Medo na Cidade: Uma experiência no Porto do Capim (TCC - Bachelorarbeit)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Medo na Cidade Uma experiência no Porto do Capim

Márcio da Cunha Vilar Aluno Mauro Guilherme Pinheiro Koury Orientador

João Pessoa, Pb Março de 2001

MÁRCIO DA CUNHA VILAR

MEDO NA CIDADE Uma experiência no porto do capim

Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais da UFPb como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em ciências sociais, com habilitação em sociologia. Orientador: Prof. Mauro Guilherme Pinheiro Koury

João Pessoa, Pb Março de 2001

TERMO DE APROVAÇÃO

MÁRCIO DA CUNHA VILAR

MEDO NA CIDADE Uma experiência no Porto do Capim

Monografia aprovada no dia _____ de ____________ de 2001, como requisito parcial para obtenção do título de graduado no Curso de Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, pela seguinte banca examinadora:

_________________________________ Prof. Mauro Guilherme Pinheiro Koury Orientador

_________________________________ Prof. Edmundo de Oliveira Gaudêncio

______________________________ Prof. Ariosvaldo da Silva Diniz

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Agradecimentos

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Sumário

Resumo .................................................................................................................... Abstract ................................................................................................................... Introdução ................................................................................................................ Capítulo 1 – Medo, Memória e Representação Social ........................................... Capítulo 2 – Pobreza, Medo e Controle Social ....................................................... Capítulo 3 – Desenvolvimento Urbano de João Pessoa ......................................... Capítulo 4 – Projetistas das Reformas do Centro Histórico de João Pessoa .............. Capítulo 5 – Moradores e Trabalhadores do Porto do Capim, Varadouro ............ Conclusão ...................................................................................................................

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RESUMO O medo e a cidade, o medo urbano, é o tema central deste trabalho. Este estudo procura explorar uma dimensão social do medo na cidade praticando uma descrição densa. Visa construir uma compreensão crítica da vivência do medo nos dias atuais – de como influi sobre a construção do social e de como esta construção contribui na formação do medo em sociedade - através da experiência de observação em campo, da análise de narrativas e da reconstrução histórica de uma comunidade que vive numa região conhecida como “Porto do Capim”, localizado no bairro do Varadouro, no Centro Histórico da cidade de João Pessoa, Pb.

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ABSTRACT The fear and the city, the urban fear, is the theme of this work. This study looks to explore a social dimension of the fear in the city practing a dense description. It intents to build a critical understanding of the fear living in the modern days - how it contributes in the construction of the social and how this construction helps the formation of the fear in society - through the experience of the field observation, the narrative’s analysis and by a historical reconstruction of the community that lives in a place called Porto do Capim, localized in Varadouro´s neighbor, in the João Pessoa´s downtown, PB.

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Introdução

“(...) Sete anos depois da chacina [da Candelária], aquele brasileiro sem documento chamado Sandro do Nascimento [o Mancha], 21 anos, protagonizou uma das cenas mais violentas já transmitidas ao vivo pela televisão: o seqüestro, na tarde da segunda-feira 12, de um ônibus da linha 174, que liga a Central do Brasil à favela da Rocinha. A tragédia aconteceu no bairro do Jardim Botânico (zona sul), durou quatro horas e meia, terminou com a morte de Mancha e de uma refém e deixou o País em estado de choque. (...) A crueldade do seqüestrador, a incompetência da polícia e a sensação de impotência da sociedade civil diante de uma guerra social não declarada fizeram daquela segunda-feira um marco. O episódio inaugurou mais uma semana de medo e abriu os olhos do País para acompanhar, desolado, uma seqüência de tragédias de insegurança pública. (...) Na mesma tarde em que Sandro era estrela na tevê, outro assalto a ônibus na desprotegida avenida Brasil, no Rio, resultou na morte de um sargento da PM (...)”. (fonte: Revista ISTO É, 21 de Junho/2000, n. 1603, página 28). O trecho acima, extraído de uma reportagem de capa intitulada “MEDO”, de uma das revistas mais populares no país, parece expor uma perspectiva comum à maior parte da mídia nacional: o medo urbano visto como conseqüência, ou “efeito”, da “grande onda de violência” pela qual passa a sociedade. “Refém da violência, o País pergunta se há saída”, informa o sub-título da capa. Essa reportagem1 ainda observa que a sociedade brasileira tem sustentado e desenvolvido, cada vez mais, todo um mercado voltado para a garantia da segurança pessoal, visto que, “diante de uma guerra civil não declarada, refém de uma polícia despreparada e à mercê de governos sem políticas de combate à violência, brasileiros indefesos vivem entre o medo e a revolta”2. Assim, este mercado parece constituir a organização de uma forte rede de proteção privada, uma vez que a segurança pública não consegue diluir suficientemente a situação de insegurança em face das ameaças constantes de revoltas da população de baixa renda que, perigosamente inconformada, parece muitas vezes não suportar mais as próprias 1

Utilizada aqui como referência padrão entre as inúmeras reportagens do tipo que vinculam o medo, principalmente, à criminalidade e a violência.

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condições de existência, exteriorizando tais revoltas através da criminalidade. Essa classe social, na qual “Mancha” pode ser classificado, é historicamente caracterizada, estigmatizada e conhecida como “classe perigosa”3. Esse medo contemporâneo no país é, ainda, aparentemente mais bem visualizado quando contrastado com o período após a Segunda Grande Guerra, conhecido ufanamente como uma época de relativa paz e estabilidade econômica no país e no restante do mundo. Pode-se constatar, de fato, que

“mesmo com o final do regime militar fica patente que as relações com as camadas populares, apesar de trocas e interações, têm uma natureza cada vez mais explosiva. Há um enorme crescimento da criminalidade, com ampla divulgação pela mídia, tornando o cotidiano, especialmente nas grandes cidades, tenso e perigoso. [...] A criminalidade e a insegurança nas ruas não chegam a ser uma absoluta novidade, mas nos últimos vinte anos tem atingido dimensões epidêmicas, afetando toda a sociedade. Já são feitas comparações com a violência na Colômbia e os índices, em geral, são alarmantes” (Velho, 2000: 24). A vivência em centros urbanos parece ser caracterizada em boa parte, portanto, a partir de uma experimentação de uma determinada violência cotidiana que, fisicamente sentida ou dolorosamente esperada, a todo ou a qualquer instante, configura um “clima” específico de “insegurança”. Melhor dizendo, um clima de medo frente à possibilidade de vir a ser uma vítima de alguma das diversas formas de violência cotidiana mais comumente conhecidas e mais assistidas: assaltos, seqüestros, estupros, assassinatos, entre outras. De acordo com a citação acima, vemos ainda que a própria mídia, como maior difusora em massa de informações no país e no mundo, junto ao aumento da criminalidade, parece também contribuir para conservar essa situação alarmista através de uma propagação contínua de notícias sobre violência urbana. Porém, se por um lado, parece

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Na mesma reportagem, na página 27. Ver Bresciani.

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haver um constante estado de vigília, de alerta social tanto individual quanto coletivo, por outro lado, simultaneamente parece haver também, de forma contraditória, uma certa banalização da violência urbana. Essa banalização parece acontecer por conta de uma espécie de saturação do assunto provocada pela incessante atenção dada. Talvez por isso, fale-se tanto em violência (e de uma forma bastante uniforme) e pouco se tenha discutido sobre o medo na cidade. Quando é colocado em pauta, o medo quase sempre é associado à violência, mas como uma conseqüência desta. Assim, além de banalizar a violência na cidade, e a criminalidade a ela associada, essa enchente de informações que amedrontam e que são veiculadas pela mídia banaliza também o próprio medo. Pois, não só são mostradas diversas formas de violência, como também – e principalmente – são mostradas imagens de medo da vítima: momentos de “aflição”, de desespero, de angústia profunda, de medo, vergonha, entre tantas outras. A exposição em massa dessas emoções não apenas choca, também as tornam banais4, – sua excessiva divulgação termina mostrando o quanto se configura como reações naturais. Afinal, espera-se que qualquer pessoa que passe por situação semelhante apresente as mesmas reações, ou emoções (esse estado exacerbado dos sentimentos), ou ainda, os mesmos “sintomas”. Devido a isso, é significativo notar a forte atenção dada, nestas reportagens, às reações emotivas das vítimas, de seus parentes, de pessoas próximas e, em geral, de vítimas em potencial5.

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Em Arendt (1999) é discutida a “normalidade” ou a banalização da violência total em meio a Alemanha nazista. A própria capa da revista retrata, numa foto-montagem, pessoas dentro de um ônibus (interpretadas por atores profissionais) cujos rostos expressam insatisfação, indignação, medo, angústia e etc... e onde uma delas passa uma mensagem: “MEDO”, é o que escreve em letras grandes nas janelas do coletivo, com seu batom vermelho.

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Essa condição leva a crer que a sociedade contemporânea, em sua condição de universo midiático, parece nutrir-se da emoção pública e o medo parece ocupar um espaço diferenciador dentro deste universo. Podemos especular: não seria o consumo da violência divulgada pela mídia uma espécie de “objetivação”, tal como entende os psiquiatras6? De um jeito ou de outro, caracterizado por uma espécie de efeito “norteador” (ou elemento referencial), este medo específico, o da violência urbana como ameaça coletiva, vem tornando-se referência central para uma reelaboração de novos modos de organização social e conduta individual, a partir da produção de estratégias específicas que permitem suportá-lo (Diniz, 1999). Desde as reformas nos bairros onde os imóveis são mais baratos e populações de baixa renda habitam, passando pelo reforço policial e deslocamento populacional até as fortificações residenciais, o auto-enclausuramento dos residentes, a contratação de serviços voltados para diminuir a insegurança particular e a sustentação de um grande mercado de proteção patrimonial, as estratégias de circulação nas ruas consideradas perigosas e nas ruas consideradas seguras das cidades, as construções imaginárias de lógicas préidentificatórias de pessoas consideradas suspeitas, assim como outras inúmeras atitudes corriqueiras e demasiadamente usuais para serem percebidas – como o hábito já consolidado entre as mulheres de andarem pelas ruas com suas mãos segurando ininterruptamente suas bolsas, ou “sair com o mínimo possível” – fazem parte desta nova configuração comportamental, que vai do mais coletivo ao mais individual, desde entidades estatais ou corporações privadas até pessoas assustadas e preocupadas com o próprio bem-estar. Mas todo esse conjunto, também, aponta para uma formação de uma 6

“G. Delpierre escreve a esse respeito: ´Um [...] efeito do medo é a objetivação. Por exemplo, no medo da violência, o homem, ao invés de lançar-se à luta ou fugir dela, satisfaz-se olhando-a de fora. Encontra

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nova sensibilidade social, frente às condições inéditas colocadas na atual modernidade7. O caráter re-estruturante pode ser encontrado na constatação de uma nova mentalidade e na tessitura de ajustes culturais. Certamente, é natural que os seres humanos sintam medo, – o que não é natural é o objeto desse sentimento (Delumeau, 1989). Uma vez banalizado, um processo histórico pode ser erroneamente compreendido como um fenômeno natural, e não como parte de uma realidade estruturada a partir de um contexto sócio-cultural. Essa possível naturalização do medo social na cidade implica em falta de estranhamento por parte da própria sociedade sobre si mesmo, sobre esse fenômeno específico e, portanto, permite uma não reflexão crítica do tema aqui em questão. O estranhamento é um poderoso princípio de percepção que possibilita o trabalho de reflexão sobre a sociedade. Sendo natural não é mais passível de ser sentido ou de ter sentido na sociedade8. Ou, mesmo sendo, não usufrui suficiente relevância no âmbito das reflexões sobre o social. No estudo científico do medo é privilegiado, quase sempre, o seu aspecto restritamente individual, num sentido mais psicológico, mas, para o cientista social, “em todo o caso, não precisa procurar muito para identificar a presença do medo nos comportamentos de grupos. Dos povos ditos ´primitivos´ às sociedades contemporâneas, encontra-o quase a cada passo – e nos setores mais diversos da existência cotidiana”. (Delumeau, 1989: 21).

prazer em escrever, ler, ouvir, contar histórias de batalhas. Assiste com certa paixão às corridas perigosas, às lutas de boxe, às touradas. O instinto combativo deslocou-se para o objeto”. Apud Delumeau (1989:30). 7 Ver, entre outros, os artigos de Koury (1994), DaMatta (1978) e Caldeira (1991). 8 A esse propósito, ver novamente sobre o nazismo na Alemanha e a banalização do mal a partir de Arendt (1999).

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No que pese a escassez de estudos voltados diretamente sobre o medo, - com exceção, talvez, dos trabalhos em áreas psicológicas -, muitos trabalhos realizados9 têm colocado o sentimento do medo como realidade político-social e, portanto, histórica, enfatizando principalmente seu caráter ideológico10. É nesta perspectiva de abordagem que este estudo se encontra. Para tanto, procura valorizar um olhar mais cultural e social sobre o fenômeno. Este trabalho está dividido em cinco capítulos e uma última parte conclusiva. No primeiro capítulo, busca-se aprofundar o significado do sentimento de medo. Este, quando pensado como memória e representação social, apresenta uma realidade extremamente mais complexa onde se encontra sua feição ideológica e seu movimento estrutural no interior do social. Procura mostrar como as reflexões sobre o medo possuem uma necessidade de serem feitas dentro de contextos históricos determinados e de como o medo se entrecruza com os mais diversos fatores que compõe o social, caracterizando-se como fato social total. A identificação do medo em nossa sociedade parece, portanto, exigir conjuntamente (a) uma reconstrução histórica, e (b) um esforço de contextualização, a fim de evitar uma reificação do fenômeno. O trabalho de reconstrução histórica, por permitir a apreensão da mudança social, assim como da permanência de certos elementos no decorrer do tempo, parece possibilitar o reconhecimento do surgimento e da formação do objeto em estudo e, portanto, significa sua melhor delineação no contexto em estudo – a cidade de João Pessoa. No segundo capítulo, trata-se de recortar o lugar e o destino do medo na cidade moderna. Aqui se entrecruzam como fatores co-determinadores a pobreza, o medo e o

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Em sua maioria, principalmente, nas últimas décadas. Ver FOUCAULT (1996), DELUMEAU (1989), CHAUÍ (1986), BRESCIANI (1985 / 1994), SEVCENKO (1985 / 1994), DINIZ (1999), MORAIS (1981).

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controle social. Essencialmente, situa a realidade do medo vista no primeiro capítulo num contexto moderno, procurando visualizar a consolidação de uma nova formação social que predomina, nos dias atuais, em todo o domínio ocidental. Este capítulo explora o movimento temporal do medo no ocidente. A fundamentação das estratégias de controle da classe que se sente ameaçada, a burguesia, e sua relação com a pobreza. Seu medo, o da perda da propriedade, e seu discurso. No terceiro capítulo, é feita uma nova contextualização, dessa vez espacial. Traz-se para a cidade de João Pessoa a discussão. A situação é a de uma cidade que, traumaticamente marcada por uma sucessão de fracassos econômicos e perdas sociais, orienta-se no progresso para alcançar a salvação – impulsionando a Paraíba para frente e deixando toda a barbárie para trás. O discurso do progresso será o discurso de uma classe que se sabe ameaçada e busca sua saída identificando e combatendo os flagelos que a assolam: essencialmente o atraso em que ficou relegada devido à ganância do estado rival de Pernambuco. Mas esse progresso, impulsionando a urbanização e a higienização da cidade, causará transtornos. O abandono e o fracasso voltarão a assolar a cidade. Neste quarto capítulo, um novo zoom, mais profundo e menos especulativo, procura mostrar, nos dias atuais, a fundamentação dos projetos de reformas urbanas, levadas a cabo pela organização paraibana de arquitetos e auxiliados por ajudas governamentais da região e da Espanha. A ambição do projeto de reforma arquitetônica vai bem além da mera reconstituição predial das casas e prédios em ruínas. Até aqui, todos os capítulos precedentes prepararam o atual recorte espacial e temporal: o medo no Porto do Capim, Varadouro. A reforma começou a cerca de 15 a 20 anos, abarca a década de 80 e 90, e o começo dos séc. XXI.

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No quinto capítulo, procura-se uma aproximação com o outro lado a partir de uma atividade etnográfica. Como o medo age no Porto do Capim? Quem são as pessoas que vivem lá? Como vivem? Que idéias têm sobre o projeto de reforma? Que esperam do futuro? Este capítulo abarca um pouco de sua realidade, de sua vida cotidiana, um pouco de seus valores. Esta pesquisa centra seus esforços principalmente em cima de duas questões: do que se tem medo? Como era antes da reforma e como tem sido desde então? Enfim, a conclusão trata de retomar a análise que consiste, segundo Geertz, em estabelecer as estruturas de significação e sua base social, assim como sua importância e sua relação com alguns aspectos colocados no primeiro capítulo como as noções de memória e representação, buscando, dessa forma, deixar em aberto as reflexões que se possam fazer a respeito do medo na cidade moderna.

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Capítulo 1 Medo, Memória e Representação Social

Ao insistir primordialmente na noção de “coletivo”, Delumeau aponta dois sentidos para esse adjetivo: o primeiro, se refere a uma multidão em pânico, um mero agrupamento de indivíduos em qualquer lugar. O segundo sentido, por sua vez, conota o indivíduo que, além de representar, carrega consigo uma herança cultural, “um homem qualquer enquanto amostra anônima de um grupo”. No primeiro sentido exposto, a sua compreensão ilustra tão somente uma espécie de debilidade emocional humana. Afirmando que, “mais geralmente, os caracteres fundamentais da psicologia de uma multidão são sua influenciabilidade, o caráter de seus julgamentos, a rapidez dos contágios que a atravessam, o enfraquecimento ou a perda do espírito crítico, a diminuição ou o desaparecimento do senso da responsabilidade pessoal, a subestimação da força do adversário, sua capacidade de passar subitamente do horror ao entusiasmo e das aclamações às ameaças de morte” (Delumeau, 1989:24), o historiador entende que não é possível estender categorias conceituais, empregadas especificamente para a descrição e entendimento do medo individual, no estudo científico do medo coletivo. Porém, no segundo sentido, quando o que se leva em conta é propriamente o sentido da noção de “coletivo”, tal atitude metodológica é justificada11. Melhor explica as palavras do próprio Delumeau:

“(...) quando evocamos o medo atual de entrar no carro para uma longa viagem (trata-se na realidade de uma fobia cuja origem reside na experiência do sujeito) ou quando lembramos que nossos ancestrais temiam o mar, os lobos e os fantasmas, não nos remetemos a comportamentos de multidão, e fazemos menos alusão à reação psicossomática de uma pessoa petrificada no 11

Define coletivo como “um homem qualquer enquanto amostra anônima de um grupo”, ou mais resumidamente, como “singular coletivo”.

lugar por um perigo repentino ou fugindo às pressas para dele escapar do que a uma atitude bastante habitual que subentende e totaliza muitos pavores individuais em contextos determinados e faz prever outros em casos semelhantes. O termo ´medo´ ganha então um sentido menos rigoroso e mais amplo do que nas experiências individuais, e esse singular coletivo recobre uma gama de emoções que vai do temor e da apreensão aos mais vivos terrores. O medo é aqui o hábito que se tem, em um grupo humano, de temer tal ou tal ameaça (real ou imaginária)” (1989, p.24). O trecho acima constitui a ponte para abordar duas características fundamentais do medo: a memória e a representação social. Parece que sentir o medo, de forma individual ou coletiva, alicerçado sobre a atitude habitual de identificar – relembrar/reconhecer – ameaças ou perigos (reais ou imaginários, certos ou temidos), que comportam significações, pessoais ou coletivas, de tradição ou ruptura, implica numa representação de uma memória social, característica de um determinado grupo humano. A vivência do medo enquanto uma memória comum, e não como instinto biológico, justamente por ser comum, significa um específico elo identificatório entre indivíduo e coletividade. Este elo, além de caracterizar o medo como experiência humana, inversamente, caracteriza o humano através de sua maneira própria de sentir o medo. Por sua vez, num contexto mais amplo dentro das reflexões sobre a representação social, pode-se dizer que, se por um lado o indivíduo carrega consigo uma sociedade, uma herança social específica – decorrente de sua experiência individual em um certo lugar e tempo, que o torna passível de ser, ou não, identificado, - por outro, a sociedade, composta pelo conjunto de relações de/entre seus indivíduos – além dos próprios indivíduos, sem os quais não haveria relações -, canaliza singularidades comuns de sua coletividade, construindo e carregando consigo uma individualidade própria, tal qual um indivíduo constrói e carrega consigo a sociedade.

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Pode-se admitir, através dessas noções, que o medo, dialeticamente, é um elemento fundamental no processo de estruturação da própria sociedade e é por ela estruturado. O medo se torna, então, elemento chave na compreensão da formação dos sujeitos sociais e, reciprocamente, de como estes agem em sociedade, configurando o próprio medo de acordo com suas realidades específicas. O medo é um sentimento natural, pois todos os sentem, embora em maior ou menor grau, sem exceções. Mas é essencialmente histórico, uma vez que seu objeto não é o mesmo para todos – é bem dizendo extremamente diferente e, em muitos casos, chega a ser incompreensível. É um fenômeno que varia de acordo com muitas condições, bastante complexas, que margeiam contextos determinados. Mas a complexidade que envolve este fenômeno é muito maior. Vemos ainda no final desta última citação condição fundamental do medo. Ele é estritamente dependente de outros sentimentos, formando uma verdadeira relação direta com estes. É o que, inspirada numa interpretação de Espinosa, Chauí chama de “sistema do medo”. Sendo um sentimento que age tanto internamente quanto externamente, o medo está tão atrelado ao imaginário quanto à realidade, imbricado em estruturas mentais e, ao mesmo tempo, imerso num contexto sócio-cultural ele é condicionado pela consciência e pela imaginação: “O sistema do medo origina-se tanto nas conexões necessárias entre certas paixões quanto nas imagens corporais que, envolvendo as idéias imaginativas na mente, urdem um tecido de relações e causalidade abstratas que pretendem oferecer-se como explicação dos acontecimentos, como interpretação dos afetos e como conhecimento do real” (Chauí, 1986: 57).

Uma ambigüidade do medo consiste em sua disposição para ser, como a angústia, tão positiva como negativa. Muito embora o medo, em-si, seja uma espécie de dispositivo de autoproteção, pois procura conservar o “ser” dos perigos que o ameaçam avisando-o e

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despertando-o para reagir, o medo também pode ser causa de vulnerabilidade diante dos mesmos perigos. Porém, o medo é paixão, “jamais transformando-se em ação do corpo e da alma” (Chauí, 1986: 56). Em suma, partindo do princípio de que o medo humano consiste em memória, em representação social e, consequentemente, em construção e formação coletiva de sensibilidades, o medo caracterizado através de um discurso individual, de um testemunho pessoal, pode estender-se à caracterização de medos coletivos de grupos humanos específicos. Assim, tendo como fonte referencial a memória individual de alguns outros homens letrados da época vitoriana, que tentaram, problematizando, explicar e expor claramente os fenômenos da transformação urbana que haviam presenciado, Bresciani reconstrói uma faceta da realidade que constitui e caracteriza aqueles tempos. Outro historiador, Sevcenko, expõe algumas contribuições literárias de Edgar Allan Poe para tentar conhecer melhor o espírito do homem da época em que acontecia “o surgimento das grandes cidades”, também no século XIX. Através da leitura desses autores, de suas representações individuais – assim como de muitos outros autores que os sucederam - é possível traçar uma dimensão “urbana” do medo na sociedade contemporânea. Nesta dimensão, é caracterizado o aparecimento do inusitado, do novo, das oportunidades, mas também da sorte incerta e do fracasso súbito. É a consolidação de uma nova sensibilidade, a moderna: “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”. (Berman, 1996:15). A noção do medo como uma realidade que comporta representações sociais, como memória coletiva manifesta na ação individual, ainda suporta comparações com os modos,

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através dos quais, Baudelaire e Poe, representam em seus escritos. Seja através de descrições de personagens ou de tempos e lugares determinados, seja, ainda, através das tensas relações entre o indivíduo anônimo e a massa constituída pela multidão (esta, formada por indivíduos anônimos...), que trafegavam nas ruas das grandes cidades européias, encarnadas pelo espírito conflitivamente consolidado da modernidade, no século XIX. Há um interessante exemplo de como o medo pode ser instrumentalizado (ou induzido conscientemente para alcançar certos fins):

“Em Os Lusíadas, Camões faz eco aos temores sentidos pelos marinheiros portugueses nas proximidades do Cabo da Boa Esperança, cognominado anteriormente ‘Cabo das Tormentas’. A ficção imaginada pelo poeta não teria nascido em seu espírito sem numerosos relatos orais e escritos relativos à temível passagem” (Delumeau, 1989: 52). Nesta ocasião o poeta parece canalizar e expressar um determinado imaginário marítimo do medo sobre uma determinada região. Ele pode ser encarado, inclusive, como mais um exemplo de singular-coletivo, no sentido já empregado anteriormente, que é a noção de indivíduo enquanto amostra anônima de um grupo.

No entanto, continua Delumeau na página seguinte: “cada nação, na época da Renascença, tentou impressionar seus concorrentes difundindo relatos terrificantes sobre as viagens marítimas – arma de dissuasão que se acrescentava ao segredo que se tentava manter sobre os melhores itinerários. De todo modo, as rotas do longínquo causavam medo”. (Delumeau, 1989: 53). Este trecho explicita o papel dos relatos das viagens marítimas enquanto discurso ideológico que visava a proteção das rotas comerciais, e conseqüentemente da exclusividade comercial, através da difusão do medo entre seus concorrentes. Assim, é interessante retomarmos a ação da Igreja na Idade Média reconsiderando este aspecto ideológico do medo:

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“Essa tensão num combate incessante contra o inimigo do gênero humano era tudo menos serenidade, e o inventário dos medos sentidos pela igreja e que ela tentou compartilhar com as populações, colocando-os no lugar de temores mais viscerais, põem em evidência dois fatos essenciais não suficientemente observados. Um primeiro lugar, uma intrusão maciça da teologia na vida cotidiana da civilização ocidental (...); e em seguida, que a cultura da Renascença sentiu-se mais frágil do que, de longe e por ter final e brilhantemente triunfado, hoje a imaginamos. A identificação dos dois níveis de medo conduz assim a assentar face a face duas culturas das quais cada uma ameaçava a outra e nos explica o vigor com que não só a igreja, mas também o Estado (estreitamente ligado a ela) reagiram, num período de perigo, contra o que pareceu à elite uma ameaça de cerco por uma civilização rural e pagã, qualificada de satânica” (Delumeau, 1989: 33). O medo não é o mesmo para todos, variando de acordo com inúmeros fatores. Existem planos diferenciados de temor, onde grupos identificam-se entre si a partir de medos comuns e diferenciam-se de outros grupos a partir de medos diferenciados. De qualquer modo, é interessante notar que o medo não pode ser pensado fora de seu próprio contexto, como um fenômeno meramente natural. Ele próprio só existe enquanto parte de uma espécie de sistema, um mecanismo que engloba outros sentimentos dos quais depende diretamente. Imerso numa realidade multi-sentimental, composto por uma cadeia emocional profundamente complexa, o medo nunca está completamente ausente, e por isso todos o sentem sem exceção - o medo pode, no máximo, ter sua intensidade diminuída. Se por um lado, o medo aparece como uma realidade tão profundamente difusa e incompreensível, por outro, ela parece estar sempre comprometida com alguma lógica extremamente consistente, ou que se pretende como tal.

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Capítulo 2 Pobreza, Medo e Controle Social

Dos gregos à Renascença, o medo é identificado como o oposto da coragem e da ousadia, que, por sua vez, são reconhecidamente símbolos de grandeza aristocrática, honra e dignidade. Para gregos e romanos, o sentimento de medo e de temor são concebidos como entidades divinas, dotadas de vontade própria, a quem são oferecidos cultos e oferendas em troca do desfavorecimento do inimigo quando diante deles na guerra. Durante a Idade Média, no entanto, apesar da coragem continuar a ser considerada por natureza uma “virtude aristocrática” (que constitui, basicamente, a moral da valentia), o “imaginário centrado no medo” sofre um deslocamento:

“Para os pagãos, o medo é divindade que se abate sobre os fortes, para sua vergonha, e sobre os fracos para, confirmá-los na desonra. Poderes divinos, Temor e Medo são cultuados para que, à maneira dos Exus, não baixem sobre corpos e espíritos na hora decisiva dos combates onde honra, fama e glória se decidem para sempre. O cavaleiro cristão, porém, vê-se jogado numa liça nova, desconhecida e inimaginável para seus predecessores. Nela, o medo não é o mal. Agora, o mal faz medo. Erigida como cultura do medo, para usarmos a expressão de Delumeau, a cristandade concebe-se como cidadela permanentemente sitiada pelo inimigo do gênero humano: foi parido o Diabo”. (Chauí, 1986: 40). Na Idade Média, o mal (enquanto entidade diabólica) é ausência, mas ausência de “bondade” ou de “fé”. O mal não sendo um ser, só pode existir enquanto algum ser real ceda parte de seu próprio espaço. Tanto maior o mal quanto maior for a lacuna cristã em alguém – em outras palavras, quanto menos se crê no Deus católico, mais e maiores as chances de se deixar incorpar pelo mal (pela anti-ordem eclesiástica) e, conseqüentemente, maior e maiores as chances de haver um “desvio” na caminhada para a luz de tal ou tal indivíduo.

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O possuído, o agente do mal, é um cúmplice em que, na medida em que se abandona à vontade do mal, passa a não-ser. Uma vez que a entidade maléfica, a ausência, o preenche, o possuído se torna ausência, tornando-se, inclusive, vítima do mal a que deve se submeter à conversão cristã a fim de alcançar a redenção e a luz. A anulação da vítima diante do mal que a possui, só reforça a legitimidade da ação do herói cristão que, pela própria salvação e pelo nome de Deus, agora luta também em prol do “próximo”. Isso aponta para um processo de identificação e perseguição das ameaças que afligiam a Idade Média: quem mais poderia ceder a si mesmo para que o mal (o diabo) habitasse senão os inimigos da Igreja. Interessante é o contexto: as acusações são feitas em épocas de guerras, pestes e catástrofes, e também em meio a um estado de miséria abundante, mas “o inimigo” combatido por todos são, especificamente, os inimigos da Igreja, a quem (como ocupante da classe dirigente) cabia explicar a origem dos males – os hereges, aqueles responsáveis pela chegada e propagação do mal. Porém, esse processo é movido por um agente, economicamente o mais poderoso, que se dirige a todos os outros. Seu discurso se coloca como o discurso de todos, seu medo particular se coloca como sendo o medo que todos sentem. Mais precisamente aí se delineia o espaço ideológico num contexto onde o medo passa a ser instrumentalizado. Na passagem para a modernidade, o medo continua – a ameaça dos que podem de alguma forma prejudicar a estabilidade social -, mas seu objeto muda de denominação conforme a nova configuração moral, econômica e política que emerge. “Quando a ética fizer seu percurso protestante, transformando o trabalho em suprema virtude, o vício não mais será a covardia, mas a vadiagem. De medrosa a vadia, a plebe não será menos perigosa, pois, se ‘mente desocupada é oficina do diabo’, a vadiagem plebéia aparece como causa dos entusiasmos sectários” (Chauí, 1986: 43).

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A intensificação do medo na cidade moderna está intimamente vinculada ao seu crescimento urbano, uma vez que seu desenvolvimento (principalmente, quando desordenado e intenso) gera estados cada vez maiores de inadequação, estados esses bastante carregados de uma angústia sobre a imensidão e a multidão, sobre os perigos iminentes, esperados e imprevisíveis que ameaçam a cada um nas ruas; medo do que está por vir, ainda que não esteja bastante claro o quê. As ciências sociais nascem com a modernidade, procurando explicar, principalmente, os novos problemas colocados com o crescimento caótico da cidade agora em crise, agora posta como problema12. Trata-se de uma coletividade profundamente angustiada que, face o desafio dessas novas questões urgentes e assustadoras, busca novas saídas, novas explicações.

Observando estudos sobre o surgimento e desenvolvimento das cidades

industriais no séc. XIX, num contexto de seqüências de mudanças e traumas nunca antes vista pela sociedade Ocidental, é possível imaginar a realidade social, política e histórica de uma sociedade imersa em medo.

“As cidades crescem incontrolavelmente, sem planejamento, infra-estrutura e condições básicas mínimas. Dentre todos os transtornos e misérias suscitados por esse novo estilo de vida, o que parecia perturbar mais os espíritos era justamente o seu ineditismo que tornava os indivíduos envolvidos perplexos e destituídos de recursos para entender e enfrentar uma situação completamente inesperada” (Sevcenko, 1985, p. 71). Uma vez que, “no sentido estrito e estreito do termo, o medo (individual) é uma emoção-choque, freqüentemente precedida de surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça, cremos nós, nossa conservação” (Delumeau, 1989, p. 23), é compreensível que novos medos surjam a partir do desenvolvimento, cada vez mais intenso, do novo fenômeno humano: o “monstro urbano”,

12

Ver Bresciani (1985 e 1994).

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a emergência da cidade moderna, essa nova organização social muito bem desenhada por Bresciani (1985).

“É então que aparece e se desenvolve uma atividade de medo, de angústia diante da cidade. Cabanis, filósofo do final do século XVIII, dizia, por exemplo, a respeito da cidade: ‘Todas as vezes que homens se reúnem, seus costumes se alteram; todas as vezes que se reúnem em lugares fechados, se alteram seus costumes e sua saúde’. Nasce o que chamarei medo urbano, medo da cidade, angústia diante da cidade que vai se caracterizar por vários elementos: medo das oficinas e fábricas que estão se construindo, do amontoamento da população, das casas altas demais, da população numerosa demais; medo, também, das epidemias urbanas, dos cemitérios que se tornam cada vez mais numerosos e invadem pouco a pouco a cidade; medo dos esgotos, das caves sobre as quais são construídas as casas que estão sempre correndo o perigo de desmoronar. Tem-se, assim, certo número de pequenos pânicos que atravessam a vida urbana das grandes cidades do século XVIII, especialmente de Paris”. (Foucault, 1996: 87). A reportagem da revista Isto É, que abre esta monografia, parece expressar uma lógica discursiva muito semelhante à apresentada por Bresciani, em seu estudo sobre as representações que os dirigentes burgueses de Paris e Londres tinham sobre a pobreza no século XIX, onde, através de uma “atividade exploratória de textos de literatos, investigadores sociais, médicos e administradores” da época, ela encontra “uma grande surpresa”:

“O espanto e a geral preocupação ante a pobreza que a multidão nas ruas revela de maneira insofismável. Espanto, indignação, fascínio, medo: são reações diferenciadas apontando para estratégias de identificação bastante solidárias a uma intenção de controle dessa presença desconcertante”. (Bresciani 1994, p. 8).

A partir do sentimento de insegurança, e do momento em que se sente ameaçada, a classe política e economicamente dominante procura administrar o que a ameaça. Para isso,

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em primeiro lugar, ela o identifica e, em seguida, toma as atitudes necessárias para sua repreensão13.

“A imagem aristocrática da plebe será mantida pela burguesia (...). No entanto, aristocratas, primeiro, e burgueses, depois, pressentem que o medo plebeu é perigoso. Medrosa e covarde, a plebe é inconstante, pode mudar de lealdade servindo a novos senhores que lhe pareçam mais bravos e poderosos, mais capazes de protegê-la. Não só isto. O medo é companheiro de secretos ódios e, crente na força do número, a plebe poderia perder o temor, derrubando quem ousa governá-la. Assim, tanto a classe dirigente declinante quanto a ascendente encaram o medo que atribuem à plebe como risco permanente de tumulto, sangue, revolta e sedição. Perigo contínuo de subversão da ordem, o medo da plebe engendra um imaginário sócio-político às avessas: o medo à plebe” (Chauí, 1986, p.42).

O novo lugar do medo é o becos e rua sombria da cidade, o rosto do usurpador e sua sombra, enquanto seu destino é ser combatido a qualquer preço, pois desde os pequenos roubos até os grandes levantes, mobs ou arrastões, atitudes desviantes podem comprometer a normalidade do fluxo citadino, abalando a produção e a tranquilidade das “pessoas comuns”... Passa a ser exercido uma política de controle social em cima da pobreza, que será vigiada, fichada e jogada contra si mesmo.

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Ver Chauí (1986), Delumeau (1989) e Bresciani (1985 r 1994).

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Capítulo 3 Desenvolvimento Urbano de João Pessoa

Não são poucos os abalos físicos e psíquicos pela qual passou, ao longo desses últimos cinco séculos, toda uma população nacional. Trata-se de inúmeros e sucessivos traumas coletivos vividos desde os tempos da colonização até os dias atuais: secas, inundações, guerras, revoltas, epidemias de pestes, quebras econômicas entre outros, que dizimaram grandes quantidades de pessoas e causaram outras tantas perdas irreparáveis14. Enquanto experiência sentida, pensada e transmitida através de gerações, estes fenômenos coletivos, estas verdadeiras experiências de medo e de angústia, de ameaças sociais comuns a grandes populações, podem em grande parte ser responsável, entre outras tantas conseqüências, pelo que Delumeau chama de “tomada de consciência” dos perigos comuns de uma sociedade que se sente ameaçada e, por isso, busca sob a condição do reconhecimento e controle do mal que a aflige, amenizar sua própria angústia. As secas ocasionaram diversas e intensas migrações. As populações que a sofriam buscavam abrigo e mantimentos nas áreas mais úmidas, como as serras e os brejos. Ela consiste em um fenômeno que marcou toda a região Nordeste, sendo pouca a variação de suas características principais entre os estados federativos. A cidade da Parahyba não sofria o fenômeno climático da seca, mas havia conseqüências diretas nela. As notícias dos acontecimentos no interior chegavam constantemente à capital junto com os retirantes15, e

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Ver anexo 1, onde se faz um breve inventário histórico desses "traumas" na Paraíba. É interessante notar que, naqueles tempos, é bem provável que os retirantes chegavam primeiro do que as notícias sobre eles...

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as elites da cidade se assemelhavam ao assustado personagem principal de Poe, no conto “A Esfinge”16 – porém, o pavor eram os retirantes, vistos como “seres contaminados”. “A cidade se vê inflada por levas de trabalhadores expulsos do campo, somado a ameaça de desemprego, pelas sucessivas falências que ocorrem no período, bem como, pela modernização de equipamentos industriais em algumas empresas. Este aumento populacional, mais a crise de empregos refletem-se por outro lado, nas condições de higiene, saúde e habitação destes homens comuns pobres, que tendem a deteriorar-se. Associado a estes dois fatores citados se situa o discurso modernizador da cidade, realizado pelas elites governamentais e setores mais prósperos da população”. (Koury, 1986: 135). Parece que durante toda a história em que se tentou desenvolver o estado paraibano o medo sempre o acompanhou. Porém, quanto ao fenômeno natural da seca, esta passou a ser incorporada ao processo de acumulação de capital na região como indústria. Produto de uma política capitalista que atravessou eficazmente o século, a pobreza que assusta tem sido gerida pela Indústria da Seca, política capitalista organizada e efetivada pela própria classe dominante – que, por sinal, se mantém como “dominante” devido a esta “indústria”. Dessa forma, o incrível medo das classes dominantes parece ser o preço que tem de ser pago pela subjugação dos “dominados” e pela manutenção de seu status de “dominador”. Os traumas se acumularam. E as consciências dos perigos? Houve uma acumulação cultural da experiência que ocasionou uma prevenção aos novos levantes, argumentada pela consciência que o medo fazia reconhecer? O progresso chega como uma saída a esse estado geral de constrangimento. A proclamação da república será um importante fator que 16

Ver Sevcenko (1984). Na ocasião, um novaiorquino se refugia numa casa de campo com a intenção de fugir de uma grave epidemia que abate sua cidade. Embora num lugar seguro, ele manteve-se fixo naquilo, lendo a respeito nos jornais, conversando com os viajantes que passavam por lá, procurando, enfim, sempre saber sobre a situação da cidade ao mesmo tempo em que lia sobre a doença e seus perigos. Certo momento, ele quando menos esperava, viu um monstro terrível na sua frente. Mas tudo não passara de uma ilusão: uma pequena borboleta, de uma espécie chamada “esfinge” havia se colocado muito próximo a seus olhos de modo que, ao retirar os olhos distraídos da distante paisagem que estava na janela a sua frente e, baixando a cabeça, aproximava seus olhos do livro que segurava, terminou vendo um monstro que não existiu – tudo isso devido a um efeito de ótica incrementado com uma atenção mais ou menos obsessiva sobre a morte.

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marca a grande impulsão do progresso em todo o país – a então cidade da Parahyba não fica de fora, antes vê nela uma grande solução, onde o futuro estaria garantido e as necessidades e privações superadas. “Em sua gênese a palavra ‘moderno’ significava um esforço renovador orientado para as fontes clássicas da música, mas não para a ‘inovação’. De qualquer modo, historicamente o que se consolidou em relação ao significado dessa palavra foram as atitudes culturais em relação ao novo, gerando repercussões implícitas e diferenciais do moderno como oposição ao antigo” (Barreto, 1996: 18).

O Varadouro, local de nascimento da capital, era onde se concentrava o comércio e a política na Paraíba. O contexto da construção de um porto eficaz, onde existe apenas uma atracação naval precária, era o de rivalidades com os portos vizinhos, o de Cabedelo e os do RGN e PE. Mais da metade da produção interna do estado era transportada para outros portos que não o da capital. “(...) A construção da imagem da Parahyba como um estado progressista, passa pela negação do que é considerado atraso, no caso a pobreza com suas condições de vida e (in)cultura, mostrando apenas o tipo de progresso desejado pelas elites para a Parahyba, daquele momento específico em diante, e das idéias que influenciavam na construção do futuro” (Barreto, 1996: 30). O clima de progresso na Paraíba nos anos 20 e trinta do século passado17, era intenso e movia a construção do Porto como condição fundamental de desenvolvimento estatal. Assim como toda a atmosfera que se respira intensamente nessa época é o progresso, noções de higienização vão-se firmando cada vez mais, praticamente consolidando-se18. Uma idéia de porto atrelado à cidade, profundamente vinculado ao movimento contínuo do comércio, das trocas e trânsitos de pedestres entre moradias, tornava-se um fim a ser alcançado com a firmação do Porto. A higienização parece que tornava esse vínculo em

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Ver, entre outros, Koury (1986), Barreto (1996).

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uma relação saudável. Neste momento, tornavam-s mais intensas reformas urbanas tendo como fim tornar a cidade um local seguro e rentável.

“(...)O ancoradouro externo não resolvia o nosso problema de transporte marítimo. Já, havia poucos anos, dominara a idéia de mudar para a ilha da Restinga as oficinas de Cabedelo. Chegaram a construir à margem esquerda do canal todas a fundações do edifício. Acabava de ser verificada a impossibilidade da localização em Tambaú, que, além de se distanciar 6 quilômetros da capital não apresentava condições de abrigo e de ulterior desenvolvimento Cumpria, porém, dotar a Paraíba desse melhoramento, como estímulo à sua capacidade de produção e exportação e como medida condicionada ao problema da seca, indicada desde 1877. A constante aspiração de todos os paraibanos era o estabelecimento do porto na capital, como meio de evitar a baldeação das mercadorias e o transporte de passageiros, com todas as vantagens econômicas e sociais do contato com o movimento marítimo. A ligação ferroviária à Cabedelo já foram encarada como uma ameaça ao comércio da Paraíba Ainda subsistiam as causas que deprimiam essa praça, prejudicada, desde sua fundação pela do Recife” (Almeida, 1994: 418).

O Varadouro, como centro da capital paraibana, era onde se concentrava o anseio pelo progresso. Ele é venerado como um caminho através do qual todo o Estado poderia inserir-se numa realidade mais ampla, politicamente e economicamente. Mas todo o desenvolvimento urbanístico da cidade se faz em meio ao fracasso e ao abandono de pequenos e enormes empreendimentos. Há alguns períodos de intensa transformação das feições urbanas, de sua modernização, mas são, no total, poucas19. Além de insuficientes, são danosas. A tentativa de superar toda uma gama de choques históricos foi parcialmente bem sucedida, introjetada pela idéia de progresso, mas em seu lugar, emergiram outras dificuldades e transtornos, tendo, como marcas em sua história econômica e política, o abandono e fracasso. 18

Ver De Sá (1996).

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“Ao que parece, o outro lado da moeda, ou seja, o registro dos pobres, dos retirantes fugidos das secas que chegavam em massa à cidade, das epidemias de cólera-morbus, dos problemas urbanos, dos conflitos sociais bastante freqüentes neste período, era omitido. Ou, possivelmente, se mantivesse restrito às páginas dos registros civis, talvez por não fazer parte do que valia a pena ser eternizado e por não satisfazer essa ‘estética popular’” (Barreto, 1996: 58). Parece que toda a experiência secular de flagelo, pela qual passou a maior parte das pessoas residentes em todo estado (e, principalmente, no interior), não levou as autoridades à práticas preventivas eficazes, para que se superasse futuros estados de privações e sofrimentos. Pelo menos, não para as verdadeiras vítimas da seca. Porém, certamente toda essa vivência ficou guardada traumaticamente. Conservada a dor coletiva, a dor comum ou compartilhada, ela continua a existir enquanto memória – não exatamente consciente ou não, mas como tradição repassada pela sucessão geracional. Paralela à expansão urbana, se encontra o fenômeno da industrialização. A cidade caminhou para o litoral, mas as fábricas que iam sendo levantadas se concentraram nas proximidades do Varadouro. Preocupados em perder terreno para outros estados o governo paraibano praticou uma política incentivo fiscal. A intenção era atrair indústrias para a cidade, a fim de que, com a instalação de um parque industrial moderno, a cidade progredisse economicamente. Mas, praticamente, o crescimento da cidade ficou estagnado aproximadamente por cinqüenta anos, desde a morte de João Pessoa até o Milagre Econômico, quando timidamente retomou o processo de urbanização. Na década de 80, o panorama é bastante diferente. “Causou certa estranheza a revelação que fizemos nesta coluna, explicando o crescente número de novas indústrias que se vão instalando nos subúrbios de João Pessoa em termos de ‘resposta’ dos estímulo fiscal dos 5 anos adicionais de isenção tributária ali existente, vantagem de que carecem os subúrbios de Campina Grande. (...) 19

Concentram-se, principalmente, durante o início da República até o final dos anos 20, e durante o “Milagre Econômico” até os nossos dias, com um leve declínio na década de oitenta.

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Os cinco anos adicionais são justificados com a finalidade de promover a descentralização industrial da área urbana de João Pessoa, finalidade que vem sendo paulatinamente obtida graças ao desvio dos novos empreendimentos do centro para a periferia da Capital. Desse modo, não foi preciso que a Prefeitura da Capital ou p Governo do Estado desapropriassem áreas específicas para a industrialização, para a criação de um “parque industrial” nos arredores de João Pessoa” (De Andrade, José Lopes – “Clima para o Desenvolvimento” in Uma Militância na Imprensa, Campina Grande, CNPq/Bolsa de Mercadorias da Paraíba, 1984, págs. 97/8). Após o tempo concedido pela isenção fiscal, várias indústrias abandonaram o setor na cidade, mudando-se para outros locais que estavam praticando a mesma política de incentivo. Essa condição, associada ao incentivo de descentralização, criou um vácuo econômico nos arredores do Centro da cidade e da própria cidade, como é o caso do Porto do Capim. Toda uma infra-estrutura fora montada lá e agora jazia sem movimento. Uma grande mão de obra havia de acumulado no Porto do Capim, e em outras partes da cidade, locais próximos como Baixo Róger, por exemplo. “(...) Em João Pessoa, além da periferia, a existência de áreas baixas e alagadiças dos vales dos rios Jaguaribe e Sanhauá têm funcionado como alternativa viável de ‘morar’ para os setores da população à margem do mercado habitacional. Com deficiência de serviços de infra-estrutura básica e sujeitos a inundações, tais áreas são desvalorizadas e, por isso, não visadas ainda pelo capital, oferecendo, portanto, maior segurança do ponto de vista da possibilidade de permanência em tais locais. Assim, uma vez construída a moradia, está a posse da terra, temporariamente, garantida” (Equipe Técnica da Coordenaria de Estudos e Pesquisa da Fundação Instituto de Planejamento da Paraíba, População de Baixa Renda – Origem e Aspirações, João Pessoa, Fiplan, 1983, págs 57-8). Neste período, anos 70 e 80, foi constatada uma explosão do número de favelas na cidade. São caracterizados como locais sujos, onde não há um padrão de loteamento ou construções que sejam regulamentadas pela prefeitura. Falta de saneamento básico ou calçamento, ruas regulares e abertas, ausência de água encanada, e outras características de baixo padrão de vida. Essas áreas, como símbolos de pobreza e insatisfação, passam a ser bastante vinculadas à crescente violência na capital e, como nas primeiras décadas do

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século XX, passam a fazer parte dos planos de saneamento. Alvo de reformas que visam não apenas o paisagismo da cidade e a ocupação pelo comércio de entretenimento (ambas visando o lado produtivo ou lucrativo das reformas: a primeira como investimento em turismo; a segunda, em impostos e circulação de capital), mas também torná-la mais segura e habitável, saneada e circulável. É neste âmbito que se processam os primeiros movimentos das novas reformas urbanas que se estendem aos dias de hoje.

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Capítulo 4 Projetistas das Reformas do Centro Histórico de João Pessoa

É neste contexto, com toda esta carga histórica, que chegamos à reforma que será feita no Porto do Capim. Já tendo iniciado suas atividades, num ritmo crescente, a cerca de 10 anos, a Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa, alcançou boa parte dos prédios que se encontram no perímetro delimitado para a reforma urbana, no Centro da cidade. Tombado nos anos 80 do século passado, este perímetro passou, então, a ser considerado área de patrimônio histórico. Nele se encontra o bairro do Varadouro e, como parte deste, o Porto do Capim, objeto deste trabalho. Na apresentação de um projeto20, elaborado pela comissão acima citada, de recuperação arquitetônica de um prédio antigo e abandonado (denominado Prédio No. 02, do Largo de São Frei Pedro Gonçalves), pode-se ler: “(...) Erguido no início do século, sua primeira função foi de abrigar instalações da receita estadual, cuja função era fiscalizar as transações econômicas que se desenvolviam no Antigo Porto do Capim. Abandonado há décadas, o mesmo encontra-se em um estado limite de sua integridade física, tornando-se urgente qualquer ações que garantam a sua preservação. No entanto, a sua restauração não limita-se apenas a sua preservação, mas reveste-se de uma importância singular, conseqüência de sua integração no Varadouro (Nascedouro da cidade) – próximo ao antigo porto da cidade (Porto do Capim) – um dos mais importantes núcleos do nosso Centro Histórico. Em decorrência, sua restauração, além de garantir a preservação de nossa memória vem contribuir de forma significativa do Projeto de Revitalização do Varadouro e Porto do Capim, que vem sendo desenvolvido pela Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa” (pág. 5). Este projeto faz parte de um projeto maior, cujo objetivo geral é o de:

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Projeto de Restauração do Prédio No. 2.

“Promover a revitalização integral do Núcleo Cidade Baixa – Varadouro e antigo Porto do Capim – do Centro Histórico de João Pessoa, dentro das diretrizes preconizadas pelo Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa – Convênio Brasil/Espanha”(pág. 8). Quanto aos objetivos específicos, enumeram os seguintes: “Restauração e revitalização do Prédio No. 02, com a finalidade de abrigar a sede do Departamento da Paraíba do Instituto de Arquitetos do Brasil; IAB/Pb; Colocar a disposição da cidade de João Pessoa, e em particular do seu Centro Histórico, mais um equipamento de promoção e dinamização da cultura local; Constituir uma contribuição na revitalização do Varadouro e Antigo Porto do Capim; Reforçar o efeito dinamizador da área, iniciado com a restauração do Antigo Hotel Globo, localizado no mesmo Largo de São frei Pedro Gonçalves”(pág. 8). A justificativa desse projeto de reforma é posta da seguinte forma: “A restauração do prédio No. 02 visa criar um local onde as atividades ligadas a área de arquitetura, planejamento urbano e paisagismo possam se desenvolver plenamente. A Casa do Arquiteto, Centro Cultural do IAB/PB, propiciará à cidade de João Pessoa o espaço necessário para discussões e exposições tanto na área de arquitetura quanto nas demais. Prestando-se ainda a toda sorte de debates, uma vez que será um auditório aberto a todos aqueles que desejam discutir qualquer idéia. Somado a isso, a revitalização do edifício (...) virá ampliar o canteiro de obras no Centro Histórico de João Pessoa, notadamente no Varadouro, demonstrando que podemos ter na “cidade antiga” edifícios plenamente adequados ao século XXI. O prédio No. 02 do Largo de São Frei Pedro Gonçalves, irá se traduzir num referencial para arquitetos e para a sociedade paraibana no tocante aos temas pertinentes a produção do espaço e da cidade, e que será fruto de uma contínua movimentação, já há alguns anos, para a sua realização”(pág. 9). O contexto urbano do Varadouro e a situação do prédio citado também consta no projeto: “O assentamento inicial da cidade de João Pessoa se deu junto a margem do rio, e se desenvolveu pela pequena elevação, onde atualmente se encontra o Largo de São Frei Pedro Gonçalves. Neste local concentraram-se as atividades comerciais, a Alfândega e o atracadouro, dispostos em ruas e quadras irregulares, acomodadas ao relevo, sem praças ou agenciamentos urbanos que não o próprio largo ou o cais. O Varadouro, como núcleo comercial da cidade, servia de partida para todas as vias de comunicação da cidade. De fato a cidade em si, enquanto centro econômico, estava situada na parte baixa, ficando a parte alta ocupada

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principalmente com as residências. O Varadouro funcionava ainda como ponto de encontro, onde se buscava saber notícias, especialmente as novidades do estrangeiro. O núcleo de desenvolvimento urbano ali, representava assim, não tão somente uma área portuária, mas também o cérebro comercial de todo o Estado. Somente neste século a situação de urbanização da área do Varadouro, vem sofrer intervenções realmente de vulto. Com a participação decisiva da Paraíba no contexto do desenrolar da revolução de 1930 a cidade foi beneficiada com verbas do governo federal, muitas delas devidas a intervenção do paraibano, então ministro, José Américo de Almeida, que traduziram-se em intervenções importantes, como a abertura da avenida Getúlio Vargas e construções oficiais de porte como o Lyceu Paraibano. (pág. 13)”.

[Quanto ao prédio...] “(...) Em 26 de agosto de 1980, através do Decreto Estadual No. 8.639 (...), publicado em 05 de setembro do mesmo ano, o Prédio No. 02, em conjunto com o restante das edificações do Largo de São Pedro Gonçalves, foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – IPHAEP. O último uso da edificação que se tem registro data de 1986. Naquele ano, a Delegacia Federal da Agricultura, devolve a edificação ao seu proprietário, o Governo do Estado da Paraíba, pois durante alguns anos o mesmo tinha servido como Arquivo Morto daquela repartição federal. Após isto segue-se um período de abandono que prolonga-se até os dias atuais. Esta situação, associada a atos de vandalismo, quase levaram a edificação ao estado de ruína total. Em fevereiro de 1990, o Governo do Estado cede a edificação ao Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento da Paraíba (pág. 14)”. O Centro, área não freqüentada para divertimento noturno por ser convencionalmente área escura, desabitada e perigosa da cidade, passa a ter uma determinada região utilizada como espaço de entretenimento. Isso pressupõe que esta determinada região do Centro possui um certo nível de segurança – e isso, pelo menos, em relação ao restante do Centro não freqüentado (ou noturnamente aproveitado). A reforma dos prédios, de um local estratégico como os que existem ao redor de praças, e sua utilização como estabelecimentos de diversão noturna – com a criação simultânea dos mesmos (ao passo em que os prédios iam sendo reformados, bares e boates

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iam surgindo) – assim como uma reforma urbana mais geral (iluminação, calçamento, recuperação da praça e... fortalecimento da segurança local), parecem consolidar sua nova povoação. As autoridades do governo parecem seguir uma tendência muito forte em muitos Estados do país que é o investimento nas reformas urbanas das partes antigas da cidade a fim de torná-las zonas de entretenimento noturnas, freqüentadas principalmente por classes médias e altas e turistas. Esses pontos parecem ter a pretensão principal de serem pólos turísticos. Nas principais cidades da região temos, então, as famosas cidades velhas: em Recife, o “Cais do Porto”; em Salvador, o “Pelourinho”; em Fortaleza, o “Dragão do Mar”; e em João Pessoa, o “Centro histórico”. É interessante perceber que todo o processo de reconstrução dessas cidades velhas acontece de cerca de 20 anos para cá – é um processo recentíssimo, portanto, que consiste num movimento, aparentemente, contrário ao da procura pelo “moderno”, de lugares de arquitetura futurista ou modernista, mas que recria novamente o moderno a partir das formas arquiteturais do antigo. Além do mais, existem outras características em comum entre estes espaços públicos: quase todos os locais de valor histórico que foram transformados em centros de entretenimento (principalmente, entretenimento noturno) eram antes (ou estavam próximos de) locais considerados muito perigosos, escuros e habitados por marginais e vagabundos. Dessa forma, ainda há em João Pessoa um vivo contraste, uma delimitação bastante visível, entre a parte reformada do Centro antigo e a não reformada, o resto, ainda marginalizada. Existe um espaço onde são explicados o sentido e a finalidade da reforma do Centro Histórico, mas os próprios moradores não o visitam – parece não ser um espaço feito para

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eles se instruírem sobre seus próprios destinos (entregues nas mãos de outras pessoas), mas sim um lugar onde a cultura dirigente pode reproduzir seu discurso para si mesma, embora aberta à entrada de qualquer pessoa. Durante a semana, são feitas excursões de alunos de escolas particulares, geralmente de 1o grau. Às vezes, o local, que é equipado com uma maquete do bairro do Varadouro após a reforma, TV e vídeo com muitas cadeiras à disposição, é freqüentado por universitários do curso de Arquitetura e Urbanismo, que guiados por professores são informados sobre as pretensões do projeto. Uma família residente no Porto do Capim, que fora visitada por mim, informou nunca ter ouvido falar neste lugar – que fica no prédio do Hotel Globo, agora reformado como parte do projeto. Essa família, composta por quatro pessoas, não freqüenta as reuniões da associação dos moradores. Não reconhece a representatividade deles, uma vez que a associação “só quer que nós vai a eles; mas eles nunca vem à nós”. Existe a presença de uma certa angústia. Ela dificilmente é comentada e, acredito, muitas vezes negada. Há um temor de deslocamento que parece ser guardado no silêncio, pois não há certeza de mais nada, se é realmente uma ameaça ou não passa de boato. A falta de informações apenas torna mais agudo esse estado vivenciado por muitos moradores do Porto do Capim. Talvez, principalmente para os mais velhos. Estes já têm uma experiência maior. Alguns deles já passaram por situações de deslocamento antes, é, logo, um trauma conhecido. Não tão estranho quanto a própria incerteza. A situação piora ainda mais por se tratar de pessoas que residem no lugar há muitos anos, têm suas famílias nascidas e criadas lá e fixaram todo um laço de relações cujo rompimento representa um verdadeiro choque. Trabalham e se conhecem. Transitam por

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outros bairros e sabem que se trata de uma área importante da cidade, sabem que a cidade nasceu ali e que já houve um tempo de muito trabalho, quando o porto funcionava. Os prédios antigos continuam no local: antigos depósitos abandonados, fábricas nas proximidades que faliram há anos. Mas também é bastante movimentado nos dias de hoje. Os moradores restauraram a vida do lugar, que na verdade nunca foi levada com a fuga dos grandes empreendimentos. Morto o interesse financeiro dos empresários e do Estado que abandonaram o navio, mantêm-se até hoje o interesse em continuar vivendo das pessoas que lá se instalaram para criar raízes e dar continuidade ao trabalho que vêem desenvolvendo há dezenas de anos. O que pode representar para os moradores do Porto do Capim um projeto obscuro de deslocamento residencial e de reconfiguração do bairro para fins turísticos e mobiliários, ou seja, para fins lucrativos? É bem provável que a pobreza, que tem acompanhado os moradores do bairro durante toda a vida, incomode menos eles mesmos do que incomoda às classes mais privilegiadas, que procuram contornar este “inconveniente” e tentam “reaproveitar” esses “pobres coitados” que não têm trabalho e viram marginais, caindo na criminalidade e deixando os espaços históricos que ocupam (espaços esses “proveitosos”) em decadência. Este projeto representa para seus arquitetos uma oportunidade de reintegração de fração mais desfavorecida à sociedade para seu reaproveitamento enquanto “cidadãos úteis”. Além deste sentimento de angústia que em um certo grau gera um determinado medo, predomina um sentimento perpétuo e primário de abandono. Este sentimento conduz à uma sensação de “insegurança” que pode ser causa de agressividade. Se o local é conhecido entre os que não o freqüentam como um local perigoso, por quê há menos policiamento do que nos lugares considerados seguros? Essa dúvida confirma o abandono a

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que estão relegadas as classes sociais pobres – e, justamente por isso, encaradas naturalmente como classes perigosas. O estado não tem interesse em proteger os habitantes dos bairros pobres porque na verdade não há bens que mereçam tal proteção. Porém, onde habitam as classes favorecidas o policiamento é dobrado e está sempre em estado de vigília, protegendo as propriedades cujos donos estão estritamente ligados ao próprio estado. Qual o medo dos proprietários de bens? Perderem seus bens. Quem pode causar-lhes este terrível mal? Aqueles que podem tomar seus bens. Quem são esses? Os que não tem bens. A explicação da finalidade do projeto procura justificar a intervenção projetada sobre o Porto e seus habitantes – que sempre vem em segundo lugar, praticamente como resíduo da empreitada que visa seguramente e carinhosamente a recuperação do “patrimônio histórico” da cidade. Os arquitetos da cidade, responsáveis pelo projeto, reclamam do apoio da prefeitura, que é limitado, impregnado que está de uma mentalidade ultrapassada e egoísta. Ao lado do medo da pobreza e da vontade de recuperar as feições históricas arquitetônicas da cidade, como instigadores do projeto de reforma, interesses econômicos orientam igualmente todo o processo: após a restauração dos prédios e do deslocamento dos moradores mais antigos e registrados no projeto, todo o local passa a ser revalorizado. A intenção é de que o local onde vivem os moradores no momento, às margens do Sanhauá, transformem-se numa referência residencial para pessoas com dinheiro: a área espera ficar valorizada tanto quanto Tambaú. Além de residências caras, os prédios históricos agora restaurados são ocupados pela iniciativa privada. Dessa forma, todo o Centro Histórico reformado, em seu conjunto, assemelha-se à um grande shopping center,

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ornamentado com prédios históricos novos e coloridos. Para onde vão os antigos moradores? “Será construído um conjunto habitacional num local próximo, que funcionará também como reintegração social, pois será uma área onde haverá diversos cursos técnicos profissionalizantes”. Estes cursos estarão à disposição dos moradores para que estes tenham melhores condições de inserção no mercado de trabalho e, com isso, evitem ter que cair na criminalidade. Uma prova desse processo, por outro lado, é sua lentidão e seu perigo de regressão – o que ocorrerá por falta de retorno financeiro imediato. É a burguesia da cidade quem pressiona o governo (que não tem qualquer interesse quanto à essa reforma, senão não entrar em atrito com seus financiadores de campanha) para liberar e cooperar com o projeto.

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Capítulo 5 Moradores e trabalhadores do Porto do Capim - Varadouro

É, à primeira vista, uma localidade facilmente delimitada. Situa-se: à leste e ao sul da margem do Rio Sanhauá, em contato direto com o mangue, hoje significativamente poluído; à oeste das praças Pedro Gonçalves e (...) do Centro Histórico recém reformado; ao norte de um centro comercial muito movimentado, caracterizado, principalmente, pelo comércio de serviços e peças automobilísticas, onde também se localiza a ferroviária e a rodoviária da cidade. Não há uma distância física significativa com esta pequena região, encontrando-se ela "lado a lado" com tais referências geográficas. Há um pátio de tamanho médio (com um diâmetro irregular aproximado de 15 à 20 metros) por onde passa duas linhas ferroviárias: uma delas, já desativada há algum tempo, já está razoavelmente coberta; a outra está funcionando regularmente e passa, praticamente, pelo meio deste pátio. O Porto do Capim já fora um grande centro comercial e industrial de João Pessoa. Lá eram descarregadas boa parte das mercadorias que abasteciam a cidade. Tem esse nome porque os soldados do exército iam lá buscar a ração (capim) que alimentava os burros do quartel. Logo, os homens do quartel iam "lá no Porto do Capim"... Dentro do mangue, que parcialmente a circunda, há restos da base de uma construção que, se não fosse pela negligência e desvio de verbas dos administradores, certamente teria influido bastante na história da cidade - as obras de um grande porto (talvez na década de 30 ou 40) não foram concluídas devidamente. Era um projeto muito audacioso. Haviam também duas grandes fábricas e uma outra de porte médio nas proximidades.

Nesta localidade, já houve um movimento de trabalhadores organizado e já fora antes mais povoado, quando aquele trecho ainda tinha grande importância para o comércio geral da cidade. Ainda hoje existe o prédio do sindicato, onde alguns trabalhadores da área, que vivem noutros bairros, podem dormir. Com os fechamentos dos armazéns, dos depósitos e das fábricas, houve uma certa dispersão e, provavelmente, uma interrupção de investimentos na área - uma vez que agora já não era interessantemente econômica. Houve um de esquecimento - isto é bastante visível. A população atual é constituída tanto de pessoas que vieram do interior quanto de pessoas que nasceram e foram criadas na capital. A parte urbanizada (na verdade, com algumas regularidades como calçamento e esquadramento) da área do Porto do Capim restringe-se ao espaço dos antigos depósitos das mercadorias que chegavam no atracadouro. Apertada, entre a margem do mangue e o final dos prédios antigos, numa rua estreita e de barro, estão as casas e barracos precários onde os moradores habitam. Apenas uma das fábricas grandes funciona hoje em dia: a Matarazzo. Há uma história interessante sobre este industrial: seu filho cometeu um crime nos Estados Unidos e foi sentenciado à morte. Matarazzo, o pai, ofereceu aos EUA uma estátua de ouro, com o peso equivalente ao peso do filho (80 Kg) em troca da suspensão da sentença e do seu retorno. Mas o Estado norte-americano negou. Assim, o pai enlouquecido pelas "desgraças" de seu filho, antes de morrer, colocou uma estátua próxima à fábrica. A estátua ainda encontra-se lá nos dias de hoje. Ao perguntar às pessoas que vivem no Porto do Capim do quê que elas mais sentem medo, a resposta geralmente é algo como: “de nada”, “medo nenhum”, sendo, logo em seguida, completada por uma constatação: “aqui é um lugar muito calmo”, “não acontece

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nada de mais aqui” – típica de quem já mora lá há muito tempo. Se a pergunta é recebida com alguma surpresa ou estranheza, a resposta o é tanto quanto21. O que estaria fazendo ali, num lugar em que não acontece nada, alguém que estuda sobre medo urbano? Essa questão só foi resolvida gradualmente, e só então se foi percebendo que não se estava colocando algo onde não cabia. Conhecida comumente como uma pequena favela, perigoso reduto de marginais, o Porto do Capim carrega uma imagem da qual boa parte das pessoas que vivem lá repudia. Esta imagem de como o Porto é visto pelas pessoas “de fora” é sentida e elaborada pelas pessoas “de dentro”, pelos seus próprios moradores22. É uma imagem completamente oposta ou inversa da imagem que eles mesmos tem do Porto como lugar calmo, tranqüilo e bom para se morar. Para os moradores do Porto do Capim, lugar onde “nunca acontece nada”, porém, lá é antes o Varadouro, o bairro onde a cidade nasceu. Talvez o fato mesmo de um pesquisador da universidade chegar procurando saber sobre medo entre eles, apenas reforçou na consciência de todas as pessoas abordadas pela pesquisa o quanto elas eram estigmatizadas como pobres marginais. Talvez disso tenha decorrido da maneira de como as respostas à pergunta “do que você sente mais medo?” foram completadas. Além de “aqui é um lugar calmo, muito bom para viver”, seguiu-se outras explicações que, formulando-as de uma maneira mais geral, aproxima-se do seguinte: “as pessoas aqui são boas, se conhecem, são trabalhadoras e lutam para sobreviver no dia a

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Há um número considerável de pesquisas e reportagens, ambas consideradas de temáticas mais objetivas, que são feitas no Porto. Pelo menos as que deram alguns informantes a esse respeito são interessantes e relevantes para esta pesquisa. Geralmente, os biólogos pesquisam sobre o mangue de suas margens, os historiadores sobre o Porto que não foi construído e sobre os prédios, os arquitetos sobre os prédios antigos e os repórteres sobre a poluição do mangue e sobre o abandono dos prédios. No entanto, o que provavelmente seja estranho são pesquisas desse tipo, consideradas subjetivas, com perguntas realmente subjetivas, tipo “do que você sente medo?”... 22 Não está em discussão aqui a veracidade dessa imagem.

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dia”. São respostas que, por serem bastante comuns, dão uma idéia – ou sinalizam - do quanto estas pessoas compartilham uma determinada pressão social e moral e do quanto, ao mesmo tempo, isso tem importância para elas e o quanto elas procuram corresponder a essas certas exigências morais e sociais, a fim mesmo de lutar para “sobreviverem no dia a dia”. O exercício de aproximação tornou possível uma certa visualização de alguns de seus medos, que gradualmente foram delineados a partir de uma descrição densa (Geertz, 1989) composta por suas narrativas e pela aclimatação possibilitada por uma certa observação do cotidiano do lugar. Trata-se de medos aparentemente simples, como os de qualquer outra pessoa nas mesmas condições. É a partir da compreensão de uma realidade específica23, porém, que, podemos situá-los, ou colocá-los enquanto tal, dentro de uma mesma “estrutura de significação”24 . Dito aqui de uma forma resumida, esta estrutura de significação é composta pelas pessoas que vivem ou trabalham no Porto. Embora possuam seus medos e conflitos individuais, vivem todos em uma posição semelhante dentro de um contexto mais amplo onde se configuram, bastante envolvidas, como em uma rede, outras “estruturas de significação”. Neste momento, é necessário retomarmos a noção de singular-coletivo, de Delumeau, onde o medo enquanto memória e representação social figura como um elemento co-formado e co-formador das “estruturas de significação”, ou seja, de grupos unidos por alguma característica comum (cuja importância varia conforme o contexto) e que aqui delineamos a partir das reflexões sobre o trabalho de campo.

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Mas comum e, por isso, particular a eles, que os une enquanto indivíduos diferentes que compartilham uma mesma condição social. 24 Como a entende Geertz (1989).

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Nestas outras estruturas, ou grupos que completam o quadro polifônico da realidade em estudo, podemos colocar, de um lado, os idealizadores e executores do projeto de reforma e, de outro lado, o governo do estado e do município. A desconcertante realidade polifônica é simplificada a partir do “estabelecimento ou delimitação” dessas estruturas de significação, cuja convivência tensional é constituinte de sua realidade – o que significa dividir e classificar os grupos conforme seus interesses particulares. Os residentes no Porto vivem todos sob a ameaça de serem deslocados – quem sabe, a qualquer hora? É verdade que isto não é sabido de todos, mas talvez não seja preciso. Sua própria condição existencial comum dá pistas que levam à dedução de um perigo do tipo: afinal, qual pessoa pobre encontra-se realmente seguro quanto ao lugar que habita? Não se pretende aqui inculcar medo em pessoas despreocupadas e tranqüilas, mas descobrir onde elas o escondem, uma vez que todos sentem medo25. Os medos não são apenas comuns, mas também diferentes para cada um e, em geral, são causas de vergonha e constrangimento (Delumeau, 1989). Entre os temores usuais, “normais” para nos referirmos ao padrão emocional da ideologia dominante, figuram a preocupação com o trabalho, o medo de perdê-lo ou de que o outro não o tenha :"pois", como disse um entrevistado, "se sabe qual o destino de quem não tem um emprego...". Figuram, também, o medo de ter o domicílio invadido subitamente, de um estranho que vaga entre os prédios em ruínas e que provoca uma certa invulnerabilidade ou insegurança. Para ser mais claro: o medo da propriedade violada e da ameaça da não obtenção de capital são, seguindo uma lógica mercadológica e predominante, considerados medos “normais” ou “sensatos”.

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Segundo os estudos de Chauí (1986), Delumeau (1989).

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O medo incomoda bastante uma senhora de idade chamada Dona Maria do Socorro, ou melhor, Dona Biliu, como é conhecida. Ela afirma que a casa onde mora já teve seu terreno "invadido por amedrontantes estranhos" em várias ocasiões. Fala mais especificamente de dois casos: de um grupo de jovens que vinham de outro bairro para jogar futebol no campo, que fica ao lado da sua casa, e que a xingavam e tiravam brincadeiras de má-fé, quando passavam, andando destemidos, em frente à sua janela, ao irem e ao voltarem do jogo. Confessara, ainda, que, apesar disso ter acontecido umas duas ou três vezes, havendo ficado tão assustada e temerosa que eles passassem novamente, nunca chegou a contar isso à própria filha26. Numa outra situação, esta bem mais séria e terrificante, um fugitivo penitenciário refugiou-se por cerca de um dia e meio em seu quintal, o que fez com que ficasse com muito medo, se mantendo reclusa em sua própria casa durante todo esse tempo. Estes são dois casos entre outros dos quais costumava se queixar; como, por exemplo, o roubo das bananas e dos côcos das árvores que plantava. Também foram estranhos que certa vez chegaram e abriram um buraco no muro que faz limite entre sua casa e a ferroviária. Estes haviam lhe dito que estavam colocando um cano por onde escoaria “não-sei-o-quê”, mas terminaram fazendo um buraco no muro que logo se revelou um canal - que cruza seu terreno, passando pela lateral de sua casa - para transportar detritos como água suja e óleo, substâncias de um posto de gasolina que se encontra perto da ferroviária, do outro lado da rua. Qual atitude tomou diante disso? Como procurou proteger-se?

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O medo é, em geral, uma emoção considerada vergonhosa (Ver Delumeau, 1989).

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Mandou fazer uma cerca de madeira na entrada de sua casa. Seus filhos pregaram uma placa numa das árvores do terreno com os dizeres “Não entre / propriedade particular / sujeito à punição”. Mas, que outros medos “normais” ainda a afligem? A velhice chegando, os filhos que não são mais crianças e que quase nunca estão em casa... Apesar de tudo isso, ela afirma que o lugar onde vive é tranqüilo, mas quanto mais velha ela fica, mais medo tem. Atribui, assim, seu crescente medo (ou pelo menos parte dele) à velhice. Faz quarenta anos que ela vive ali. Tem muitas lembranças de seus pais: são saudades de um tempo bom. Não tem vergonha de ser pobre, deixa claro. Hoje tem duas bisnetas e várias netas e netos, que vivem com ela naquele pequeno conjunto. Também possui algumas árvores bonitas como uma oliveira. Já houve outras árvores bonitas ali. Uma vez, Dona Biliu plantou cinco bananeiras, mas todas elas foram levadas, roubadas de seu quintal. Na época de seus pais, se faziam plantações em seu pequeno terreno. A colheita de subsistência era suficiente para viverem bem alimentados. Neste mesmo terreno, que antes julgava mais fértil e realmente limpo, criavam animais. Dona Biliu relata um evento incomum acontecido no Porto: cerca de dois anos e meio atrás, um homem tentou seqüestrar a filha de um tal Luís Bronzeado (ou, talvez, Luís Moreno - não há certeza nas informações sobre esse detalhe, mas também ele não importa!). Fugindo, ele entrou com o carro no Porto do Capim pela noite, mas a polícia estava logo atrás dele. Aquela noite foi bastante tumultuada: cinco ou seis camburões, com policiais extremamente armados, estavam lá para pegar o sujeito. A menina conseguiu escapar dele, e ele da polícia. Foi uma noite muito tensa e perturbante.

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O medo de ladrões, também, é sentido por lá e está estreitamente associado ao medo de estranhos. No entanto, num grau consideravelmente bem menor do que é sentido num bairro, digamos, de classe média. O temor dos estranhos, de suas invasoras passagens sinistras pelos terrenos das casas é um medo sentido apenas por quem tem, além da própria casa, um terreno o circundando – como no caso de Dona Biliu. No Porto, há casas protegidas, mas as fortificações residenciais limitam-se, quando muito, à porta e à janela fechadas, já que as casas, em geral, mantém uma distância muito pequena uma das outras, não dispondo quase nenhum terreno. Em alguns casos, há cerca, quando tem espaço (quando se trata de terreno como o de Dona Biliu), ou há grades quando a entrada é um pequeno terraço. Pequenas são todas as residências, porém, que se encontram geralmente lado a lado, sem dar espaço para jardins ou quintais. Portanto, contrasta bastante com qualquer bairro de classe média, uma vez que estes, fisicamente, se caracterizam pelas ruas calçadas, os muros de cimento altos (onde existem alguns com pregos na superfície horizontal do topo) e grandes cães de raça, que guardam a casa. No Porto, não se sente, em geral, grandes possibilidades de que se tenha a própria casa invadida. A grande maioria delas fica uma ao lado da outra. O temor é mais dirigido ao estranho que habita os prédios vazios, que vagam calados entre uma e outra ruína. Tratase de uma atenção não alarmante que se dirige para meninos “cheira-colas” ou “maconheiros”, como são conhecidos. Não há, como é comum vermos em bairros classe média, cães de guarda. Os cachorros trafegam nas ruas entre as pessoas sem ameaçarem ninguém e, também, sem se sentirem ameaçados – apenas de vez em quando, se alguns meninos resolvem tomá-los

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como objeto de brincadeiras. Os cães domésticos são, em geral, bem sociáveis e pequenos – são realmente, antes de serem cães de proteção, cães de estimação. Se, por um lado, há medo de possíveis ladrões ou estranhos que caminham entre prédios abandonados, por outro, existe um certo medo da polícia. A polícia é vista como uma presença ambígua: não só protege como assusta. Em certa ocasião, Márcia, uma mulher que mora no Porto, narra um acontecimento ocorrido pela madrugada, na casa m que mora com a irmã e os sobrinhos: o marido (ou ex-marido - seja como for, pai dos filhos) de sua irmã, quis arrombar a porta da casa, bêbado, pelas 4hs da madrugada. Ele, que gritava, dava escândalos e queria ver os filhos, mas foi embora quando ela ameaçou e ligou chamando a polícia. Além dessa narrativa, há a já mencionada mais acima, quando do seqüestro de uma garota e da fuga do seqüestrador para o Porto - ocasião em que a polícia teve uma oportunidade de mostrar seu poderio. Houve algumas outras situações em que a brutalidade dos policiais assustava mais do que aliviava. Um exemplo, dado novamente por D. Biliu, aconteceu a não muito tempo atrás: haviam alguns meninos que cheiravam cola nas proximidades de sua casa. Ela não tinha raiva deles, pois, para ela, eles não passavam, na verdade, de doentes. "Se a pessoa não tem controle sobre o próprio vício", afirma, "é porque já está doente". Assim, precisam é de ajuda. Em frente a sua casa havia uma mangueira. Eles iam lá comer as mangas, mas Dona Biliu não se importava, uma vez que as mangas sobravam. Um dia, alguns guardas pegaram os dois meninos tomaram a cola e o dinheiro deles e os expulsaram dali. Não precisavam ter feito isso, diz. Há um medo da polícia, devido à brutalidade com que eles lidam com as situações – é mais uma certa falta de sensibilidade que assusta, se tornando uma espécie de presença

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incomodamente intimista. Os próprios vigias sabem do que a polícia é capaz. Apesar da presença escassa da polícia na área, dentro do Porto do Capim, é sabido que param se verem algum “vagabundo” ou “vadio”, que não trabalha porque não quer... A ameaça da falta de trabalho é um problema na comunidade, pelo menos é bem sentida pelos mais velhos, onde esta pesquisa se centrou. João Firmino, conhecido por todos como Seu Alagoas (por ser originário deste Estado), junto à Dona Biliu, próximos da cerca recentemente construída de sua casa, lamenta ao ver jovens jogando bola no campo, em plena tarde, quando poderiam estar trabalhando. Essas atitudes podem ser alusões à uma consciência sobre o que representa não ser um trabalhador. Se tentássemos moldar essa consciência à um pouco da história de vida de cada um dos mais velhos, atrelando-os à suas próprias lembranças, veríamos Dona Biliu preocupada com os garotos que não fazem nada lhe importunando, levado frutas das árvores de sua casa e, quem sabe, no futuro, transformando-se em fugitivo penitenciário; veríamos, por sua vez, na consciência do perigo que isto representa para Seu Alagoas, o assaltante que atirou em seu parceiro de trabalho, há alguns anos atrás ou, ainda, algum de seus filhos tendo que aceitar cesta básica do governo para alimentar seus netos – o que mais de uma vez deixou claro que o não fazia, pois seu trabalho sustentava as suas crianças e os mantinham na escola, sem ajuda do governo, sem filantropia, sem caridade. A base de suas lembranças, naquele momento em que fazia suas repreensões àquela prática de jogo entre os jovens que gostaria de ver trabalhando, provavelmente, era o próprio campo nos tempos de trabalho. Campo de futebol hoje, fora antes local onde carregavam e descarregavam a produção que seria transportada pelo Porto, e que vinha e saia dali. Aquele jogo simbolizava o fim de uma época que havia bastante trabalho, estivadores fortes e saudáveis que eram seus amigos e conhecidos, mas também

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simbolizava um porvir inseguro, uma certa falta de perspectiva sobre o futuro (e ele contaria mais tarde que realmente não havia o que esperar dali...). O jogo representava uma atual despreocupação dos jovens, sua falta de ânsia em procurar um emprego, isso tanto para Seu Alagoas quanto para Dona Biliu. Ambos são idosos e possuem filhos e netos e se preocupam como as coisas hão de ficar. O presente, neste caso, seria uma contrariedade do passado. Interessante é que se pode colocar a falta de perspectiva como uma situação que causa ansiedade, ou melhor, medo, receio do não-trabalho, e uma angústia profunda, receio das conseqüências disso. É uma forma de temer? Provavelmente, é mais um motivo para tal. E a falta de perspectiva enquanto um gerador potencial de medo, insegurança, ansiedade, desespero... (enfim situações mais graves) parece ser comum hoje em dia, estendendo-se para amplos estratos da população da cidade. O medo de que outros não tenham trabalho representa mais o medo de ser, de alguma forma, afetado por essa condição de sem-trabalho do outro. Seja diretamente ou não. Parece que isso está mais ou menos claro. Há, porém, o medo gerado pelo risco profissional que é próprio de cada trabalho. No caso de Seu Alagoas, não há insegurança quanto à perda de seu emprego – uma vez em que confia em seu patrão lealmente e que não acredita que este o demitirá tão cedo27 -, mas há o risco da morte, uma vez que é encarregado da vigilância noturna (e também diária, em fins de semana) do prédio de uma madeireira. Mas Seu Alagoas não teme esse risco, se sente preparado e não acredita que ninguém o incomodará. Certa vez, chegou a salvar duas mulheres de uns homens que corriam atrás delas: elas entraram na madeireira e ele as protegeu, convencendo os homens a irem embora,

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Velho do jeito que está, sente que é mais fácil ser aposentado do que demitido.

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dizendo que nenhum homem podia entrar ali – mulher sim, mas homem não. Talvez o mais perto que chegou da morte foi quando tentaram matar seu velho parceiro. O assaltante chegou e pediu o dinheiro ameaçando com uma arma – notava-se que era um amador, estava muito nervoso, seria a primeira vez que mataria alguém, diria Seu Alagoas. Mas não havia dinheiro ali, só as madeiras, uma TV, uma garrafa de água e o vigia em sua cadeira. Não satisfeito e em pânico atirou à queima roupa, mas, milagrosamente errou. O tiro, cuja pólvora alcançou os olhos do velho vigia, passou muito próximo, não o acertando. O assaltante saiu correndo, porém, logo depois foi pego pela polícia. Porém, isto tudo poderia ter acontecido realmente com Seu Alagoas. Esse atentado, porém, e outras experiências parecem ter aguçado mais a consciência do perigo de um outro vigia, também amigo de Seu Alagoas. Este último trabalha vigiando um prédio vazio pertencente a uma companhia. Ele vem de longe e dorme no próprio prédio, que guarda de possível invasão. “O patrão tem medo de que alguma família invente de entrar pra morar lá”. Este vigia, que é do Junco do Seridó, ao contrário de Seu Alagoas, trabalha fardado e portando revólver, sente medo e acha injusto que um vigia noturno trabalhe desarmado como Seu Alagoas. Seu medo foi incrementado após o incidente com o velho vigia que dividia o turno com Seu Alagoas, na guarda da madeireira. Ele admira bastante Seu Alagoas, por ser um velho experiente e, principalmente, trabalhar sem medo protegendo o prédio apenas com um facão, sem arma de fogo - uma vez que seu patrão não confia deixar um revólver para a guarda do prédio. Ele comenta que os patrões acreditam que para espantar os marginais basta por alguém na frente do prédio. Como um espantalho, apenas a presença do segurança espantaria os estranhos mal-

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intencionados. Porém, as coisas parecem não ser assim, como prova o atentado ao velho vigia. O fato de não portar uma arma é conseqüência de um outro risco, mas esse para o próprio dono da madeireira, patrão de Seu Alagoas: ele não correria o risco de que alguém fosse assassinado e de que o vigia de seu negócio, sem licença para portar arma, tivesse algo a ver com isso. Ele teria, no mínimo, que sofrer as conseqüências (complicações com a justiça, indenizações e etc...). Já o vigia, Seu Alagoas, não gostaria de ter de matar ninguém porque não confia na justiça – ele estaria cumprindo seu trabalho, seu dever e, no entanto, provavelmente, o colocariam na cadeia. É o medo de não ser entendido, e é um risco profissional também. Mas o risco profissional abarca outros trabalhadores do Porto, e de outras formas. Residente há cerca de 22 anos, Dona Graça que, entre outras atividades, recicla e costura, vende roupas e outros produtos na popular Feira da Sulanca28, pela noite. Seu risco, como o de qualquer outro feirante, é o de não vender o suficiente. O mesmo acontece com seu companheiro, com quem vive a 20 anos, Seu Francisco, que apesar de ter alguns clientes certos para seus serviços como marceneiro, não tem segurança econômica. Ambos concordam que nos últimos anos as coisas têm piorado muito, “principalmente com este último presidente”, pra ser mais claro. Além de morar com Seu Francisco (que um pouco mais velho que ela, aparenta uns 55 anos), Dona Graça vive também com uma filha quase adulta, de seu primeiro e único casamento oficial, e sua mãe, que já está com idade bem avançada de 85 anos. Ao conversar com eles sobre usuais preocupações, os temores cotidianos ou medos particulares vão se delineando até se chegar à conclusão de que lá “só não tem perigo de

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uma coisa: a água nunca acumula na rua e nem chega a entrar na casa”. Conseqüência de uma boa localização que a salvou de uma inundação maior na última enchente. Ela tem conhecimento de alguns boatos sobre um projeto que “querem tirar o povo” de Porto do Capim. Mas nada muito claro, apenas "boataria". Voltaremos a esse assunto mais adiante, no capítulo 5. As últimas enchentes e vendavais, acontecidos durante o tempo das chuvas do ano passado, assolaram o Porto do Capim – além de ter destruído muito de outras regiões pobres da periferia da cidade. Quase todos os telhados das casas do Porto tiveram que ser refeitos. Quem morava em casa de taipa teve que reformar por conta própria sua própria moradia com cimento e tijolo, além, é claro, de telhas novas. Sem dúvida esta foi uma das piores enchentes dos últimos anos, mas certamente não é a primeira vez na história que ocorre tamanha devastação. Na década de 40, Seu João Araújo, então com 17 anos de idade, foi obrigado, encurralado pelas águas, junto com toda sua família, a vir para as margens da capital. Na ocasião da “Grande Cheia” que os trouxe de onde morava, perto de Bayeux e Santa Rita (no outro lado das margens), conta que muitas famílias foram jogadas para todos os lados. Ele por sorte veio parar aqui, onde vive hoje, morando no baixo Roger e andando pelo Porto onde tem amigos. Desta vez, a casa de Seu Alagoas, que era de taipa, havia desabado. Ele e sua família ficaram morando provisoriamente numa pequena parte da casa que restou, que estava perto das margens. Enquanto isso, levantava outra casa no lugar da antiga, só que agora de cimento e tijolos. Seu Alagoas mora em João Pessoa há muitas décadas, mas sempre trabalhou no Porto como vigia da Madeireira Cleumy e, também, como um faz-tudo desta empresa. 28

Este é uma feira bem conhecida em toda a cidade. Ela não tem um local fixo, mudando periodicamente,

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Antes de se mudar definitivamente para o Porto do Capim, vivia no bairro de Mandacaru, incomparavelmente mais violento e perigoso do que o Porto, diz. Tinha de sair bem cedo de sua casa para ir trabalhar no Porto e ia com medo. Por isso resolveu morar de vez perto do local de trabalho, há 20 anos atrás. Na ocasião, ele e mais quatro amigos aterraram onde antes era apenas mangue, apenas a margem do rio, fazendo, dessa forma, o chão de suas próprias casas, que formam cada uma ao lado da outra, uma das duas laterais da rua onde mora – sendo a outra lateral da rua ocupada por depósitos antigos e em ruínas. A casa de Dona Graça e Seu Francisco ficou quase toda inundada. Essa recente cheia não chegou a alagar todas as casas, embora quase todas elas se encontrem nas margens. Mas a devastação, além de quebrar quase todos os telhados, assustou bastante a todos. “Foi horrível – muita água”, nas palavras de Dona Biliu. Inundou muitos cantos. Em sua casa, o canal aberto no muro que dividia o terreno de sua casa com o da ferroviária, e que trazia detritos do posto de gasolina localizado mais ou menos em frente à rodoviária, estava “como nunca”. O canal, que já era fonte de odores, agora estava fedendo, também, “como nunca” à álcool e a querosene. Em suma, foi um terror pelo qual todos os moradores do Porto tiveram que passar. Mas ao contarem seus desastres pessoais, contaram sem qualquer espécie de seqüela psicológica (se assim podemos dizer, no sentido de que todos falavam bem tranqüilos e serenos sobre o assunto, sem na verdade parecerem dar demasiada atenção), encarando como um assunto corrente29.

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para vários pontos da cidade, sua concentração de pequenas vendas. Talvez já tivessem falado de mais a respeito, afinal, já havia cerca de um mês após as fortes chuvas quando conversaram a respeito comigo. Ou sabiam que o pior já tinha passado. Ou, ainda, de certa forma, não fora a primeira vez que tivessem passado por dificuldades semelhantes. Em alguns casos, algumas pessoas acharam a ocasião proveitosa para reformar suas próprias casas – como a própria Dona Biliu, que mostrou feliz seu novo telhado.

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falta de perspectiva A falta de perspectiva colocada anteriormente, no Porto, possui uma particularidade que a distingue das demais faltas de perspectivas existentes espalhadas pela cidade. Tratase do abandono a que todo o Porto ficou à mercê após seu declínio comercial. De lugar de relativa esperança, baseada na idéia de um progresso que impulsionaria o desenvolvimento da cidade e do Estado, tirando-os do atraso, o Porto se tornou um lugar vazio, representando o desperdiçado, um sonho não vingado, um malogro. É o fracasso econômico e a debilidade social que dão o tom ao lugar que procurará ser “restaurado”, “revitalizado” e “reaproveitado” pelos idealizadores do projeto de reforma, estes, autênticos herdeiros e continuístas difusores de um ideal fundado na ideologia do progresso. Os moradores de lá tem consciência dessa condição, do descaso e a sujeição dos prédios antigos, e temem as conseqüências. D. Biliu reclama, em particular, do prédio abandonado da Nassau. Afirma que lá só fazem sujeira: jogam de tudo e fazem o que querem. O lugar fica fedendo por conta disso. O prédio do sindicato, atualmente, serve apenas como um dormitório provisório para trabalhadores conhecidos que vem de longe, como Tutu. O vigia, amigo de Seu Alagoas, que trabalha guardando uma casa de dois andares, que é propriedade de uma empresa, coloca uma crítica: não há nada na casa para ser protegido, apenas a própria casa, que está vazia, e também está bem abandonada e deteriorada. O vigia a protege, na verdade, de possível invasão – pois a companhia em que trabalha teme que alguma família resolva se mudar e morar na casa. No entanto, o próprio vigia reconhece que se alguém resolvesse morar ali, naquela casa, provavelmente ela seria mais bem cuidada, porque, afinal, ela seria a residência de alguém.

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A imagem da reforma para os moradores A imagem que os moradores fazem da reforma que está sendo feita no Centro Histórico é o de uma reforma que, apesar de estar sendo feita em prédios muito próximos, não os atinge. Mesmo assim, é uma novidade não muito clara. Em linhas gerais, é mais ou menos como se vivessem numa condição do tipo: “esperar pra ver no que dá”. Ao serem perguntados sobre as mudanças em suas vidas e no Porto, em geral, decorrentes da reforma, muitas respostas indicavam que, praticamente, nada havia sido alterado. Mostramse, os mais das vezes, indiferentes. Em conversas com Seu Alagoas e outros trabalhadores do Porto, não houve nada demais. Tudo continua como antes. Para Seu Antônio e D. graça, também: nenhuma mudança substancial. Mas essa permanência se dá devido ao fato da reforma não ter chegado ainda no próprio Porto do Capim. Apenas em num ou noutro dos prédios antigos, situados na área calçada, onde ninguém mora, houve algum sinal de reforma. A reforma é vista, em geral, como não incluindo o Porto, mas a apenas a parte de cima da cidade antiga – mais precisamente, a parte envolta das praças Anthenor Navarro e Pedro Gonçalves. Mas houve outras respostas. Dona Biliu, exaltada, vê positivamente a reforma do Centro Histórico. Acredita ser esse um trabalho muito importante, pois com ele muitas coisas mudaram. Porém, lamenta que essa reforma tenha atingido poucos casarões. Segundo ela, é necessário cuidar de todo o lugar, deixando tudo limpo e conservado. Ela espera que se estenda esta recuperação do Centro Histórico. No entanto, ressaltava a recuperação de um espírito que já não existia, mas que poderia significar um retorno à importância econômica e ao desenvolvimento da qualidade de vida para os moradores daquela região.

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Parece, neste sentido, que ela concebe, ou ansia, uma mudança mais geral, a partir desta reforma, que é uma reforma mais particular. Ela vê como uma possível solução para aproveitar a mão de obra de que dispõe o Porto. Precisamente, sua opinião é de que “se o governo abrisse uma indústria, se reformassem o resto das casas” e, por exemplo, “se abrissem um bom hotel, haveria empregos, além de mais pessoas de fora circulando pelo local”, apreciando os prédios e vendo que a região não é tão carregada, como é conhecida, e aí – como me diria mais tarde Seu Alagoas – as pessoas não ficariam sem fazer nada, só recebendo cesta básica. Dessa forma, quando dão opinião a respeito da reforma, independente de a desejarem ou a refutarem, os moradores aludem à algo relativamente distante. Foram feitas algumas referências de como as coisas eram antes e como são hoje em dia. A primeira referência temporal foi a reforma (a pergunta foi: como era antes e depois da reforma). Mas, em seguida, uma noção mais livre e pessoal do tempo como referência se impôs (de acordo com a memória dos que relatavam), pois a reforma não era vista como marco importante para os moradores. Assim, apesar da vida, com a reforma, ter continuado “a mesma coisa” para os trabalhadores do lugar, estes reclamam de que antigamente era possível se embriagar e dormir na rua à noite, sem problemas. Hoje em dia, não é possível. E isso não lhes parece bom, já que em certas oportunidades talvez fosse bastante conveniente. Parece que, quando se estava embriagado e não queria retornar à própria casa, dormia-se na rua mesmo. Hoje em dia, isso não é possível devido ao policiamento e ao risco de ser assaltado. Segundo Dona Maria, os tempos mudaram bastante. Estas mudanças foram mais sentidas há uns oito ou nove anos atrás. Antigamente, afirma, como Seu Alagoas e o grupo de trabalhadores que geralmente conversam no pátio o fizeram também, que no Porto do

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Capim, era possível ficar até muito tarde na rua. As ruas eram das pessoas, e este parecia ser um costume entendido e aceito por todos, um ato considerado normal entre eles. Mas agora ficou relegado aos estranhos.

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Conclusão

Retomemos, neste momento, a monografia como um todo. Pode-se considerar que o medo, após as observações feitas principalmente na introdução e no capítulo um, envolve uma série de fatores que o determinam e são por ele determinado. O jogo social previamente estruturado mantém-se sob a tensão entre os diferentes jogadores que, submetidos às regras, procuram impor-se na realização de seus interesses particulares. Mas o dono do tabuleiro coloca essas regras como se elas se originassem do nada, do papel que veio junto com a caixa e, por isso, todos devem se submeter à lógica do jogo, inclusive ele mesmo. A ideologia é uma realidade que formata o medo e que, reciprocamente, é sua base de sustentação. Ao mesmo tempo orientação e legitimação, o progresso significou e continua a significar a negação do passado a partir do controle social, no presente, que tão somente visa a perpetuação do bem-estar no futuro, a tranqüilidade e a paz para os que lutam por ela, ou que legitimamente a merecem: os “trabalhadores”. A identidade de trabalhador configura uma espécie de “intersecção” entre os excluídos e a sociedade, um elo (porém, meramente ideológico ou ilusório) entre os despossuídos de bens de produção (e detentores unicamente de suas próprias forças de trabalho) e os que detêm meios de produção (e empregam força de trabalho). Essa identidade é a maneira através do qual as elites “sanearam” moralmente parte da própria miséria que os ronda, pois ela representa a disciplinarização do ser que é naturalmente um perigo em potencial: o pobre, considerado “elemento” sujo, doente, perigoso, foco de contaminação... No entanto, os medos que assolam o Porto são diferentes. Uma coisa é viver lá, outra é “ser de fora”. Mas quem é trabalhador é bem vindo. Estranhos suspeitos, não. Tudo

parece conspirar para mostrar que não há qualquer diferença entre os temores de uma donade-casa classe média ou, mesmo, alta e uma dona-de-casa moradora do Porto. O que as diferencia, profundamente, é sua base social: sua história, sua condição social de existência. As classes privilegiadas se precaveram sobre o mal que elas mesmas criaram e alimentaram, a pobreza e todo temor oriundo daí. Neste caso, os moradores do Porto são uma ameaça a estas classes. Porém, esses moradores e trabalhadores praticam uma atitude semelhante entre eles mesmos. Eles respeitam e até mesmo proliferam valores concernentes às classes altas. Mas o fazem para alcançarem respeito, mesmo que desigual. Mas com certeza, bem melhor do que ser considerado lixo. No entanto, são historicamente considerados lixo, resíduos sociais, ao mesmo tempo em que são considerados perigosos agentes anti-sociais. A contradição vai além. O reaproveitamento do inaproveitável é uma prática predominante. Visa, caritativamente, ajudar os pobres, muitas instituições são criadas. Neste projeto de reforma do Varadouro, há uma intenção de recuperar aqueles pobres coitados. Porém, essas instituições parecem ajudar mais a consciência dos ricos do que a vida material dos pobres. E, se por um lado, a pobreza parece assumir pacificamente esse interesse de uma classe dominante particular, por outro, são ocultadas os conflitos que fundamentam as relações sociais entre essas classes. O morador do Porto pode perpetuar valores como o da identidade trabalhista como sendo alguém na sociedade. São valores que estão tão enraizados quanto os sofrimentos que te viram que se submeter toda a sua classe durante a história. Se a classe dominante engendrou uma classe dominada que a apavora e é por ela

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apavorada, esta contribui de forma decisiva para perpetuar sua própria condição de forma submissa.

“(...) Um grupo ou classe pobre nunca ignora as intenções estéticas dos grupos sociais mais afastados (ou ‘superiores’) ou a imagem ‘desprezante’ que estes grupos fazem de sua prática. Mesmo que [por exemplo] eles identifiquem a bela fotografia a uma fotografia de uma coisa bela esteticamente, segundo os padrões das classes dominantes, os valores exaltados pelas sociedades hierarquizadas como a honra, a dignidade e a respeitabilidade, suscitam sempre um certo mal-estar, por parte das classes pobres. Isto porque muitas vezes interiorizam uma imagem negativa que os membros de outros grupos fazem deles e, conseqüentemente, de suas realizações, consideradas ‘sem estética’ ou ‘pitorescas’” (Barreto, 1996: 63). Ambas possuem um medo comum, esse bem mais profundo e muitas vezes esquecida quando justamente está é mais respeitado: o medo da morte. Medo se ser morto, vontade de matar... A morte caminha sobre os tempos e traga os lugares. Ambas

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