Marvila: os alicerces de uma comunidade

June 7, 2017 | Autor: J. Santana da Silva | Categoria: Urban History, Lisbon (Portugal)
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Assim o povo, que tem sempre melhor gôsto e mais puro do que essa escuma

descórada que anda ao decima das populações, e que se chama a si mesma por excellencia a Sociedade, os seus passeios favoritos são a Madre-de-Deus e o Beato e Xabregas e Marvilla e as hortas de Chellas. A um lado a immensa majestade do Tejo em sua maior extensão e podêr, que alli mais parece um pequeno mar mediterraneo; do outro a frescura das hortas e a sombra das árvores, palacios, mosteiros, sitios consagrados todos a recordações grandes ou queridas. Que outra sahida tem Lisboa que se compare em belleza com ésta? Tirado Bellem, nenhuma. E ainda assim, Bellem é mais arido1.  Almeida Garrett, Viagens na Minha Terra

1  garrett, João Baptista de Almeida – Viagens na Minha Terra. Lisboa: Typ. Gazeta dos Tribunais, 1846, pp. 4-5.

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João Santana da Silva historiador No princípio era o silêncio, a calma e o lazer. De um lado, os campos a perder de vista. Do outro, o Mar da Palha, essa enorme bacia do rio Tejo, tão familiar aos lisboetas, assim chamado pelos vestígios de palha das lezírias ribatejanas que eram arrastados pelas águas ao longo das margens. Era aí que, com nome apropriado ao ritmo mais lento com que se levava a vida, se começava a formar Marvila, a “Vila do Mar”. O afastamento geográfico de Lisboa, com a sua saudável distância do bulício da metrópole, oferecia as condições ideais para que a zona oriental – e, especificamente, Marvila – se tornasse uma opção privilegiada para alturas de retiro. Um retiro geográfico, afastado da muitas vezes excessiva centralização comercial, social e económica de Lisboa. Mas também um retiro espiritual, para quem encontrava neste ponto intermédio, entre a metrópole e as zonas rurais, o sítio ideal para se concentrar na reflexão. Foi o caso das ordens religiosas que aí se estabeleceram. Para além das ordens, os estratos mais altos da sociedade portuguesa cedo se viraram para o aproveitamento, tanto agrícola como recreativo, da área que hoje corresponde à freguesia de Marvila. Zona de conforto para muitos fidalgos, tornou-se, na Idade Moderna e em especial no século XVIII, um excecional ponto de atração para a criação de quintas de recreio. O silêncio e o lazer teriam, em parte, os seus dias contados com a chegada em massa da indústria nos séculos seguintes e a imigração rural em busca de emprego no setor fabril, na tanoaria artesanal e nos armazéns de vinho. Mas o amplo espaço dos campos em volta, a conservação de muitos dos espaços verdes e a sempre periférica posição face à capital mantiveram a capacidade de atração e de fixação populacional deste território ao longo do século XX. Apesar do envelhecimento registado nalgumas zonas da freguesia, pode-se afirmar que continua a ter essa capacidade nos dias de hoje.

O P R I M E I R O P OV O A M E N T O Os conventos e as ordens religiosas

Olhando para o passado, facilmente se percebe que o espaço que é hoje ocupado pelo bairro Vale Fundão ou Prodac e pelos bairros em redor ( bairro Marquês de Abrantes, bairro dos Alfinetes e Salgadas, Quinta do Chalé ) – e que é, atualmente, muito populoso – nem sempre foi a densa urbanização que veio a tornar-se. Mas, enquanto zona habitada, já remonta a um tempo muito anterior ao repovoamento da Península Ibérica. Objeto de um grande impulso de realojamento e desenvolvimento urbano já no século XX, destinado a alojar as populações que chegavam à parte oriental de Lisboa para trabalhar nas indústrias, a zona onde se localiza o bairro da Prodac insere-se na freguesia de Marvila, área que, apesar das enormes alterações sociais e urbanísticas, carrega uma história de vários séculos.

Aspeto original do Vale Fundão na década de 1960, antes da construção do bairro da Prodac no mesmo espaço. [Arquivo Municipal de Lisboa – Vasco Gouveia de Figueiredo, PT/AMLSB/VGF/ /S01051]

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Marvila

Os alicerces de uma comunidade

Planta da cidade de Lisboa de 1835. Um dado curioso é a omissão da zona de Xabregas, Chelas e Marvila, enquanto a ocidente se inclui Belém. No início do século XIX, a Lisboa urbana “terminava” em Santa Apolónia, como é possível observar nesta planta. [Arquivo Municipal de Lisboa – Estúdio Mário Novais, PT/AMLSB/MNV/ /S00112]

2  CONSIGLIERI, Carlos, RIBEIRO, Filomena, VARGAS, José Manuel, ABEL, Marília – Pelas Freguesias de Lisboa – Lisboa Oriental: São João, Beato, Marvila, Santa Maria dos Olivais. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa – Pelouro da Educação, 1993, p. 101. 3  Uma antiga medida agrária de cem braças de comprimento por dez de largura, que tinha o propósito de demarcar diferentes terras de cultivo entre si. 4  CONSIGLIERI, Carlos; RIBEIRO, Filomena; VARGAS, José Manuel; ABEL, Marília – Pelas Freguesias de Lisboa – Lisboa Oriental…, pp. 101-102; JORGE, Maria Júlia – “Marvila ( Sítio de )”. In SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo ( dir. ) – Dicionário de História de Lisboa. Mem Martins: Gráfica Europam, 1994, pp. 569-573.

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A Sé de Lisboa, construída no século XII para marcar a tomada da cidade por D. Afonso Henriques em 1147. É a partir dela, enquanto sede do bispo de Lisboa, que se planeará a organização administrativa da futura capital do reino. [FCG – Biblioteca de Arte – Mário Novais, 1954]

Em 1149, D. Afonso Henriques doa à Mitra e ao Cabido de Lisboa “todas as rendas e terras de Marvila que possuíam as mesquitas dos Mouros”. Era uma área que se estendia sensivelmente entre o Convento do Beato e o Poço do Bispo ( a toponímia denuncia a presença e o peso da Igreja Católica na zona que hoje corresponde à freguesia de Marvila ): ou seja, a primordial Quinta de Marvila. É precisamente o bispo de Lisboa, D. Gilberto de Hastings ( ver caixa ), que, em 1150, divide estas terras em 31 courelas3, entregando-as aos cónegos da Sé, e ficando com uma outra parcela de maior dimensão na posse da Mesa episcopal – a “herdade de Marvila”. É esta distribuição que determina as divisões topográficas que se manteriam como alicerces para as quintas que aí viriam a estabelecer-se a partir do século XV4.

Igreja e antigo Convento de São Félix e Santo Adrião, vulgarmente conhecido por Convento de Chelas, na década de 1960. Fundado no século VII e reedificado no século XII, é um dos edifícios mais antigos de Lisboa, confirmando a importância desta zona da cidade desde muito cedo. [FCG – Biblioteca de Arte]

Quinta do Marquês de Marialva, Quinta da Fidalga, Quinta do Braço de Prata, Quinta do Marquês de Abrantes. Exemplos da toponímia local que denunciam a presença da aristocracia na zona de Marvila

A S Q U I N TA S D E R E C R E I O DA N O B R E Z A

D. Gilberto de Hastings O primeiro bispo de Lisboa O primeiro bispo de Lisboa foi o inglês Gilberto de Hastings ( não confundir com o primeiro arcebispo, D. João Anes, eleito aquando da elevação da diocese de Lisboa a arquidiocese em 1394 ). Este monge inglês viajava na expedição de cruzados que acompanhou D. Afonso Henriques, então já coroado rei de Portugal, durante a reconquista da cidade de Lisboa e futura capital do reino. Apesar de se referir 1147 como o ano da restauração da diocese ( também o ano da reconquista da cidade ), a escolha de Gilberto de Hastings – que reuniu o consentimento de D. Afonso Henriques, do arcebispo de Braga, dos bispos, clérigos e leigos – só terá sido feita após abril de 1148. Isto porque, no início deste ano, numa reunião do arcebispo de Braga, D. João Peculiar – homem do círculo interno de confiança do rei –, com outros clérigos sufragâneos dependentes da arquidiocese de Compostela, não compareceu nem foi mencionado nenhum bispo de Lisboa. Para além disso, a doação a Santa Cruz de Coimbra de um eremitério com capela edificado em Lisboa, precisamente em abril de 1148, teve então a autorização, não de um bispo olisiponense mas sim do arcebispo de Braga. Apenas um documento de 8 de dezembro confirma, sem qualquer dúvida, a posição que Gilberto de Hastings ocupava à frente da Sé de Lisboa. Apesar de existir algum desconforto por ter um “estrangeiro” à frente da diocese e por esta continuar subalternizada perante Compostela, os lisboetas tiveram D. Gilberto como seu bispo até cerca de 1166, data da sua morte. Foi durante este período que o sacerdote teve a enorme responsabilidade da reorganização administrativa, redefinição territorial e reconstrução dos edifícios de culto após a reconquista. Para além disso, D. Afonso Henriques concedeu-lhe 32 antigas mesquitas, tal como os respetivos rendimentos e herdades. Após instalação do Cabido numa delas, D. Gilberto divide o restante território pelos seus cónegos, reorganizado em 31 casas, respetivos bens e dízimos das igrejas, correspondendo a metade de Marvila. O bispo de Lisboa funda as paróquias de São Vicente, de Santa Justa e de Nossa Senhora dos Mártires, alargando assim a rede paroquial e os vínculos religiosos na nova cidade do reino. É com a ação deste primeiro bispo, a par do fortalecimento das defesas por parte de D. Afonso Henriques – cuja estratégia passou por entregar as fronteiras mais instáveis às ordens militares –, que se criam ou recuperam novas povoações em redor de Lisboa, levando ao crescimento não só do espaço da cidade mas da rede paroquial. Em suma, é D. Gilberto que dá o primeiro grande impulso para que Lisboa cresça em importância, quer a nível político quer a nível eclesiástico, a caminho de se tornar a capital portuguesa. Fonte: clemente, Manuel – “Lisboa, Diocese e patriarcado de”. In azevedo, Carlos Moreira ( direção ) – Dicionário de História Religiosa de Portugal ( vol. J-P ). Mem Martins: Círculo de Leitores, 2001, pp. 93-113.

Após a passagem dos terrenos para as mãos dos cónegos começa, gradualmente, a ser delineado o traçado das famosas quintas de Marvila. No século XIII, eram várias as ordens religiosas que detinham terras naquela zona, mas estes proprietários pertencentes ao clero começam a arrendar e a aforar terrenos a famílias nobres que, por sua vez, arrendavam “a camponeses que da zona Norte do País para ali se deslocaram cultivando os campos das suas numerosas quintas”5. O legado histórico da presença significativa das instituições e ordens religiosas, bem como de proeminentes figuras da aristocracia portuguesa na zona de Marvila está bem presente na toponímia local. Exemplo disso são designações como: Poço do Bispo, Quinta da Mitra, Quinta do Marquês de Marialva, 5  VELOSO, Esmeraldina M. Costa et al. ( org. ) – Marvila: Quinta do Armador6, Quinta do Contador, Quinta contribuição para um diagnósda Fidalga, Quinta do Braço de Prata7 ou a Quinta do tico social. Lisboa: Santa Casa Marquês de Abrantes ( onde viria a crescer o famoso da Misericórdia de Lisboa – Serviço de Acção Social Local Bairro Chinês )8. Oriental, 1986, p. 6. Integrada na freguesia dos Olivais, criada a 6 de 6  Propriedade do armadormaio de 1397 ( pelo arcebispo de Lisboa, D. João Anes )9, -mor da rainha D. Maria I, cujo palácio senhorial fora Marvila foi vendo crescer o número das quintas que construído no século XVIII, e acolhia, com o fracionamento da grande propriedade que virá a dar nome ao atual da Quinta de Marvila. Inicialmente, eram os espaços e Bairro do Armador. 7  Propriedade de António edifícios religiosos que serviam de referência à populade Sousa de Meneses, fidalgo ção que chegava, sendo “em seu torno que as populaque perdeu o braço direito em ções se iam anichando, a meias com as quintas férteis 1638 numa batalha contra os holandeses, no Brasil, e o terá em que a nobreza, enriquecida nas lides de além-mar, substituído por um braço de descansava de fadigas e recolhia para seu sustento os prata, o que deu nome à quinta produtos frescos das hortas bem regadas”10. Nessa utilionde se recolheu no final da vida e, hoje, ao que resta da zação das quintas enquanto espaços de fuga dos centros fábrica de material de guerra. urbanos residirá a semente das chamadas quintas de 8  Situada na zona das atuais recreio, ainda com pouco aproveitamento produtivo. Rua de Marvila e Rua José do Patrocínio, esta quinta foi A vasta Quinta de Marvila, embora pertencente à construída e ocupada no século Mitra e ao Cabido lisboeta, vai sendo aforada a elemenXVII, em terrenos da Quinta tos da nobreza portuguesa, que vão redesenhando o de Marvila, pelos condes de Figueiró, tendo posteriormente panorama senhorial da zona. O primeiro aforamento passado para a posse dos dos terrenos da Mitra é atribuído a D. Jorge da Cosmarqueses de Abrantes, que lhe ta, cardeal de Alpedrinha e arcebispo de Lisboa ( ver dão o nome. Em 1862 esteve aí instalada a primeira Escola caixa ), ainda em finais do século XV, com o objetivo Normal Portuguesa, inaugurade expandir o património da sua família. Dentro das da pelo rei D. Luís e Anselmo fronteiras deste território, inserido no morgado do José Braamcamp, ministro do Reino. Ver CONSIGLIERI, Esporão, localizava-se o terreno da futura Quinta do Carlos, RIBEIRO, Filomena, Marquês de Abrantes, “um dos mais correctos modelos VARGAS, José Manuel, ABEL, de quinta de recreio lisboeta, já com a imprescindível Marília – Pelas Freguesias de Lisboa – Lisboa Oriental…, carga de ostentação de quem sabia necessário marcar p. 115. distâncias e afirmar um estatuto”11. 9  DELGADO, Ralph – A Antiga No século XVII, o aforamento de terras a elemenFreguesia dos Olivais. Lisboa: Imprensa Municipal de Lisboa, tos da nobreza será a regra, originando o nascimento 1969, p. 15. de inúmeras propriedades cujo nome perdurará, em 10  MATOS, José Sarmento de muitos casos, até à atualidade, como acontece com a ( texto ); SACCHETTI, António ( fotografia ) – Lisboa, um pasQuinta Fernão Cabral, a Quinta do Poço do Bispo, o seio a oriente. Lisboa: Parque Palácio da Mitra ( construído na Quinta do ArcebisExpo’98 SA e Metropolitano de po ), a Quinta do Marquês de Abrantes ou a já referida Lisboa, 1993, p. 10. 11  Idem, p. 11. Quinta do Braço de Prata. 27

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Em rigor, o povoamento de Marvila antecipa mesmo a existência de Portugal enquanto reino. As descobertas de uma placa de xisto ornamentada com cerca de cinco mil anos na Quinta da Farinheira ( próxima do Largo do Broma ), de lápides do período de ocupação romana ( século III ) ou de pedras pertencentes a um friso de um templo visigodo em Chelas, entre vários outros vestígios, confirmam a antiguidade da ocupação efetiva nesta freguesia2. No entanto, são a tradição católica e a ligação entre o poder e as instituições religiosas que estarão na origem do primeiro planeamento conhecido de Marvila. No século VII, as relíquias do mártir São Félix chegam a Lisboa, o que motivou a fundação do Convento de Chelas, edifício apontado por alguns autores como o mais antigo da cidade. Foi essa origem simbólica, bem como a chegada posterior das relíquias dos mártires Santo Adrião e Santa Natália, que viria a dar ao edifício religioso a outra designação pela qual é conhecido: Convento de São Félix e Santo Adrião. Na verdade, gerou-se a hipótese de que o convento tivesse aproveitado a estrutura de um templo pagão, construído no período de ocupação romana e anterior ao nascimento de Cristo. Mas esta teoria nunca chegou a ser confirmada. Atravessando todo o período de domínio islâmico, será já no século XII que o convento recuperará a sua importância central na área de Marvila. Após a reconquista de Lisboa, em 1147, o edifício foi reedificado para receber monjas oriundas de Santa Cruz de Coimbra. É em seu redor que começará a desenvolver-se o território circundante.

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Pormenor do Levantamento da Planta de Lisboa, levado a cabo entre 1904 e 1911 por Júlio António Vieira da Silva Pinto e Alberto de Sá Correia. No canto inferior direito é possível identificar a Azinhaga do Vale Fundão, ainda existente, e a Quinta do Vale Fundão, onde viria a ser construído o bairro da Prodac. [Arquivo Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/CMLSB/ /UROB/PU/05/03/145]

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Outro pormenor do Levantamento da Planta de Lisboa de 1904-1911, que permite ver as dimensões da antiga Quinta do Marquês de Abrantes, a Azinhaga dos Alfinetes, o próprio Palácio dos Alfinetes e, em geral, a escassa urbanização da zona. [Arquivo Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/CMLSB/ /UROB/PU/05/03/132]

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O século seguinte assistirá ainda ao aparecimento de várias outras quintas. A título de exemplo, é de nomear a Quinta dos Mouzinhos ( que terá sido dos Mouzinhos de Albuquerque, que detinham duas propriedades no sítio dos Malapos ou Malapados ), a Valfundão ( atual Quinta da Lebre ), a Quinta da Bela Vista, a Quinta do Condado, a Quinta da Flamenga, a Quinta da Concha, a Quinta das Salgadas ( assim chamada por ser propriedade de D. Ana Joaquina Salgado e de outras familiares com o mesmo apelido ), a Quinta dos Alfinetes ( propriedade do duque de Lafões ), a Quinta do Armador, a Quinta da Fidalga, a Quinta do Pombeiro ou a Quinta das Teresinhas ( que recebeu este nome por ser habitada por Teresa Eleutério e pelas suas duas filhas homónimas, Doroteia Teresa e Leonor Teresa, situando-se hoje o Colégio Valsassina no antigo espaço da quinta )12.

12  CONSIGLIERI, Carlos, RIBEIRO, Filomena, VARGAS, José Manuel, ABEL, Marília – Pelas Freguesias de Lisboa – Lisboa Oriental…, pp. 105-106. Ver também as úteis notas toponímicas em DELGADO, Ralph, A Antiga Freguesia dos Olivais, pp. 59-64.

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Cardeal de Alpedrinha “Príncipe do Renascimento” D. Jorge da Costa, vulgarmente conhecido como cardeal de Alpedrinha, nasceu em 1406, em Alpedrinha, no concelho beirão do Fundão, e morreu a 18 de setembro de 1508, em Roma. Foi um dos muitos filhos do almocreve Martim Vaz e de Catarina Gonçalves. De origens humildes, a família ascenderia socialmente durante a sua geração: o seu irmão, D. Jorge Vaz da Costa, também foi arcebispo de Braga entre 1486 e 1501, precedendo-o no cargo. Já D. Martinho da Costa, seu outro irmão, suceder-lhe-ia como arcebispo de Lisboa em 1500. Tendo feito os seus estudos em França, na cidade de Paris, D. Jorge da Costa ocupou vários cargos e deteve diversos títulos eclesiásticos, foi diplomata e pertenceu a círculos de confiança do poder, quer em Portugal quer no Vaticano. Tornou-se bispo de Évora em 1463 e arcebispo de Lisboa em 1464 ( foi o oitavo arcebispo da capital portuguesa ). O Papa Sisto IV fê-lo cardeal em 1476, com o título de Santos Marcelino e Pedro ( Santi Marcellino e Pietro ). Foi conselheiro e confessor do rei D. Afonso V e mestre-capelão da sua irmã, a infanta D. Catarina. Tendo-se incompatibilizado com D. João II, em 1478 partiu para exílio em Roma, onde passou grande parte da sua vida. Foi aí que exerceu ainda o cargo de bispo nas dioceses de Albano, a partir de 1491, de Frascati, em 1501, e de Porto e Santa-Rufina, em 1503. Em 1501 tornou-se ainda arcebispo de Braga, administrando a diocese a partir de Roma. Para além do seu relevo junto da Santa Sé, onde ainda testemunhou a assinatura do Tratado de Tordesilhas entre Portugal e Castela, atribui-se a D. Jorge da Costa um papel determinante na criação do Hospital das Caldas e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A génese desta última foi possibilitada pelo apoio que D. Jorge deu à rainha D. Leonor na remoção dos obstáculos que se colocavam à fundação da instituição, tendo movido influências em Roma para que o Papa reconhecesse a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. A sua vida em muito ultrapassou as responsabilidades meramente eclesiásticas, já que teve uma conduta senhorial a maior parte da vida, beneficiando o património de família. Depreende-se, pois, que foi “um Homem do seu tempo; fez-se Príncipe do Renascimento, enquanto deu o seu contributo para que muitos outros experimentassem a hipótese magnífica de entender e valorizar o Homem em todas as suas dimensões” ( m endonça, 1991: 75 ). Fontes: Patriarcado. História. Os Cardeais Portugueses. Página do Patriarcado de Lisboa, disponível em www.patriarcado-lisboa.pt; mendonça, Manuela – D. Jorge da Costa: Cardeal de Alpedrinha. Lisboa: Colibri, 1991.

O Palácio da Mitra, na Rua do Açúcar, em 1945. O edifício foi construído no século XVIII. Na quinta adjacente chegou a estar instalada uma fábrica, a Fábrica Seixas, antes da cedência do terreno e dos pavilhões para aí se fazer o Asilo da Mitra. No ano em que foi tirada esta fotografia, funcionava no palácio o Museu da Cidade. [Arquivo Municipal de Lisboa – Mário Chicó, PT/ /AMLSB/MCH/I00003]

Pode-se, portanto, afirmar que “Marvila é a freguesia onde subsiste maior número de palácios e de quintas, sem deixar de possuir dois conventos – o de Chelas e o de Nossa Senhora da Conceição de Marvila”13. De entre as construções palacianas, destacam-se o Palácio da Mitra, o Palácio da Quinta dos Alfinetes ( ver caixa ) e o Palácio do Marquês de Abrantes ( ver caixa ), que ainda hoje podem ser vistos em Marvila, testemunhas de um passado clerical e senhorial que marcou indelevelmente a história da freguesia. Se os séculos anteriores cunharam os legados aristocráticos que ainda hoje dão nome a muitos locais, seria sobretudo a partir do século XVIII que a zona oriental teria um enorme acréscimo de importância. Uma importância que estaria cada vez menos ligada ao lazer das classes sociais mais elevadas e mais ao acolher de um novo momento na história de Portugal: a industrialização e as migrações do campo para a cidade.

13 CONSIGLIERI, Carlos, RIBEIRO, Filomena, VARGAS, José Manuel, ABEL, Marília – Pelas Freguesias de Lisboa – Lisboa Oriental…, p. 26.

Quinta do Marquês de Abrantes De palácio a pátio operário No século xv, a Quinta de Marvila passou para a posse da família de D. Jorge da Costa, cardeal de Alpedrinha. Nessa altura, foi integrada no morgado do Esporão, proprietário que mandou construir o edifício palaciano que ainda hoje existe, com portão de entrada aberto sobre a Rua de Marvila. Depois da sua construção, vários foram os donos daquela propriedade. Por herança, a Quinta de Marvila é entregue aos condes de Figueiró. Posteriormente, teve como proprietários os condes de Vila Nova de Portimão e, mais tarde, os marqueses de Abrantes. Tendo sido alvo de muitas melhorias no século xvi, levadas a cabo por D. Helena de Noronha, esposa do morgado do Esporão ( Manuel de Vasconcelos ), a Quinta de Marvila transitou para as mãos do 1.º conde de Figueiró, por força do casamento que este celebrou com a herdeira da casa. Já no princípio do século xviii, “o então dono, conde de Vila Nova de Portimão, casa com uma senhora da casa de Abrantes e vê assim o morgado bastante aumentado. O conde, no entanto, ainda lhe faz muitas benfeitorias já em meados do século e, possivelmente as últimas grandes beneficiações” ( a bel & consiglieri, 2004: 91 ). Terá sido por

esta altura que é rebatizado o edifício palaciano e terrenos adjacentes – parcela da antiga Quinta de Marvila –, propriedade que passa assim a adotar o título nobiliárquico dos seus donos: palácio da Quinta do Marquês de Abrantes. A partir deste ponto cronológico, o edifício entrou num processo de degradação gradual, não se tendo verificado novos melhoramentos. O palácio da Quinta do Marquês de Abrantes conserva caraterísticas arquitetónicas do século xvii. Tem a sua entrada virada para a Rua de Marvila, “que na época da sua construção era a via estruturante do lugar, isto é, o palácio marcava a centralidade de Marvila” ( a bel & consiglieri, 2004: 91 ). O edifício principal da casa dos proprietários teria, no seu traçado inicial, apenas dois pisos, sendo o terceiro acrescentado posteriormente, dando-lhe a forma atual. No século xix, a industrialização alterou significativamente o tipo de ocupação da Quinta de Marvila. Os arrendamentos para uso agrícola são substituídos pela instalação de fábricas e o território passa a ser atravessado pela linha de comboio. A mudança foi enorme e irreversível, quer no seu aspecto quer nos propósitos para os quais eram usados os espaços e os edifícios da quinta.

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Fotografia de meados do século XX, da Quinta das Salgadas, que pertenceu, no século XVIII, a D. Ana Joaquina Salgado e assim deu ao terreno o nome com o qual este viria a popularizar-se. A casa, em ruínas, mantém-se no mesmo local. [Arquivo Municipal de Lisboa – Filmarte, PT/AMLSB/ /FIL/000141]

O Palácio do Marquês de Abrantes, com entrada para a Rua de Marvila, em meados do século XX ( esquerda ) [Arquivo Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/FIL/ /000136] e na atualidade ( direita ). [João Santana da Silva – Centro Editorial, 2013]

Palácio dos Alfinetes em meados do século XX. São visíveis sinais de abandono e ruína na fachada, provavelmente já resultados do incêndio de 1964. [Arquivo Municipal de Lisboa – Filmarte, PT/ /AMLSB/FIL000139]

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O pátio do Palácio do Marquês de Abrantes em meados do século XX ( esquerda ) [Arquivo Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/PEL/005/ /S02946] e hoje ( direita ). [João Santana da Silva – Centro Editorial, 2013]. Ao fundo, fica a Sociedade Musical 3 de Agosto, responsável pela marcha de Marvila.

Palácio dos Alfinetes Ruínas com história

Durante o reinado de D. Pedro V deu-se início ao processo de criação e instalação da primeira Escola Normal Portuguesa no edifício principal da antiga Quinta de Marvila, estabelecimento inspirado nas écoles normales francesas, que pertenciam ao sistema público de ensino e tinham uma orientação profissionalizante, visando a formação de futuros professores. No entanto, foi já D. Luís quem, em 1862, inaugurou a referida escola no palácio da Quinta do Marquês de Abrantes, tendo aí funcionado até 1919, data em que se mudou para a Quinta de Marrocos, em Benfica ( a bel & consiglieri, 2004: 91-92 ). O próprio nome ( não oficial ) do pátio deste palácio adaptou-se às circunstâncias históricas pelas quais passou, ficando a ser conhecido também, por algumas pessoas, como o Pátio do Colégio. Depois de desativada a escola, apesar de ter entrado num avançado estado de degradação, o palácio foi ocupado por várias famílias, que chegavam a Lisboa para trabalhar nas fábricas da zona oriental e aí se estabeleciam, perto dos seus locais de trabalho. Para rendibilizar a nova modalidade de utilização, destinada a acolher várias famílias, o edifício palaciano foi sendo adaptado para se transformar num espaço de habitação coletivo, organizado em torno de um pátio central. Neste pátio, que ainda hoje

subsiste, “chegaram a estar em actividade três colectividades, o que demonstra o número elevado de pessoas ali residentes e que mantinham vivas as tradições das terras donde eram oriundas”. Uma dessas coletividades, a Sociedade Musical 3 de Agosto de 1885, ainda lá se mantém ( a bel & consiglieri, 2004: 92 ). Foi nos terrenos desta antiga Quinta do Marquês de Abrantes, bem como das quintas adjacentes, que se instalou o famoso Bairro Chinês, uma zona sobrelotada de barracas. O Bairro Chinês era habitado por muitos moradores, chegados a Lisboa sobretudo durante o segundo terço do século xx, que excediam em número as casas disponíveis nos poucos bairros circundantes. Apesar das más condições sanitárias que caraterizavam o bairro, os potenciais moradores encontravam aí um custo de vida mais acessível e muitos conterrâneos, maioritariamente oriundos do Norte do país. Referem os autores José Sarmento de Matos e Jorge Ferreira Paulo a importância desta quinta nos seguintes termos: “A antiguidade desta propriedade e o relevo histórico dos seus proprietários, bem como a qualidade arquitectónica das construções ainda subsistentes, fazem dela uma das mais importantes quintas arrabaldinas de Lisboa” ( m atos & paulo, 1999: 149 ).

Fontes: abel, Marília; consiglieri, Carlos – O formoso sítio de Marvila. Lisboa: Junta de Freguesia de Marvila, 2004; matos, José Sarmento de, paulo, Jorge Ferreira – Caminho do Oriente: Guia Histórico. Lisboa: Livros Horizonte, 1999, vol. ii.

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O palácio foi ocupado por várias famílias, que chegavam a Lisboa para trabalhar nas fábricas da zona oriental e aí se estabeleciam, perto dos seus locais de trabalho.

O Palácio da Quinta dos Alfinetes, muitas vezes confundido ( erroneamente ) com o Palácio do Marquês de Abrantes, deve o seu nome, provavelmente, a uma trefilaria – indústria de transformação de metal em fio ( arame, alfinetes, etc. ) – que outrora funcionou no terreno da quinta. Com os portões fronteiros sobre a Rua Padre António Ferreira ( no cruzamento com a discreta Azinhaga dos Alfinetes ), este palácio encontra-se num estado de conservação que não faz jus à sua longa história. Quando comparado, por exemplo, com o Palácio da Mitra, torna-se evidente que, apesar de partilharem a “boa construção e arquitectura, tiveram diferentes destinos”, estando o Palácio dos Alfinetes atualmente em ruínas e «à espera de melhores dias, se forem a tempo de lhe aproveitar o que ainda resta de um dos mais belos palácios de Lisboa” ( c onsiglieri et al. 1993: 26 ). No século xix, o Palácio da Quinta dos Alfinetes passou a albergar a Fábrica Estrela, indústria, “ao que parece, do 3.º visconde de Morais e que pertenceu às Companhias Reunidas de Gás e Electricidade, entre 1910 e 1935, para escritórios, tendo passado para as mãos da Caixa Geral de Depósitos nesse ano de 1935” ( a bel; consiglieri. 2004: 85 ). Um incêndio que deflagrou no palácio, em 1964, inutilizou o edifício, não tendo nunca havido uma tentativa de recuperação da estrutura arquitetónica, entrando, por isso, no processo de degradação que hoje se pode verificar. Numa notícia de 9 de março de 1970, o jornal O Século dava a conhecer as famílias que viviam em barracas junto do portão do Palácio dos Alfinetes, contrastando o estado em que este edifício se encontrava com o seu legado que já não volta: “Do passado glorioso, nada resta senão a ruína envergonhada, de onde emergem as barracas miseráveis de camponeses chegados da provín-

cia […]”. Para lá dos portões, a vida do Bairro Chinês – mesmo ali ao lado – misturava-se com a herança do antigo palácio senhorial, já que no piso térreo amontoavam-se madeiras de uma serração que serviriam para construir mais barracas e, no piso de cima, as crianças aproveitavam para brincar: “A chaminé de mármore da sala nobre, as escadas em ruínas, os esconderijos no forro do tecto são o cenário ideal para batalhas renhidas de polícias e ladrões.” Tal como afirma um habitante atual de Marvila, e à imagem do que sucedeu noutros antigos pátios e palácios da freguesia: “Eu já não me lembro de o Palácio dos Alfinetes ser outra coisa que não fosse habitação, para pessoas que viviam lá e tinham quartos.” Mesmo no meio das ruínas, as pessoas persistiam em utilizar o espaço, até bem tarde. Hoje, o palácio está completamente vedado. Portão principal da Quinta dos Alfinetes, atualmente intacto e virado para o bairro Marquês de Abrantes. [João Pécurto – URI, 2013]

Fontes: abel, Marília; consiglieri, Carlos – O formoso sítio de Marvila, Junta de Freguesia de Marvila, Lisboa, 2004; consiglieri, Carlos; ribeiro, Filomena; vargas, José Manuel; abel, Marília – Pelas Freguesias de Lisboa. Lisboa Oriental ( São João, Beato, Marvila, Santa Maria dos Olivais ), Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa / Pelouro da Educação, 1993; O Século, Lisboa, 9 de março de 1970, p. 10.

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