MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. Apresentando conceitos nômades: entregêneros, entremobilidades, entresexos, entreorientações. História Agora, São Paulo, v.1, n. 14, p. 17-54, 2012.

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Apresentando conceitos nômades: entre-gêneros, entre-mobilidades, entresexos, entre-orientações

Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho1

Resumo: Introduzo neste artigo, preliminarmente, os conceitos de entre-mobilidades de sexo/gênero (entre-sexos, entre-orientações sexuais e entre-gêneros) – conceitos nômades, provisórios, instáveis – que podem ser utilizados para se compreender trânsitos de gênero diversos. Tais conceitos, de modo semelhante, devem ser vistos sob rasura, dada sua instabilidade, deslocamento e errância. Palavras-chave: travestis, transexuais, entre-mobilidades, entre-gêneros, entre-orientações sexuais

Introducing nomads concepts: from enter-orientacions to enter-genders Summary: I introduce preliminarily in this paper, the concepts of enter-mobilities of sex/gender (enter-genders, enter-sex and enter-sexual orientacions) – nomadic, temporary, unstable concepts – that can be used to understand gender shifts many. Such concepts at the same time, must be viewed under erasure, given its own instability and wandering. Keywords:

transvestites,

transsexuals,

enter-mobilities,

enter-genders,

enter-sexual

orientacions

1

Doutorando em História Social pela USP, mestre em História do Tempo Presente pela UDESC, especialista em Marketing e Comunicação Social pela Cásper Líbero. Contato: [email protected]. Agradeço a Sandra Duarte de Souza, Maria José Fontelas Rosado-Nunes, João W. Nery, Simone Ávila, Jaqueline Gomes de Jesus e Beatriz Bagagli por diálogos sobre estudos/teorias de gênero.

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Introdução2 Neste trabalho procuro apresentar, de modo introdutório, conceitos relacionados às entremobilidades de sexo/gênero (entre-sexos, entre-gêneros e entre-orientações sexuais), classificações errantes que sinalizam para a instabilidade das “identidades” de gênero. Este texto é dividido da seguinte forma: Primeiramente, apresento uma anatomia sintética sobre os binarismos de gênero – seguida de comentários sobre a teoria queer. Em seguida apresento o termo cisgênero, utilizado por pesquisadoras/es e ativistas trans como forma de contraponto às identidades de gênero peregrinas, e ferramentais que apontam para uma possível diminuição das dicotomias (trazidos por Donna Haraway e Rosi Braidotti). Na sequência explico sinteticamente o termo entre-lugares, de Homi K. Bhabha, e por fim, demonstro alguns dos possíveis usos dos conceitos de entre, que produzi a partir de 2011/2012. Exponho, ao final, considerações de caráter inconclusivo, combinadas com a instabilidade dos termos aqui propostos e das identidades aqui comentadas, lembrando ser este um contexto em fluxo e ebulição contínua. No que segue, tomo como ponto de partida uma breve cartografia dos binarismos de gênero.

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Sobre a linguagem inclusiva adotada no texto: entendo que a “diferença” entre os “sexos” e os “gêneros” é construída, inclusive pelo uso do idioma português, e que nossa linguagem é masculinista/androcêntrica, privilegiando o uso de referentes no masculino mesmo para se referir a pessoas e termos femininos. Por esta razão, escolho utilizar os artigos definidos (a/o, as/os) e indefinidos (uma/um, umas/uns) concomitantemente para me referir a vocábulos que podem ser femininos e/ou masculinos. O x da questão: No caso de algumas das pessoas entre-gêneros, caracterizadas por transitarem em maior ou menor intensidade entre as identidades de gêneros, e que não entendem-se e/ou declaram-se com um gênero afixado, caminhando entre autoidentificações bigênera e/ou agênera, utilizo-me do x – de rasura, de não-determinação – no lugar dos artigos o (masculino) e a (feminino). Em relação a experiências identitárias nas quais os sujeitos (entre-gêneros e cisgêneros) percebem-se e/ou declaram-se como do gênero feminino ou masculino, utilizo-me do artigo como a pessoa se define.

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Ponto de partida: uma breve cartografia dos binarismos de sexo/gênero “Você é trans ou biológico?” Desta forma, fui recebidx3 por uma pessoa autoidentificada mulher trans, no 6º Simpósio Regional Sudeste de Travestis e Transexuais, realizado em São José dos Campos em 2011. Participei do mesmo por conta de minha pesquisa de doutorado sobre itinerários e experiências religiosas de pessoas autoidentificadas em trânsitos de gênero4. No decorrer da pesquisa, recebi outras indagações/comentários semelhantes, a maioria feita em eventos: “Você é trans ou cis? Nasceu homem ou mulher? É operado ou ainda não? Mas você é natural ou é transhomem? Você é hetero né – não vai dizer que é gay ou bi! Se você sair com uma trans ou uma travesti você é o ativo? Ou faz a “passiva” também?” Estas indagações ressaltam a oposição de termos, ora relacionados a identidades/expressões de gênero, ora a orientações sexuais, a etapas do processo transexualizador e ao comportamento sexual. Perguntas como estas – que procuram entender o “outro” a partir de pares opostos – costumam direcionar os pensamentos, discursos e práticas da maioria das pessoas e são representados por uma série quase infinita de binarismos relacionados a marcadores sociais/culturais. Um dos momentos em que o binarismo de sexo/gênero encontra maior potência no imaginário social ocidental está na atribuição de papeis sociais através da identificação de sujeitos a partir de um (suposto) “sexo biológico”. Neste sentido, pessoas que se identificam com um sexo (e/ou um gênero) diverso(s) daquele(s) assignados socialmente, costumam ser vistas como “não-biológicas”, ou “anti-naturais”. Concepções como a de que todos os grupos sociais estão “estabelecidos sobre uma base sexual/biológica, de forma binária e hierarquizada, com predominância de um segmento sobre o outro” (SWAIN, s/d, s/p) foram relativizadas por autoras como Gayle Rubin (1975), Monique Wittig (1980) e Adrienne Rich (1981). Rubin demonstrou a existência de um 3

Utilizo, neste ponto do texto, o x como um sinal de rasura, um indicativo de “rascunho”, demonstrativo de meu auto-entendimento como nômade e ciborgue entre-gêneros: por não me adequar ao gênero que me foi determinado socialmente (e nem ao gênero “oposto”), me vejo peregrinando entre (im)possíveis, provisórias e errantes classificações como “sem-gênero”, “agênero”, “bigênero” e “pangênero”. 4 Dentre estas autoclassificações, destacam-se mulheres e homens transexuais, trans, trans*, transgêneras/os, travestis, drag queens, drag kings e crossdressers.

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sistema de sexo-gênero binário, orientado pela “expressão de humanidade em moldes paradigmáticos: normal/anormal, certo/errado” (RUBIN, 1975, p. 205, apud SWAIN, s/d). Wittig e Rich aprofundam Rubin, “sublinhando, na divisão dual dos sexos, outra premissa não questionada: a heterossexualidade compulsória, forjadora e reiteradora da expressão binária do sexual” (SWAIN, s/d, s/p). Tânia Navarro Swain explica que o sistema de sexo/gênero é constantemente reafirmado através da “categoria analítica ‘gênero’, expressa como construção cultural a partir do sexo biológico”, enquanto sexo é “uma representação social de evidência biológica.” A autora demonstra que o sexo biológico, considerado inquestionável, pré-existente, superfície prédiscursiva, aparece enfim como um sentido imposto ao social pelo próprio regime de verdade no qual se apoia e institui, pelas constelações de sentido que criam uma evidência social” (SWAIN, s/d, s/p).5

Swain demonstra que a binariedade que envolve os conceitos de mulher e homem é exemplificada através da dificuldade de muitas mulheres em assumirem-se feministas: “o próprio binário é aqui explicativo, pois o feminino sugere uma temática destituída de nobreza, contrapondo-se a um masculino genérico, universal, dotado dos valores do humano em geral” (SWAIN, s/d, s/p). Assim, uma das atividades teóricas do feminismo estaria em sua autocrítica, exigindo o desenraizamento, o deslocamento dentro das balizas seguras de certos pressupostos, como por exemplo, o “ser mulher”, em um corpo biologicamente definido. O lugar da epistemologia feminista é, portanto, nesta perspectiva, um “não lugar”, pois não há pouso nem repouso neste incessante produzir de consciências e autoconsciências (SWAIN, s/d, s/p).6

“Ser mulher” atrela dois referentes distintos: materialidade do corpo e subjetivação do feminino. A composição de sujeitos é definida por uma biologia, estabelecida como marco decisório para sua inserção no social e a produção de sentidos sociais, condensada na instituição de corpos sexuados. As práticas discursivas relativas às experiências do corpo

5 6

Tal concepção assenta-se em teorias queer, como a de Judith Butler, como veremos mais adiante. Esta assertiva de Swain, provavelmente, assenta-se em inferências de autoras queer, como Butler.

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sexuado/sexualizado produzem o feminino do “ser mulher” (SWAIN, s/d, s/p). A epistemologia feminista desestabiliza evidências de corpos modelados pela biologia ou da heterossexualidade como prática sexual por definição, e desta forma, ao significante “mulher” não corresponde um significado preciso, mas uma miríade de situações e comportamentos constitutivos de um ser inserido em um social histórica e espacialmente determinado (SWAIN, s/d, s/p).

A construção do “ser mulher”, não prescinde, necessariamente, de supostos biológicos: assenta-se, fundamentalmente, na autoidentificação e autodeclaração individual. Uma pessoa designada no nascimento (ou na gestação de sua mãe) como homem pode peregrinar em busca de sua adequação à sua identidade/expressão de gênero feminina. Quem pode dizer que tal pessoa não seja mulher, se ela se reconhece como tal? Do mesmo modo, uma pessoa que teve sexo e gênero atribuídos/assignados no nascimento como mulher/feminino, pode fazer seu nomadismo de gênero em direção ao “polo” masculino (ou ao outro extremo binário de gênero). Tais pessoas, comumente entendidas a partir de termos como transexuais, trans, trans* e travestis costumam ser discriminadas/vilipendiadas especialmente (mas não tão somente) por conta de sua não aceitação/adequação à extremidade binária de gênero esperada a partir da aparência de seus genitais e designação/atribuição social de sexo e gênero. No caso de pessoas assignadas como “homens” e que se identificam/representam/expressam subjetiva e/ou socialmente como “mulheres”, estas sofrem, por vezes, de uma segunda discriminação de gênero: para muitas pessoas, é um absurdo um “homem” abdicar de seus privilégios sociais para “se tornar”, ou “virar” uma “mulher” (que socialmente, ainda costuma ser entendida como inferior ao homem). Uma terceira forma de intolerância muitas vezes é agregada: a associação feita entre transmulheres – e especialmente pessoas identificadas como travestis – com garotas de programa (costumeiramente avaliadas pela sociedade como abjetas). Desta primeira cartografia, destaca-se uma indagação: conseguimos pensar a sociedade além dos parâmetros binários do sistema sexo/gênero? Em caso afirmativo, o que propor no lugar deste binário? Mesmo não tendo a ambição de responder a isto, podemos convocar algumas/uns teóricas/os queer para a discussão.

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Os estudos queer A teoria queer foi desenvolvida a partir do final dos anos 1980 por ativistas e pesquisadoras/es em maioria provenientes dos Estados Unidos, em oposição crítica aos estudos sociológicos sobre gênero e minorias sociais (MISKOLCI, 2009, p. 150). Uma das primeiras teóricas a utilizar a expressão queer de modo epistemológico foi Teresa de Lauretis, no artigo Queer Theory: Lesbian and Gay Studies, de 1991.7 O objetivo de suas reflexões era o de articular os termos pelos quais as sexualidades gays e lésbicas poderiam ser entendidas e representadas como formas de resistência à homogeneização cultural, contrariando discursos dominantes com outras construções possíveis do sujeito na cultura (DE LAURETIS, 1991, p. 1 apud OLIVEIRA, 2009, p. 41. Tradução livre de Oliveira).

De Lauretis explica que o uso do termo no meio acadêmico foi impulsionado pela primeira vez por ela, em 1990 (DE LAURETIS, 1991, p. 2 apud OLIVEIRA, 2009, p. 42) e justaposto a “lésbica e gay” no subtítulo, é destinado a marcar certa distância crítica a partir da última, até agora estabelecida e, muitas vezes, conveniente fórmula. A frase “gay e lésbica” ou “lésbica e gay” tornou-se a forma normal de referência e há poucos anos vinha-se utilizando simplesmente “gays” (por exemplo, a comunidade gay, o movimento gay de libertação) ou, simplesmente alguns anos atrás ainda, “homossexuais”. [...] Num certo sentido, chegamos ao termo “Queer Theory” no esforço de evitar todas estas distinções nos nossos discursos oficiais, e não aderir a qualquer uma das condições dadas, para não assumirmos as suas responsabilidades ideológicas, mas sim para transgredi-las e transcendê-las - ou, pelo menos, problematizá-las (DE LAURETIS, 1991, p. 2 apud OLIVEIRA, 2009, p. 41. Tradução livre de Oliveira).

Outras/os autoras/es se utilizaram do termo ainda no início da década de 1990, como Judith Butler (1990), Eve Sedgwick (1990) e Michael Warner (1993). O termo queer tem sido utilizado, na literatura anglo-saxônica, para englobar os termos “gay” e “lésbica”. Historicamente, “queer” tem sido empregado para se referir, de forma depreciativa, às pessoas homossexuais. Sua utilização pelos ativistas dos movimentos homossexuais constitui uma tentativa de recuperação da palavra,

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Tal artigo foi produzido durante seminário realizado na Universidade da Califórnia, Santa Cruz, em fevereiro de 1990 – e é considerado o precursor dos estudos queer.

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revertendo sua conotação negativa original. Essa utilização renovada da palavra “queer” joga também com um de seus outros significados, o de “estranho”. Os movimentos homossexuais falam assim de uma política queer ou de uma teoria queer (SILVA, 1999, 171-172).

O termo pode ser traduzido por “estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro, extraordinário”, ainda não tolerado, não integrado, direcionado a homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drag queens, consideradas/os sujeitos da sexualidade desviante (LOURO, 2001, p. 546). Para Louro, Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocarse contra a normalização – venha ela de onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua crítica à normalização e à estabilidade propostas pela política de identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p. 546).

A palavra queer tem ainda o significado de através, e seu equivalente alemão (quer), quer dizer transversal. Pode ser utilizado como verbo ou adjetivo, atravessando conceitualmente identidades, subjetividades e comunidades (TALBURT, 2005). Butler – que costuma ser entendida como a principal precursora destes estudos – entende que “queer adquire todo o seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações, patologias e insultos” (BUTLER, 2002, p. 58). O termo queer é adotado e resignificado para destacar as (a)normalidades relativas ao sistema sexo-gênero, expressando a subversão de normas diversas – especialmente relacionadas a tal sistema. Creio, entretanto, que um olhar queer possa ser direcionado a outros marcadores sociais, como religião, origem, classe, etnia, raça.8 E certamente, o próprio queer deva ser constantemente “queerizado” – colocado em dúvida e/ou sob rasura, por possivelmente não 8

De modo semelhante, ao tratar dos estudos feministas, gays e lésbicos e da teoria queer, Louro argumenta que “as transformações trazidas por esses campos ultrapassam o terreno dos gêneros e podem nos levar a pensar, de um modo renovado, a cultura, as instituições, o poder, as formas de aprender e de estar no mundo” (LOURO, 2004b, pp. 23-24). Tais classificações – marcadores sociais – também devem ser percebidos a partir de sua instabilidade e precariedade – e assim, colocados sob rasura.

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dar suporte ao entendimento dos múltiplos deslocamentos “identitários” de pessoas e de coletivos. Louro entende que a teoria queer reflete numa política e teoria pós-identitária que se voltam “não propriamente às condições de vida de homens e de mulheres homossexuais”, mas que tenham como alvo, fundamentalmente, a crítica da oposição heterossexual/homossexual onipresente na sociedade; a crítica da oposição que, segundo suas análises, organiza as práticas sociais, as instituições, o conhecimento, as relações entre os sujeitos (LOURO, 2004b, p. 26).

O campo de estudos queer é instável e em constante resignificação – e propõe desconstruir as formas

sociais

determinadas

pelos

binarismos

masculino/feminino,

heterossexualidade/homosexualidade, esforçando-se em desfazer os estatutos da heteronorma (SILVA, 2007). Eve Sedwick demonstrou a necessidade de superação da teoria feminista calcada na oposição homens versus mulheres assim como dos estudos de gays e lésbicas como minorias, pois todos nós, homens e mulheres, hetero ou homo-orientados, estamos enredados dentro dos mesmos processos sociais de regulação de nossas vidas a partir da sexualidade (MISKOLCI, 2007, p. 57).

Para Miskolci, tal autora procura trazer à luz as contradições das estratégias discursivas que tentam apontar a forma “correta” de agir, de compreender a si mesmo ou, sobretudo, que tentam delimitar a verdade e quem a pode enunciar. Esse mesmo procedimento continua a guiar outros pesquisadores queer em suas investigações sobre as especificidades nacionais e históricas dos dispositivos de regulação da vida social por meio da sexualidade (MISKOLCI, 2007, p. 57).

Uma das contribuições de Judith Butler à teoria queer está na contestação do sistema sexogênero, cuja “concepção de origem marxista está ligada à existência do sistema patriarcal e da categoria mulheres como central nas relações de poder entre os sexos” (OLIVEIRA, 2009, p. 40). Ela argumenta que “a distinção entre sexo e gênero atende à tese de que, por mais que o sexo pareça intratável em termos biológicos, o gênero é culturalmente construído: consequentemente, não é nem o resultado causal do sexo, nem tampouco tão aparentemente fixo quanto o sexo” (BUTLER, 2003, p. 24). Oliveira (2009, p. 40) comenta que para Butler, 24

tal lógica conduz a uma divisão no sujeito feminista, “cuja unidade já é potencialmente contestada pela distinção que abre espaço ao gênero como interpretação múltipla do sexo” (BUTLER, 2003, p. 24). Butler também tece críticas à centralidade da categoria “mulher”, em que há “uma identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que não só deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é almejada”. Para a mesma, o próprio sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes, e os domínios da “representação” política e linguística estabeleceram, “a priori”, o critério segundo o qual os próprios sujeitos são formados, com o resultado de a representação se estender ao que pode ser reconhecido como sujeito. Em outras palavras, as qualificações do ser sujeito tem que ser atendidas para que a representação possa ser expandida (BUTLER, 2003, pp. 17-18).

Butler entende que a estrutura exclusiva em que as especificidades são reconhecidas se dá através da noção binária feminino/masculino, e que a categoria “mulheres” obtém sua estabilidade e coerência a partir da chamada matriz heterossexual. Tal conceito, para Butler, designa “a grade de inteligibilidade cultural por meio da qual corpos, gêneros e desejos são naturalizados”. Trata-se de termo que caracteriza um modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade (BUTLER, 2003, pp. 215-216).9

A autora entende que a identidade deve ser percebida através de seu caráter móvel, e propõe “uma política feminista que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e normativo, senão como um objetivo político” (BUTLER, 2003, p. 23). As incursões de Butler por temas como identidade, corpo e subjetividade são comentadas por Stuart Hall, que destaca a argumentação de Butler sobre a relação do ato de assumir um sexo 9

Stuart Hall contempla que a crítica de Butler sobre a “política da identidade feminista e de suas premissas fundacionais questiona a adequação de uma política representacional cuja base é a universalidade e a unidade presumíveis de seu sujeito – a categoria unificada sob o rótulo de ‘mulheres’” (HALL, 2000, p.129).

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“com a questão da identificação e com os meios discursivos pelos quais o imperativo heterossexual possibilita certas identificações sexuadas e impede ou nega outras identificações.” Tal centramento da identificação, “juntamente com a problemática do sujeito que “assume um sexo”, abre, no trabalho de Butler, um diálogo crítico e reflexivo entre Foucault e a psicanálise10 que é extremamente produtivo” (HALL, 2000, pp. 127-128). Ressalta ainda a concepção de identidades de Butler, “que funcionam por meio da exclusão, por meio da construção discursiva de um exterior constitutivo e da produção de sujeitos abjetos e marginalizados, aparentemente fora do campo do simbólico, do representável” o que viria a “complicar e desestabilizar aquelas foraclusões que nós, prematuramente, chamamos de ‘identidades’” (HALL, 2000, p. 129). Sua contribuição teórica se amplia ao comentar sobre o conceito de performatividade de gênero: a construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento [...]. Com efeito, a lei produz e depois oculta a noção de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei (BUTLER, 2003, p.19).11

Butler demonstra que não há um gênero “original”: este é uma imitação de algo que, na realidade, não existe. Gênero seria a “estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no

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Butler faz tais referências a Foucault, e também a autores/as como Derrida, Freud e Althuser, em Mecanismos Psíquicos del Poder. Teorías sobre la sujeción (1997). 11 Sobre performatividade e performance, Oliveira destaca a distinção feita por Don Kulick: “performance não é performatividade. A primeira relaciona-se com algo que o sujeito ‘faz’, ao passo que a seguinte definiria o processo segundo o qual os sujeitos emergem. Assim, performance é uma dimensão da performatividade (KULICK, s/d, pp. 61-69, apud OLIVEIRA, 2009, p. 51). Para Oliveira, “à luz desta visão de Kulick, é possível compreender que Butler não afirma que o gênero pode ser ‘trocado’ como se ‘troca de roupa’, e que seu sistema não deve ser lido confundindo-se performatividade e performance”, e que Kulick conclui que performance refere-se à identidade e performatividade às operações através das quais o sujeito é constituído, ou aos processos de identificação (KULICK, s/d: 69, apud OLIVEIRA, 2009, p. 51). Certamente, esta é uma possível distinção entre performance e performatividade – uma dentre muitas reflexões sobre o assunto.

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tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2003, p. 59), e a biologia, situada no plano da construção discursiva. Da mesma forma, corpo e sexo, cuja dicotomia deve ser dissolvida, não são algo dado, pronto ou natural, ou verdades pré-discursivas, como se costuma pensar, mas construções culturais. Tais construções se dão por processos temporais que atuam a partir da reiteração de normas, dando-lhes efeito naturalizado: “em virtude dessa reiteração, fossos e fissuras são abertos, e podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma” (BUTLER, 2001, p. 163-164). O sexo é tão construído quanto o gênero – de modo que a distinção entre sexo e gênero é nenhuma. Para a mesma, o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio discursivo/cultural pelo qual a “natureza sexuada” ou “um sexo natural” é produzido e estabelecido como “pré-discursivo”, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura.

Butler vê que “colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das maneiras pelas

quais

a

estabilidade

interna

e

a estrutura binária do sexo são eficazmente

asseguradas” (BUTLER, 2003, pp.25-26). Para além de Butler, os estudos queer descolam o binarismo ao procurar romper as lógicas binárias que resultam no estabelecimento de hierarquias e subalternizações, mas não apela à crença humanista, ainda que bem intencionada, nem na “defesa” de sujeitos estigmatizados, pois isto congelaria lugares enunciatórios como subversivos e ignoraria o caráter contingente da agência (MISKOLCI, 2009, p. 175).

Miskolci explica que Os estudos “queer” sublinham a centralidade dos mecanismos sociais relacionados à operação do binarismo hetero/homossexual para a organização da vida social contemporânea, dando mais atenção crítica a uma política do conhecimento e da diferença (MISKOLCI, 2009, p. 154).

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De modo semelhante ao que foi operado por ativistas e pesquisadores/as em relação à palavra queer, termo pejorativo12 relacionado a gays e lésbicas, podemos pensar aqui em termos como desorientado/a e degenerado/a, revertendo também seus sentidos originais depreciativos, e os relacionando a pessoas que não se percebem com orientações sexuais ou gêneros determinados binariamente. O vocábulo queer pode funcionar também como um termo guarda-chuva, agregando identidades diversas – assim como ocorre com as expressões transgênero, trans e trans*. Ainda que todas as pessoas transitem em momentos específicos de suas vidas por algum dos múltiplos marcadores sociais, nem todas as pessoas se vêem ou se identificam como peregrinas de gênero. Tais pessoas podem ser identificadas como cisgêneras – termo utilizado contemporaneamente por algumas/ns das/os pesquisadoras/es e/ou ativistas que têm analisado trânsitos de gênero.

Sobre cisgeneridade / cis-heterossexualidade Assim como há sujeitos que não se encaixam em determinados padrões de gênero, há aqueles que se identificam plenamente de acordo com o seu gênero de atribuição/designação. A estas pessoas, convencionou-se o termo cisgêneros. A expressão cis, abreviatura de cisgênero e de cissexismo/cissexualidade, utilizada por pesquisadoras/es e pessoas que se declaram trans (trans*, transgêneras, transexuais), refere-se à não ultrapassagem das fronteiras de gênero e sexualidade previstas pelo saber binário e heterocêntrico. Cisgênero é quem se apresenta em conformidade com a maioria das expectativas sociais relativas “ao que é ser homem ou mulher”, ou de acordo com os dispositivos de gênero que lhe foram atribuídos na gestação e/ou nascimento, enquanto o sujeito cissexual é aquele cujo desejo erótico se alinha aos padrões heteronormativos. Tal termo identifica pessoas que se identificam em concordância entre seu “sexo psicológico” e seu “sexo biológico”.13 Sujeitos cisgêneros, assim como trans* 12

O uso de queer – até sua apropriação e resignificação por tais teóricos, costumava ser utilizado como equivalente, no português, a “viado” e “sapatão”, por exemplo. 13 Como reforçou João W. Nery em conversa online, “cissexual é o termo utilizado para identificar pessoas que não são transexuais e que sempre identificaram em concordância o seu sexo psicológico com o seu sexo biológico”.

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(trans, transexuais, transgêneros, travestis...), podem ter distintas orientações sexuais, como gays, lésbicas, heterossexuais, bissexuais, pansexuais e assexuais. Certamente, é válido pensar que há pessoas que “estão” cisgêneras/cissexuais, e pessoas que “estão” entre os gêneros. Muitas pessoas com identidades de gênero peregrinas referem passagens de suas vidas marcadas pelo sentimento de adequação ao gênero esperado delas. Marlon14 afirma: “grande parte da minha vida eu fui uma mulher normalzinha. Feminina, gostava de guris, fazia tudo que era aguardado prá uma menininha. Só depois dos meus 30 anos percebi que era FTM”. Pensar no conceito trans* (trans, transgênero, transexual), como oposto ao de cisgênero, reforça outra forma dicotômica e binária. De modo parecido, pensar na ideia de queer como o que é (sempre) desencaixado, presume que na outra “ponta” encontra-se aquilo “que se encaixa”, o que é outra forma de binarismo/dicotomia. Assim, convém queerizar o queer, colocando-o em suspeição. Classificações como a de cis, ou de trans (e suas variações), ainda que possam ser assumidas com fins políticos, provavelmente, se afinam com determinados “kits de perfis-padrão” formatados “de acordo com cada órbita do mercado, para serem consumidos pelas subjetividades, independentemente de contexto geográfico, nacional, cultural, etc” (ROLNIK, 1997, p. 1), o que excluiria outros marcadores sociais de distinção na identificação do sujeito. Sujeitos em trânsitos de gênero, assim como cis, podem ser identificados a partir da concepção de bricolagens e composições subjetivas a partir de elementos supostamente dicotômicos e conflitantes, o que se pode perceber através da metáfora do ciborgue, proposta por Donna Haraway.

14

Nome fictício de um entrevistado.

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“Somos todos ciborgues”

Nós transhomens somos todos ciborgues João Walter Nery

Conversando com João W. Nery (considerado pelo ativismo trans e pela mídia como o primeiro transhomem operado no Brasil), comentamos sobre a possibilidade de escrevermos sobre as peregrinações e experiências de transhomens (também entendidos através de vocábulos como homens trans e FTMs – female to male) no Facebook. Quando argumentei sobre um possível título, “Transhomens no ciberespaço”, Nery afirmou: “ótimo Du, porque nós transhomens somos todos ciborgues”. A metáfora do ciborgue pode ser entendida a partir de escritos de Donna Haraway, representando um esforço da mesma em (re)pensar e (des)construir alguns dualismos. Como Haraway explica, certos dualismos têm persistido na cultura ocidental e sido essenciais na lógica e prática da dominação sobre mulheres, negros/as, trabalhadores/as, animais, enfim, a todas/os que foram constituídos como “o outro”, e cuja tarefa consiste em espelhar o “eu”, o dominante. O eu, é o Um que não é dominado, que sabe isso por meio do trabalho do outro; o outro é o um que carrega o futuro, que sabe isso por meio da experiência da dominação, a qual desmente a autonomia do eu. Ser o Um é ser autônomo, ser poderoso, ser Deus; mas ser o Um é ser uma ilusão e, assim, estar envolvido numa dialética de apocalipse com o outro.

De outro modo, “ser o outro é ser múltiplo, sem fronteira clara, borrado, insubstancial”.15 Haraway

exemplifica

alguns

dualismos:

eu/outro,

mente/corpo,

cultura/natureza,

macho/fêmea, civilizado/primitivo, realidade/aparência, todo/parte, agente/instrumento, o que faz/o que é feito, ativo/passivo, certo/errado, verdade/ilusão, total/parcial, Deus/homem (HARAWAY, 2013, p. 91). Como se observa, tais dicotomias são elencadas hierarquicamente. Os referentes considerados “superiores” são os primeiros a serem referidos. Podemos adensar, a tais termos, heterossexual/homossexual, homem/mulher, e ainda, 15

Tal ideia pode ser dialogada com Butler e outras/os teóricas/os queer.

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cisgênero/trans (trans*, transexual, travesti, transgênero). Tais dualismos são especialmente contestados pela cultura high tech: “não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina (...) não existe nenhuma separação fundamental, ontológica, entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico” (HARAWAY, 2013, p. 91). Tal concepção é rica para pensar pessoas entre-gêneros: muitas possuem próteses e outros artefatos (que não são evidentemente exclusividade destas) que prolongam a extensão de seus corpos, proporcionando melhor qualidade de vida e fazendo com que estes sintam seus organismos mais adequados à suas identidades de gênero. Além disto, tal noção auxilia a pensar a participação de pessoas entre-sexos/gêneros no ciberespaço. Esta plataforma pode ser considerada continuidade de seus corpos. Ou seus corpos seriam o prolongamento de seus computadores? 16 Kunzru comenta que “o mundo de Haraway é um mundo de redes entrelaçadas – redes que são em parte humanas, em parte máquinas; complexos híbridos de carne e metal que jogam conceitos como “natural” e “artificial” para a lata do lixo”. Tais redes, híbridas, seriam os ciborgues, que “não se limitam a estar à nossa volta – eles nos incorporam”, e lembra: “se as mulheres (e os homens) não são naturais, mas construídos, tal como um ciborgue, então, dados os instrumentos adequados, todos nós podemos ser reconstruídos (KUNZRU, 2013, pp. 24-25). Para Tomaz Tadeu, “o ciborgue nos força a pensar não em termos de “sujeitos”, de mônadas, de átomos ou indivíduos, mas em termos de fluxos e intensidades.” Deste modo, o mundo não seria constituído de “unidades (“sujeitos”), de onde partiriam as ações sobre outras unidades, mas, inversamente, de correntes e circuitos que encontram aquelas unidades em sua passagem” (TADEU, 2013, p. 14). Haraway entende que a imagem do ciborgue pode sugerir uma forma de saída do labirinto dos dualismos por meio dos quais temos explicado nossos corpos e nossos instrumentos pra nós mesmas. Trata-se do sonho não de uma linguagem comum, mas de uma poderosa e herética heteroglossia. Trata-se da imaginação de uma feminista falando em línguas (glossolalia) para incutir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita. 16

Evidentemente, pensar o ciberespaço como prolongamento de corpos não é exclusividade de pessoas entregêneros, mas também de cisgêneros.

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Significa tanto construir quanto destruir máquinas, identidades, categorias, relações, narrativas espaciais. (HARAWAY, 2013, p. 99).

Tal ciborgue pode ainda ser relacionado com a figuração proposta por Rosi Braidotti de sujeito nômade – que também pode ser entendido como sujeito peregrino (e talvez, como sujeito turista).

Nômades, peregrinos/as e turistas É possível pensar as pessoas entre-gêneros a partir da figuração17 do sujeito nômade, de Braidotti (1994, 2002), percebido através de “uma visão descentralizada e multidimensionada do sujeito como entidade dinâmica e mutante, situada em um contexto, em transformação constante”. Para a autora, enquanto eixos de diferenciação como classe, raça, etnia, gênero, idade, e outros interagem uns com os outros na constituição da subjetividade, a noção de nomadismo se refere à ocorrência simultânea de muitos deles de uma vez. Subjetividade nômade tem a ver com a simultaneidade de identidades complexas e multi-dimensionadas (BRAIDOTTI, 2002, p. 9).

Braidotti relaciona a subjetividade nômade a duas outras figurações, com as quais esta é costumeiramente comparada: o migrante e o exilado. O itinerário clássico do migrante é composto por lugares fixos: da “casa” para os países “anfitriões”, em uma série de deslocamentos consecutivos. Argumentei que o migrante – como figura das duras condições econômicas – tende a se apoiar nos valores “natais”, enquanto tenta se adaptar àqueles do ambiente anfitrião. O exilado, por outro lado, marca a separação radical de – e a impossibilidade de retorno ao – ponto de partida. Mais frequentemente, mas devido a razões políticas, o exilado não conhece vindas periódicas, e idas e voltas de dois lugares comparativamente fixados.

O nômade, de outro modo, 17

Braidotti explica o uso que faz do termo figurações: “uma figuração não é mera metáfora, mas um mapa cognitivo politicamente informado que lê o presente em termos da situação fixa de alguém. Baseado na teoria de Adrienne Rich (1987) da “política de localização”, têm sido redefinido com o insight das noções pósestruturalistas de discurso – para evoluir até a ideia de Donna Haraway (1990) de “conhecimentos situados” – como genealogias corporificadas ou responsabilidade encarnada” (BRAIDOTTI, 2002, p. 9).

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se posiciona pela renúncia e desconstrução de qualquer senso de identidade fixa. O nômade é semelhante ao que Focault chamou de contra-memória, é uma forma de resistir à assimilação ou homologação dentro de formas dominantes de representar a si próprio (...). O estilo nômade tem a ver com transições e passagens, sem destinos pré-determinados ou terras natais perdidas. Assim, o nomadismo refere-se ao tipo de consciência crítica que resiste a se ajustar aos modos de pensamento e comportamento codificados. É a subversão do conjunto de convenções que define o estado nômade, não o ato literal de viajar (BRAIDOTTI, 2002, pp. 9-10).

Braidotti reforça que para outros autores, como Zygmunt Bauman (1993), as figurações nômades não são radicais o suficiente para explicar as mobilidades contemporâneas, pois estes “sempre retornam e tendem a seguir rotas preestabelecidas, não rompendo, assim, suficientemente, com um senso de propósito teleológico defeituoso.” James Clifford (1994), por sua vez, apresenta “imagens de viagem, que são historicamente fixadas e consequentemente palpáveis (agentes, fronteiras, guias, documentos, visto, etc)”, e tanto Clifford como Bauman, apoiam a figuração do peregrino, “apesar de suas insinuações teosóficas.” Para Braidotti, “figurações de subjetividade móveis, complexas e mutantes estão aqui para ficar” (BRAIDOTTI, 2002, p. 12). De modo semelhante, Donna Haraway anunciava: “o importante é a dispersão. A tarefa consiste em sobreviver na diáspora” (HARAWAY, 2013, p. 77). À expressão de Gloria Wekker (1994) referida por Braidotti, “nós podemos ir a qualquer lugar, menos para casa”, podemos relacionar às mobilidades de gênero – muitos destes trajetos são irreversíveis, visam um ponto de chegada mais ou menos fixado, a partir de uma jornada a qual não tem como retornar ao ponto de partida. Assim como o/a nômade, a pessoa autodesignada trans está constantemente demolindo a morada anterior – podemos pensar aqui no corpo como morada da alma – e a reconstruindo em outro lugar. Este/a viajante, quer seja entendido/a como nômade ou peregrino/a, em geral tem um objetivo especifico: ultrapassar fronteiras, transgredir. Ainda que seja para se encaixar em algum lugar. Deste modo, a situação de nomadismo ou/e peregrinação não se estende necessariamente ad eternum: pode ser contingencial, trânsito transitório. Este/a viajante trans, cartografando a si mesmo, atravessa/(re)descobre caminhos e lugares, se des/re/constrói, visando um produto

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pronto – ou não. Alguns/as derrubam barreiras dicotômicas de sexo/gênero no percurso, outros/as as reconstroem mais adiante. Talvez possamos pensar tais situações de transitoriedade a partir de outras figurações, como a do “turista”. O/a turista de gênero, neste caso, pode ser pensado/a como pessoa que realiza um trânsito mais contingencial que o do nômade e/ou o peregrino de gênero. Dentro das genderscapes (paisagens generificadas),18 a figura do sujeito nômade, peregrino ou turista permite pensar em pessoas que transitam entre um local e outro, sem necessariamente um porto fixo em que se amparar – e neste caso, tal figuração não se refere a uma metáfora, mas a uma situação materialmente fixada e existente. É possível pensar, a partir destas duas últimas autoras, na possibilidade de um/a ciborgue peregrino/a, não fixado/a nem finalizado/a, em constante processo de reinvenção de si mesmo/a. As paisagens generificadas pelas quais tais ciborgues transitam pode ser denominada a partir da noção de entre-lugares, proposta por Homi K. Bhabha.19

“Entre” Outra definição que podemos utilizar para pensar situações subjetivas de deslocamentos, ou de “estar entre” é proposta por Homi K. Bhabha, com seus entre-lugares. Para este autor, há uma “necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais.”20 O entre-lugar seria um espaço de trânsito, cruzado pelo tempo, caracterizado pela produção de “figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.”21 Tais entre-lugares “fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação - singular ou coletiva - que dão início

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Dentre outras paisagens relacionadas a outros marcadores sociais de identidade e de diferença. Algumas pessoas podem ser entendidas como ciborgues entre-gêneros. Comentarei mais aprofundadamente sobre o uso desta expressão, criada a partir das referências citadas, em trabalho posterior. 20 BHABHA, 1998, p. 20. 21 Idem, p. 19. 19

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a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade.”22 O entre-lugar projeta novas possibilidades de movimento, com o deslocamento no tempo e no espaço, projetando “a energia inquieta e revisionária deste de transformarem o presente em um lugar expandido e ex-cêntrico de experiência e aquisição de poder.”23 Para Bhabha, “nesse deslocamento, as fronteiras entre casa e mundo se confundem e, estranhamente, o privado e o público tornam-se parte um do outro, forçando sobre nós uma visão que é tão dividida quanta desnorteadora.”24 Ao comentar sobre a diferença cultural, Bhabha fundamenta o entre-lugar na incerteza: “ela consiste na encenação do significante colonial na incerteza narrativa do entre-lugar da cultura: entre signo e significante, nem um nem outro, nem sexualidade nem raça, nem, simplesmente, memória nem desejo.”25 E ao falar sobre nação, sinaliza para a instabilidade temporal: “no lugar da polaridade de uma nação prefigurativa autogeradora ‘em si mesma’ e de outras nações extrínsecas, o performativo introduz a temporalidade do entre-lugar.”26 A noção de entre-lugar de Bhabha ultrapassa a fronteira da espacialidade, alcançando outras dimensões de entendimento: serve para pensar a cultura, a temporalidade e as relações entre diferença/identidade, exclusão/inclusão, interior/exterior, passado/presente. Os entre-lugares são estes espaços de subjetivação nos quais podemos identificar diferentes instabilidades, sincretismos, deslocamentos, assujeitamentos, giros e agenciamentos identitários realizados na relação com o/a outro/a. A ideia de entre-lugares me serve de inspiração para pensar outras situações subjetivas relacionadas a “estar entre”. A partir desta, penso nas identidades religiosas e de gênero, entendendo ambas a partir das múltiplas mesclas possíveis entre trânsitos e bricolagens. A

22

Ibidem, p. 20. Ibidem, p. 23. 24 Ibidem, p. 30. 25 Ibidem, p. 182. 26 Ibidem, p. 209. 23

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noção de entre-lugares de Bhabha pode servir para pensarmos identidades (entendidas aqui como móveis, derretidas).27

Entre-lugares identitários Ressalto que grande parte das pessoas percorrem diferentes situações de entre-lugares identitários, caracterizadas pela instabilidade dos trânsitos – relativas a distintos marcadores sociais – e marcadas, por vezes, por múltiplas bricolagens. As pessoas são caldeirões identitários onde expressões, impressões, identificações e declarações - próprias e alheias -, sofrem processo de (des/re) aquecimento a partir de contexto relacional, em que identidades e identificações são derretidas, resfriadas, solidificadas, fragmentadas – derretidas de novo –, em constante processo de adaptação e recodificação/resignificação. Tais conceitos podem ser ampliados em direção às identidades de gênero/sexo e às orientações sexuais.

Peregrinando entre conceitos nômades Devemos lembrar que a linguagem, mais que descritiva, é prescritiva. As pessoas, desde a infância, aprendem que devem ter identidades fixadas binariamente dentro do sistema sexogênero: ou são mulheres ou são homens, femininas ou masculinas. Além disto, espera-se que as mesmas alinhem-se à heterossexualidade compulsória. Mas afinal, os termos “mulher” e “homem” são expressões acabadas (no sentido de finalizadas) ou acabadas (no sentido de obsoletas)? Jack Halberstam – que se identificava até algum tempo atrás pelo seu nome de batismo, Judith – tem pensado sobre os termos “mulher” e “homem” como

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O conceito de entre-lugares, de Bhabha (1989) é útil para pensar situações subjetivas de deslocamentos ou trânsitos identitários, e me inspirou a pensar nas identidades religiosas e de gênero, entendendo ambas a partir das múltiplas mesclas possíveis entre trânsitos e bricolagens. Formulei, a partir desta ideia, conceitos como o de entre-religiões, entre-religiosidades, entre-mercados e entre-nichos mercadológicos, apresentados em outras ocasiões (2012a, no prelo). No doutorado, tenho trabalhado com outras situações que envolvem estar entre, como a de entre-mobilidades e as de entre-gêneros e entre-sexos, que apresento aqui.

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termos globais. A maioria das sociedades usam o sistema binário de gêneros. Mas esse sistema funciona de diferentes maneiras em diferentes lugares. Uma mulher do Equador, ontem, me falou sobre um grupo de homens transgêneros que nasceram em corpos femininos, se identificam como homens, mas também tiveram bebês. Eles são mães. Eles são masculinos, mulheres e mães. Qual o nome para isso? Há um nome em espanhol para isso que eles usam, mas não há equivalente em outra língua, porque é uma forma muito particular de identidade (HALBERSTAM, 2012, p.9).

Outros conceitos, como gay, lésbica e transgênero, não estão obsoletos, mas hoje são antiquados e não descrevem bem muitas e muitas pessoas. Eles se tornaram categorias tão fixas, e há tantas pessoas que ficam entre um e outro, que são apenas esboços grosseiros de formações identitárias, e nós precisamos atualizar essas classificações. O outro problema é que elas representam um modelo euro-americano de pensamento sobre a sexualidade. Há muitas outras línguas que as pessoas usam para diversidade sexual e de gênero e que trazem diferentes significados. Não há, por exemplo, uma tradução para o inglês para “travesti” ou para “transformista”. Esses termos têm os próprios significados. São descrições de formações sexuais em um tempo e em lugar específicos e não podem ser capturados por gay, lésbica ou transgênero, que não funcionam globalmente (HALBERSTAM, 2012, p.8).28

Para Halberstam, as contra-identidades de gênero merecem ser convocadas para a guerrilha contra as forças da cis-heterosexualidade reinante. Mais que isto, é importante lembrarmos a multiplicidade de experiências errantes de gênero, não englobadas nas contra-identidades

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Para o mesmo, “a palavra transgênero é um agrupamento de muitos desejos. Transgênero pode ser um homem que quer ser uma mulher e faz várias cirurgias, tem muita visibilidade, casa com um homem. Ou pode ser alguém que não fez muitas cirurgias, toma alguns hormônios que comprou no mercado negro, faz alguns trabalhos sexuais. Ou pode ser uma mulher que deseja se tornar homem, mas ninguém faz muito caso disso e ela se torna invisível. Quando um homem quer se tornar uma mulher, há ideia de que é fácil, porque a mulher já é artificial, então basta se vestir, usar maquiagem e salto. A mulher que quer se tornar um homem enfrenta mais problemas porque há tanto poder social investido na categoria homem que não acreditamos que isso possa acontecer. Acreditamos que masculinidade é uma prerrogativa de corpos biológicos e um lugar de privilegio social. Então a sociedade se interessa menos por mulheres que se tornam homens que por homens que se tornam mulheres, que são considerados fabulosos, expressivos culturalmente. O homem transgênero, por outro lado, é alguém que esta invadindo o território da masculinidade, que é protegido por homens, para os homens. Então eles passam despercebidos” (HALBERSTAM, 2012, p.9-10).

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sexuais/de gênero representadas pelas letrinhas LGBTTTIQAG29 (com suas diversas variantes) – muitas identidades não se encaixam nestas classificações, como os muxes de Juchitan (istmo de Tehuantepec, México), os berdaches dos Estados Unidos, as hijras da Índia, zenanas, pottais, aravanise outras identidades locais/regionais/nacionais, bem como crossdressers, drag kings, drag queens, butches, etc. Tal errância – nomadismo – além de apresentar a provisoriedade identitária, pode ser entendida também como errada, por este caráter de não fixidez e acabamento. Este nomadismo é percebido nas falas de muitas pessoas. Marta, por exemplo, classificou-se assim: “ah, eu já me vi homem gay, já me vi trava, hoje sou trans não operada. Por enquanto, claro. Vou colocar boceta logo, logo e aí, meu bem, ninguém mais segura esta mulher! Ai, será que eu também já me vi como drag queen? A lôca!” Como percebemos através deste exemplo, muitas vezes as autoidentificações são múltiplas e contingenciais. É possível pensarmos nestes deslocamentos a partir da expressão entre-mobilidades.

Entre-mobilidades A expressão entre-mobilidades (entre-trânsitos, entre-deslocamentos) procura sugerir, antes de tudo, instabilidade, nomadismo e errância, em maior ou menor escala: a morada de pessoas que transitam entre-mobilidades – em termos de auto-re/des-conhecimento, identificação, identidade e expressão – é ora aqui, ora ali. Pensando em alguns marcadores sociais como gênero e sexo (ou gênero/sexo, pensando em Butler), pessoas que se percebem – mais do que são percebidas – em movimento, podem ser descritas por situarem-se em um contexto caracterizado pelo entre: não se situam de modo fixado nem em um polo, nem em outro. Conceitos que relacionam tais situações instáveis, associados a esta situação de entre, da mesma maneira, devem ser identificados como conceitos nômades, sem residência fixa. É a partir da concepção de mobilidade – ou melhor, das mobilidades – que podem surgir termos

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Sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexuais, questioning, agêneros, genderless.

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que tentem explicar outros marcadores, como entre-religiosidades, entre-raças, entre-classes ou quaisquer outros. Dentre estes deslocamentos, há pessoas que se identificam em trânsitos de gênero e de sexo – consideradas neste texto como sujeitos entre-gêneros e entre-sexos. É importante ressaltar que tais termos se relacionam com outras formas de estar entre, relacionadas a outros marcadores sociais. Creio ser possível fazer a confluência de sexo e gênero num conceito hibridizado que visaria “quebrar” a binariedade dicotômica: o entre-gêneros/sexos. Entretanto, é possível que tal conceito não seja de tão fácil aplicação pela razão de que a maior parte das pessoas se percebe com o sexo distinto do gênero. Caso optemos por pensar sexo e gênero de modo separado, é possível pensarmos nos conceitos de entre-sexos e entre-gêneros.30

Entre-sexos Algumas pessoas experimentam situações entre-sexos. Neste caso, discordam com o sexo (mulher/homem) que lhes foi designado, e por vezes, recorrem a cirurgias de transgenitalização (ou readequação de sexo) e/ou outros procedimentos cirúrgicos que adéquam sua anatomia à das pessoas com o sexo com que se identificam. Há assim uma ultrapassagem do sexo de atribuição ao de autodefinição ou/e autodeclaração: tais pessoas encontram-se entre o sexo de atribuição e o de identificação.31 A expressão entre-sexos não deve ser confundida com a experiência intersexual, termo referente às pessoas que nascem com características relativas ao que é socialmente considerado “de mulher” e “de homem”32.

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As situações entre-gêneros e entre-sexos encontram-se muitas vezes relacionadas – especialmente se entendermos que sexo e gênero são instancias “coladas” uma a outra (lembrando que algumas pessoas percebem seu gênero como discordante daquele assignado no nascimento, mas entendem que seu sexo está de acordo com o que lhe foi atribuído ao nascer). Uma das formas de aproximação em relação às situações entre-gêneros e entre-sexos está nas modificações corporais. Tais pessoas podem recorrer a modificações corporais e estéticas como o uso de hormônios e aplicação de silicone, uso de vestimentas, maquiagens, acessórios e cortes de cabelo, dentre outras possibilidades. Aproximam-se, assim, os conceitos de entre-gêneros e entre-sexos. 31 É possível que existam pessoas que vivenciem-se como entre-sexos, mas não como entre-gêneros: concordam com o gênero que lhes foi designado, mas não com o sexo atribuído. Contudo, não conheci pessoas que se identifiquem desta forma. 32 Sobre pessoas intersexuais, ver: P. S. MACHADO, O Sexo dos Anjos: representações e práticas em torno do gerenciamento sociomédico e cotidiano da intersexualidade, 2008. É necessário lembrar que há pessoas intersexuais que se identificam trans (ou variações, como transexuais ou trans*) e outras, cis. Assim, nem todas as pessoas intersexuais devem ser consideradas entre-gêneros. Um filme que aponta para uma imbricação entre

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Entre-orientações sexuais Identidades de gênero/sexo e orientações sexuais não devem ser confundidas. Pessoas entresexos e pessoas entre-gêneros, assim como pessoas cisgêneras, podem ter distintas orientações sexuais. Podem se identificar como heterossexuais, lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais e assexuais – e ainda em situações de entre-orientações sexuais. São pessoas que se encontram entre a orientação sexual que lhes foi/é atribuída/assignada socialmente e as outras possibilidades. Podem não se identificar com nenhuma orientação sexual. Ou se encontrar entre as diversas orientações, percebendo maior sentido em uma ou outra em momentos distintos de sua vida. Muitos destes sujeitos percebem-se, simplesmente, sem orientação sexual. Estar entre orientações, ou definir-se estando em uma das orientações, ao invés de ser pertencente, também caracteriza a situação de entre-orientações sexuais. Tal estar entre também pode se referir às identidades de gênero, como comentado – e tais identidades de gênero peregrinas podem ser entendidas como entre-gêneros.

Entre-gêneros A expressão entre-gêneros – ou ainda, ciborgues33 entre-gêneros – refere-se a pessoas que vivenciam experiências de trânsito e/ou bricolagens identitárias de gênero. Dentre estas pessoas, destacam-se as que não se identificam com o gênero e/ou o sexo34 atribuídos no nascimento ou a partir de biotecnologias (como ecogramas e ultrasons) que “identificam

intersexualidade e identidades de gênero em trânsito é XXY, de Lucia Puenzo (2007). Como me comentou João W. Nery, “há intersexuais que não aparecem no fenótipo, como as mulheres XY, porque não houve absorção da testosterona e portanto, ficam femininas, mas são XY e vice versa.” 33 O uso do termo ciborgue pode ser aplicado a outros tipos de mobilidades, supracitadas. Assim, é possível pensarmos em ciborgues entre-sexos e ciborgues entre-orientações sexuais, por exemplo. Certamente, o termo pode ser utilizado em relação a outros marcadores sociais. Seria o caso de termos como ciborgues entrereligiões, ciborgues entre-religiosidades, ciborgues entre-etnias, etc. 34 Minhas concepções de corpo sexuado e gênero encontram ressonância nos estudos queer protagonizados por autoras/es como Judith Butler. Entretanto, há diversas concepções a respeito, inclusive “nativas”, que não devem ser desconsideradas. Para Jaqueline Gomes de Jesus, sexo é a “classificação biológica das pessoas como machos ou fêmeas, baseada em características orgânicas como cromossomos, níveis hormonais, órgãos reprodutivos e genitais”, e gênero, a “classificação pessoal e social das pessoas como homens ou mulheres, que orienta papéis e expressões de gênero, e independe do sexo” (JESUS, 2012, p. 13).

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sexo” – e sinalizam para o gênero.35 Tal conceito procura identificar algumas das diversas situações de deslocamentos identitários individuais e coletivos relacionados a gênero. Tais pessoas – como todas as outras –, tem atribuídas a elas, na gestação e/ou no nascimento, não só um sexo (detectado especialmente por conta da presença de vagina ou pênis) como um gênero (feminino/masculino). Por terem um gênero atribuído/designado na gestação e/ou nascimento que não as contemplam (feminino/masculino) e se identificarem com o gênero distinto, vivenciam experiências entre-gêneros.36 Estão entre o gênero de atribuição e aquele o qual se identificam e/ou se expressam.37 Há também as pessoas que se encontram entre o gênero de designação e os dois outros gêneros, com os quais se expressam e/ou identificam (como ocorre com pessoas que se identificam bigêneras). A expressão entre-gêneros pode acolher, igualmente, pessoas que se percebem entre o gênero que lhes foi assignado e nenhum outro gênero de identificação e/ou expressão – como é o caso dos agêneros. Dentre a diversidade de experiências entre gêneros, encontram-se as de pessoas que tiveram um gênero atribuído socialmente, porém não se identificam com este – e também não se identificam com o gênero “oposto”, – e que, caso tivessem nascido no outro gênero, provavelmente não se sentiriam contempladas por este também. São pessoas que experimentam vivências de ambos os gêneros, mas não se situam definitivamente em nenhum. Algumas destas pessoas reivindicam a quebra das normas de gênero, como os genderless, genderbenders, gender outlaws e genderfuckers. O termo entre-gêneros (assim como possíveis concepções dos termos trans, trans* ou transgênero) acolhe múltiplas autodeclarações relacionadas à não-simetria entre o gênero determinado socialmente e o de identificação. Dentre os sujeitos que podemos considerar entre-gêneros, estão travestis, transexuais, transexuais pre-op, transexuais pos-op, transgêneros/as, trans, FTMs (female to male), MTFs (male to female), trans homens, homens trans, trans mulheres, mulheres trans, crossdressers, transformistas, drag queens, drag kings, 35

Pessoas entre-gêneros muitas vezes não aceitam, não se identificam e/ou relativizam o sexo e/ou gênero com os quais foram designadas. 36 Opto, neste texto, pelo uso do termo entre-gêneros, ainda que entenda inter-gêneros como um sinônimo. 37 Tal definição não deve ser entendida de modo essencialista: é possível que existam pessoas que se declarem travestis, transexuais e/ou em outras situações de mobilidade identitária de gênero, e não acreditem ter identidade diversa da designada na gestação e/ou nascimento. Há ainda pessoas que não concordam com o sexo/gênero de designação e não se veem em peregrinação de gênero. As classificações relativas às múltiplas expressões de gênero devem partir, especialmente, do autoentendimento e autodeclaração individuais.

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queers, genderqueers, genderfluids, transpeople, transeuntes de gênero, bigêneros, multigêneros, pangêneros. Há pessoas que narram já terem transitado mas que em algum momento estacionaram em algum gênero. Em grande parte, são pessoas que contam ter passado por adequações, colocando corpos, emoções, identidades e expressões em trânsito, mas se percebendo 100% do gênero oposto ao de atribuição / assignação. Há pessoas que passam por experiências subversivas de gênero com o objetivo de enquadrar-se em padrões binaristas de sexo e/ou gênero. Há quem faça ou tenha feito trânsitos e não declare tal mobilidade. Tem quem prefira não se definir através de identidades de gênero. Há indivíduos intersexuais que se identificam e/ou se expressam estando em trânsitos de gênero. Parte dos sujeitos entre-gêneros, que se identificam com o gênero diverso do atribuído, concordam com o sexo de atribuição – o que demonstra um universo de possibilidades de trânsito quando pensamos em entre-generidades ou inter-generidades. Para além da mobilidade, do trânsito entre os gêneros, penso tais vivências como relacionadas a possíveis bricolagens, no sentido da mistura: as pessoas vão transitando, e no processo, se (des/re) apropriando de caracteres de um gênero e de outro. A situação entre-gêneros, portanto, dá vistas à possível mescla entre trânsito e bricolagem: entre-gêneros se refere a pessoas que vivenciam experiências de trânsito e/ou bricolagens identitárias de gênero. Ao mesmo tempo, vivenciar experiências móveis não se resume a uma fluidez absoluta, ou a todo tempo: muitas pessoas trans, por exemplo, reproduzem os binarismos: “sou mulher” / “sou homem” / “sou transmulher” / “sou transhomem”. A própria enunciação identitária “eu sou trans” demonstra a binariedade em relação ao seu “oposto”, o “ele/a é cisgênero/a”. Estar entre-gêneros não significa estar sempre no meio de um ou de outro gênero – muitas vezes é uma situação circunstancial. Como relatou Cesar38, “eu estou entre um lugar e o outro só por enquanto: daqui a pouco alcanço o gênero que eu pertenço.” Já Filipe definiu-se assim: “estou por hora na fronteira. Sou trans e sou queer. Não sou necessariamente um FTM. Sou um genderfluid, eu acho. Nesta fronteira eu me sinto tranquilo.” Tais narrativas dão vistas ao

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Os nomes utilizados aqui são fictícios, e as falas retiradas de entre-vistas ou de narrativas observadas em fóruns e grupos do Facebook.

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que Agier define sobre identidade: é algo que se constitui no processo, na busca, muito mais que na chegada (AGIER, 2001). Muitas das pessoas entre-gêneros peregrinam por paisagens marcadas por entre-mobilidades de gênero: em dados momentos se identificam como drags, em outros como transexuais, em outros como travestis, de acordo com diferentes agenciamentos e negociações de si consigo, com coletivos, instituições e sociedade. Tais autodeclarações são contingenciais, provisórias, derretidas. Uma pessoa entre-gêneros costuma ter seu trânsito identificado por conta de sua aparência.39 Entretanto, é possível pensarmos que a pessoa não precisa, necessariamente, aparentar ser mulher ou homem para se identificar e/ou se expressar como se sente. Não é necessário, para todas as pessoas entre-gêneros, passar por transformações corporais e/ou estéticas para que se identifiquem como de um gênero diverso daquele que lhe foi atribuído/assignado. Algumas destas pessoas identificam-se mulheres ou homens, independentemente de cirurgias ou outros procedimentos de adequação estética – por não sentirem necessidade de tais adaptações. Afinal, as pessoas têm agência própria para viverem de acordo como se identificam, com os corpos que entendem convenientes. O termo entre-gêneros – ou ciborgue entre-gêneros, utilizado para pensar nas possíveis bricolagens de gêneros realizadas por tais sujeitos – aponta para a ponte como metáfora da jornada

entre-lugares

vivida

por

sujeitos

em

busca

da

adequação

a

suas

identidades/expressões de gênero. Em muitos casos, a chegada se faz em margens dicotômicas de gênero (sou mulher/sou homem). Uma das razões pelas quais prefiro denominar pessoas que fazem trânsitos de gênero como entre-gêneros, e não como trans ou transexuais está no contexto em que estes últimos termos 39

Há uma tensão entre as autodeclarações e os modos como a sociedade identifica ou se refere às pessoas entregêneros – especialmente as que possuem uma aparência que não é reconhecida pela maioria das demais pessoas. Muitas destas pessoas são chamadas por expressões com as quais não se identificam. Como se referir a tais pessoas? Uma forma é através de sua aparência, visto que a maior parte destes sujeitos procura se identificar esteticamente com o gênero oposto ao que lhe foi socialmente atribuído. Em alguns casos, é perguntando como a pessoa prefere ser chamada. Em todos os casos, o que realmente importa é respeitar as autodeclarações. Existe ainda a confusão em relação ao uso do artigo feminino ou masculino. Pessoas entre-gêneros que se vestem ou comportam de modos considerados socialmente como femininos, costumam preferir ser identificadas a partir do artigo feminino – o mesmo vale para quem se representa esteticamente a partir de signos masculinos, que costumam preferir ser chamadas através de pronomes masculinos.

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foram criados, de patologização/psiquiatrização/medicalização de sujeitos com “transtornos de gênero” – e de certa forma, de sua marginalização.40 O termo entre-gêneros também pode ser pensado de modo mais ampliado. Neste caso, não estaria contraposto a cisgênero, nem sinalizaria para um sentido dicotômico. Se entendermos que uma pessoa nasce sem gênero, e que este (feminino ou masculino) é determinado e construído socialmente, esta pessoa faz, durante a vida, um trânsito em direção à afirmação do gênero que lhe foi designado. Entre-gêneros, pensado deste modo, serve como termo que designa toda e qualquer pessoa – peregrinos/as rumo ao gênero de designação, ao de escolha, ou a nenhum dos dois (mas vivendo numa sociedade generificada e se adaptando a esta em momentos distintos de sua vida).

Outras margens que envolvem pessoas entre-gêneros Outras margens, relativas a pessoas que podem ser entendidas como entre-gêneros, costumam estarem presentes em maior ou menor intensidade: margens do preconceito, da discriminação, da transfobia (muitas vezes relacionadas à lesbo/bi/pan/homofobia). Aqui, percebemos a diferença fundamental entre pessoas entre-gêneros e cisgêneras: as primeiras são vítimas de discriminações relativas às identidades de gênero.41 Evidentemente, há pessoas entre-gêneros que reproduzem tais margens, bem como as normas que definem,/prescrevem o que é ou não aceitável na sociedade em relação a identidades de gênero – ou outras margens, relativas a marcadores sociais diversos.

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Algumas das pessoas com quem conversei e que se identificaram em situações de mobilidades de gênero, comentaram que se identificam através de termos como trans, trans*, transexuais e travestis por conta da inexistência de vocábulos mais convenientes – cientes de que tais termos foram cunhados em contextos de patologização de suas identidades, bem como das múltiplas formas de discriminação associadas a estes vocábulos. Algumas destas pessoas, entretanto, explicitam a necessidade política de tais usos, como forma de obtenção de direitos civis igualitários. Minha intenção, neste texto, não é promover a substituição de termos como travesti, transexual e outros por entre-gêneros. Esta classificação (reitero: provisória e precária, como as demais) serve com fins heurísticos e didáticos em relação aos diversos agenciamentos possíveis de peregrinos/nômades/turistas de gêneros. 41 Certamente, todas as pessoas (entre-gêneros e cisgêneras) são suscetíveis a sofrerem discriminações diversas, relativas a distintos marcadores sociais. No caso de grande parte das pessoas entre-gêneros, destacam-se as situações de violências, intolerâncias e discriminações de gênero.

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As distinções que faço aqui entre pessoas entre-gêneros e cisgêneras são feitas somente com fins didáticos/heurísticos/políticos. Em termos “humanos”, não há a menor diferença entre ambas. Mas socialmente há: as primeiras costumam ser estigmatizadas por conta de sua identidade de gênero (confundidas muitas vezes com a orientação homossexual), sofrendo formas diversas de preconceito, intolerância, discriminação e violência. Claro, isto não deve ser visto de forma essencialista, pois nem todas as pessoas que se declaram em situações de deslocamento de gênero se sentem ou se sentiram discriminadas ou estigmatizadas. No caso das pessoas entre-gêneros que são confundidas com homossexuais (ou que são homossexuais), muitas vezes o estigma se torna duplo, e no caso das que são confundidas com profissionais do sexo (ou que são profissionais do sexo), o estigma triplica. Muitas destas pessoas optam pela prostituição, o que costuma aumentar sua situação de vulnerabilidade social. Deixo claro que não há uma vinculação “natural” ou óbvia entre trânsitos de gênero e prostituição, como muita gente supõe. Conheço dezenas de pessoas entre-gêneros que se sustentam por outros meios: diretoras/es de escolas, professoras/es, atrizes e atores, publicitárias/os, tradutoras/es, programadoras/es de computador, atendentes de telemarketing, advogadas/os, etc. Tampouco, não quero demonstrar que a prostituição seja uma atividade mais ou menos louvável que qualquer outra. O que saliento é que pessoas entre-gêneros que trabalham no comércio sexual costumam sofrer mais uma estigmatização / discriminação / violência por parte da sociedade. Ressalto, entretanto, que esta não é uma condição sine qua non. Nem todas as pessoas entre-gêneros que atuam como profissionais do sexo relatam serem ou se sentirem discriminadas, sinalizando para a desconstrução de mitos como o de que todas as pessoas em trânsitos de gênero são sempre aliciadas e/ou levadas a se prostituir. Como as pessoas cisgêneras, as pessoas entre-gêneros podem manifestar os mais diversos desejos e orientações sexuais. Em geral, as pessoas entre-gêneros que se identificam homossexuais, são aquelas que se interessam afetiva e/ou sexualmente por pessoas do mesmo gênero com o qual se identificam. Um exemplo: a pessoa foi designada “homem” ao nascer, identifica-se como mulher ou mulher trans e relaciona-se com outras mulheres (cisgêneras ou

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entre-gêneros): tal pessoa muitas vezes se declarará lésbica e/ou homossexual.42 Nesta perspectiva, portanto, a identidade de gênero é o que define a declaração pessoal sobre a orientação sexual, e não o gênero de atribuição social na gestação / nascimento. Diversas são as formas de exclusão de pessoas entre-gêneros na sociedade. Uma delas está no (pouco/nenhum) reconhecimento de seus nomes sociais, na dificuldade da retificação de prenomes e de realização de cirurgias que adequem seus corpos à suas identidades, e à patologização promovida e reverberada pelas esferas ´psi´, midiáticas, acadêmicas, etc. São comuns discursos biologizantes impressos em diversas das falas jurídicas, mas também em discursos médicos, “psi”, midiáticos, acadêmicos e outros. Muitas vezes se refere que pessoas entre-gêneros, assim como cisgêneras, possuem um “sexo biológico” ou “morfológico”. Entretanto, tanto gênero como sexo podem ser entendidos como construídos socialmente, conforme os estudos queer. E nos discursos biologizantes, pessoas entre-gêneros (especialmente as entendidas a partir de termos como travestis, trans e transexuais) são muitas vezes referidas como desviantes, ao contrário das demais, “naturais” ou “biológicas”. Ora, pessoas entre-gêneros não são igualmente dotadas de vida? Seriam artificiais, formadas por ectoplasma ou outra coisa? A regulação da vida de pessoas entre-gêneros através dos saberes jurídico, midiático, “psi”, educacional, religioso e outros, traz como fundo uma noção de que a experiência de trânsito identitário de gênero “não é normal”, gerando discursos biologizantes, psiquiatrizantes e sobretudo, patologizantes. Um dos maiores problemas de tais discursos é o entendimento que pessoas entre-gêneros são menos dotadas de agência ou capacidade de condução de suas vidas do que pessoas cis. As pessoas entre-gêneros estão envolvidas em uma rede de tensões que envolvem posições diversas entre patologização e despatologização, e em termos religiosos, o que convenciono pecadologização e despecadologização. Há agências religiosas que discriminam experiências de trânsitos entre-gêneros, julgando estas como manifestações de pecado, abominações, desvios, perversões, etc., e outras, que procuram agregar tais pessoas sem preocupar-se com 42

Um exemplo de homossexualidade masculina está no relacionamento entre um homem trans (que pode se identificar como transhomem ou FTM – female to male, por exemplo) e outro homem trans, ou entre um homem trans e um homem cisgênero. É o que narra, por exemplo, o filme Romeos, de Sabine Bernardi (2011).

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suas identidades e/ou expressões de gênero. Dentre as que costumam discriminar as vivências de pessoas entre-gêneros configuram-se – entre muitas – as agências evangélicas, através de sua bancada no Congresso Nacional, dos discursos fundamentalistas que descontextualizam e/ou se apropriam de determinados versos bíblicos e de ministérios que se identificam como “de

reversão

da

homossexualidade/travestilidade/transexualidade”,

“resgate

da

heterossexualidade” e “cura e libertação do público LGBT”. Dentre as agências religiosas que procuram acolher pessoas entre-gêneros, encontram-se, por exemplo, algumas das igrejas evangélicas inclusivas LGBT e alguns terreiros de religiões de matriz afro e afro-brasileira. Entretanto, esta informação não deve ser vista de modo essencialista: há situações em que pessoas entre-gêneros são discriminadas/intoleradas nestes ambientes, como em quaisquer outros: isto varia de igreja para igreja, de terreiro para terreiro. Escutei narrativas desestabilizadoras, onde igrejas inclusivas LGBT e terreiros de religião de matriz africana praticaram intolerância contra pessoas entre-gêneros, e narrativas de acolhimento em igrejas neopentecostais, geralmente entendidas como fundamentalistas e intolerantes43. Do mesmo modo, a “inclusão” de entre-gêneros a partir do uso do nome social e da retificação de registro civil não deve ser essencializada. Ainda que possam configurar-se como iniciativas louváveis, estas são paliativas por conta de seu alcance e efetivação limitadas – e em relação à isonomia de direitos de pessoas travestis e transexuais e de pessoas cisgêneras. Muito ainda deve ser feito para garantir o mesmo acesso à cidadania. Todas estas inclusões devem ser vistas “entre aspas” (MARANHÃO Fº, 2012d).

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Em minha pesquisa de doutorado, entrevistei pessoas trans* que frequenta(ra)m expressões religiosas diversas: budismo, quimbanda, batuque, católica ortodoxa grega, islamismo, união dos vegetais, bruxaria, católica romana, kardecismo, candomblé, umbanda, almas e angola, igrejas evangélicas inclusivas LGBT, dentre outras. As experiências de inclusão e/ou exclusão, refletem posições diferentes e por vezes inesperadas, desestabilizando supostos anteriores meus. Comentei sobre uma das agências evangélicas inclusivas LGBT de São Paulo, a ICM, e sobre o marketing religioso, que procura criar e atender diferentes demandas de nichos mercadológicos, inclusive o LGBT, em ocasiões anteriores. (MARANHÃO Fº, 2011b, 2012e).

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Classificações arbitrárias / Rasurando conceitos De todo modo, todas as classificações acima são produções e/ou produtos de declarações e/ou de autodeclarações identitárias. Pessoalmente, creio que estas não deem conta da multiplicidade e bricolagem identitária das experiências pessoais. Podem, assim, ser entendidas como recursos didáticos para se entender determinadas vivências individuais e coletivas, mas insuficientes para contemplar a riqueza de características identitárias das pessoas44. São classificações arbitrárias/autoritárias, não dando conta das autoidentificações das pessoas em suas múltiplas e fluidas interpretações, deslocamentos e agenciamentos de si mesmas. Em outras palavras, classificações relativas a identidades de gênero e orientações sexuais são conceitos que podem ser colocados sob rasura: na falta de um mais conveniente, pode utilizar-se destes, com finalidade heurística, didática e como esforço de autocompreensão e/ou compreensão do outro. É importante que tais categorias sejam percebidas como instáveis – visto que tratam de realidades sociais também instáveis, e que necessitam de olhar igualmente nômade. De modo semelhante, mas em relação às categorias analíticas feministas, dizia Sandra Harding que estas “devem ser instáveis – teorias coerentes e consistentes em um mundo instável e incoerente são obstáculos tanto ao conhecimento quanto às práticas sociais.” Para a mesma, “é possível aprender a aceitar a instabilidade das categorias analíticas, encontrar nelas a desejada reflexão teórica sobre determinados aspectos da realidade política em que vivemos e pensamos, usar as próprias instabilidades como recurso de pensamento e prática” (HARDING, 1993, p. 11).45

44

Todas as inferências sobre as diversas autodeclarações são resultantes de conversas e entre-vistas realizadas com pessoas entre-gêneros. As entre-vistas de história oral de vida foram feitas a partir de “estímulos” ao invés de perguntas “disciplinadoras” das respostas do/da colaborador/a. Com o andamento das narrativas, indagações surgiam, e se estabelecia, muitas vezes, mais que uma entrevista formal, uma troca de opiniões, em sentido relacional, não assistencialista, o mais simétrico e horizontalizado possível entre entrevistado/a e entrevistadorx. Assim, as conversas foram estabelecidas a partir da visão compartilhada de olhares, ou entre-vistas. 45 A instabilidade deve ser percebida também em relação às teorias as quais nos utilizamos: “o problema é que não sabemos e não deveríamos saber exatamente o que queremos dizer a respeito de uma serie de opções conceituais que nos são oferecidas: exceto que as próprias opções criam dilemas insolúveis para o feminismo” (HARDING, 1993, p. 11).

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Não me refiro somente aos termos que aqui proponho, como entre-gêneros. O mesmo pode ser dito em relação a termos guarda-chuva como queer, trans*, trans, travesti, transexual e transgênero. Por mais abrangente que estes procurem ser, certamente não dão suporte para se entender a multiplicidade de vivências/agenciamentos/deslocamentos identitários de pessoas entre-gêneros. Todos estes conceitos são, assim, instáveis, nômades, errantes. Pensar em pessoas cisgêneras “opostas” a pessoas em trânsitos de gênero, representa outra forma de dualismo. A utilização de conceitos como entre-gêneros (ou trans, trans*, transgênero)

servem

como

recursos

meramente

“didáticos”



e

altamente

precários/provisórios – podendo estimular uma indagação: o quanto é importante pensarmos a nós e ao/à outro/a a partir de marcadores sociais de identidade e de diferença?

Considerações inconclusivas O termo entre-gêneros procura abarcar as expressões identitárias trans*, trans, travesti, transexual, transgênero – e acolher outras pessoas em mobilidade de gênero que não se identificam dentro de expressões guarda-chuvas como estas. Vale ressaltar, novamente, que todos estes termos são conceitos sob rasura: podem ser utilizados com fins heurísticos, didáticos e/ou políticos, mas não dão suporte explicativo para a diversidade e errância das experiências das pessoas. Este trabalho, do mesmo modo, é introdutório, nômade e errante: não se pretende conclusivo pois percebe-se lacunoso e rasurável. Ainda assim, ambiciono que novos diálogos floresçam a partir do mesmo.

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