Matemática e Movimento em Performance: um estudo de caso

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I Colóquio Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade nas Artes Performativas e Audiovisuais Matemática e Movimento em Performance: um estudo de caso Telma João Santos “A matemática, é preciso dizê-lo, é muito bonita. Tem afinidades com a estética, com o corpo, com tudo.” (José Gil)

Introdução Conceitos como conjunto, sucessão, função, continuidade, limite, bem como turbulência, são apenas alguns exemplos de noções matemáticas que são, de alguma forma, parte também do vocabulário usado em processos de criação artística. São de alguma forma porque de facto estas noções não estão ainda formalmente assentes ou definidas no contexto dos estudos em performance. Proponho aqui usar alguns destes conceitos em diversas camadas através de um estudo de caso. Apresento neste artigo um modelo aberto em processos artísticos onde alguns dos conceitos são apresentados como uma base teórica para um processo de construção onde está presente a interdisciplinaridade entre matemática e performance com a utilização de uma reformulação (ou remediation1) desses conceitos, e onde outros conceitos pertencem a outras camadas no contexto da construção, sendo ferramentas concretas com as quais se manipulam e constroem novas interpretações possíveis relativamente ao objecto final, e onde surge um trabalho transdisciplinar a partir das relações entre a matemática, as técnicas de dança, a performance, a multimédia (e também a antropologia visual). Neste artigo apresento também um estudo de caso, a performance On a Multiplicity, onde a matemática é usada em várias direcções no seu processo de construção e que, juntamente com a improvisação de movimento onde são usadas técnicas de dança e                                                                                                                 1 Para mais detalhes relativamente ao conceito de remediation e seu enquadramento no contexto da arte e dos estudos da performance ver (Santos 2013).

de performance, permitem um conjunto de conexões intersubjectivas através da multimédia. Proponho ainda a performance On a Multiplicity também como um ambiente onde a questão “como é que me apresento ao exterior – ou ao mundo” é essencial2, referindo-me às formas actuais de comunicação e performance do indivíduo nas redes sociais e profissionais onde várias variáveis estão presentes, bem como diferentes noções do que é o “real” e o “virtual”. Na primeira secção este artigo vou apresentar algumas relações interdisciplinares e transdisciplinares já conhecidas entre a matemática e a dança ou entre a matemática e a performance. Na segunda secção vou abordar em geral como se relacionam a matemática, o movimento e a multimédia na construção de uma performance, usando conceitos gerais, bem como um modelo e uma abordagem bastante generalizados para que o estudo de caso On a Multiplicity seja no final visto como um exemplo concreto desta mesma abordagem. Na terceira secção vou reflectir sobre o que esta nova abordagem nos traz de novo nas perspectivas interdisciplinar e transdisciplinar. Na quarta e última secção vou apresentar a performance On a Multiplicity, descrevendo-a e apresentando-a também como um exemplo concreto do modelo abordado anteriormente bem como exemplo das relações inter e transdisciplinares entre a matemática, o movimento e a multimédia, tendo em conta ainda uma perspectiva autoetnográfica e documental.

1. Algumas relações interdisciplinares e transdisciplinares conhecidas entre a matemática e a dança ou entre a matemática e a performance   Tradicionalmente a Matemática e a Dança são olhadas como elementos dualistas, no sentido em que a Matemática está “naturalmente” associada a um lado lógico-racional do indíviduo, e a Dança, ou o Movimento num sentido mais geral, associada a um lado sensório-emocional. Alguns trabalhos têm sido realizados entre a Matemática e a Dança, o que nos permite afirmar que o dualismo racional/emocional através da relação Matemática/Dança tem sido abandonado nestas últimas décadas, com o trabalho de vários Matemáticos, Coreógrafos, Performers, como por exemplo a dupla Erik Stern & Karl Schaffer, Katarzyna Wasilewska e Esther Ferrer. Erik Stern & Karl Schaffer têm desenvolvido um trabalho em torno da divulgação do movimento do corpo como parte da aprendizagem de conceitos                                                                                                                 2 Esta pergunta tem a sua origem em (Noe 2012).

matemáticos, bem como na construção de coreografias onde são abordadas teorias da Matemática. Erik Stern é biólogo e bailarino/coreógrafo e ensina dança na Universidade Weber State em Ogden Utah (EUA) e Karl Schaffer é matemático e bailarino/coreógrafo e ensina matemática no DeAnza College em Cupertino, Califórnia (EUA) e juntos criaram em 1987 a companhia de dança Dr. Schaffer and Mr. Stern Dance Ensemble, bem como têm percorrido imensas escolas e universidades a partilhar o que a dança e a matemática juntas podem acrescentar quando são apreendidas de forma interligada. Katarzyna Wasilewska fornece-nos em (Wasilewska 2012) um “piscar de olhos” a um estudo sobre algumas direcções em que ferramentas e teorias da matemática trazem novos olhares sobre um espectáculo de dança. Neste artigo, a autora descreve várias relações entre a Matemática e a Dança; aquela que aparentemente está mais relacionada com a Dança, ou a que reconhecemos em geral como sendo a mais próxima é claramente a geometria. Em geometria, podemos considerar formas, ângulos, simetrias em vários aspectos diferentes da dança, e nos vários momentos que compõem um espectáculo, desde um momento em que um bailarino está imóvel e em silêncio no palco, até a um grupo de bailarinos em movimento a ocupar um palco. Ou seja, podemos “olhar” para as linhas que um corpo descreve no espaço, bem como as que vários corpos descrevem nas relações que estabelecem. Quanto maior o número de bailarinos, maior é o nº de relações possíveis no seu conjunto. Um espectáculo de dança, quando olhado como um conjunto de elementos que mudam de posição à medida que o tempo passa, pode ser visto também como um sistema dinâmico multidimensional: consideramos a posição de cada bailarino no espaço como os elementos do sistema, e podemos explorar o comportamento do sistema à medida que o tempo passa. É ainda possível olhar para o sistema de bailarinos e observar como certos tipos de movimento aparecem, e estaremos assim a explorar as propriedades estatísticas da peça. Podemos estudar a proporção de tempo em que os bailarinos estão a usar movimentos suspensos , movimentos no chão, ou saltos, e podemos também analisar quantos movimentos staccato ou fluídos, rápidos ou lentos há ao longo do espectáculo. Estas possibilidades de estudo e análise podem ser ferramentas muito importantes ao longo do processo de construção do espectáculo, no sentido em que é possível relacionar o ritmo que se pretende com a variedade de possibilidades de posicionamento e movimento do corpo.

Refiro aqui também a performer do país basco Esther Ferrer devido à sua relação com o corpo enquanto ferramenta essencial de todo o seu trabalho, bem como a questão recorrente do infinito que Esther Ferrer trabalha através dos números primos, ou através da existência de números irracionais ou dízimas infinitas não periódicas como o π, ou seja, a sua relação com conceitos matemáticos. Relativamente aos números primos, e como não se sabe no infinito se estes se manterão como números primos ou se no infinito todos os números serão divisíveis por outros números que não eles próprios e a unidade. Relativamente a π, impõe-se a questão de saber se algum dia se chegará ao último decimal de π. Para Esther Ferrer os números primos estão de alguma forma relacionados com o cosmos no sentido em que o cosmos está em expansão, e por outro lado quanto mais se avança na série de números primos, mais distância existe entre eles, como se respirassem e se ampliassem.

2. Como se relacionam a Matemática, o Movimento e a Multimédia na construção de uma Performance Nesta secção vamos abordar alguns conceitos mais gerais onde a matemática, o movimento e a multimédia são utilizados na construção de uma performance. De uma forma geral, temos o esquema:  

Performer

Movimento Técnicas de Imp (Laban) Corpo-Instrumento

Processo documental autoetnográfico

Multimedia Técnicas de Edição Corpo-Memória

Matemática Conceitos-Construção Foco no Movimento

Multiplicidade de Auto-Representações

   

Construção contraexemplos para o Dualismo Cartesiano

Identidade Media/Redes Sociais Performance

Existem várias direcções nas quais a matemática, o movimento e a multimédia se relacionam. Na construção da performance On a Multiplicity está implícita uma estrutura: são apresentadas projecções de multimédia a partir de vídeos como registo de improvisação de movimento bem como sobre vários discursos sobre a construção da performance e sobre o trabalho de pesquisa que se está a desenvolver. A esta primeira camada chamamos o trabalho autoetnográfico que é depois transformado em material visual e sonoro. Os discursos podem ser também sobre a investigação em Matemática desenvolvida ao longo da construção da performance propriamente dita. A performance final é composta por projecções de vídeo e som, bem como improvisação de movimento e som em tempo real. Assim, temos 4 direcções específicas: 1. Foco na investigação (em curso) em matemática antes ou durante a improvisação em movimento que é filmada e depois projectada na performance; 2. Utilização na performance dos discursos de apresentação de resultados da investigação em matemática em conferências – som editado e som trabalhado em tempo real; 3. Utilização de alguns conceitos de matemática na construção de paradigmas nos processos de criação em performance; 4. Performance como matriz intersubjectiva resultante de investigação e experimentação em matemática, movimento e multimédia. Relativamente ao ponto 1, temos então 2 sentidos ou camadas de relação entre a investigação em matemática a que o intérprete se dedica no decorrer do processo de criação como foco de pensamento: uma delas diz respeito a pelo menos 5 horas de investigação em matemática (seguidas) e no máximo 10 minutos de pausa entre o final destas 5 horas e a improvisação em movimento filmada. A outra é o foco na investigação em matemática (em curso) durante a improvisação em tempo real na apresentação pública da performance. Nesta direcção estamos então a referir-nos à relação entre a matemática e a improvisação de movimento, seja a que se segue a várias horas de foco na investigação em matemática e que é filmada, seja a que acontece durante a apresentação pública da performance. Aqui apenas nos referimos ao foco de pensamento e atenção na investigação em matemática, seja porque o intérprete passou várias horas com esse foco de atenção e em seguida improvisa movimento, não com o foco na investigação em matemática mas com a influências

que as várias horas com esse foco deixaram, seja o foco de atenção enquanto improvisa movimento em tempo real. Há assim uma relação interdisciplinar entre a matemática e a improvisação de movimento, e portanto entre a matemática e a dança no sentido em que se tenta de alguma forma relacionar a matemática e a dança, usando a matemática como foco de pensamento e as técnicas de dança como instrumentos concretos. No entanto há também uma relação transdisciplinar entre a matemática e a improvisação de movimento no sentido em que a improvisação de movimento após várias horas de foco na investigação em matemática deixa de ser apenas improvisação de movimento com o foco de atenção noutro tema qualquer e passa a ser um intérprete específico a criar um novo ambiente de improvisação de movimento a partir de estados de percepção específicos consequentes das várias horas de investigação em matemática. A transdisciplinaridade está também presente quando existe o foco de atenção na investigação em matemática enquanto o intérprete improvisa movimento em tempo real na apresentação da performer, no sentido em que, também pelo facto de a investigação em matemática se debruçar sobre problemas novos e ainda por resolver, permite o aparecimento de um conjunto de novas abordagens nos estudos da performance. No que respeita o ponto 2, ou seja, a utilização na performance dos discursos de apresentação de resultados da matemática em conferências – som editado e som trabalhado em tempo real, temos presentes a utilização de raciocínio matemático associado à investigação que decorre no contexto e ao longo do processo de criação artística, bem como a forma como ela é partilhada em contexto de conferências de matemática como uma das ferramentas multimédia na performance. Ou seja, são gravadas – o som apenas - réplicas das apresentações feitas, ou a fazer no futuro, em conferências de matemática, e em especial de Cálculo das Variações, que são depois editadas e reformuladas como material sonoro a utilizar na performance concreta. Também em tempo real são executados alguns excertos dessas apresentações ou preparações das mesmas como material performático, e portanto como objectos. A utilização dos discursos de matemática como objectos na criação artística é um elemento transdisciplinar desta proposta para processos de criação artística, pois pretende gerar-se um conjunto de multiplicidades onde estejam presentes a matemática, a multimédia e a autobiografia no contexto da performance. O som gravado e manipulado é usado como banda sonora dos vídeos de improvisação de movimento gravados após várias horas de estudo e foco de atenção sobre os

problemas sobre os quais os discursos se debruçam. O som em tempo real está associado a discursos relativos à investigação em curso na altura da apresentação pública. Ou seja, se existir um intervalo suficientemente grande entre duas apresentações, existirão excertos de discursos diferentes em tempo real. Isto acontece pelo facto deste trabalho ser auto biográfico e também autoetnográfico, e assente na improvisação e na relação com o tempo “real” como técnicas principais. Esquematicamente, temos: Utilização de raciocínio matemático associado à investigação e à forma como ela é partilhada em contexto de conferências como uma das ferramentas multimédia na performance.

Som em tempo real a partir das questões que estão a ser investigadas

Som Editado a partir da réplica de uma apresentação pública

Gerador de multiplicidades no contexto da performance

 

Relativamente ao ponto 3, ou seja, a utilização de alguns conceitos de matemática na construção de paradigmas nos processos de criação em performance, vamos apresentar um pouco melhor uma proposta de modelo de criação artística, que assenta em alguns conceitos matemáticos na sua base, mas que pode na verdade ser visto como um modelo bastante geral. Começamos então por introduzir alguns conceitos e em seguida descrever o modelo e a forma como ele pode ser entendido e aplicado. Assim, temos: Definição 1.1 Um axioma é uma proposição que não é demonstrada, mas considerada como auto-evidente ou sujeita a decisão necessária. Assim, a sua verdade é tomada como certa e serve como ponto de partida para a dedução de outras verdades (estas já dependentes de uma teoria).

A noção de axioma refere-se naturalmente ao que não é demonstrado ou questionado no que respeita a sua origem, dentro de um processo de criação. Por exemplo, a ideia inicial ou conceito de partida de uma performance concreta tem uma origem axiomática. Reflecte-se sobre ela, mas não se questiona o seu aparecimento. A partir deste conceito deduzem-se e encontram-se outros conceitos, mas considero neste trabalho o primeiro conceito inquestionável na origem. Neste modelo são usadas definições como as de Imagem Axiomática, Sub-Imagem e Dinâmica que introduziremos mais à frente. Para tal, vamos primeiro introduzir o conceito de imagem como é entendida neste artigo e neste contexto. Em (Damásio, The Feeling of What Happens: Body, Emotion and the Making of Consciousness 1999) António Damásio afirma que o termo “imagens” significa os padrões mentais com uma estrutura construída usando a moeda corrente de cada uma das modalidades sensoriais: visual, auditiva olfactiva, gustativa, somatosensorial”. De forma muito simples, podemos dizer que a forma como entendemos e lidamos com o mundo que nos rodeia traduz-se no cérebro como um conjunto de imagens pertencentes a diferentes níveis de consciência. Este conceito de “imagem” é o que vou seguir neste trabalho, ainda que se entendam aqui as modalidades sensoriais de forma nãodualista, ou seja, também relacionadas com as imagens abstractas. Os padrões mentais têm uma natureza organizada e estruturada, ainda que não tenhamos conhecimento total sobre o que acontece no cérebro. Os neurocientistas ainda procuram uma resposta definitiva para a forma como gerimos estas “imagens” e as transformamos em conceitos. Neste processo de consciência e gestão das imagens no cérebro, também autores como Alva Noë discutem e argumentam a importância da experiência do corpo, a forma como o mundo se nos mostra/apresenta/representa e como nós nos mostramos/apresentamos/representamos ao mundo (ver por exemplo (Noë 2002)). Neste trabalho sigo a ideia defendida por Alva Noë de que a consciência não é algo que acontece, é algo que fazemos, indo para além da ideia de que a consciência é algo que está dentro de nós, separada do mundo exterior, o que podemos ainda considerar uma outra forma de dualismo. Uma ferramenta muito importante é o valor atribuído às imagens e padrões mentais. Uma abordagem mais abrangente às noções de imagem e o seu valor é fornecida em (Damásio, Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain 2010): o autor defende que o dualismo cartesiano não faz sentido pois a partir dos casos estudados, emoção é também razão e razão é também emoção, corpo é também

mente e mente é também corpo, em diferentes proporções, dependendo das circunstâncias e respectivo valor que lhes atribuímos. Assim, Definição 2.1 Uma Imagem Axiomática (IA) é uma imagem inicial que surge axiomaticamente, tendo como condições suficientes a criação de consciência e de padrões mentais relativamente ao que rodeia um indivíduo, e que permitem que tal aconteça. Uma Imagem Axiomática é uma proposição que não é demonstrada, o que em qualquer performance específica pode ser visto como um conceito, ideia ou universo conceptual limitado, que não pode ser demonstrado, sendo a sua validade tomada como certa. A origem axiomática da Imagem Axiomática é quase sempre não lógica, no sentido em que no contexto de uma qualquer performance específica lidamos principalmente com ideias, conceitos e acções subjectivos e que derivam de outras mais simples. Assim, não tem que ser verdadeira universalmente, apenas considerada certa no contexto de alguma perspectiva de vida e arte, com teoria e conceitos matemáticos associados. Qualquer processo de criação tem o seu início efectivo quando a IA surge e começa a ser modelada no processo de construção de padrões mentais e consciência dos mesmos. Obviamente, determinamos o momento do seu aparecimento como aquele em que nos apercebemos da sua origem e pertinência. Podemos também afirmar que a IA define o universo de pesquisa em que o performer está envolvido. Podemos também dizer que temos uma IA que surge como um conjunto de conjuntos de padrões mentais. Depois de um processo de improvisação e compreensão das capacidades de percepção, considerando-as teoricamente, obtemos várias funções quase-contínuas, cada uma delas associada a um conjunto de padrões mentais nos quais todas essas técnicas de improvisação, percepção e teoria se juntam. O passo essencial é considerar e analisar os limbos de cortes destas funções quase-contínuas, pois estes pontos são aqueles em que podemos mudar de direcção ou criar novos universos multidimensionais. Em seguida temos então a definição de Sub-Imagem: Definição 2.2 Uma Sub-Imagem (SI) é uma imagem que é um corte no processo de disseminação quase contínua da IA. Claro que existem muitas – podem até ser infinitas – possibilidades de considerar e definir Sub-Imagens, dependendo das funções quase-contínuas, e também dos cortes considerados ao longo do processo de criação. Existe um ponto –

ponto limite – neste processo de gerar as SI no sentido em que, quanto mais SI gerarmos, mais tendemos a distanciarmo-nos da IA, pois é um universo limitado. Assim, existe um momento em que paramos, pois atingimos ou aproximamo-nos – com uma distância infinitesimal - do ponto limite que pertence à fronteira do conjunto mais geral definido pela IA. Se não pararmos, passamos a fronteira e atingimos o exterior da IA, o que já não nos interessa neste trabalho. Cada SI pode ser vista como um conjunto onde podemos considerar uma função que representa todas as acções dentro da SI. Também podemos considerar subconjuntos onde as funções diferentes são definidas. No contexto da criação de Dinâmica dentro de cada SI, estas funções estão associadas a acções concretas. Como criar esta Dinâmica? Consideramos um primeiro movimento ou acção ou ainda estado de presença/ausência como axiomático. Em seguida seguimos a metodologia já introduzida - em que geramos SI a partir da IA – usando técnicas de improvisação e percepção tal como abordagens teóricas associadas neste contexto específico. Estas técnicas e abordagens teóricas levam-nos a gerar funções quase-contínuas com pontos de descontinuidade que serão os cortes que analisamos e nos quais podemos parar ou continuar o percurso associado à função utilizada, ou ainda mudar de direcção e este corte torna-se um ponto de mudança para outras direcções possíveis. Ou seja, Definição 2.3 A Dinâmica dentro de uma SI é um conjunto de funções quase contínuas do conjunto de técnicas de improvisação e percepção, bem como de abordagens teóricas num ricochetear entre cortes e continuidade. Assim, tendo em cada SI um subconjunto e uma função quase-contínua em que podemos parar, analisar e mudar de direcção nos seus cortes, é também possível criar subconjuntos de acções, movimentos multidireccionais que farão parte da narrativa. Isto significa que criamos a partir de um conjunto e de uma função quase contínua em cada SI várias funções quase-contínuas, tendo em conta as possíveis mudanças de direcção em cada ponto de descontinuidade ou corte. Para mais detalhes relativamente aos vários conceitos matemáticos aqui utilizados, ver (T. J. Santos, On a Multiplicity: deconstructing Cartesian dualism using mathematical tools in Performance 2015) Relativamente ao ponto 4, temos que de facto, e utilizando este modelo lógico de construção de processos artísticos, uma performance pode efectivamente ser vista como uma matriz intersubjectiva resultante de investigação e experimentação em matemática, movimento e multimédia, tendo em conta a pesquisa autoetnográfica

associada. Como refere Daniel N. Stern em (Stern, The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life 2004), “our mental lide is cocreated. This continuous cocreative dialogue with other minds is what I am calling the intersubjective matrix”, referindo ainda no mesmo livro que obviamente a cocriação pode ser com a sua própria mente. Ou seja, o diálogo intersubjectivo entre conceitos, ideias e disciplinas é o que permite a construção de uma matriz intersubjectiva, mas ela pode envolver apenas o diálogo de uma mente consigo própria, tendo em conta que cada indivíduo é em si uma multiplicidade. No nosso caso, a matriz intersubjectiva é cocriada por três elementos: matemática, movimento e multimédia nas suas várias interelações e interdependências possíveis. Por outro lado, esta matriz intersubjectiva tem um comportamento rizomático com tendência a líquido, onde “rizoma” é um conceito de G. Deleuze e F. Guattari e introduzido em (Deleuze e Guattari 2008), e “líquido” é um conceito de Z. Bauman definido em (Bauman 2000). Temos então que o nosso modelo pode ser descrito de forma esquemática da seguinte forma:

 

3. A Interdisciplinaridade e a Transdiciplinaridade   Nesta secção queremos referir-nos ao que defendemos neste trabalho ser Interdisciplinar e Transdisciplinar, referindo a importância de ambas para que o trabalho e a performance sejam válidos de várias perspectivas, seja na perspectiva científica e respectiva importância que cada disciplina nos traz, bem como as novas formas de fazer e pensar sobre o que a transdisciplinaridade nos permite. Temos que, esquematicamente,

Utilização  de  conceitos  e   ideias  matemáticas  para   apresentar  modelos  de   criação  artística

Imagem   Axiomática Sub-­‐Imagens Dinâmica

Utilização  de  multimédia   para  gerar  um   corpo-­‐memória  e   multiplicidades  em   performance  

Registo  de  vídeos  como  memória  de  um   corpo  a  improvisar  movimento Edição  de  vídeos  que  permite  gerar  a  ideia   de  multiplicidade

Som  editado  e  em  tempo  real

O que é neste modelo e nesta abordagem interdisciplinar e transdisciplinar? Existem aqui 3 disciplinas ou áreas de estudo que são centrais: matemática, movimento e multimédia. Por um lado existe um trabalho interdisciplinar entre elas no sentido em que são usadas como ferramentas com o objectivo de fornecerem mais informação e mais capacidade de compreensão das outras disciplinas. No entanto, o que é mais interessante e inovador neste trabalho e nesta abordagem é efectivamente a transdisciplinaridade, no sentido em que estas três áreas geram nas suas relações intersubjectivas novas formas de fazer performance, bem como novas formas destas

disciplinas se descreverem, apresentarem, bem como de serem vistas como novas possibilidades de si. Temos então:

Transdisciplinaridade:

A  matemática  e  as  técnicas   de  dança  como  geradores   de  novos  ambientes  de   movimento  e  novas   formas  de  pensar  a   matemática

A  multimédia  como   elemento  transformador  e   gerador  de  novas  formas   de  construir  matemática,   movimento  e  multimédia.  

 

geram-­‐se  novas  fomas  de  movimento

geram-­‐se  novas  possibilidades  em   matemática

geram-­‐se  novas  formas  de  fazer   multimédia

geram-­‐se  novas  formas  de   apresentação  e  representação

Novas  formas  de  fazer  performance  e   de  construir  performers!!!

4. A performance On a Multiplicity   Nesta secção final vamos então descrever a performance On a Multiplicity e argumentá-la como exemplo de aplicação do modelo descrito na secção 2. On a Multiplicity é, na sua forma final, uma performance multimédia, onde a projecção de vídeo e som, bem como o trabalho de movimento e criação de som em tempo real, formam uma ideia de multiplicidade. Surgiu da Imagem Axiomática mais geral de pensar a nossa multiplicidade enquanto seres humanos, com a capacidade de sermos conscientes das nossas existências e acções, a partir de uma perspectiva

pessoal; ou seja, usei a minha experiência pessoal como exemplo de multiplicidade. Assim, restrinjo o universo da IA para a minha experiência pessoal, para a minha própria multiplicidade, usando uma abordagem autoetnográfica. O processo de construção de On a Multiplicity foi dividido em duas fases. Numa primeira fase, a que decidi chamar Série de Improvisações, documentei-me em vídeo a improvisar movimento usando algumas técnicas de dança contemporânea, em especial improvisação a partir da técnica de Laban, e com regras bastantes restritas no que respeita o espaço e o foco mental. Na segunda fase editei e manipulei estes vídeos, juntamente com investigação em voz sobre possíveis discursos à volta de vários assuntos relacionados com matemática e performance, e a partir daí foram criados dois vídeos com som a serem projectados e com eles construí a performance concreta, com movimento e som em tempo real. Estas duas fases deste projecto podem ser vistas como independentes no sentido em que podem ser consideradas individualmente como objectos artísticos e/ou materiais de investigação.

Fotografia de Filipe Oliveira

Fotografia de Tiago Frazão

A performance On a Multiplicity pode também ser vista como uma experiência visual e performativa autoetnográfica, em especial por três razões: em primeiro lugar, porque este trabalho tem uma série de experiências visuais documentais onde estou essencialmente interessada em mim como um ser com multicamadas contextualizado num tempo, num espaço e num lugar. Em segundo lugar, acredito que esta performance produz efectivamente objectos que questionam as fronteiras entre o visual como ferramenta de construção de objectos artísticos, e também como ferramenta para investigar em etnografia visual, a partir de várias perspectivas diferentes. Em terceiro e último lugar, considero esta performance na sua forma final como um exemplo concreto de como Tami Spry define ‘performing autoethnography’ em (Spry 2001), dado que estou a ser performer de mim própria a partir de uma perspectiva contextualizada em multicamadas. Em Série de Improvisações decidi registar-me em vídeo após pelo menos 5 horas de investigação em cálculo das Variações – Matemática, dentro de algum espaço específico de cada uma das casas em que vivi entre o final de 2010 e Setembro de 2011, tempo em que desenvolvi o processo de registos em vídeo ou filmagens. Ao longo deste tempo mudei de casa/residência regular 3 vezes, definindo aqui casa/residência regular como o lugar onde vivo, onde desenvolvo a maior parte do meu trabalho e consequentemente onde estou a maior parte do tempo. Em cada casa escolhi alguns espaços específicos relacionados com a ideia de que o espaço escolhido seria um dos espaços onde passava a maior parte do tempo ou com a qual sentia bastante empatia. Uma parte da essência da construção desta performance é a escolha de estar sozinha e portanto filmei-me sozinha, á procura de um ambiente onde fosse possível reconfigurar-me a um nível infinitesimal em espaços ou circunstâncias restritos. É também desenvolvida, naturalmente, uma relação com a câmara neste processo. “I want a corner, I want a wall, I want to feel the machine and to know that I cannot move too much in order to fit inside the screen” (excerto de registos escritos ao longo do processo de registo de Série de Improvisações). Assim, foi aceite uma primeira Imagem Axiomática: Eu e os Meus Eus. Defini também cinco Sub-Imagens: Corredor, Sala de Estar, Espaço Entre, Casa de Banho, Cozinha. Observemos que as SI não são mutuamente exclusivas ou independentes umas das outras. Elas pertencem a uma “matriz intersubjectiva” de eus (como já foi referido, “matriz intersubjectiva” foi um termo introduzido por Daniel N. Stern em

(Stern, The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life 2004)). A Dinâmica introduzida em cada SI da Série de Improvisações é caracterizada pela investigação de movimento usando algumas técnicas de improvisação de Laban, bem como referencias de Nicole Peisl e Alva Noë (ex-bailarina da companhia de Dança Forsythe e filósofo da Universidade de Berkeley) no que respeita algumas técnicas de percepção em estados de presença/ausência3. Gostaria também de referir os trabalhos de performers portugueses como Tânia Carvalho4 e a dupla Sofia Dias & Vítor Roriz 5 . No trabalho de Tânia Carvalho

inspiram-me os novos universos de

movimento construídos, bem como a importância da música e do canto. O trabalho da dupla Sofia Dias & Vítor Roriz inspira-me pelo trabalho de percepção bastante meticuloso. Alguns vídeos sobre Série de Improvisações podem ser encontrados em http://telmasantos76.wix.com/onamultiplicity e que também podem ser encontrados no meu site pessoal http://www.telmajoaosantos.net. Para mais detalhes sobre a relação desta performance com o conceito matemático de turbulência, ver ainda (T. J. Santos, On turbulence: in between mathematics and performance 2014).

Bibliografia Wasilewska, Katarzyna. “Mathematics in the world of dance.” Bridges 2012: Mathematics, Music, Art Architecture, Culture. 2012. 453-456. Bauman, Zygmunt. Liquid Modernity. Cambridge: Polity Press, 2000.                                                                                                                 3 Ver, por exemplo, http://www.youtube.com/watch?v=zMT-pFHy3D0, uma conversa entre William Forsythe e Alva Noë sobre consciência. Pode também consultar-se http://blip.tv/dancetechtvbliptv/dance-as-a-way-of-knowing-interview-with-alvano%C3%AB-1003324 para um aprofundamento das ideias de Alva Noë no que respeira a dança como forma de conhecer e explorar as expreiências na relação com o mundo através do movimento. 4 Tânia Carvalho é uma bailarina/performer portuguesa que tem feito explorações interessantíssimas no que respeita movimentos considerados “diferentes, como podemos ver nos videos: http://www.youtube.com/watch?v=CNR7imd44N4, http://www.youtube.com/watch?v=0jylzf-tPis, http://www.youtube.com/watch?v=1VnPZ9Wy_9s. Ela faz também experiências e performances com voz e canto que podem ser vistas em: http://www.youtube.com/watch?v=lE6lfsU5bNc, http://www.youtube.com/watch?v=RoA9IYqwqW4. 5 O trabalho desenvolvido pela dupla Sofia Dias & Vítor Roriz é um dos mais interessantes desta geração, na minha opinião, no que respeita ao trabalho sobre percepção e construção de ambientes que se metamorfoseiam ao longo das peças de forma extraordinária: http://www.youtube.com/watch?v=VNjhEbcEfOQ.

Damásio, António. O Livro da Consciência - A Construção do Cérebro Consciente. Lisboa: Temas e Debates, 2010. —. Self Comes to Mind: Constructing the Conscious Brain. Pantheon, 2010. —. The Feeling of What Happens: Body, Emotion and the Making of Consciousness. London: Heinemann, 1999. Deleuze, G., e F. Guattari. Mil Planaltos - Capitalismo e Esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio & Alvim, 2008. Noe, Alva. Varieties of Presence. Cambridge: HArvard University Press, 2012. Noë, Alva. “Is the visual world a grand illusion?” Journal of Consciousness Studies Vol 9 - Nº 5/6, 2002: 1-12. Santos, Telma João. “On turbulence: in between mathematics and performance.” Performance Research 19, n.º 5 (2014): 7-12. Santos, Telma João. “On a Multiplicity: deconstructing Cartesian dualism using mathematical tools in Performance.” Liminalities, 2015. Santos, Telma João. “Performance as remediation, where the concepts of immediacy and hypermediacy converge.” In Art & Remediation, montagem por José Quaresma, 20-30. Lisboa: CIEBA - FBAUL, 2013. Spry, Tami. “Performing auto ethnography: an embodied methodological praxis.” Qualitative Inquiry - Volume 7 - Nº 6, 2001: 706-733. Stern, Daniel N. The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life. New York: W. W. Norton & Company, Inc., 2004. —. The Present Moment in Psychotherapy and Everyday Life. WW Norton&Company, 2004.

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