João W Nery, é um testemunho imprescindível para entender o quanto a reforma legal que estamos propondo é necessária. Para driblar uma lei que lhe negava o direito a ser ele mesmo, João teve que renunciar a tudo: sua história, seus estudos, seus diplomas, seu currículo. Foi só dessa maneira, com documentos falsos, analfabeto nos registros apesar de ter sido professor universitário, que ele conseguiu ser João. O presente projeto de lei, batizado com o nome de João Nery, numa justa homenagem a ele, tem por finalidade garantir que isso nunca mais aconteça. Se aprovado, garantirá finalmente o respeito do direito à identidade de gênero, acabando para sempre com uma gravíssima violação dos direitos humanos que ainda ocorre no Brasil, prejudicando gravemente a vida de milhares de pessoas. Falamos de pessoas que se sentem, vivem, se comportam e são percebidas pelos outros como homens ou como mulheres, mas cuja identidade de gênero é negada pelo Estado, que reserva para si a exclusiva autoridade de determinar os limites exatos entre a masculinidade e a feminidade e os critérios para decidir quem fica de um lado e quem do outro, como se isso fosse possível. Travestis, transexuais e transgêneros sofrem cada dia o absurdo da lei que lhes nega o direito a ser quem são. E andam pelo mundo com sua identidade oficialmente não reconhecida, como se, das profundezas da história dos nossos antepassados filosóficos gregos, Crátilo voltasse a falar para Hermógenes: “Tu não és Hermógenes, ainda que todo o mundo te chame desse modo”. Como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, em toda discussão onde o ontológico e o jurídico entram em processo público de acasalamento, “costumam nascer monstros”. No artigo intitulado No Brasil todo o mundo é índio, exceto quem não é, ele traz à tona o debate sobre o reconhecimento oficial da/s identidade/s e sobre a pretensão da Ciência — com maiúscula — e do Estado de estabelecer critérios pretensamente “objetivos” para legitimá-las, para distinguir a identidade autêntica da inautêntica, para dizer quem é o quê. E quem não pode ser. Sobretudo, quem não pode. “É sem dúvida difícil ignorar a questão, uma vez que o Estado e seu arcabouço jurídico-legal funcionam como moinhos produtores de substâncias, categorias, papéis, funções, sujeitos, titulares desse ou daquele direito etc. O que não é carimbado pelos oficiais competentes não existe – não existe porque foi produzido fora das normas e padrões – não recebe selo de qualidade. O que não está nos autos etc. Lei é lei etc.”, diz o autor. Travestis, transexuais e transgêneros são, hoje, no Brasil, homens e mulheres sem selo de qualidade, sem o carimbo dos oficiais competentes. Pessoas clandestinas. Mas ser homem ou ser mulher é um atributo “determinável por inspeção”? Quem determina quem tem direito a ser João ou Maria? O que é um nome? As perguntas parecem mal formuladas. Não há como o Estado determinar por lei a autenticidade masculina dos homens ou a autêntica feminidade das mulheres! Parafraseando Viveiros de Castro, só é homem ou mulher quem se garante. Todavia, o imbróglio não termina aqui. Porque eles e elas, transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais se garantem, sim, e lutam para serem reconhecidos/as, e o Estado vem assumindo, aos poucos e a contragosto, essa realidade. Portarias, decretos e decisões administrativas de ministérios, governos estaduais, prefeituras, universidades e outros órgãos e instituições vêm

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reconhecendo o furo na lei e vêm colocando em prática soluções provisórias sob o rótulo de “nome social”, definido, por exemplo, pelo MEC, como “aquele pelo qual essas pessoas se identificam e são identificadas pela sociedade”. Quer dizer, o Estado reconhece que o nome pelo qual “essas pessoas” se identificam e são identificadas pela sociedade não é aquele que está escrito na carteira de identidade, no CPF e no diploma da escola. Que a identidade oficialmente registrada é diferente daquela que a própria sociedade reconhece e os interessados reclamam para si. Como já dizemos: parece coisa de loucos, mas é a lei. No âmbito federal, o Ministério da Educação, o SUS, a Administração Pública Federal direta e diversas instituições federais de ensino, entre outras entidades, já ditaram normas que garantem às pessoas travestis e transexuais o uso do “nome social”. Por exemplo, a Administração Pública Federal direta, de acordo com a portaria nº 233/10 do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, assegura aos servidores públicos trans o uso do “nome social” nos crachás (mas apenas no anverso deles), nas comunicações internas, na identificação funcional, no endereço de correio eletrônico, no nome de usuário em sistemas de informática, no tratamento dado à pessoa pelos agentes públicos etc. Decisões semelhantes já foram tomadas por dezenas de órgãos e governos estaduais e municipais. Cerca de dezesseis (16) estados têm algum tipo de regulamentação no âmbito do poder executivo estadual sobre o respeito ao uso do nome social de pessoas trans na Administração Pública. A identidade de gênero e o “nome social” das pessoas travestis, transexuais e transgêneros estão sendo reconhecidas, portanto, parcialmente e através de mecanismos de exceção. A dupla identidade está sendo oficializada e o Estado começa a reconhecer que existe uma discordância entre a vida real e os documentos. Esse estado de semi-legalidade das identidades trans cresce a partir de decisões diversas carregadas de boa vontade, espalhadas pelo amplo território do público. São avanços importantes que devem ser reconhecidos, porque facilitaram a vida de milhares de seres humanos esquecidos pela lei, mas, ao mesmo tempo, evidenciam um caos jurídico que deve ser resolvido. Não dá para manter eternamente essa duplicidade e continuar fazendo de conta que estamos resolvendo o problema de fundo. Não estamos. O que falta, e é para agora, é uma lei federal que dê uma solução definitiva à confusão reinante. É o que muitos países têm feito nos últimos anos. O presente projeto, baseado na lei de identidade de gênero argentina, recolhe a melhor dessas experiências. A lei proposta garante o direito de toda pessoa ao reconhecimento de sua identidade de gênero, ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero e a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal. A identidade de gênero é definida no projeto com base nos Princípios de Yogyakarta sobre a aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos nas questões que dizem respeito à orientação sexual e à identidade de gênero. Estes princípios foram apresentados perante a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007 por uma comissão internacional de juristas, criada como consequência do chamamento realizado por 54 estados, no ano anterior, diante das gravíssimas violações dos direitos humanos da população LGBT que se registram no mundo inteiro. O documento dos Princípios de Yogyakarta define a identidade de gênero como “a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo. O exercício do direito à identidade de gênero pode envolver a modificação da aparência ou da função corporal através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de outra índole, desde que isso seja livremente escolhido. Também inclui outras expressões de gênero, como a vestimenta, os modos e a fala”.

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No mesmo sentido, o conceito de pessoa trans utilizado no presente projeto de lei é: “pessoa que nasceu num sexo biológico definido, mas se identifica no gênero oposto ao que se entende culturalmente como correspondente a tal sexo”, o que abrange os conceitos de transexual, travesti e transgêneros; e o conceito de pessoa intersexual é “pessoa que nasceu com o sexo biológico indefinido, foi registrada e criada como pertencente a um determinado gênero, mas (neste caso em específico) não encontra identificação em tal”. Partindo dessas definições, o projeto estabelece os mecanismos jurídicos para o reconhecimento da identidade de gênero, permitindo às pessoas a retificação de dados registrais, incluindo o sexo, o prenome e a imagem incluída na documentação pessoal. O mecanismo estabelecido se rege pelos seguintes princípios: é de fácil acesso, rápido, pessoal, gratuito, sigiloso e evita qualquer tipo de requisito que seja invasivo da privacidade ou que tenha como único efeito a demora do processo. Realiza-se no cartório, não requer intervenção da justiça e descarta a exigência de diagnósticos ou psicológicos ou psiquiátricos, a fim de evitar a patologização das identidades trans. Esse último ponto é fundamental. O mundo tem caminhado para a despatologização das identidades trans, tendo sido a França o primeiro país do mundo a dar esse passo, no ano de 2010. A campanha “Stop Trans Pathologization 2012” tem adesões de entidades, acadêmicos e militantes de diversos países do mundo – inclusive o Brasil – e intenciona que o “transexualismo” e o “transtorno de identidade de gênero” seja desconsiderado enquanto patologia e transtorno mental no DSM-V (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da American Psychological Association, que será lançado em 2012) e no CID-11 (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde da Organização Mundial de Saúde, que será lançado em 2015). Em consonância com a legislação comparada, a lei estabelece os critérios para assegurar a continuidade jurídica da pessoa, através do número da identidade e do registro da mudança de prenome e sexo no registro civil das pessoas naturais e sua notificação aos órgãos competentes, garantindo o sigilo do trâmite. As pessoas que mudarem de sexo e prenome continuarão tendo os mesmos direitos e obrigações: se elas têm uma dívida, deverão pagá-la; se têm um emprego, continuarão empregadas; se receberam uma condena, deverão cumpri-la; se têm filhos, continuarão sendo pais ou mães; se assinaram um contrato, deverão honrá-lo. Os dados eleitorais, fiscais, de antecedentes criminais, etc., após a mudança, serão atualizados. A lei também regulamenta as intervenções cirúrgicas e os tratamentos hormonais que se realizam como parte do processo de transexualização, garantindo a livre determinação das pessoas sobre seus corpos. Isso já é uma realidade no Brasil: os tratamentos garantidos na presente lei já se realizam através do Sistema Único de Saúde (SUS), mas nosso projeto transforma esse direito conquistado em lei e estabelece uma série de critérios fundamentais para seu exercício, entre eles: a) a despatologização, isto é o fim dos diagnósticos de “disforia de gênero”, proibidos em diversos países por constituir formas de estigmatização anticientífica das identidades trans, como antigamente ocorria com a homossexualidade, por muito tempo considerada erroneamente uma doença; b) a independência entre o reconhecimento da identidade de gênero e as intervenções no corpo, isto é, a garantia do direito à identidade de gênero das pessoas travestis que não desejarem realizar alterações no corpo; c) a independência entre os tratamentos hormonais e as cirurgias, isto é, a garantia do direito das pessoas travestis que quiserem realizar terapias hormonais e/ou intervenções cirúrgicas parciais para adequar seus corpos à identidade de gênero autopercebida, mas não desejarem realizar a cirurgia de transgenitalização; d) a gratuidade no sistema público (SUS) e a cobertura nos planos de saúde particulares; e) a não-judicialização dos procedimentos, isto é, a livre escolha da pessoa para realizar ou não este tipo de tratamentos e/ou intervenções. A lei também regulamenta o acesso das pessoas que ainda não tenham de dezoito

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anos aos direitos garantidos por ela, entendendo que a identidade de gênero se manifesta muito antes da maioria de idade e essa realidade não pode ser omitida. Levando em consideração os princípios de capacidade progressiva e interesse superior da criança, em tudo de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Lei também garante a participação dos representantes legais da Criança e do Adolescente no processo, impede que qualquer decisão seja tomada sem o consentimento informado da pessoa que ainda não tenha 18 anos e prevê a assistência da Defensoria Pública, de acordo com o estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O texto proposto, como já dizemos, se baseia na lei de identidade de gênero argentina — votada por amplíssima maioria na Câmara dos Deputados e por unanimidade no Senado, com o apoio expresso da Presidenta da República e de quase todos/as os/as líderes da oposição —, considerada a mais avançada das atualmente existentes no mundo, já que reflete os debates políticos, jurídicos, filosóficos e éticos travados a respeito do assunto nos últimos anos. O projeto foi realizado com a colaboração e assessoria da exdeputada federal argentina Silvia Augsburger, autora do primeiro projeto de lei de identidade de gênero que deu início ao debate naquele país, da exdeputada federal Vilma Ibarra, que foi relatora da lei e responsável pelo seu texto final, e de ativistas da Federação Argentina de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trans, impulsionadores das reformas legais realizadas no país vizinho. O projeto também leva em consideração os Princípios de Yogyakarta (Princípios sobre a Aplicação de Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero) , como já foi dito; a proposta de Anteprojeto do Estatuto da Diversidade Sexual construído pelas Comissões da Diversidade Sexual da OAB de todo o Brasil; a declaração The voices against homophobia and transphobia must be heard de Thomas Hammarberg, representante do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, publicizado na conferência Combating discrimination on the grounds of sexual orientation or gender identity across Europe: Sharing knowledge and moving forward, ocorrida na França em março de 2012; e as recomendações da Associação Brasileira de Homens Trans.

Esta é a proposta de PL apresentada por Wyllys. Mas talvez alguns pontos da PL ainda pudessem ser pensados. Um deles é relativo à inclusão de pessoas intersexuais como “trans”, já no começo do texto. Como devemos nos fundamentar nas autodeclarações, é importante nos posicionarmos a partir destas. Nem todas as pessoas intersexuais se entendem como trans. Muitas se sentem adequadas à identidade de gênero que lhes foi designada socialmente. Assim, há pessoas intersexuais cisgêneras e entre-gêneros (ou trans, trans*, travestis, transgêneras, transexuais ou outras autodefinições que demonstram mobilidades de gênero). O termo transgênero não é explicado – o que pode dar margens a interpretações diversas. Em geral, transgênero é entendido como termo guarda-chuva que abarca travesti e transexual. Mas há outras interpretações possíveis. Do mesmo modo, para fins legislativos e jurídicos, definir transexual e travesti seria esclarecedor – ainda que tais termos devam depender especialmente da autodeclaração.

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No início do texto, as pessoas intersexuais são entendidas como trans. Na justificativa, há uma distinção entre pessoas trans (que compreenderia “os conceitos de transexual, travesti e transgênero), e intersexuais. Parece haver, assim, certa confusão na redação do texto. Ao dizer que a pessoa intersexual “nasceu com o sexo biológico indefinido”, isto nem sempre é verdade, pois a intersexualidade pode ser descoberta (ou não) com o passar dos anos – e os médicos podem atestar um ou outro gênero no nascimento, “definindo” o mesmo. E claro, se pensarmos em conceitos como o de teóricos queer, ninguém nasce com um “sexo biológico definido” – sexo, assim como gênero, são construídos social e culturalmente. Mas certamente, isto é demais para os/as nossos/as legisladores/as, ao menos no atual momento. Ainda assim, é um projeto louvável, e se aprovado, poderá representar considerável avanço em relação aos direitos de pessoas entre-gêneros – e a intersexuais que se identifiquem como trans também. E certamente, batizar a lei de identidade de gênero brasileira de Lei João Nery é uma homenagem merecida àquele que é conhecido como o primeiro transhomem operado do Brasil. Considerações inconclusivas Não dar possibilidades à pessoa de se denominar e ser denominada pelos outros conforme seu entendimento acerca de si mesma é cercear direitos fundamentais, impossibilitar condições de exercício de sua cidadania e estimular o constrangimento, a intolerância, a discriminação e a violência em suas diversas formas. Sobre o uso do nome social Em relação ao uso do nome social, é relevante atentar que a maioria das Portarias, Decretos e Leis referem-se às pessoas travestis e transexuais ou no masculino ou no feminino. Esquecem-se – ou desconhecem – que há pessoas que se identificam transexuais masculinos e transexuais femininos, e que em menor escala, há travestis que se identificam a partir de referentes masculinos.58 Assim, melhor acolher a diversidade

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Um exemplo está no documentário Amanda e Monick, de André da Costa Pinto (2007). Neste, os protagonistas identificam-se no masculino: os travestis. Entretanto, em sua maioria, tais pessoas preferem referir-se e serem referenciadas no feminino: as travestis. Outro caso, também minoritário, é o de mulheres que se vestem de modo masculino e declaram-se travestis masculinos.

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da forma mais ampla possível. Como dito, o fundamental é respeitar a forma como as pessoas se definem, e estas são múltiplas. Como percebemos através de alguns dos pareceres, como o de 1/10/09 do MP-PR, que encaminha “pronunciamento sobre a possibilidade de utilização nas escolas do chamado ‘nome social’, por maiores de 18 anos com orientação sexual distinta da constante dos documentos oficiais” (grifo meu), ainda é costumeira a confusão feita pelos órgãos oficiais quando tratam de questões relacionadas às expressões de gênero: travestis e transexuais são pessoas que possuem identidades de gênero distintas das atribuídas na gestação ou/e nascimento e impressas em documentos, - e não “orientação sexual distinta dos documentos oficiais”. A orientação sexual não é impressa em nenhum documento oficial – por mais que constantemente a sociedade reitere a heterossexualidade como padrão mais desejável a ser seguido e a homossexualidade como “desviante”. Assim, muitos destes pareceres e resoluções confundem sexo e gênero com orientação sexual. Em um imaginário popular predominante, ser trans59 significa “ter nascido homem e virado mulher” (ou vice-versa) e fazer parte de um subtipo homossexual. Pessoas entre-gêneros60 são sujeitos com uma discordância entre o gênero61 atribuído na gestação e/ou nascimento e o gênero com o qual de identificam. Como as pessoas cisgêneras, podem manifestar os mais diversos desejos e orientações sexuais. Em geral, as pessoas entre-gêneros que se identificam homossexuais, são aquelas que se interessam afetiva e/ou sexualmente por pessoas do mesmo gênero com o qual se identificam. Um exemplo: a pessoa foi designada “homem” ao nascer, identifica-se como mulher ou mulher trans e relaciona-se com outras mulheres: tal pessoa muitas vezes se declarará lésbica e/ou homossexual.62 Nesta perspectiva, portanto, a identidade de gênero é o que define a declaração pessoal sobre a orientação sexual, e não o gênero 59

Aqui, trans é utilizado como diminutivo de transexual, e não como termo guarda-chuva (trans*). Inclusas autodeclarações como travesti, transexual e outras que demonstram deslocamentos de gênero. 61 Por vezes também apresentando discordância entre o sexo de atribuição e o de autoidentificação e/ou autodeclaração– no caso das pessoas entre-sexos. 62 Um exemplo de homossexualidade masculina está no relacionamento entre um homem trans (que pode se identificar como transhomem ou FTM – female to male, por exemplo) e outro homem trans, ou entre um homem trans e um homem cisgênero. É o que narra, por exemplo, o filme Romeos, de Sabine Bernardi (2011). 60

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de atribuição social na gestação / nascimento. Há pessoas cisgêneras e entre-gêneros que se identificam heterossexuais, gays, bissexuais, pansexuais e assexuais. Sobre a fissura entre o legislado e o cumprido, são necessários aperfeiçoamentos para a efetivação dos direitos das pessoas entre-gêneros, como o uso do nome social. É preciso que se realizem projetos pedagógicos que treinem os sujeitos encarregados da prestação de serviços a tais pessoas. Muitas pessoas entre-gêneros narram ter abandonado bancos escolares63 e filas de atendimento em postos de saúde por conta do constrangimento de serem chamadas pelo nome de batismo e não pelo nome social, como determinado em muitos destes lugares.64 Tais situações vexatórias estimulam, muitas vezes, estes indivíduos a não procurar o mercado de trabalho formal, entendendo que serão constrangidos ou rejeitados no mesmo. Muitas destas pessoas optam pela prostituição, o que costuma aumentar sua situação de vulnerabilidade social. Deixo claro que não há uma vinculação “natural” ou óbvia entre trânsitos de gênero e prostituição, como supõem muitas/os autoras/es. Conheço dezenas de pessoas entre-gêneros que se sustentam por outros meios: diretoras/es de escolas, professoras/es, atrizes e atores, publicitárias/os, programadoras/es de computador, atendentes de telemarketing, etc. Tampouco, não quero demonstrar que a prostituição seja uma atividade mais, ou menos, louvável que qualquer outra. O que saliento é que pessoas entre-gêneros que trabalham no comércio sexual costumam sofrer dupla estigmatização / discriminação / violência por parte da sociedade. Ressalto, entretanto, que esta não é uma condição sine qua non. Nem todas as pessoas entre-gêneros que atuam como profissionais do sexo relatam serem ou se sentirem discriminadas, sinalizando para a desconstrução de mitos como o de que “todas as pessoas trans são sempre aliciadas e/ou levadas a se prostituir”.

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Esta não é uma condição sine qua non. Como Simone Ávila afirmou em conversa, em sua pesquisa relativa aos transhomens brasileiros, identificou que os mesmos, em geral, não abandonam a escola. E é possível também que isto tenha a ver com uma questão geracional: que hoje em dia, o “abandono” da escola já não seja visto com a mesma intensidade em relação à pesquisas feitas com pessoas travestis e transexuais de décadas anteriores. 64 Tais normas referem-se especificamente às pessoas travestis e transexuais – excluindo outras pessoas em trânsitos identitários de gênero, que poderiam ser igualmente contempladas.

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A situação de despreparo no atendimento/recepção de pessoas entre-gêneros como travestis e transexuais se repete nas universidades públicas: a comunidade universitária – professores/as, funcionários/as e alunos/as – encontra-se despreparada para receber tais pessoas e respeitá-las em seus direitos fundamentais – dentre estes, o de serem chamadas e reconhecidas pelos seus nomes sociais. Além disto, a presença de pessoas entre-gêneros pode suscitar episódios de discriminação. Tomo como exemplo um episódio que presenciei durante o 7º Encontro Sudeste de Travestis e Transexuais – 1º Encontro Nacional da Rede Trans Educ, realizado na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em maio de 2012. Existiam muitos cartazes sobre o evento espalhados pela universidade, e alguns destes, inclusive afixados na própria Faculdade de Educação, foram arrancados, rasgados e pichados com suásticas nazistas - o que gerou moções de repúdio de organizadores/as e ativistas trans* durante o evento. Obviamente, o respeito às diversidades deveria, de alguma forma, fazer parte do currículo dos/as estudantes desta e das demais universidades (públicas e particulares). Ainda em relação ao uso de nome social, destacam-se algumas questões. Uma destas está nos limites da autorização do uso do nome social em escolas e universidades. Salvo exceções, o nome social é permitido em documentos internos, como listas de chamadas, mas não é estendido a históricos e diplomas. Se é constrangedor identificar-se socialmente a partir do nome de batismo, apresentar um documento oficial com o mesmo também não seria? Tal incongruência demonstra o caráter paliativo deste dispositivo. O uso do nome social pode auxiliar na minimização da evasão escolar. Entretanto, esta pode ocorrer antes da maioridade. Como a maioria das resoluções associa a aceitação das solicitações de uso do nome social à maioridade, é de se indagar: se grande parte

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das pessoas entre-gêneros se identificam transexuais ou travestis65 antes dos 18 anos, o alcance de tais leis não é bastante restrito? O que esperar? Que tais pessoas abandonem a escola e após a maioridade retornem aos bancos escolares? A partir de que idade a pessoa está apta a decidir sobre como prefere ser chamada e reconhecida? Destaco o caráter limitado e paliativo do nome social em relação a uma diversidade de direitos que devem ser assegurados à população entre-gêneros, relativos não somente ao nome, representativo da identidade / identificação das pessoas, mas também aos demais direitos, fundamentais a todas/os. É assim, uma inclusão “entre aspas”.

Sobre a retificação de registro civil O uso do nome social e a retificação de registro civil sinalizam para a concepção autorizativa de cessão de direitos através de instâncias governamentais. Melhor seria se as pessoas pudessem ser chamadas e reconhecidas socialmente como preferem, inclusive em documentos oficiais, independentemente de processos que muitas vezes são custosos à sua autoestima. A autorização do uso do nome social e da retificação de registro civil se dão a partir, especialmente, dos interesses e entendimentos dos/as juízes/as responsáveis pelos casos. São comuns discursos biologizantes impressos em diversas das falas jurídicas, mas também em discursos médicos, “psi”, midiáticos, acadêmicos e outros. Muitas vezes se refere que pessoas trans (assim como cisgêneras), possuem um “sexo biológico” ou “morfológico”. Entretanto, tanto gênero como sexo podem ser entendidos como construídos socialmente, conforme os estudos queer, divulgados por autores/as como Judith Butler e Beatriz Preciado. E nos discursos biologizantes, pessoas trans (e suas variações, como trans, transgêneras, transexuais, travestis) são muitas vezes referidas 65

Como tenho percebido durante as conversas com pessoas que se identificam em trânsitos de gênero, a maioria delas – especialmente as que possuem entre 15 e 25 anos – tem se identificado como transexuais, e não como travestis, o que pode apontar para uma possível rejeição da segunda categoria por esta ser mais costumeiramente associada à prostituição e ser mais estigmatizada. Lembro, entretanto, que a maioria das pessoas com que converso estão localizadas em um contexto urbano, e são moradoras da região sudeste do país. É muito provável que em algumas localidades ainda predomine o uso do termo travesti, em detrimento de transexual.

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como desviantes, ao contrário das demais, “naturais” ou “biológicas”. Ora, tais pessoas não são igualmente dotadas de vida? Seriam artificiais, formadas por ectoplasma ou outra coisa? A regulação da vida de pessoas entre-gêneros através dos saberes jurídico, midiático, “psi”, educacional, religioso e outros, traz como fundo uma noção de que a experiência de trânsito identitário de gênero “não é normal”, gerando discursos biologizantes, psiquiatrizantes e sobretudo, patologizantes. Um dos maiores problemas de tais discursos é o entendimento que pessoas em trânsito de gênero são menos dotadas de agência ou capacidade de condução de suas vidas do que pessoas cis. As pessoas trans estão envolvidas em uma rede de tensões que envolvem posições diversas entre patologização e despatologização, e em termos religiosos, o que convenciono pecadologização e despecadologização (MARANHÃO Fº, 2012c). A “inclusão” de transexuais e travestis a partir do uso do nome social e da retificação de registro civil não deve ser essencializada. Ainda que possam configurar-se como iniciativas louváveis, estas são paliativas por conta de seu alcance e efetivação limitadas/os – e em relação à isonomia de direitos de pessoas travestis e transexuais e de pessoas cisgêneras. Muito ainda deve ser feito para garantir o mesmo acesso à cidadania. Todas estas inclusões devem ser vistas “entre aspas”. Há outra questão em relação ao alcance destas resoluções e dispositivos legais, direcionadas/os a pessoas autodeclaradas travestis e transexuais. E outras pessoas com identidades de gênero em trânsito? Não deveriam ter os mesmos direitos assegurados? Ou deverão se declarar travestis ou transexuais para garantir tais direitos? Neste artigo, escolhi trabalhar com apenas duas fontes orais, as narrativas das advogadas Márcia Rocha e Karen Schwach - além de documentos escritos, como os elaborados pela segunda e textos de órgãos governamentais. Para um futuro próximo, pretendo dialogar com este artigo a partir de entre-vistas com pessoas entre-gêneros acerca da importância do uso do nome social e da retificação de registro civil, procurando ampliar o debate.

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Por serem questões cheias de atualidade, cujas tensões e negociações vão se moldando de acordo com interesses variados, e por ser um trabalho em processo, de caráter introdutório e inconclusivo, há muito a ser contemplado. De toda forma, espero que novos diálogos possam ter sido estimulados por este trabalho.

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