Márcio Seligmann-Silva: a emergência do pensamento

June 2, 2017 | Autor: G. Silveira Ribeiro | Categoria: Critical Theory, Walter Benjamin
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Márcio Seligmann-Silva a emergência do pensamento Gustavo Silveira Ribeiro UFMG Professor, crítico e tradutor, Márcio Seligmann-Silva é um dos pesquisadores mais destacados da cena intelectual brasileira do presente. Sua inquieta obra desdobra-se em múltiplas direções, abrangendo diferentes áreas do conhecimento e não se limitando a nenhuma delas. Atuando na grande área das Letras (e da literatura em particular), ele no entanto frequenta a crítica da cultura, a história, o discurso filosófico e a psicanálise com desenvoltura, fazendo dialogar todos esses campos do saber em seus textos e cursos universitários. Ligado, por formação e interesse, às letras e ao pensamento alemão, Seligmann-Silva tem na figura do inclassificável Walter Benjamin talvez aquele que seja o seu mais constante e profícuo interlocutor, fazendo reverberar em seus escritos muitos dos conceitos e formulações do autor de Rua de mão única. Um dos maiores divulgadores da obra benjaminiana no Brasil, Márcio Seligmann no entanto não se propôs apenas a comentar e traduzir Walter Benjamin

coisa que o fez, e bem, em diversos momentos;

ele dispôs-se principalmente a pensar a partir dele, apropriando-se do seu imenso legado e tomando-o como provocação e desafio para refletir detidamente sobre o tempo presente, as contradições e urgências que o atravessam e constituem, no Brasil e no mundo. Muitos dos seus mais conhecidos trabalhos parecem ecoar, de algum modo, a lição de Walter Benjamin, apesar de alimentarem-se também de pensadores tão diversos entre si como G. E. Lessing, Sigmund Freud, Theodor Adorno, Jacques Derrida e Shoshana Felman, entre outros. Uma breve lista dos seus temas mais recorrentes vai revelar isso, o dado benjaminiano e a busca de sua reelaboração original e desestabilizadora: o papel central do primeiro Romantismo no pensamento moderno, sua

atualidade mesma; o lugar da tradução tradução

e a proposição de uma prática ativa e criativa da

entre as tarefas fundamentais da atividade reflexiva, espécie de condição e

ponto de passagem do pensamento; a reconfiguração epistemológica deflagrada pelas catástrofes modernas, de modo especial as Grandes Guerras do século XX, que abalaram não só a tradição do humanismo europeu quanto também certas noções gerais que se consideravam estáveis no campo da linguagem, da ética e da epistemologia; a busca e a decifração das novas formas artísticas, por fim, que fossem capazes de responder aos novos contextos e às novas demandas estéticas e políticas que surgiam e se impunham com o novo desenho de forças do mundo do pós-guerra e dos traumas políticos do século (o testemunho, os antimonumentos, o trabalho em torno das ruínas e dos arquivos). Como se vê, a cada passo e passagem do trabalho de Márcio Seligmann-Silva, a construção de um caminho crítico particular e autônomo se deu a partir do jogo consciente, e bastante produtivo, com o vasto universo benjaminiano, universo que vem revelando, ainda uma vez, a sua inesgotabilidade e atualização. A emergência do pensar que caracteriza o trabalho do crítico tem, nesse sentido, rebatimento nas circunstâncias históricas que o cercam e na matriz teórica principal que a anima. O caráter urgente e necessário da reflexão crítica

que se dá sempre numa

combinação entre rememoração do passado e a proposição de novos conceitos e novas práticas políticas e estéticas para o presente

vai assim marcar decisivamente o percurso

intelectual que se procura delinear, na medida em que tudo nele parece ser marcado pela dupla injunção que indica, inexoravelmente, que só é possível conhecer e transformar o presente se se é capaz de trazer viva a memória da catástrofe passada, catástrofe que, conforme a leitura dos tempos atuais parece confirmar a cada instante, não cessou jamais, reproduzindo-se sob diferentes formas na vida cotidiana dos tempos que correm. E é nesse sentido que se pode compreender a passagem operada pelo autor ao longo da trajetória que foi construindo como pesquisador e ensaísta: advindo da leitura (levada a

cabo no volume Ler o livro do mundo (Iluminuras, 1999) do Romantismo alemão e do estabelecimento, a partir dele e também de Walter Benjamin, de um conceito de crítica que fosse fundamentalmente hermenêutico e negativo, isto é, que estivesse fundado na espaço no qual a prática reflexiva ocuparia o terreno antes dedicado à celebração de autores e à repetição de obras e gestos tradicionais, Márcio Seligmann-Silva pôde chegar, ao longo do tempo, à prática de um ensaísmo marcado por temas como a memória e o trauma, centrais para a interpretação que faz da cultura contemporânea. Para ele, a tarefa da crítica, como se viu, só pode se realizar plenamente como negatividade, o que indica a percepção

por parte do crítico da arte, da cultura e das formas sociais

das fraturas,

das contradições e silêncios que operam nesse mesmo tecido cultural e social. Daí o autor ter chegado à questão da violência e sua relação com a linguagem e a história, os temas que dominarão, sob múltiplos aspectos, sua produção posterior. Um dos operadores conceituais mais importantes para a obra de Seligmann-Silva é o testemunho, essa modalidade político-textual e possibilidade narrativa que ganha força com a Shoah e os relatos dos sobreviventes da barbárie nazista. O pesquisador não só tratou de estudar e divulgar o tema (até então pouco explorado) no contexto brasileiro, quanto pôs-se a reelabora-lo, pensando-o à luz das condições históricas do país

os traumas, por exemplo, decorrentes da última ditadura

e da sua produção

literária moderna. Se na questão do testemunho vão se articular, como é sabido, os limites da linguagem e o dever do relato, num emaranhado de referências que ao mesmo tempo explicita os abalos que a própria noção de representação irá sofrer, além de apresentar novas perspectivas éticas e estéticas para a questão, Márcio Seligmann-Silva vai acrescentar a esse universo intrincado de ideias uma reflexão extensa sobre a Teoria do Sublime, afirmando que a falência da linguagem experimentada por aqueles que procuraram narrar o horror dos campos da morte e de outras experiências-limite da Era

dos Extremos (para falar aqui com Eric Hobsbawn) pode ser aproximada, produtivamente, do pensamento sobre o indizível e a recuperação

laica e estética

do

sagrado no mundo e na arte pós-Iluminista. Em livros como História Memória Literatura (Ed. UNICAMP, 2003) e O local da diferença (34, 2005) o ensaísta vai propor tal dimensão crítica, além de explorar também um outro viés do conceito de testemunho: para ele, além da prática em si dessa modalidade textual, ligada às circunstâncias particulares das catástrofes políticas do século XX (a Shoah, os Gulag na União Soviética, a destruição das comunidades tradicionais indígenas das Américas, as ditaduras do cone Sul), seria possível considerar também que obras literárias francamente ficcionais podem portar igualmente uma dimensão do testemunho, desde que estejam relacionadas à violência e tante pessoal (e polêmica, para alguns) de aprofundamento e readaptação conceitual, num movimento que alarga o horizonte dos estudos do testemunho ao incorporar a eles parte significativa da literatura brasileira moderna, localizando em obras como o romance Grande sertão: veredas, por exemplo, elementos que permitem pensar esse imenso relato de barbárie e confissão sobre o Brasil arcaico e profundo como um texto que apresenta características do texto testemunhal. As formas contemporâneas da arte e dos ritos sociais da memória têm interessado também ao crítico brasileiro, que vêm procurando identificar e dimensionar o papel que novos artistas e escritores cumprem no processo de renovação das artes da memória num mundo pós-catástrofe. Estudando, nesse sentido, diferentes mídias e discursos, Márcio Seligmann-Silva procura acompanhar em seus textos a produção contemporânea em torno do tema, bem como os movimentos coletivos e institucionais que, a partir dos temas da memória, da justiça e da reparação histórica, vêm ampliando a visibilidade política dos crimes e violências do passado. Os restos da última ditadura brasileira, bem como a atuação da Comissão Nacional da Verdade foram

e continuam

sendo

objeto de seus textos e conferências. Vale destacar também, por fim, o cuidado

com que o ensaísta vem lidando com a obra de artistas plásticos brasileiros que têm nas tragédias pessoais e coletivas, na Shoah e numa espécie de política da memória o seu foco de criação e zona de interesse. O caso mais relevante parece ser o da artista carioca Leïla Danziger, cujo trabalho com nomes próprios, arquivos pessoais (do seu próprio pai, de imigrantes judeus que aportaram no Brasil no século XX) e fragmentos materiais do passado vem construindo uma forte e delicada metáfora visual da recordação, que funde em suas telas, objetos e instalações a questão do testemunho, as múltiplas formas da memória, a impossibilidade da representação transfiguradora da catástrofe (uma vez que a artista recusa a mimese e prefere apresentar, em suas obras, os restos mesmos, a presença física, do passado e da morte) e o desvio metonímico, que repele as formas de totalidade e prefere a incompletude e a estética do fragmento. Como se vê, na leitura dedicada que Márcio Seligmann-Silva faz das obras dessa artista, estão projetados e em mistura todos os temas que lhe são caros, temas que revelam, por sua vez, a emergência constante e sem fim do passado, bem como a urgência do pensamento crítico que localiza no presente as fissuras, as lacunas e os não-ditos que se impõem como responsabilidade (como endereçamento e dever de resposta) ao intelectual interessado em conhecer e transformar o seu próprio tempo.

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