MARANHÃO Fº, Eduardo Meinberg de Albuquerque. “Falaram que Deus ia me matar, mas eu não acreditei”: intolerância religiosa e de gênero no relato de uma travesti profissional do sexo e cantora evangélica. História Agora, São Paulo, n. 12, p. 198-216, 2011.

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“Falaram que Deus ia me matar mas eu não acreditei”. Intolerância religiosa e de gênero no relato de uma travesti profissional do sexo e cantora evangélica Eduardo Meinberg de Albuquerque Maranhão Filho1

Resumo: Ser homossexual é pecado, abominação ou deformidade moral? Ou Deus ama a todos sem fazer acepção? Estas indagações apontam para a pluralidade de opiniões que atravessam os discursos religiosos acerca da homossexualidade e homoafetividade. Através de trabalho de história oral realizado com líderes e membros de igrejas inclusivas LGBT (que tem pessoas que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais como público majoritário), afloraram nas narrativas vivências traumáticas que envolviam a não-aceitação, a rejeição e a exclusão de pessoas identificadas como homossexuais, travestis e transexuais em igrejas católicas e evangélicas. Os entrevistados relataram a internalização da homofobia/lesbofobia/transfobia e momentos de angústia que transbordaram no desenvolvimento de síndromes psiquiátricas, automutilações e tentativas de suicídio. Para contemplar estas experiências, apresento parte de uma entrevista com Josiane Ferreira de Sousa, travesti evangélica, garota de programa, cantora e líder de uma igreja inclusiva LGBT de São Paulo, a ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana). Palavras-chave: igrejas inclusivas LGBT – intolerância religiosa – intolerância de gênero 1

Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em História do Tempo Presente pela UDESC. Contato: [email protected].

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“They said that God would kill me but I could not believe it”. Religious and gender’s intolerance in the story of a transvestite sex worker and gospel singer

Abstract: Being homosexual is a sin, an abomination or a moral deformity? Either God loves everyone without making sense? These questions point to the plurality of opinions that cross the religious discourses about homosexuality. Thoughoral histories conducted with leaders and members of LGBT inclusive churches (there are people who identify as lesbian, gay, bisexual and travestites/transsexuals as majotity public), surfaced in the narratives traumatic experiences involving the non-acceptance, rejection and exclusion of persons identified as homosexuals, transvestites ans transsexuals in catholic ans evangelical churches. Respondents reported the internalization of homophobia/lesbophobia/transphobia and momentos of anguish that overflowed in the development os psychiatric syndromes, self-mutilation ans suicide attempts. To address these experiences, I present part of a interview with Josiane Ferreira de Sousa, transvestite evangelical call girl, singer and leader of an LGBT inclusive church of São Paulo, the MCC (Metropolitan Community Church). Keywords: LGBT inclusive churches - religious’ intolerance - gender’s intolerance

Cheguei às 15 prás seis no metrô Santa Cecilia. O dia estava bonito, isto é, bonito até onde um enfumaçado domingo paulistano pode ser. Foi uma tarde quente e abafada. Caminhei pela rua Sebastião Pereira uns 100 metros até aportar em meu destino. Do lado de fora, coletores de lixo organizavam caixas de sobras de alimentos da feira dominical para levarem às suas casas, ladeados pelo caminhão de lixo estacionado, e na calçada oposta, um grupo de aproximadamente 12 moradores de rua encontravam-se sentados. 199

Alguns, não obstante o calor que fazia encontravam-se enrolados em cobertores. Outros conversavam acaloradamente sobre assuntos os quais não pude distinguir dada a distância, enquanto alguns pareciam consumir crack e cola de sapateiro. Todos entretidos com seus afazeres, não pareciam dar muita importância às pessoas do outro lado da rua, em sua maioria homens, que subiam os degraus em direção a mais um culto cristão evangélico. O corrimão que auxiliava o acesso ao hall do andar superior encontrava-se iluminado para o Natal, prenunciando um pinheiro artificial recém-montado e que se acompanhava por uma mesa de venda de livros sobre teologia inclusiva e cruzes coloridas e outra de compartilhamento de refrigerantes, doces e salgados. Fui recepcionado por Ney, o qual já conhecia de outras visitações, e após cumprimentar algumas das pessoas que situavam-se no salão principal, sentei-me para ler o roteiro de celebração dominical. O culto foi aberto por Josiane Sousa, que fez a acolhida de boas-vindas. Logo em seguida Josiane procedeu à oração inicial e à leitura de um salmo, sendo acompanhada pelos cerca de 40 membros presentes. Na sequência, Josiane apresentou o conjunto de louvor da igreja, do qual faz parte como uma das cantoras, capitaneada por seu irmão Levi de Souza, que ministrou frente ao púlpito. Acompanhados ora por playbacks, ora por um violão (em outras ocasiões as vozes foram acompanhadas pelo tecladista Márcio Arruda), Levi e Josiane conduziram os crentes da igreja através de cânticos típicos do pentecostalismo, como Deus do Impossível e Rompendo em Fé. Logo após os cânticos Josiane retorna à frente do púlpito para ler trecho do evangelho de Lucas. Ao contrário do que ocorrera no momento de louvor, quando a maioria das canções foram acompanhadas pela maior parte do público, a voz de Levi foi acompanhada em silêncio durante o cântico de contrição, onde preparou-se os crentes à escuta da mensagem 200

dominical, conduzida pelo diácono Dário Ferreira Sousa Neto, irmão de Josiane e Levi. A mensagem seguiu-se da ministração de dízimos e ofertas conduzida por Josiane. Dário, em seguida, celebrou o rito da Santa Ceia, procedendo oração de agradecimento e consagrando o pão e o vinho (no caso, o suco de uva), sendo acompanhado pelos fiéis no ‘Cordeiro de Deus, que tirai o pecado do mundo, tende piedade de nós; Cordeiro de Deus, que tirai o pecado do mundo, dai-nos a paz’ e na oração do Pai Nosso. Chamou em seguida a todos que quisessem participar para que dirigissemse à frente do púlpito para receberem do simbolismo do corpo e sangue de Cristo e serem abençoados por um dos líderes da igreja. Usualmente, a benção dos fiéis recebia a participação dos dois reverendos da ICM na época, Cristiano Valério (fundador e líder, até hoje) e Fausto Felice (ex-padre católico que depois deixou a ICM). Como ambos ausentaram-se neste dia, a função coube a Dário e Josiane, além do diácono Thiago Figueredo. Como percebe-se, afora o fato da hibridação ritual de elementos evangélicos e católicos, dando um toque ecumênico à liturgia, todo o culto transcorreu de maneira convencional e tradicional. O que muda é o fato de que os líderes da ICM, bem como a maioria dos seus membros, possuem orientação homoafetiva: os irmãos Dário e Levi são gays e sua caçula Josiane é uma travesti, e todos são vindos da Assembléia de Deus. Uma reunião evangélica, com elementos litúrgicos católicos, e conduzido por três irmãos identificados como LGBT é algo que, como considero, representa espécie de transgressão em relação ao que acostumou-se a pensar de um culto evangélico ou de uma missa católica, e uma ministra de louvor travesti, e que tem sua renda como garota de programa, mais ainda.

Trecho do meu diário de campo de 21 de novembro de 2010 201

Em 2010, iniciei uma série de entrevistas com fundadores, líderes e membros das comunidades evangélicas inclusivas LGBT (que agregam indivíduos que se identificam como lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (especialmente travestis e transexuais) paulistanas. Estas entrevistas fazem parte de meu projeto de doutoramento em História – em andamento – pela Universidade de São Paulo (USP), que tem como centro da análise as experiências religiosas e afetivas de transgêneros.2 Dentre estas vivências, destacam-se a frequência às firmas religiosas evangélicas inclusivas LGBT, que tem discursos religiosos envoltos em uma rede de tensões que envolvem por exemplo, comunidades evangélicas underground, ministérios de apoio a travestis e garotas de programa e ministérios de reorientação sexual (ou “reversão da homossexualidade/resgate da heterossexualidade”), além

das

agências

religiosas

católicas,

protestantes

históricas,

pentecostais

e

neopentecostais, que nas narrativas de homossexuais evangélicos, surgem como agenciadoras majoritárias da intolerância de gênero mesclada à religiosa, e supostamente responsáveis pelo florescimento e recrudescimento de traumas emocionais acompanhados por sequelas, como a internalização da homofobia, o suicídio, a automutilação e outras.

A entrevista que menciono no título desta comunicação foi realizada com uma das líderes do ministério de louvor e adoração, cantora e secretária da ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), Josiane Ferreira, a Josi, que comenta sobre algumas de suas experiências de vida envoltas em episódios traumáticos de discriminação e exclusão. Josiane, a Josi, é irmã

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Me utilizo de recursos da metodologia da história oral como entendida pelo Núcleo de História Oral (NEHO) da USP, coordenado pelo meu orientador de doutorado, José Carlos Sebe Bom Meihy.

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consanguínea de Dário Ferreira de Sousa e Levi de Sousa, respectivamente, diácono e líder de louvor da ICM de São Paulo, fundada em 2006 pelo reverendo Cristiano Valério.

Gostaria, antes de tudo, de fazer notar as motivações para a pesquisa sobre as inclusivas LGBT. Em maio de 2010 participei de simpósio de História na Universidade Federal de Viçosa, e navegando entre os canais da tevê do hotel onde estava hospedado, aportei no programa Superpop, da RedeTv e conduzido por Luciana Gimenez, onde acontecia um acalorado debate entre pastores evangélicos.

Ter a companhia de televangelistas ao zapear os canais de tevê é algo naturalizado há alguns anos, graças às aparições diárias de R.R.Soares, da Internacional da Graça de Deus, no horário nobre da Band, passando pela compra da Record por Edir Macedo, da Universal do Reino de Deus e chegando à aquisição de canais evangélicos como a Rede Gospel, da Renascer em Cristo e a locação de horários em emissoras diversas por um sem-número de pregadores, dentre os mais conhecidos, Valdemiro Santiago da Mundial do Poder de Deus e Silas Malafaia da Vitória em Cristo. Certamente o centro das discussões apresentadas pelo programa de Gimenez – se Deus e a Bíblia aprovariam ou não a homossexualidade – é assunto largamente examinado por estes pastores televisivos, mas no caso do Superpop, o que ocorreu foi um debate entre pastores homofóbicos – que advogavam a homoafetividade/homossexualidade como pecado, afronta, doença e deformidade moral, e por isto passível de rejeição do fiel da comunidade religiosa – e o casal de pastores Marcos Gladstone e Fabio Inácio, da Cristã Contemporânea, agência evangélica inclusiva carioca que abriga a comunidade LGBT sem lhes exigir “conversão à heterossexualidade”.3 3

Interessa notar que a sigla aqui utilizada, LGBT, é uma dentre outras que tem como objetivo agregar indivíduos que se representam por identidades de gênero e identidades (ou orientações) sexuais consideradas

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Como meu trabalho de mestrado em História do Tempo Presente tangenciou questões como a normatização e a flexibilização em relação aos usos e costumes e à sexualidade do fiel da firma religiosa neopentecostal Bola de Neve – aquela conhecida por receber surfistas, skatistas, modelos e famosos -, uma curiosidade minha situou-se em descobrir: as agências evangélicas inclusivas LGBT seriam, a exemplo da que analisei, rígidas em relação às práticas sexuais - ou seriam mais flexíveis?4

Entretanto, através das narrativas, outro aspecto foi se tornando relevante: o da intolerância sofrida nas agências religiosas, especialmente na católica e evangélicas, por conta de orientação sexual e/ou identidade de gênero. Muitas das pessoas entrevistadas relataram experiências traumáticas de discriminação e exclusão, e o fragmento de uma das entrevistas realizadas com Josiane Ferreira de Sousa demonstra isto.

minoritárias e muitas vezes ‘objetos’ de discriminação. Muitos destes indivíduos não se consideram homossexuais, como a maioria das travestis e transexuais, por exemplo. Outras siglas costumam ser utilizadas, como GLS (S de simpatizantes), GLBT, LGBTT, LGBTTT (TTT de transgêneros, transexuais e travestis), LGBTI (I de interesexuais) e mais ultimamente, LGBTTIQ (agregando também os ‘questioning”, os que questionam os papéis de gênero, por vezes identificados como ‘genderless’, pessoas que se identificam como ‘sem gênero”). 4 O título de minha dissertação é ‘A grande onda vai te pegar: mercado, mídia e espetáculo da fé na Bola de Neve Church’, tendo sido apresentada em fevereiro de 2010 no PPGH da UDESC, cuja área de concentração é a História do Tempo Presente. A pesquisa recebeu, respectivamente, a orientação e co-orientação de Márcia Ramos de Oliveira e de Artur César Isaia. Em minha dissertação uso dos termos congelado e derretido para caracterizar os discursos da Bola de Neve Church sobre seu fiel: um se coaduna à ideia da rigidez doutrinária, enquanto o outro contempla certa flexibilização em relação a alguns dos usos e costumes do frequentador bolardiano, como o uso de gírias, adornos, tatuagens, piercings, vestimentas, etc.

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As agências religiosas evangélicas inclusivas LGBT e a ICM5

Ao que se indica, a primeira agência evangélica inclusiva a pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras (LGBT) foi a MCC (Metropolitan Community Churches), fundada pelo reverendo Troy Perry em 1968, nos Estados Unidos, associada à Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana, ou FU-ICM. A ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana) é a versão brasileira da MCC. Como comentou Cristiano Valério, reverendo e fundador da ICM de São Paulo em 2006, Perry, ex-ministro batista, filho de mãe batista e pai pentecostal, foi casado com a filha de seu pastor como forma de libertar-se de seus desejos já latentes por pessoas do mesmo sexo. Em 1962, ainda casado, resolveu aceitar e assumir sua orientação sexual, sendo excomungado da igreja pentecostal que frequentava à época. Depois de cinco anos de casamento, divorciou-se de sua esposa e em seguida, sentindo-se traído e rejeitado por Deus, tentou suicidar-se. Um ano depois, começou a compreender ser possível a associação entre o cristianismo e a homossexualidade, fundando a ICM em Los Angeles, com 12 congregados. Segundo o sítio da igreja, hoje a denominação possui mais de 60 mil membros em 22 países ao redor do mundo, com seis unidades no Brasil. Autor de livros como ‘O Senhor é meu pastor e Ele sabe que eu sou gay’e ‘Não tenho mais medo’, Perry discutiu os direitos da população LGBT com presidentes como Jimmy Carter, em 1977, e Luis Inácio Lula da Silva, em 2003 – neste caso discutindo o Programa Nacional por um Brasil Sem Homofobia. Perry é

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A expressão agências ou firmas religiosas é utilizada para sinalizar o posicionamento das instituições religiosas dentro de um mercado religioso, como professado especialmente por pesquisadores do chamado paradigma de mercado religioso (ou das economias religiosas), ou de alguns de seus comentadores, como Frigerio (2008), Guerra (2003) e Mariano (2003).

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casado com Philip Ray DeBliek, do qual é companheiro há mais de 20 anos. Desde 2005 as ICMs são moderadas por uma mulher, a reverenda Nancy Wilson, que visitou o Brasil em 2006 (e tem programada nova visita para abril de 2012).6 Desde a década de 2000 surgiram tentativas mais ou menos bem sucedidas de implantação de igrejas inclusivas em diversas cidades brasileiras, especialmente em São Paulo. Nesta cidade, as primeiras iniciativas couberam à Igreja Cristã Gay, ao CAEHUSP (Centro de Estudos Homoeróticos da USP), e à Igreja Acalanto, todos extintos. As agências inclusivas LGBT tiveram início em São Paulo a partir do fim da Acalanto (2002-2004), que ao ser extinta deu origem a três comunidades fundadas em 2004 em São Paulo, capital, cujos fundadores eram frequentadores desta agência religiosa: a Igreja Evangélica Para Todos (ICEPT), pela pastora Indira Valença, a Comunidade Cristã Nova Esperança (CCNE), pelo pastor Justino Luis e a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), pelo reverendo Cristiano Valério.

Desde 2002 ocorreram tentativas de implantação da ICM paulistana, uma delas através de Kim Ferreira, ex-pastor da Igreja Apostólica Renascer em Cristo. Em 2004 a ICM foi reconhecida pela FU-ICM como Grupo de Implantação e oficializada como igreja em 2006, através do comando de Valério.

Posteriormente, surgiram outros empreendimentos evangélicos inclusivos LGBT, como a Igreja Apostólica Nova Geração em Cristo, dissidência da Para Todos, fundada em 2010 em São Paulo pela pastora Andréa Gomes, a Comunidade Cidade de Refúgio, inaugurada em 2011 em São Paulo pela missionária Lanna Holder (que anteriormente fôra líder de 6

História da ICM. Disponível em: www.icmsp.org/novoportal/index.php/historia-da-icm.html. Acesso em: 12 de novembro de 2010.

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ministério de reversão da homossexualidade associado à Assembleia de Deus) e a pastora Rosania Rocha, com sede na Av. São João, e com filiais em outras cidades (o que também ocorre com a ICM, ICEPT e CCNE), sendo a firma inclusiva LGBT que mais tem apontado crescimento, e o Movimento Fonte de Justiça, fundado em 2011, em São Paulo, por Kim Ferreira, ex-líder da Renascer e da CCNE, situada até fins de 2011 em espaço concedido pelo Casarão Brasil, ONG de apoio aos homossexuais na Rua Frei Caneca, e atualmente, segundo o mesmo, em processo de reformulação. Com exceção da Fonte de Justiça, situada nesta rua, paralela a Rua Augusta e travessa da Avenida Paulista, as demais firmas inclusivas LGBT situam-se no bairro de Santa Cecília, tradicional bairro do centro de São Paulo. Tanto este bairro como a Rua Frei Caneca integram o “triângulo rosa”, área da cidade que costuma agregar o público LGBT, especialmente homossexuais masculinos e femininos (lembrando que em geral travestis e transexuais se identificam como heterossexuais).

Apresento a seguir parte da entrevista com Josiane Ferreira de Souza, batizada Josué, e caçula de Levi e Dário. Josiane é travesti e garota de programa, e também cantora, líder do ministério de louvor e secretária da igreja. A entrevista foi realizada no apartamento de seu irmão Dário Ferreira Sousa Neto, homossexual, diácono da ICM, no CRUSP (Conjunto Residencial da USP) numa quinta-feira dia 04 de novembro, por volta das 16h. Este dia foi marcado por um ato público promovido pelo grupo Prisma, liderado por Dário, contando com apoio da ICM, que teve como representante os reverendos Cristiano Valério e Fausto Felice, e diversos membros, dentre eles Levi de Sousa (o outro irmão de Dário e Josiane, homossexual e líder do ministério de louvor) e Josiane.

A entrevista com Josi interpolou momentos de entusiasmo e de melancolia. Se há um mote para a entrevista completa, ele seria extraído da narrativa de Josiane: ‘Deus me ama no dark 207

room e quando faço programa’, quando ela comenta especialmente sobre as questões que envolvem os diferentes graus de normatização do discurso religioso acerca da sexualidade e afetividade de agências evangélicas distintas - o que sinalizarei em ocasião futura. Em relação ao fragmento da entrevista escolhido, que aborda a exclusão e intolerância sofrida, e a tentativa de superação do trauma a partir da participação em uma comunidade inclusiva LGBT, escolhi a expressão usada por Josiane, “eles falaram que Deus ia me matar mas eu não acreditei”. Eis abaixo o resultado parcial desta entrevista com Josiane:

“Falaram que Deus ia me matar mas eu não acreditei”. Fragmento de entrevista com Josiane Ferreira de Sousa Meu nome é Josiane, tenho 23 anos, sou uma travesti, evangélica.

Meu processo de aceitação foi bem complicado. Começou com 13 anos de idade, quando fui com minha mãe na Assembléia de Deus em São Mateus e lá tive meu primeiro sentimento, com o filho do pastor da igreja. Fiquei 4 anos, até meus 17 anos e sofri bastante. No começo era normal, não sabia o que estava sentindo. Num ensino bíblico comentaram sobre o que era a homossexualidade e eu comecei a entender o que acontecia comigo. Diziam que Deus matava os homossexuais. Eu comecei a achar que eu estava errada, me sentia culpada por amar o filho do pastor... aí comecei a pedir a Deus que ele me curasse, que ele me mudasse, e nada acontecia. Então tentei me matar quatro vezes.

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A primeira vez eu tava em casa, lavando a louça, do nada peguei a faca e comecei a me cortar, aí meu sobrinho entrou de repente em casa e gritou ‘o que você está fazendo?’ E nesta hora perdi a coragem. A outra vez eu tava na escola na hora do intervalo, fui prá sala de aula, e uns meninos que estavam brincando quebraram o vidro da janela, e eu vi um caco de vidro no chão. Eu peguei e acabei tentando me cortar de novo. Nesta hora entrou um pessoal na sala e eu desisti. A terceira vez que eu tentei me matar, eu tava atravessando a rua, muito angustiada, e eu vi que tava virando um caminhão, e quando eu ia parar na frente dele prá ele me atropelar eu senti uma mão me puxando. Na última vez eu tentei me jogar do viaduto, lá perto da casa de meu irmão em Guaianazes, e na hora que fui me jogar apareceu uma pessoa que não me deixou pular. Ela sentou comigo e começou a conversar comigo.

Nesta época o pessoal começou a descobrir tudo, meus sentimentos... naquela época eu me identificava não como travesti mas como homossexual... isto com meus 17 anos... então o pessoal da igreja me afastou das coisas que eu fazia, como cantar no louvor por exemplo... e eu então saí da igreja.

Então voltei prá uma outra igreja que eu frequentava... lá perto da casa da minha mãe em Guianazes... fiquei lá durante quase um ano, e neste período comecei a conseguir me ‘controlar’, pensava que podia ter uma ‘cura’... Só que chegou uma época e eu não consegui mais. Um dia fui trabalhar como voluntária na escola, e tinha um rapaz na sala de aula... a gente trocou olhares, ele começou a me olhar bastante, eu comecei a ficar eufórica... eu 209

tinha 17 anos... foi no finalzinho do ano... eu desci prá usar o toalete e ele acabou indo atrás de mim... a gente acabou se beijando, eu o masturbei, ele me masturbou... foi só isto. Mas esta não foi minha primeira vez. Eu perdi a minha virgindade com 15 anos. Foi com um rapaz de 23 anos, ele era segurança do hospital e a gente se conheceu e aí rolou. Depois disto tive outros relacionamentos também. E depois que eu saí da Assembleia de Deus de São Mateus, e fui prá igreja perto da casa da minha mãe, eu parei. Tentei até namorar com uma menina. A gente ficou juntos durante uma semana. Ai, foi horrível. Tentava se beijar, mas era muito diferente.

Mas depois que fiquei com este rapaz da escola, eu fiquei toda cheia de culpa e contei prá minha mãe. Ela me orientou a falar com o pastor, falei com ele e ele me afastou das coisas que eu fazia. Eu cuidava da escola dominical, dava aula de ensino bíblico... eu ajudava os meninos a cuidar das crianças... eu cantava na igreja... eu cheguei a dirigir cultos... e até a pregar lá. E o pastor me afastou de tudo isto. E você deve ter percebido que eu sou o tipo de pessoa que é muito ativa dentro da igreja. Eu gosto de participar. Se você observar as fotos que tem da ICM, eu sempre estou nos eventos. Quando as pessoas me afastam, me impedem de ajudar na igreja, isto me prende muito, sabe? Eu perco totalmente a vontade de ir. Acabei saíndo desta igreja e não fui prá mais nenhuma igreja. Durante um ano deixei de frequentar igrejas.

Me assumi, comecei a sair com homens, e eu não percebia que eu estava passando uma transformação. Deixei o cabelo crescer, me aparentar como menina, ficar bem mais feminina, mas aí até aí, eu não me assumia como 210

travesti. Depois disto voltei de novo prá igreja, que era a Assembleia de Deus de Madureira, mas fiquei lá durante pouco tempo. Depois mudei prá outra igreja, outra Assembleia porque sempre frequentei Assembleias, e nesta eu sofri bastante discriminação. Quando cheguei lá eu contei ao pastor sobre minha vida e sobre o ‘pecado’que eu tinha, e ele disse que ia me ajudar. O processo de mudança de uma igreja a outra foi assim: na Assembleia de Deus de Madureira eu cantava, e este pastor me viu cantando e acabou me ‘puxando’ prá cantar na igreja dele algumas vezes, e eu comecei a congregar lá logo depois. Era a Assembleia de Deus da Vila Ré. Eu fiz parte de quatro Assembleias de Deus: a Assembleia de Deus Madureira, depois fui prá Assembleia de Deus Vila Formosa, depois fui de uma Assembleia de Deus Madureira de São Mateus, e de lá o pastor me puxou prá da Vila Ré.

No começo era muito bom, eu ia cantar em muitos lugares, ele me levou prá viajar... ele ia pregar e eu ia prá cantar. Eu ia cantar e ele ia prá pregar. Aonde eu estava ele estava e vice-versa. Só que aí aconteceu de eu não conseguir mais me controlar. Cheguei nele e disse que tinha um sentimento por ele, uma atração por ele, e ele se afastou de mim. Aí começaram a me discriminar bastante na igreja, a me humilhar constantemente, e aquilo foi me machucando, machucando, machucando...

Eles diziam que eu tinha entregue minha vida ao diabo, que eu era filho dele, que eu tinha rejeitado a Deus... que eu era um safado, que eu não queria nem cura nem libertação... e não era esta a verdade, eu queria estar bem com Deus e com a igreja. Neste período eu comecei a me afastar. 211

E comecei a desconfiar. Porque na Bíblia fala que Deus não rejeita a oração do coração contrito. E que o Espírito Santo ao encontrar um coração prá habitar ele faz morada e trabalha neste coração, ele muda a pessoa quando ela está errada. Eu comecei a pensar que se Deus muda o erro do que tem o coração contrito e eu não mudava... será que eu tinha mesmo alguma coisa prá mudar?

Era tanta coisa que eles faziam comigo nesta igreja que eu saí de lá sabe? Era muita humilhação mesmo. Era visto como alguém demoníaco, que tinha pacto com o diabo, ou o próprio diabo. Ai, todo mundo dizia que Deus ia me matar. Mas eu fazia de tudo para não acreditar. Quando eu estava lá eu orava assim prá Deus: ‘olha Deus, o Senhor sabe qual o maior desejo do meu coração... o Senhor sabe o que eu mais quero... se tiver que fazer alguma mudança na minha vida, se tiver de tirar algo, faça o que quiser pois quero estar bem contigo. Abro mão de qualquer coisa prá estar junto de ti.’ Aí quando saí desta igreja passei a orar também assim: ‘me coloque num lugar onde tenham pessoas preparadas prá me ajudar nesta transformação, que realmente possam me ajudar a fazer esta transformação. E que não venham me rejeitar nem me excluír, que me amem e me respeitem do modo como eu sou. Agora, se não tiver nada prá ser mudado ou transformado, se isto for tudo coisa da minha cabeça, o Senhor me coloca numa igreja onde existam pessoas que vão me amar, me aceitar do jeito que eu sou...’

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Sabe que nesta igreja da Assembleia de Deus da Vila Ré eu cheguei a até fazer voto, pagar voto... existem umas campanhas né? Por exemplo, a Campanha da Prosperidade... você dá uma quantia de R$ 50 por um período, e Deus abriria os seus caminhos... a Campanha do Coração Aberto... você dá uma quantia de R$ 50 e escreve uma carta pedindo prá Deus trabalhar em determinada área de sua vida... é meio que a campanha da carteira aberta mesmo... e eu aderia a todas estas campanhas... eu queria mudar de qualquer jeito.... é que eu achava que se eu continuasse atraída por homens eu ia pro inferno. Quando eu saí de lá eu tava com 20 anos.... aliás, estava com 19... aí neste período eu estava muito confusa, e me afastei da igreja... isto foi no começo de 2007... mas sabe que um dia entrou uma senhora nesta Assembleia da Vila Ré e viu o quanto eu estava sendo humilhada. Ela foi na frente de todo mundo e disse que Deus ia me tirar de lá, ia me carregar e me levar prá um lugar onde as pessoas iam me respeitar, me aceitar e me proteger. E eu fiquei com aquela palavra no meu coração.

Eu sou profissional do sexo e estou numa igreja fazendo parte do grupo de louvor e ministro o amor de Deus... é uma coisa bem diferente sim! Porque isto não seria aceito em outros lugares. Numa igreja você tem de seguir o padrão, ser assim e assado. Para a igreja evangélica mais tradicional, para Deus estar com você, você tem de seguir uma lista de regras. Para você não ser condenada, você tem de seguir estas normas que são determinadas por eles, e não por Deus. Não pode cortar cabelo de um jeito, o homem e a mulher devem usar roupas adequadas, especialmente nas igrejas mais pentecostais, como a Assembleia mesmo. A mulher tem de usar roupas que 213

cubram seu corpo... não se pode ter relações antes do casamento... só depois mesmo... são regras ditadas por homens, não por Deus. Eu comparo a época que vivemos hoje com a época em que Cristo estava na Terra. Ele veio prá fazer uma revolução em relação ao verdadeiro amor de Deus. Os fariseus usavam a Lei dos 10 Mandamentos prá ‘crescer’ em cima das pessoas, julgando as pessoas e discriminando elas do amor de Deus. E Jesus veio mudar tudo isto. Ele deu um novo entendimento do amor de Deus através do Evangelho. Eu comparo o que eu vivo hoje com a época de Jesus. Porque os evangélicos são quase iguais aqueles fariseus. ‘não pode isto não pode aquilo’. É uma ditadura de regras. E o mandamento de Jesus é prá amarmos uns aos outros como a nós mesmos. Se dependesse das igrejas por onde eu tinha passado, eu não estaria mais aqui. Eles falaram que Deus ia me matar mas eu não acreditei.

Muitos falaram que Deus não está comigo, em muitos momentos. Eles não conseguem tirar isto de mim. Esta certeza que eu tenho é porque eu vivi minhas experiências com Ele. Este amor de Deus que eu tenho na minha vida é algo que veio até a mim. É um sentimento que cresceu em mim em todos os momentos. Foi Deus quem provou que estava ao meu lado me protegendo sempre. Esta fé ninguém vai tirar de mim, ninguém.

O fragmento desta entrevista com Josiane (assim como a maioria das realizadas) aponta para o fato de que a maior parte dos integrantes das agências evangélicas inclusivas LGBT é formada por protestantes históricos, pentecostais e católicos “de berço” que sofreram discriminação, rejeição e exclusão por parte de suas antigas comunidades, muitas vezes internalizando a homofobia e chegando, em alguns casos e em momentos de desespero, ao 214

desenvolvimento de síndromes psiquiátricas, a automutilações e a tentativas de suicídio. Nota-se assim o aspecto do trauma psicológico e de suas seqüelas, e também da possibilidade de superação através da fé religiosa - em alguns casos através da inserção em uma comunidade evangélica inclusiva LGBT. A entrevista permitiu observar outros aspectos, e dentre eles, o da flexibilização do discurso religioso dos líderes da ICM acerca da sexualidade deos fiéis, e deles próprios. De toda a maneira, esta discussão fica lançada como semente, esperando pelo florescimento em artigo posterior.

Referências bibliográficas

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