Masculinidade do soldado romano: uma representação midiática

September 30, 2017 | Autor: Lourdes Feitosa | Categoria: Gender Studies, Art History, Cinema Studies
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FEITOSA, L. C.; VICENTE, M. M. Masculinidade do soldado romano: uma representação midiática. In: FUNARI, P.P. et alli História militar do mundo Romano. São Paulo: Fapesp/Annablume, 2012. V. 2.

Masculinidade do soldado romano: uma representação midiática Lourdes Conde Feitosa* Maximiliano Martin Vicente *

Introdução Nas últimas décadas, as inúmeras reflexões e debates a respeito dos métodos e da escrita da História propiciaram o desenvolvimento de novas propostas para se interpretar a Antigüidade. A ampliação dos temas e o modo de abordá-los passaram a refletir o anseio de pesquisadores preocupados em questionar enraizados pressupostos e buscar outros suportes teóricos que permitam inserir, em sua área de conhecimento, a história daqueles até então dela excluídos e a rever antigos conceitos. Também abriu-se a possibilidade de se questionar os motivos que levaram à construção de diversas acepções do passado e a propor outras leituras, mais abrangentes e preocupadas com a diversidade do mundo antigo. Dentre esses estudos, a investigação sobre as concepções de feminino e de masculino têm se destacado, concebidas como categorias socialmente constituídos em grupos, tempos e espaços históricos definidos. A partir da prática de questionar as idéias e as certezas, marca de nosso tempo, da análise de construções historiográficas e da influência das discussões contemporâneas sobre as questões de gênero no conhecimento da Antigüidade *

Doutora em História Cultural pela Unicamp. Pós-Doutora em Comunicação pela Unesp/Bauru. Professora da Universidade Sagrado Coração e pesquisadora associada ao Laboratório de Arqueologia Pública (LAP) – Paulo Duarte (Nepam/Unicamp) e ao Centro de Pensamento Antigo (CPA), ambos da Unicamp. * Professor Livre Docente do Departamento de Ciências Humanas da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Unesp/Bauru.

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Romana, a proposta deste texto é estender essas reflexões para outras narrativas históricas, em específico, projeções cinematográficas que retratem o universo romano. Isso porque a atenção para a relação entre presente-passado, tal como abordado acima, também tem sido prática corrente entre os pesquisadores interessados na análise de filmes sobre outros momentos históricos. Desde os anos de 1990, por exemplo, são fortes as investigações cinematográficas inspiradas nos „estudos culturais‟, que se preocupam em refletir sobre as imagens projetadas do „feminino‟, do “masculino”, das representações de diferentes formas de sexualidade, das minorias étnicas ou da projeção de diversos grupos nas imagens fílmicas (Felici, Tarín, 2007, p. 33; Freire Filho, 2005). Seguindo essa perspectiva, neste texto apresentaremos uma reflexão a respeito da relação estabelecida entre História e Cinema e uma análise do perfil de masculinidade do soldado romano apresentado na série Roma, produzida pelas redes de televisão BBC, do Reino Unido, e a HBO, dos Estados Unidos.

História e Cinema É notório que vivemos, cada vez mais, em um ambiente midiático. Hoje, o modo de ser e de pensar é perpassado pela imagem, pelo imaginário, pelo simbólico, pelo virtual. A imagem coloca-se como elemento fundamental do vínculo social (Gomes, 2007, p. 165). Momentos e situações históricas são temas que inspiram as produções cinematográficas e televisivas e estas se colocam como importantes veículos de divulgação das concepções construídas sobre o passado histórico. Esses veículos põem-se como instrumentos cruciais para a formação e a divulgação de uma ampla percepção sobre diferentes momentos históricos, como a Antigüidade Romana, e é por meio deles que um grande público de leigos interage com monumentos, textos literários, personagens e temas antigos (Wyke, 1997). Há diversas questões próximas e estreitamente relacionadas com o que se pode considerar o centro de um debate envolvendo História e Cinema. É possível estabelecer semelhanças entre o passado e o presente por meio das imagens em movimento? Responder a tal indagação nos leva a estabelecer parâmetros 2

destinados a equalizar a simbiose pela qual se entrecruzam esses dois ramos do saber. Ambos elaboram narrativas e apresentam interpretações sobre o ocorrido. Entretanto, tais explanações, além de usar métodos e procedimentos diferentes, elaboram diálogos com outros componentes presentes nas culturas e contribuem, dessa maneira, para reforçar versões, interpretações ou mesmo estereótipos codificados na memória social de uma determinada sociedade. Tanto o Cinema como a História, nos seus procedimentos, apresentam uma seqüência de fatos que acabam reforçando determinadas cosmovisões, presentes no imaginário social e passíveis de desmistificação por reforçar interpretações nem sempre desejáveis e na maioria das ocasiões distantes de qualquer reconstituição crítica do evento abordado. Por outro lado, não se pode negar que o Cinema e a História caminham próximos, motivo pelo qual não se pode ignorar seu papel na constituição do conhecimento de uma determinada sociedade. Essa relação, assim entendida, torna-se complexa por adentrar no mundo da ideologia e das representações, o que demanda algumas considerações para avaliar como se materializa tal afinidade. Marc Ferro (1992), uma das referências mais lembradas no estudo do Cinema e sua vinculação com a História, sugere aceitar o Cinema como fonte para o entendimento das ideologias e mentalidades dos sujeitos da história. Considera a necessidade de se operar sobre o filme o mesmo procedimento que o historiador realiza com suas fontes de referência. Assim, em todo material gráfico accessível à população deve-se buscar evidências que permitam perceber e compreender como determinados eventos e períodos históricos adquirem sentido. O filme, dentro dessa perspectiva, carrega tanto o que seu produtor busca anunciar como outros componentes que vão além dessa aparente visibilidade encontrada no material visual. Como menciona Ferro (1992, p. 87), o filme: não vale somente por aquilo que testemunha, mas também pela abordagem sócio-histórica que autoriza. A análise não incide necessariamente sobre a obra em sua totalidade: ela pode se apoiar sobre estratos, pesquisar “séries”, compor conjuntos. E a crítica também não se limita ao filme, ela se integra ao mundo que o rodeia e com o qual se comunica, necessariamente. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa. Isso significa compatibilizar a análise interna da obra com as condições 3

de sua produção, ou seja, com os aspectos históricos, estéticos, tecnológicos, sociológicos, econômicos e políticos do ambiente de composição dos discursos cinematográficos. Duas frentes se abrem nessa ótica. Na primeira, incluem-se as manifestações do diretor que podem ser encontradas na narrativa, nas idéias sobre determinados personagens, nos fatos selecionados e nas práticas ou ideologias dos personagens. Já a segunda, mais complexa, envolve os modos de narrar as histórias, a maneira empregada para marcar as passagens do tempo, os planos da câmara, ou seja, uma série de componentes que constroem uma parte denominada por Ferro de zonas ideológicas não visíveis, mas que também atuam sobre as pessoas expostas aos produtos visuais. Dessa maneira, suas observações nos levam a ver o filme como um produto que fala de uma realidade política e social que pode ser desconstruída pelo conteúdo e forma de apresentação dessa obra de arte para a sociedade. Ao aceitar que a imagem cinematográfica apresenta uma nova forma de informação, distinta do documento escrito, faz-se necessário uma análise crítica dos documentos utilizados para a sua realização e da compreensão do modo como ocorreu a sua inserção no momento de ser divulgado. Vale lembrar que, na atualidade, o lançamento de grandes produções envolve um espetáculo midiático destinado a criar expectativas e preparar o espectador para receber o produto a partir de determinados parâmetros nos quais se sobressaem os recursos tecnológicos empregados em sua elaboração, apresentação dos atores, custos de produção, entre outros, nos quais a divulgação do conteúdo acaba por ficar em segundo plano (Ferro, 1992, Thompson, 1998, p. 33). Um outro elemento importante consiste em examinar como as produções culturais da mídia, dentre as quais pode ser incluído o filme, incorporam em suas obras as lutas sociais existentes numa determinada sociedade. Nesse processo, ocorre uma releitura das preocupações sociais, pois as lutas concretas de cada sociedade são postas em cena nos espetáculos da mídia, especialmente os da indústria cultural. Para Douglas Kellner (2001), autor também preocupado com as questões da comunicação e da mídia e suas relações com a sociedade, o êxito de um filme, falando do lucro e da popularidade, depende do grau de inclusão das preocupações e interesses sociais contidas no produto midiático. Embora Kellner faça referência aos produtos massificados e industrializados, num momento em que os interesses comerciais se sobrepõem a quais4

quer outros, vê neles um papel decisivo na hora de integrar uma sociedade em torno da ideologia capitalista. Nesse sentido, a cultura, de uma maneira geral, legitima e agrega as pessoas em torno de um projeto sabidamente consumista e suficientemente forte ao ponto de ditar os valores culturais de uma determinada sociedade. Por esses motivos preocupa-se com os mecanismos de indução que levam as pessoas a se identificarem com determinadas atitudes e valores. Por conseguinte, sua metodologia de estudo combina a análise da produção e da economia política dos textos; análise e interpretação textual e análise da recepção por parte do público e de seu uso na cultura da mídia. Ao incluir a recepção, rejeita um posicionamento determinista no qual as pessoas seriam totalmente dominadas pela cultura da mídia. Aceita que o público pode acatar ou rejeitar estes discursos na formação de sua identidade em oposição aos modelos dominantes, ou seja, aceita a existência de um espaço de negociação e de diálogo entre o consumidor e o produto cultural, no qual a relação estabelecida não é totalmente imposta ou totalmente rejeitada1. Essas reflexões nos permitem afirmar que o filme não ilustra nem reproduz a realidade, ele a reconstrói a partir de uma linguagem própria produzida num determinado momento histórico. Os filmes devem ser entendidos como produtos culturais de qualquer sociedade, portanto, que contribuem na formação dos valores da sociedade. Tal afirmação nos leva a aceitar que o uso do filme pelo historiador pressupõe uma série de indagações que ultrapassam as simples histórias contidas nos documentos visuais. Se nas décadas anteriores a este início de século eles repercutiam mais num determinado país, atualmente não se pode esquecer sua penetração mundial, motivo pelo qual dialogam não mais no âmbito local e sim global. Por essa razão, ler politicamente a cultura da mídia num mundo globalizado significa situá-la em sua conjuntura histórica e analisar o modo como seus códigos genéricos, a posição dos observadores, suas imagens dominantes, seus discursos e seus elementos estético-formais incorporam certas posições políticas e ideológicas capazes de produzirem efeitos políticos globais. 1

Também para John Thompson “mesmo que os indivíduos tenham pequeno ou quase nenhum controle sobre os conteúdos das matérias simbólicas que lhes são oferecidas, eles os podem usar, trabalhar e reelaborar de maneiras totalmente alheias às intenções ou aos objetivos dos produtores” (1998, p. 42; 153).

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Para decodificar a ideologia contida num filme é importante uma análise um pouco mais complexa na qual devem ser consideradas as imagens e outros conteúdos que compõe o filme, tal como som, roteiro, cenário, traçando um paralelo com o contexto histórico em que é produzido. Atenção para a relação estabelecida entre o modo como vários componentes sociais se organizam na construção de um produto visual, demonstrando a importância da análise das relações e das instituições sociais, nas quais os textos são compostos e consumidos (Ferro, 1992; Kellner, 2001). Nesse sentido, Kellner oferece um método bastante sugestivo para abordar o filme de maneira crítica. Num primeiro momento seria interessante observar o que denomina de horizonte social, ou seja, a identificação do local, época, cenário em que se dá a produção da película. Outro elemento ao qual se deve atentar diz respeito ao horizonte social no qual o público faz a releitura dessa peça cultural. Obviamente os espectadores carregam componentes culturais com os quais a mídia dialoga construindo uma nova reescrita do filme e de sua cultura. Finalmente se encontra um efeito cumulativo. De acordo com interesses particulares, determinadas estruturas podem ser denegridas ou favorecidas pela mídia, quando esta promove cumulativamente imagens e discursos com o objetivo de afetar a concepção das pessoas. Essas imagens nos preparam para, num momento posterior, aceitemos ou rejeitemos elementos para os quais essa obra visual teoricamente nos preparou. Isso faz necessário chegar-se à zona do não visível, ou seja, àquela que vê nos filmes construções, que foram idealizadas por um ou mais indivíduos e, portanto, não como espelho da sociedade e muito menos reprodução da História do modo como aconteceu. É, sim, uma interpretação dela. Nem mesmo os historiadores são capazes de contar os fatos da história tal como aconteceram (Foucault, 1984; Shack, 1994; Chartier, 1994; Joyce, 1995; Funari et al, 1999; Feitosa, 2000 e Fowler, 2000). Assim sendo, não podemos nem devemos achar que ao vermos um filme estamos assistindo o que se passou, mas sim entender que aquelas imagens e o processo através do qual foram feitas e montadas definem uma atitude social carregada de idéias e valores oriundos dos embates que diferentes grupos políticos mobilizam, põem em ação e tentam espelhar em seus produtos culturais (Ferro, 1992; Kellner, 2001). Isso abre caminho para explorar o modo como i6

magens, figuras, narrativas e formas simbólicas fazem parte das representações ideológicas de sexo, sexualidade, raça, classe e gênero, no cinema e na cultura popular. Ao conjugarmos as contribuições de Ferro e de Kellner, fica claro a superação de um dos inúmeros impasses levantados na tentativa de estudar conjuntamente História e Cinema. Tal impasse sustenta que as narrativas da História e do Cinema obedecem a finalidades completamente diferentes, pois no Cinema a narrativa já encerra a sua finalidade – contar uma boa história, esse é seu objetivo principal; na História, a narrativa é o meio pelo qual os historiadores compartilham com a sociedade os conhecimentos que construíram a respeito de uma memória que fez/faz parte de uma dada sociedade numa época determinada. Ora, se os filmes podem e devem ser entendidos como elementos que afetam o público além de refletir um contexto sócio-histórico no qual são produzidos, o resultado final tem uma estreita ligação com o comportamento social, seja pela aceitação ou rejeição de tal produto midiático. Há, portanto, uma dinâmica que opera no campo da cultura entendida como lócus de disputas e espaços privilegiados na hora de elaborar valores, significados e interpretações. Mas, a questão carrega outros significados. A cultura da mídia, por meio dos filmes, pode estimular a dominação social lançando mão, por vezes, de técnicas que visam a banalização de certos setores da sociedade, enfraquecendo-os, ao mesmo tempo em que pode incentivar a resistência e a luta contra as classes dominantes ao lançar mão de uma linguagem isenta e menos comprometida com o poder, mesmo em produções que teoricamente são classificados e apresentados como “de entretenimento”. Assim, tanto Kellner como Ferro desenvolvem um diagnóstico crítico com o objetivo de detectar as tendências da política cultural da mídia, investigando “o que está por trás” dela através de uma análise de suas mensagens contidas nas falas, valores e ideologias, formas como foi produzido, figurino, trilha sonora, cenário... Em suma, as informações que um filme nos apresenta precisam ser problematizadas e nunca devem ser aceitas como portadores de uma verdade pronta e acabada.

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Soldado romano: uma representação de masculinidade na série “Roma” A partir das reflexões apresentadas acima, partimos para uma análise de como a masculinidade do soldado romano foi caracterizada na série Roma. Roma é uma série de televisão produzida pelas redes HBO, dos Estados Unidos, e a BBC, do Reino Unido, e filmada nos estúdios da Cinecittà, nos arredores da cidade de Roma. Dividida em duas temporadas, é considerada a produção mais cara da histórica da televisão, com um custo de US$ 100 milhões por série. Canal de televisão a cabo, a HBO tem sido considerada uma especialista em produzir séries de TV com qualidade pouco vista na história de Hollywood. Com a tecnologia e concorrência de outros canais, passa a fazer parcerias compondo redes com outros grandes canais televisivos, como no casa da produção da série Roma com a BBC. Nos Estados Unidos possui cerca de quarenta milhões de assinantes, mais vinte milhões espalhados em 150 países nos quais opera. A série foi criada por John Milius, William Macdonald e Bruno Heller, este último participou como produtor executivo e roteirista. Na segunda temporada contribuíram com o roteiro Scott Buck, Todd Ellis Kessler, Mere Smith e Eoghan Mahony. Na direção estiveram Tim Van Patten, Allen Coulter, Alan Poul, Adam Davidson, Alik Sakharov, Robert Young, John Maybury, Carl Franklin e Steve Shill (diversos deles já haviam trabalhado na direção de outras séries da HBO). Jonathan Stamp foi o consultor de História. O grande enredo da série televisiva britânico-americana Roma desenvolveu-se em 12 episódios. Inicia em 51 a.C., com o retorno de Júlio César a Roma depois de oito anos de luta e conquista da Gália (primeira série), e termina em 44 a.C., com a encenação das disputas políticas suscitadas pela ocupação do poder após o assassinato de César. Na trama principal estão César e Pompeu e, em segundo plano, as histórias de Marco Antônio, Brutus, Otávio, sua mãe Atia, Cícero, Catão (o Jovem), Cleópatra e a do centurião Lucius Vorenus e do legionário Titus Pullo, os dois únicos soldados comuns mencionados nos relatos de César sobre a guerra na Gália. Nas informações especiais contidas no DVD de “Roma”, no site da HBO e

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em inúmeros outros que apresentam a sinopse da série2, o destaque é para o anúncio de uma produção “com fidelidade impressionante”, sobre a reconstrução do cenário histórico do fim da República e começo do Império Romano. A preocupação em enriquecer o drama conduziu os produtores à busca pela autenticidade com a investigação e a incorporação de muitos detalhes da vida cotidiana como os objetos utilizados, a riqueza e diversidade dos figurinos de acordo com a posição social ocupada, os detalhes nas roupas dos soldados, os adereços, as comidas, o ambiente e até mesmo a reprodução de gestos. Também figuras históricas reais como o centurião Vorenus e o legionário Pullo, integrantes da legião de César na guerra gálica, mencionados por ele em seu relato Commentarii de bello gallico (Comentários sobre a Guerra Gálica), ganharam vida com o intuito de intensificar a idéia de real desejada para o filme. Esse período de conflito e guerra civil que caracteriza o fim da República Romana e o início do Império é apresentado na série como um momento em que o predomínio da corrupção, da cobiça, dos excessos e das lutas entre os grupos acabam por destruir os antigos valores de disciplina e de unidade social republicana. Essa concepção é próxima a uma tradição historiográfica firmada nas décadas de 1960/70 que analisa a expansão do império, o aumento do fluxo de dinheiro e do luxo, a influência da cultura helenística e a liberação feminina como elementos responsáveis pela desmoralização dos costumes romanos do final da República e início do Império (Quignard, 1994: 21; Galán, 1996: 74; Robert, 1994: 39; Tannahill, 1994: 102). Roma transformara-se na capital do vício, do desenfreio, da festa e do prazer, ocasionando o aumento da corrupção, dos divórcios e dos adultérios. Nesse processo, a mulher aristocrática tornara-se mais liberada e desejosa de sua satisfação sexual o que, em conjunto com os demais acontecimentos, provocara reflexos “negativos” sobre o matrimônio. Argumenta Robert que nessa união “é distinta a falta de amor… o que estava em jogo era o dinheiro e o poder. A riqueza liberou a mulher nas classes altas da sociedade e lhe proporcionou uma independência até então desconhecida” (Robert, 1999: 100-1)3. Tal característica pode ser vista na representação de Átia, sobrinha de

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A indicação sobre alguns deles pode ser conferida na bibliografia. Contudo, as justificativas de “devassidão” dos costumes romanos e de corrupção como elementos causadores do fim da República são totalmente repudiadas por outros pesquisadores. 3

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César. Segundo uma reportagem da Veja4, a proposta do seriado é seduzir o espectador para o universo romano e envolvê-lo com seus personagens sem, no entanto, desfigurá-los. Em 44 a.C., ano do assassinato de Júlio César, estava-se ainda um pouco distante dos primeiros sinais do surgimento de uma nova ética, com a qual o cristianismo começaria a transformar a Antiguidade Clássica: “Está-se numa Roma que desconhecia a caridade e a misericórdia, assim como o pudor sexual (a série, aliás, é completamente desavergonhada), e que por muito tempo ainda se divertiria lançando gente aos leões na arena do " O que Roma pede, enfim, é que a platéia simpatize com um soldado como o feroz Titus Pullo”. Nas informações especiais contidas no DVD da série, o produtor executivo Heller e o consultor histórico e co-produtor Stamp destacam a preocupação em dar autenticidade à produção, mais pela busca do espírito daquela época do que pela exatidão dos eventos. Consideram que uma das maneiras de atingir isso é incorporar a moralidade romana. Atentos em não impor o ponto de vista judaico-cristão contemporâneo, afirmam que os romanos eram muito mais brutos e sem escrúpulos que nós e que eram bastante diretos em suas atitudes sobre a sexualidade e a conquista. Isso justificaria as insistentes cenas de violência e de sexo apresentadas nos capítulos. No „submundo‟ dos cidadãos romanos aparece o centurião Lucius Vorenus, um soldado profissional romano caracterizado como um indivíduo honrado e severo, mas implacável e cruel quando provocado. Seu companheiro de arma Titus Pullo, um legionário, é mostrado como corajoso, leal, impulsivo e brutal. Segundo o ator que o representa, Ray Stevenson, “Titus Pullo é um lutador tosco, beberrão, mulherengo. Ele é totalmente romano. Gosta de matar os inimigos, pegar o seu ouro e suas mulheres” (Cf. em Informações especiais). Apresentado como grande matador, Pullo reage com violência quando lhe perguntam se haveria alguma diferença entre um soldado e um assassino. Destemido, forte e violento são os atributos de masculinidade mais freqüentes relacionados ao soldado romano. Em Roma, essas qualidades conferem aos soldados Pullo e, principalmente, a Vorenus um reconhecimento e lideCf, dentre outros, Foucault, 1990, p. 79; Veyne, 1990, p. 49; Cantarella, 1999, p. 157, Walters, 1997, p. 29 e Mendes, 2006, 21-24) 4

http://veja.abril.com.br/180407/p22.shtml. Acesso em 20/10/2008. 10

rança entre os populares, mas cujo poder é restrito a esse meio. Ambos caracterizam o tipo de soldado de origem popular, sem propriedades, que passa a integrar as fileiras do exército no final do segundo século a. C.. Segundo Alston (1998), no decorrer do primeiro século ocorre a profissionalização do soldado, sua gradativa separação da comunidade e a criação de uma agenda política específica para eles. De origem humilde e com pouco ou nenhum recurso adicional ao soldo recebido, a representação da masculinidade desses homens de armas passa pelo crivo do valor aristocrático, que vê na “falta de cultura” (a da elite), na sua subordinação ao comandante e na possibilidade de receber castigos corporais, elementos decisivos para distanciá-los da condição de exercer o controle e o poder, próprio do uir romano (homem por excelência, o aristocrático). Com tal percepção, a elite romana representa o soldado como um indivíduo moral e culturalmente inferior, mais próximo ao bárbaro do que ao cidadão romano. Essa caracterização pode ser totalmente questionada quando contrastada com outras representações de masculinidade. O estudo de inscrições das lápides funerárias de soldados romanos, embora ainda em seu início, constitui indícios dos sentimentos e das imagens que os seus familiares e amigos queriam deles eternizar. Valores e concepções de vida muito distantes daqueles registrados pelo viés aristocrático (Alston, 1998)5. Na série, os escritores acolhem e reproduzem essa ótica aristocrática sobre os legionários romanos populares e destacam-na como “real”. Assim, ganham vida soldados brutalhões, grandes matadores, incultos, subordinados e manipuláveis, que se sujeitam a essa situação em troca de um soldo. Os escritores fazem-no porque reproduzem uma concepção weberiana da sociedade romana, na qual os comportamentos são definidos a partir de uma norma considerada válida para todos os indivíduos, baseados na aceitação de um modelo homogêneo de cultura apresentado em textos aristocráticos romanos e/ou em conceitos morais atuais. Isso é evidente tanto na reprodução das concepções aristocráticas a respeito de outros grupos, quanto no olhar do co-criador Bruno Heller sobre o gênero humano. Para ele, “as relações humanas, as emoções e os sentimentos não 5

Sobre o uso de epitáfios para a percepção da sensibilidade e valores populares na sociedade romana conferir, também, Garraffoni, 2005.

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mudam" (Ver Configurações especiais), portanto, caracteriza uma essência humana que nos identifica com os romanos, que nos aproxima e que legitima a reprodução de uma realidade que é intrínseca a todos nós, homens. Em Roma, se mostra a mesma base da política moderna: as intrigas, corrupção, divisão entre partidos e a luta para definir valores coletivos; e os mesmo problemas diários: os crimes, o desemprego, a doença e a luta pela mobilidade social e para preservar um lugar na sociedade6. Apesar de essência em comum, a sociedade romana seria muito mais violenta que a nossa, por isso a segunda temporada é ainda mais enfática no que os produtores consideram como o “lado negro de Roma”. Esbanja requintadas cenas de morte e de sexo; opção que não foi fortuita. Com um gasto milionário e sem alcançar o público desejado, optou-se por “rechear” os episódios dessa temporada com mais cenas de sexo e de violência na tentativa de aumentar a audiência, intuito que deu resultado, mas não o suficiente para evitar que a HBO perdesse trinta milhões de dólares no negócio e desistisse de uma terceira etapa. Como mencionam os realizadores da segunda série, um dos maiores desafios enfrentados foi a necessidade de dar um nova perspectiva a personagens muito conhecidos e recriados da nossa história. Este desafio foi assumido e levado a cabo com sucesso, buscando um equilíbrio entre “as expectativas do público”, baseadas em personificações anteriores, e uma abordagem mais natural dos personagens7. Essa situação torna evidente que a intensificação de tais cenas correspondeu a uma expectativa fundamentalmente contemporânea, porque aceita e valorizada pelo público – o sexo e a violência - , embora atribuída ao outro (no caso, os romanos), e a partir de interesses econômicos que buscavam aumentar a venda desse produto cultural. Desta maneira, será a série “de fidelidade impressionante?”

Finalizando...

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http://www.hbo.com/rome/about/. Acesso em 17/10/2008. http://www.hbo.com/rome/behind/rome_revealed/rome.html Acesso em 17/10/2008

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Os estudos de gênero têm sido profícuos para uma reflexão crítica e acurada das representações realizadas sobre o masculino e o feminino, com especial atenção para os significados e os papéis a eles atribuídos em tempos, espaços e culturas diversos. Essas discussões também propiciam uma reflexão sobre nossas próprias relações, conceitos e valores e de como os olhamos em outros momentos históricos. Considerar a relação entre presente-passado significa refletirmos a respeito de como os temas investigados e os seus resultados são frutos de formulações e interpretações históricas, que indicam interesses econômicos e escolhas políticas que buscam questionar ou ratificar determinadas situações e conceitos, sejam elas na produção do conhecimento acadêmico ou ficcional. Os dados que um filme nos oferece precisam ser problematizados, pois, de modo geral, o público tende a interpretar como verdadeiras as descrições de lugares, atitudes, modos de vida e até mesmo acontecimentos históricos de que não tem conhecimento prévio. Afinal, a fantasia da verdade é uma das características mais atrativas do cinema.

Agradecimentos: Agradecemos aos colegas Renata Senna Garraffoni, Norma Musco Mendes e Pedro Paulo A. Funari. Mencionamos, ainda, o apoio institucional do Grupo de Pesquisa Mídia e Sociedade (CNPq), do Departamento de Ciências Humanas da FAAC, Unesp, campus de Bauru, e do Núcleo de Estudos Estratégicos, da Unicamp. A responsabilidade pelas idéias restringe-se aos autores.

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