Memória e Leitura. Sobre a posteridade em Eça de Queirós

July 1, 2017 | Autor: Orlando Grossegesse | Categoria: Commemoration and Memory, Portuguese Literature, Eça de Queirós
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Publ.: “Memória e Leitura. Sobre a posteridade em Eça de Queirós”, O Escritor, nº 15/16/17 (Março de 2001), Lisboa: Ass. Portuguesa de Escritores, pp. 110-122. Versão revista (sem as referências à efemeridade do centenário) & ilustrada, com indicação das páginas do texto publicado [notas no final]. [110] Orlando Grossegesse

M EMÓRIA E LEITURA SOBRE A POSTERIDADE EM EÇA DE QUEIRÓS A consciência de sermos sobreviventes faz-nos avaliar a nossa vida como hipoteticamente acabada, numa perspectiva póstuma antecipada: pensamos em possibilidades de continuarmos presentes na memória dos outros, da mesma forma como outros permanecem na nossa. A arte tem um papel essencial neste esforço de imortalizar, como Eça reconhece, em 1886, no prefácio dos Azulejos do Conde Arnoso: “a única esperança que nos resta de não morrermos absolutamente como as couves é a fama, essa imortalidade relativa que só dá a arte.” (NC: 109) A leveza humorística desta frase não deixa de revelar a preocupação profunda com a mortalidade, presente ao longo de toda a obra queirosiana, desde as Prosas Bárbaras (é só pensar nas “Memórias duma Forca”), até ao último romance, inacabado, A Cidade e as Serras, ou seja: desde a recepção do Romantismo de raiz germânica no vitalismo profano da juventude até à visão finissecular carnavalizada que nasce da crítica do Pessimismo de Schopenhauer e da maladie de la volonté de Bourget, como comprova, em 1891, o ensaio “A Decadência do Riso”. Para além da temática, Eça transfere esta preocupação à própria escrita, favorecendo a disposição discursiva própria da biografia e da autobiografia que requer um ponto de vista post mortem e ante mortem, respectivamente. Já nos folhetins das Prosas Bárbaras aparece a dualidade de discurso biográficoeditorial e de documentos (encontrados), encenando a frágil existência do artista que é destruído pela sociedade materialista. N’ A Correspondência de Fradique Mendes encontra-se a mais complexa realização deste modelo e, ao mesmo tempo, a mais densa articulação com a própria identidade do escritor, ocultada em ambas as instâncias, do biógrafo-testamenteiro anónimo e do biografado Fradique. Quantas vezes o pensamento e a reflexão sobre a nossa vida parte da morte de outra pessoa? Fradique é outra pessoa, e tem outra morte.

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Identidade

e

morte

são fingidas,

não

fictícias,

porque

simulam ter

autenticidade em vez de referencialidade verosímil. Com este fingimento, tanto o [111] grande poeta defunto como o seu amigo, o narrador-testemunha e editor, são partes do mesmo sujeito enunciador. Assim, a biografia ou o necrológio torna-se autobiografia disfarçada sob a perspectiva post mortem antecipada ou, utilizando o nosso neologismo, torna-se auto-necrografia (Grossegesse, 1993). O paradoxo evidente deste conceito explica -se num quiasmo mental: enquanto o Eu mais autêntico morre, quem sobrevive é o amigo que o admirou. É ele quem comunica o incomunicável, transformandose numa espécie de casulo-eu do grande homem defunto. Estas relações estão patentes na seguinte citação: Se a vida de Fra dique foi assim governada por um tão constante e claro propósito de abstenção e silêncio – eu, publicando as suas Cartas, pareço lançar estouvada e traçoeiramente o meu amigo, depois da sua morte, nesse ruído e publicidade a que ele sempre se recusou, por uma rígida probida de do espírito. (FM: 107)

Portanto, o editor-biógrafo está bem consciente da traição que comete quando publica e expõe ao mercado das letras precisamente estas cartas, que Fradique não destinou à publicação. Deste modo, a disposição discursiva peculiar da auto-necrografia, que aliás possui uma tradição textual anterior e posterior à Correspondência de Fradique Mendes (vd. Grossegesse, 1993), cria condições ideais para cultivar o pensamento de que os mortos fazem parte do nosso percurso, e de que as biografias questionam e influenciam a nossa, ainda inacabada. Conforme as palavras finais do editor-biógrafo, Fradique até possui a missão post mortem de assegurar a memória “da graça, da vivaz invenção, da transcendente ironia, da fantasia, do humorismo e do gosto” para manter o país vivo ou para que “a nossa pátria não [seja] inteiramente um cadáver que sem escrúpulos se pise e se retalhe” (FM: 114). Nestes “tempos incertos e amargos”, a revelação da correspondência possibilita uma imortalidade diferente da “mudez de um mármore”, capaz de transmitir através da palavra íntima, não-literária “uma consolação e uma esperança” (FM: 114). Esta missão de recuperar a força de afirmar, superando o diletantismo que é expressão destes tempos incertos da pluralidade das verdades, corresponde à crítica de Paul Bourget (1883).

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No caso de Fradique Mendes, já vimos que a escrita não obedece às limitações entre

ficção e

realidade,

muito pelo contrário procurando

transgredi-las. A biografia e a epistolografia dum alter ego falecido, fingido precisamente através desta dupla grafia, representa só o cume auto-reflexivo e até auto-irónico duma actividade maior: procurar a comunicação dum percurso biográfico exemplar, o que inclui no caso do escritor também a própria evolução da ‘obra’ que o eterniza. Esta procura articula-se com a comemoração de defuntos, importantes para a própria vida ou para a evolução artística. Eles induzem a uma auto-contemplação post mortem antecipada. No caso de Eça, a epistolografia e a prática de crítico literário e cronista confluem neste fim. Carlos Fradique Mendes é a prova desta auto-reflexividade quando, curiosamente num pós-escrito, defende a publicação póstuma de “colecções de Correspondência”, indicando deste modo a estratégia desejada dum (futuro) biógrafo-testamenteiro: Eis aí uma maneira de perpetuar as ideias de um homem (...) – publicar-lhe a correspon dência! Há desde logo esta imensa vantagem: - que o valor das [112] ideias (...) não é decidido por aquele que as concebeu, mas por um grupo de amigos e de críticos, (...). (FM: 108)

Tal como Fradique, Eça podia contar com os seus amigos, nomeadame nte com o Conde de Arnoso, Ramalho Ortigão, Luís de Magalhães e Jaime Batalha Reis1 , e viu, desde a ultra-tumba, ao longo de um século, multiplicados os leitores, biógrafos e especialistas queirosianos. A escrita de Eça desenvolve -se, nomeadamente a partir de 1884/85, sob antecipação mental da posteridade. A publicação de O Mandarim e a reedição de O Mistério da Estrada de Sintra, ambas em 1884, comprovam que o autor constrói “uma espécie de retorno a origens durante algum tempo obliteradas pela lição reali sta-naturalista”, visível nos respectivos prefácios (Reis, 1984: 46, nota 4). Esta construção antecipada de posteridade, logo tema em Fradique Mendes, guia a ‘leitura’ dum percurso biográfico indissociável da evolução da obra. Tudo leva a crer que Eça cultivou deliberadamente a escrita inédita, contando com edições póstumas, não tanto de textos literários inacabados mas sobretudo duma parte da correspondência que estabelece, com laivos proto-literários, ligações Este último criticando o procedimento de Luís de Magalhães. A construção póstuma da obra queirosiana é retomada pelo filho José Maria, a partir de 1924, com manipulações ainda mais duvidosas (cf. Reis/ Milheiro, 1989: 30-33). 1

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temáticas e estilísticas com A Correspondência de Fradique Mendes ou textos ensaísticos, por sua vez frequentemente com marcas de discurso epistolar. Basta pensar na carta dirigida ao Conde de Arnoso, de 24 de Maio de 1885, que começa com reflexões sobre a futilidade do viajar, dignas dum Fradique Mendes (Corr. I, 253), num estilo próximo da já citada carta-prefácio dos Azulejos, de 1886.2 Acabámos de indicar os anos de 1884/85 como decisivos, pensando em textos que comprovam como o autor se preocupa com a construção da obra e da figura do autor3 pela posteridade, preocupação essa que abrange as estruturas enunciativas. No entanto, convém retroceder até à famosa carta de 8 de Abril de 1878 a Ramalho Ortigão, quando Eça lamenta a sua situação desfavorecida em comparação com Balzac e Zola: Balzac (...) não poderia escrever a Comédia Humana em Manchester, e Zola não lograria fazer uma linha dos Rougon em Cardiffe. Eu, não posso pintar Portugal em Newcastle. (Corr. I, 143-44)

O afastamento do seu meio habitual não só lhe impossibilita a observação da sociedade

portuguesa, e portanto a continuação do projecto realista-

naturalista. Priva-o também da conversa com os amigos e da autorepresentação como escritor reconhecido e dândi cheio de esprit e verve no limitado high life lisboeta entre o Grémio Literário e o Tavares: “(...) neste degredo, faltam-me todas as condições da excitação intelectual. Há um ano que não converso!” (sublinhado por Eça). As sucessivas deslocações do nosso autor contribuem para uma consciência da própria identidade (nacional, intelectual, literária) frágil, favorecendo

a

construção

mental

dum

‘deslocamento’

de

posições

enunciativas. A vida [113] no estrangeiro fá-lo sentir desnacionalizado, sem qualidades próprias4, emudecido, não-morto, um sentimento apenas paliado precisamente pela intensa correspondência do escritor-dândi com os amigos e também com o seu editor Chadron, que falece em 1885. Em Newcastle, Eça diz que só consegue descrever “uma sociedade [portuguesa] de convenção, Mais adiante nos ocuparemos destes textos. Sobre a proximidade entre a epistolografia de Eça de Queirós e as cartas de Fradique Mendes vd. Reis (1984: 58, nota 42). 3 Definições teóricas de Helena Carvalhão Buescu (1998: 39). 4 A esse respeito vd. a carta a Oliveira Martins de 10 de Maio de 1884 (Corr. I, 226-27) da qual nos ocuparemos mais adiante. 2

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talhada de memória”. No entanto, vive numa sociedade inglesa, caracterizada na carta a Ramalho Ortigão como um lugar sem leitura e sem memória, prevendo, sob estas condições, a sua renúncia à escrita realista-naturalista em favor da “literatura puramente fantástica e humorística” (Corr. I, 144-45). Neste contexto, é significativo que Eça tenha ocultado a identidade de escritor com tal perfeição que, por exemplo, o Conde Banckow, fiel companheiro em “fugidas a Londres e a Paris”, ignorava por completo a sua qualidade de escritor. Ainda após a morte de Eça, ele “só se convenceu quando um compatriota nosso (...) lhe mostrou um bilhete -postal com a fotografia do monumento do Largo da Quintela.”5

A mudez de um mármore torna-se, ironicamente, a prova da sua fama como escritor, não a própria palavra literária. A memória do grande autor passa pela representação emblemática de traços corporais, o sorriso e o monóculo, relacionáveis com o seu estilo observador e irónico, tanto na conversa como na escrita.6 Já desde a sua juventude, Eça cultiva uma ‘imagem’, conhecendo bem o avanço dos media na sociedade burguesa,

António Feijó em carta a João Chagas, 1907; cit. in: Corr. I, 144 -45 (nota). Existe uma auto-representação caricata em João da Ega n’ Os Maias. A semelhança dos referidos traços é confirmada por depoimentos de pessoas que conheceram Eça em vida ( vd. artigo “Eça actor” in Campos Matos, 1988). 5

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nomeadamente da imprensa ilustrada, do teatro das revistas e da fotografia7, em detrimento da leitura pura de antigamente – uma idealização retrospectiva. Sob estas condições, a imortalidade dum escritor não se baseia tanto na leitura dos textos literários pelo público, mas sobretudo na memória visual da personalidade, reconhecível por signos característicos, apoiada por uma leitura biografista do legado textual, literário ou não-literário, como documento humano da personalidade singular. A partir de 1884/85, Eça viabiliza esta ‘leitura’, atribuindo a uma selecção postumamente organizada do seu epistolário, em analogia com A Correspondência de Fradique Mendes, um lugar de destaque. 8 Nomeadamente a correspondência com o Conde de Arnoso, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins revelam esta consciência pré -póstuma, mostrando ao mesmo tempo tendências literarizantes; por exemplo, uma carta a Oliveira Martins, escrita em Agosto de 1887 em Bristol, começa com uma pointe irónica sobre o carácter

conversacional

da

correspondê ncia

que

se

tornará,

para

a

posteridade, parte dum epistolário valioso: Tenho tido várias vezes o desejo de te escrever – para cavaquear; mas não me tem sobra do o tempo, nem essa disposição epistolar que tanta glória rendeu a Cícero e a Sévigné. (Corr. I, 429).

É em Maio de 1884, após a escrita d’ O Mandarim, que Eça sente “uma crise de estupidez e névoa intelectual” e uma perda de identidade, caracterizandose, numa reflexão autobiográfica, como um “francês de província” (Corr. I, 226). Esta crise leva-o, novamente, até à ideia de abdicar da escrita literária, limitando-se, “por probidade de artista”, “a escrever contos para crianças e vidas dos grandes Santos” (carta de 10 de Maio de 1884; Corr. I, 227). De facto, observa-se uma intensificação de ‘deslocamento’: fuga para o passado, para a história, referida repetidas vezes como grande tentação, [114] na correspondência ao longo dos anos 1884 e 1885, sobretudo com Oliveira

Vd. a defesa da fotografia como uma das “artes liberais” (junto com a indústria dos editores e livreiros), com uma descrição técnica pormenorizada, destacando a possibilidade da reprodução infinita “como o grão de trigo entre os mãos do lavrador”, em 20 de Junho de 1867 (DE: 502-503). 8 Reis / Milheiro (1989: 49, nota 59) assi nalam um perfeccionismo espelhado na correspon dência do autor, citando a a bertura significativa duma carta a Domício da Gama: “A irregularida de da minha vida epistolar provém de que eu penso sempre as minhas cartas antes de as escrever.” (Corr. II, 519). 7

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Martins e na famosa carta ao Conde de Ficalho9 , em simultâneo com a génese d’ A Relíquia. Não deixa de ser significativo que um breve texto de 1884, “A Inglaterra e a França julgadas por um inglês”, encene outro ‘deslocamento’ da enunciação: para o nível animal (vd. Grossegesse, 1991). D. José, um cãodândi inglês, escreve uma carta sobre as suas impressões da França; queixase da mesmice (da qual se queixará Fradique Mendes) na Inglaterra e elogia a originalidade da França, ironizando ao mesmo tempo as bases tainianas da escrita realista. O cão D. José parece uma espécie de auto-retrato do próprio escritor-dândi José Maria – basta reparar na identidade parcial do nome. Voltando à carta de 10 de Maio de 1884, o destinatário da missiva, Oliveira Martins, é invocado como amigo que continua a “obra de paternal solicitude pela minha Fama”. Logo a seguir, Eça imagina a sua posteridade, no fundo o maior ‘deslocamento’, na descrição auto-irónica de uma “litografia alegórica” hipotética: no primeiro plano, a minha Fama, de ba beiro, trôpega e mamando n o de do, e tu, ajudan do-a com as tuas mãos fortes a trepar por um cami nho áspero, entre as oliveiras da paz e da ciência: e lá no fun do, os contornos vagos de um Panteão. (Corr. I, 226)

Esta descrição comprova que o escritor em crise ironiza mas também afirma a qualidade memorável da sua pessoa, que vinha surgindo a partir das Conferências do Casino e da sua colaboração n’ As Farpas, e como romancista após ter publicado O Crime de Padre Amaro e O Primo Basílio. Não obstante do tom humorista, o “Panteão”, retomada na tradição renascentista por França (vd. Bonnet, 1998), parece apetecível. A atenção prestada à construção da auto-imagem pública, antecipando a posteridade, intensifica-se com a morte de Vítor Hugo, ocorrida em 22 de Maio de 1885. Poucos dias depois, é novamente na correspondência com Oliveira Martins, que o autor, agora cônsul em Bristol, fala dum “período de estupidez” (carta de 10 de Junho de 1885: Corr. I, 262). Embora lamentando a sua incapacidade de escrever “um bocado de prosa bem confeccionada” e a sua “Além disso, o isolamento lança-me na leitura, que me lança na erudição: e reaparece então o latente e culpa do a petite do rom ance histórico.” (Corr. I, 265 seg.). Carta escrita apenas cinco dias após a missiva a Oliveira Martins, na qual o autor revela o seu plano d’ A Correspondência de Fradique Mendes (vd. infra). 9

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hesitação de “fazer promessas literárias”, Eça anuncia logo a seguir o seu plano de retomar a figura de Fradique Mendes, “nosso amigo”, publicando após a morte deste “Homem distinto, poeta, viajante, filósofo nas horas vagas”, “uma série de cartas sobre toda a sorte de assuntos, desde a imortalidade da alma até ao preço do carvão” (Corr I., 262-63). O autor, assumindo o papel de biógrafo-testamenteiro, recolhe esta correspondência, “como se fez para Balzac, Madame de Sévigné, Proudhon, Abélard, Voltaire e outros imortais” (ibid.). Uma colecção de correspondências afigura-se, deste modo, como meio ideal de uma imortalização vivificadora, alternativa da estátua, transferível a uma parte da correspondência do próprio autor. No entanto, não se deve esquecer que Fradique é fingido: o fingimento da morte e da publicação póstuma de epístolas significa uma reflexão crítica sobre a função destas colecções como meios de “imortalidade relativa” (NC: 109). Não se deve subestimar o facto de Eça repensar a identidade de Fradique, poeta satânico, fazendo-o morrer, logo após a morte de Vítor Hugo. Já numa [115] carta anterior, de 24 de Maio de 1885, dirigido ao Conde de Arnoso, verifica-se a comoção que lhe causou “a morte do divino velho”. Designadamente, impressionou-o “a atitude de Paris”: Que os negócios se esqueçam, as festas se adiem, uma vasta cidade pare e fale baixo porque há algures, num canto de uma avenida, um poeta que está a morrer, é um sublime espectáculo. É consola dor. (C orr I., 255)

Tudo indica que a morte de Vítor Hugo aprofundou em Eça a preocupação acerca da posteridade do escritor na sociedade moderna.10 O autor português interroga-se também sobre a função da escrita e leitura na formação desta memória, pensando em publicações póstumas de correspondências e papéis íntimas no conhecimento dos grandes homens.11 A 20 de Julho de 1885, portanto dois meses após a morte do autor francês, Eça de Queirós, na sua casa em Bristol, escreve ainda um necrológio atrasado que se apresenta em forma duma carta privada, dirigida ao Director da revista Ilustração, Mariano Pina. O texto anuncia, logo no início, desiludir Reis / Milheiro (1989: 19) já repararam na relevância do exemplo de Hugo na reflexão queirosiana sobre a posteridade. 11 Vd. anotação levemente irónica em Ecos de Paris, on de se comentam, em 1893, as publicações póstumas de Vítor Hugo: “Para alargar e completar o conhecimento dos grandes homens, publicam-se-lhe as cartas, todos os pa péis íntimos - até as contas do alfaiate.” (cit. conforme ed. Livros do Brasil, p.41). 10

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as expectativas do destinatário, pois recusa-se a analisar a recepção de Hugo entre os escritores portugueses da sua geração, como aparente mente lhe foi pedido, dizendo: Nem sei mesmo, francamente, o que você deseja averiguar – a influência que Hugo teve na minha geração literária limita-se à influência geral que ele exerceu na literatura francesa, de que a nossa é um reflexo ao mesmo tempo bisonho e afectado. (NC: 84)

Mas a “carta” não acaba nesta constatação um pouco ofensiva ao sentimento patriótico.12 Na realidade, serve para realçar a própria admiração por Vítor Hugo, apesar de declarar este assunto não memorável: “vale por acaso a pena, caro amigo, memorar coisa tão pessoal e tão desinteressante?” A opinião íntima sobre Hugo, publicada só aparentemente contra vontade, implica definições poetológicas, relacionadas com a evolução literária queirosiana: Eça defende Hugo, apesar de este não ter nem ironia nem capacidade de análise – precisamente características que tornaram o Eça romancista famoso; defende-o por possuir outras qualidades, para Eça – agora – desejáveis, como o canto que se aproxima do invisível e do “dizer o indizível”: Hugo disse o indizível, desde o esparso cismar dos olhos a zuis de uma criança, até às cordas do vento que varrem o Mar da Mancha... (...) numa língua como jamais houve outra na Terra. (NC: 87-88)

Em vez de romances que pretendem a análise crítica da sociedade, numa linguagem moderna e explicativa, surge a personalidade do ‘grande poeta’ que canta noutra linguagem. É um modelo praticamente inalcançável para Eça. Ele só pode admirar o “forte optimismo, esta grandiosa fé no Homem” (NC: 90), longe de qualquer pretensão de imitá-lo.13 Neste necrológio, o sujeito enunciativo cumpre a mesma função de biógrafo fiel e entusiasta como o posterior editor-biógrafo de Fradique Mendes. No entanto,

o grande

Fradique

não

supera

tão inequivocamente

o

diletantismo, a maladie de la volonté criticada por Bourget (1883) como o Vítor No fun do, repete -se a reflexão contida na carta de 10 de Maio de 1884 a Oliveira Martins (vd. supra): “Os meus romances, no fun do, são franceses, como eu sou, em quase tudo um francês (...).” (Corr I., 226). 13 Concordamos que Hugo foi para Eça muito menos “um mestre” do que “um mito” (Pires de Lima, 1988: 500). 12

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Hugo mitificado no “seu férreo heroísmo de vontade” (NC: 91). Tanto Fradique como Eça têm grandes dificuldades de alcançar uma linguagem [116] sentimental e declamativa, portanto persuasiva, que admira em Hugo. Não obstante, observam-se esforços neste sentido na escrita queirosiana: surge uma crítica da linguagem e o desejo explícito de regressar a uma ingenuidade original, já presente nas crises comunicadas anteriormente na epistolografía, chegando até à ideia de abdicar da escrita literária, limitando-se “a escrever contos para crianças e vidas dos grandes Santos” (Corr. I, 127). A admiração por Vítor Hugo explica-se pelo desejo de superar o diletantismo, um problema largamente tratado n’ A Relíquia. N’ Os Maias, a aproximação cada vez mais explícita e afirmativa (não ironizada) entre o poeta Alencar e o dândi Ega é significativo e deve ser relacionada com a revalorização de Vítor Hugo que culmina no referido necrológio atrasado: Um apelo à Liberda de e à Justiça, feito em estrofes que

seduzem

como

as

antigas ‘Vozes do Céu’, arrebata turbas que longos volumes de filosofia deixariam indiferentes. (...) O cristianismo foi feito assim, com imagens, com pará bolas, com declamações. (NC: 92)

Retomando logo a argumentação que subjaz ao sonho de Teodorico n’ A Relíquia, o necrológio aproxima Vítor Hugo de Jesus Cristo, cuja voz supera a linguagem erudita dos profetas anteriores, “falando vagamente de piedade, de amor, de fraternidade e do Reino delicioso de Deus” (NC: 92). Lembramos que Eça, no mesmo ano de 1885, publicou a primeira versão de “O Suave Milagre”. Neste conto, numa linguagem simples como numa lenda, defende -se a simplicidade e a espiritualidade do Verbo de Jesus, sempre esperança viva para o povo, face às tentativas vãs dos poderosos de explorar a figura de Jesus para os seus fins. Deste modo, inicia-se uma escrita queirosiana de inspiração neo-franciscana (vd. Grossegesse, 1997: 149). Eça gostaria de ser um escritor popular mas também aristocrático, ter um estilo declamativo e sentimental, mas também crítico e irónico. Com a morte de Vítor Hugo, o desejo de entrar no Panteão de Portugal torna-se obsessivo. No entanto, desde os dias d’ O Distrito de Évora, Eça sabe da crise da literatura sob as condições do mercado capitalista, da multiplicação da oferta e da tendência crescente de combinar letras com meios visuais, uma evolução que desfavorece a comunicação literária intensiva do grande escritor

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ou poeta com o seu leitor, idealizada numa evocação saudosa do século XVIII, antes da revolução francesa. É no prefácio dos Azulejos do Conde de Arnoso, escrito um ano após a morte

de

Vítor Hugo, que

Eça lamenta o

desaparecimento desta antiga privacidade: O leitor deixou de ser uma pessoa a quem se fala isoladamente e com o tricórnio na mão: e o escritor tornou-se tão impessoal como ele. Não são individualida des cultas comunicando; são duas substâncias difusas que se penetram, como a luz quan do atravessa o ar. (NC: 98)

Devido à caracterização humorística do autor “com o tricórnio na mão” e à comparação exagerada e banalizante a seguir, a própria crítica da indústria da literatura não é isenta de laivos irónicos. O louvor ao amigo, o Conde de Arnoso, que no seu opúsculo tenta restabelecer as condições arcaicas, deixa de ser credível. O próprio prefácio insinua esta falta de credibilidade, sendo escrito por “um renegado do idealismo, um servente da rude verdade, um desses ilegíveis, de gostos suínos que foçam gulo[117]samente no lixo social” (NC: 101). Um prefaciador, que se desvaloriza de tal maneira caricata 14 , só pode prejudicar o seu amigo, o autor supostamente esperançoso dos Azulejos: “Não temes que o teu livro, flor da literatura, casta de aroma e de cor, seja tratado como um desses frutos podres que ama o naturalismo?” (NC: 101). Depois de ter experimentado a impossibilidade duma recepção adequada do naturalismo em Portugal, na “nossa suave Lisboa, acocorada à beira do Tejo a ver correr a água” (NC: 103), o prefaciador passa a elogiar Azulejos como obra perfeitamente ao gosto português15, com esta maneira de pintar a verda de, levemente esbatida na névoa doura da e trémul a da fantasia, satisfazendo a necessidade de idealismo que todos temos nativamente, e ao mesmo tempo a seca curiosidade do real que nos deram nossas educações positivistas – (...). (NC: 108)

A interpretação que se segue põe parcialmente em causa a validade da reflexão acerca do Naturalismo neste prefácio, quan do entendido como documento da teoria literária queirosiana (cf. Reis, 1982: 148). 15 caracterizado com suma ironia, aqui manifesta na figura retórica, tão querida no estilo queirosiano, do zeugma: “Em literatura, em costumes, em política e no fabrico do chinelo de ourelo, nós estamos vivendo e estamos morrendo deste obtuso, viscoso aferro ao vago das primeiras impressões.” (NC : 103). 14

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Esta aproximação sem dúvida forçada, entre a produção diletante e insignificante do Conde de Arnoso e os romances realistas que já em vida fundamentaram a fama nacional de Eça, corrobora-se pela confraternização ostentada na expressão “simples fazedores de livros” de Thomas Carlyle (NC: 99; 113), atribuída a ambos. Esta renúncia à grande figura do autor, por parte de Eça, prende-se com o tema principal deste texto, prefácio que se reveste, significativamente, de epístola íntima de 10 de Junho de 1886, dirigida desde Bristol ao “meu caro Bernardo” (NC: 95): o tema desta conversa entre amigos é a arte, independentemente das características do produto concreto, como meio duma imortalidade peculiar. Esta “imortalidade relativa que só dá a arte” (NC: 109) refere-se, em primeiro lugar, às leituras futuras, nomeadamente activas e produtivas, dos textos que deste modo constituem a obra, na qual se expressa um pensamento, “manifestação melhor e mais completa da (...) vida”: “fará vibrar outros pensamentos e através das criações deles estará perpetuamente criando.” (NC: 109). No entanto, atribui-se ainda maior relevância à leitura sentimental16

que

inclui

automaticamente

um

interesse

biografista,

constituindo e conservando deste modo a memória da figura do autor17: “e as mesmas linhas do teu rosto, o teu traje, os teus modos, não morrerão, constantemente rememorados pela curiosidade das gerações.” (NC: 109). Com estas palavras, o prefaciador aproxima-se da argumentação no necrológio sobre Vítor Hugo, personalidade que não tarda em ser novamente evocada, significativamente sem sequer aparecer o seu nome, no fim das reflexões sobre o papel imortalizador da arte que até “torna os deuses verdadeiramente imortais”, fazendo assim sobreviver as religiões, e que é capaz de “fazer a eternidade de um povo” face à efemeridade vaidosa dos políticos: (...) duzentos anos passarão, e mil – e o nome, a figura, a vida de certo homem que não governou nem a Alemanha nem a Cristanda de, estará tão fresca e rebrilhante como hoje na memória grata dos homens. (NC: 111)

“Mesmo o teu riso, de um momento, reviverá nos risos que for despertando; e as tuas lágrimas não secarão porque farão correr outras lágrimas.” (NC: 109). 17 As categorias de obra e figura de autor conforme Helena Carvalhão Buescu (1998: 39). 16

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Esta imortalidade peculiar de Hugo, aproximada da presença sempre viva de Jesus18, é almejada pelo próprio Eça, ‘simples fazedor de livros’. No entanto, esta imortalidade não se baseia realmente na leitura concreta de textos; pelo contrário, o que conta é a figura do autor na dupla base da obra consagrada, [118] presente em citações e produtos secundários da sua recepção, e da imagem visual reduzida a elementos característicos que espelham o estilo: A Divina Comédia, o D. Quixote, a Ilíada, são hoje, a não ser para os comentadores,

ou

para

espíritos

re quintadamente

literários



volumes

decorativos. A multidão conhece apenas Hamlet por o ver constantemente em oleografias, vestido de negro, entre a neve de um cemitério, com a caveira de Iorique na mão. (NC: 93)

Já em 1867, Eça distingue claramente entre “o gosto pela leitura” e o “gosto pelos livros”, reconhecendo o papel dos livreiros e editores como “criadores industriais”, do mesmo modo como o dos fotógrafos (DE: 503). Observador crítico da sociedade burguesa, ele está convencido da decadência da leitura substancial e intensiva em favor da leitura fragmentária e extensiva (o precursor do zapping)19, chegando-se a ‘mediatizar’ a realidade. No romance quixotesco A Cidade e as Serras, chega-se a defender uma renovação da leitura intensiva no âmbito duma ética terapêutica carnavalizada face ao mundo moderno dominado pelos media, pela maladie de la volonté e pela moda do pessimismo finissecular. Apesar da nostalgia por uma idade áurea da leitura, Eça aceita as condições da sociedade dos media: a única possibilidade de alcançar posteridade reside no “contorno lendário da (...) personalidade” (NC: 93), isto é, numa memória que identifique o estilo da produção artística com a imagem do seu autor. A história cultural do século XX iria consolidar estas condições, que traduzidas à linguagem actual poderiam denominar-se star system. Se

Uma construção que reaparece em Teixeira de Pascoaes, no artigo “Vítor Hugo”, de 15 de Fevereiro de 1911. Pascoaes distingue entre “existir na memória da gente” (p. ex. Zola) e “ser eterno, viver eternamente é ficar a existir no coração das criaturas”: “Outros homens há, mais raros, como Vítor Hugo, que, pela força do seu génio, se elevaram acima da fenomenalida de contingente e temporal, atingindo o que há de eterno e absoluto na Vida.” (cit. conforme A Saudade e o Saudosismo , Lisboa: 1988, 19). 19 “Hoje, (...) pouco se pode ler; os livros sucedem -se: poemas, histórias, romances, poesias, críticas, ciências, dicionários, tudo nasce, passa, voa, (...). Para colher uma ideia, para saber um facto, para escolher uma opinião, é necessário ir 18

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pensarmos em Eça, lembramo-nos do seu monóculo e do sorriso irónico, elementos que – até à actualidade – simbolizam a sua personalidade.

O retrato de Eça por Rafael Bordalo Pinheiro no Álbum de Glórias (nº 9, julho de 1880) contribui tão decisivamente para a génese desta memória como uma caricatura do mesmo artista (em António Maria, 15 de julho de 1880) que coloca a figura do escritor de perfil, com as mesmas caraterísticas e atributos20, no meio das personagens do romance O Mandarim, em publicação no

Diário da República.

Evidentemente,

trata-se

de

uma

campanha

publicitária concertada, como revela a legenda da caricatura: Graça, verve, phantasia, invenção, espírito, observação, crítica, génio, tudo quanto é preciso para fazer maus artigos de fundo e admiráveis romances. O António Maria a proveita-se das circunstâncias para anunciar o 9º número do Álbum de Glórias

que

amanhã é

posto à

venda, convidan do os

collecionadores a adquirirem o perfil do auctor do Primo Bazilio. Se não se esgota a edição principiamos a descrer do reclame. (António Maria, 15 de julho de 1880)

duns a os outros, sem cessar, correndo, ler uma página, relancear a vista por um índice, colher na passagem o título de um capítulo.” (DE: 397). 20 Repare-se na diferença com um retrato menos marcante , também de R. Bordalo Pinheiro, publicado em 4 de maio de 1878 (O Besouro), aludindo a O Primo Basílio.

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Portanto, a memória de um escritor pode prescindir totalmente da leitura concreta dos textos. Para Eça, Vítor Hugo é o exemplo singular da glória dum escritor sem necessidade de ser lido, tal como afirma – ainda com maior ênfase – na crónica “Os grandes homens de França”, publicada em 1892 na Gazeta de Notícias: Ora, a julgar pela suprema voz do povo, o único gran de homem que a França tem tido neste século é – Vítor Hugo. Pode o Esta do decretar, e as academias decidir, que há outros grandes homens. A multidão só conhece e aceita Vítor Hugo. (...) Admito mesmo (como afirmam críticos) que ela nunca tivesse lido os poemas de Hugo. (...) Que a filosofia de Hugo tivesse tanta puerilida de como a sua sociologia, que a sua visão fosse descomunal e falsa, que o seu lirismo se ache repleto de ênfase, - isso é com os críticos, com os letrados. A multidão não leu, não esmiuça. O que conhece apenas são as grandes feições, como que exteriores, que constituem a esplêndida personalidade de Hugo: (...) (NC: 173)

Na observação de Eça de que o Panteão de Paris “era unicamente o santuário do divino Hugo”, apesar de jazerem lá também “os ossos de Voltaire e de Rousseau” (NC: 169), reflecte-se a preocupação pela própria posteridade, pela entrada no Panteão nacional. Desconfiando da relevância da leitura, Eça desde cedo cultivou a sua aparência visual, no âmbito duma estética de dândi. Mas só a partir de 1884/85 procurou uma confluência entre [119] estilo e imagem, sob uma perspectiva de posteridade antecipada, obedecendo à conclusão do necrológio sobre Vítor Hugo de que “essa imagem material torna o homem de génio tanto mais amado, quanto ela mais simboliza a atitude moral (...)” (NC: 94). No entanto, não deixa de ser significativo que Eça logo a seguir, em vez de Hugo, fale de Voltaire: assim veneramos a figura de Voltaire, que invariavelmente nos aparece na sua poltrona em Ferney, soltando de lábios que sorriem sempre, e que já não podemos conceber senão a sorrir, esses epigramas que iam ferir mortalmente no flanco a velha sociedade. (NC: 94)

É em Voltaire e não em Hugo que Eça demonstra a me diatização da memória através duma imagem estabelecida. O próprio escritor sabe perfeitamente que não pode eclipsar a imagem de observateur e causeur, materializada no monóculo e no sorriso irónico, que se fundamenta nos ensaios das Farpas e

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nos romances realistas que ‘feririam mortalmente no flanco’ a velha sociedade portuguesa. Ele não pode apagar esta imagem, muito mais próxima de Voltaire, apesar do posterior desejo de regressar, sob a égide de Hugo, à simplicidade. A consciência deste dilema reflecte-se nitidamente no louvor do “renegado do idealismo” aos contos do Conde de Arnoso como “flores de arte, modesto e simples”, florescendo, ainda que seja só por uma “manhã de Verão”, face às próprias obras do prefaciador, caracterizadas deste modo: dou-lhes a minha vida toda e elas nascem mortas; e quando as vejo diante de mim, pasmo que depois de tão duro esforço, depois de tão ardente, laboriosa insuflação de alma, saia aquela cousa fria, inerte, sem voz, sem palpitação, amortalhada numa capa de cor! (NC: 112)

Esta crítica da própria produção literária como morta, incomunicável ou ilegível não possui qualquer idealização romântica (garrettiana) mas sim os traços do cepticismo finissecular que Eça traduz nas Correspondências de Fradique Mendes, anunciadas como projecto na carta de 10 de Junho de 1885, pouco depois da morte de Hugo: enquanto o Eu mais autêntico morre, quem sobrevive é o amigo que o admirou. É ele quem comunica o incomunicável.21 Se observarmos bem a relação de Eça de Queirós com o Conde de Arnoso nas cartas e neste prefácio em forma epistolográfica, no louvor ao autor tão esperançoso e superior, não é Eça que inverte conscientemente ou até ironicamente os papéis? Na realidade, o grande autor, agora simples fazedor de livros, sugere ao Conde de Arnoso que preencha exactamente o lugar do amigo fiel que comunique o incomunicável. Dez anos mais jovem do que Eça, ele mantém uma relação de intimidade desde 1878, manifesta nas numerosas cartas. É também o Conde de Arnoso que lhe oferece, em 1888, a famosa cabaia de seda. Apesar de Eça, na sua carta de agradecimento, desenvolver uma argumentação de que não poderia usar “essa nobre vestimenta de Mandarim erudito” (Corr. II), obedecendo à Para não alargar mais este estudo, omitimos referências ao famoso necrológio “Um génio que era um santo” de 1894 (publicado em 1896), dedicado ao grande amigo Antero de Quental que se suicidou já em 1891. Este texto possui semelhanças discursivas evidentes não só com o texto sobre Vítor Hugo de 1885, mas também com a própria Correspondência de Fradique Mendes. Estudos de Carlos Reis e Isabel Pires de Lima (1993) destacam a construção narrativa ou até ficcional de “uma personagem ‘aureolada’ por uma genialidade e por uma santidade que não anulam a discreta presença da ironia.” (Reis, 1993). 21

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filosofia do vestuário aprendida com Thomas Carlyle, não deixa de ser um elemento significativo para construir a imagem de Eça, como comprovam as fotografias encenadas no jardim da sua casa em Neuilly.22

Após a morte do grande autor, o mesmo Conde de Arnoso transforma um texto declamativo e sentimental, O Suave Milagre, numa peça de teatro de escassa qualidade. A sua estreia no Teatro D. Maria II, e m presença da família real, em 28 de Dezembro de 1901, tinha como finalidade concreta arrecadar dinheiro [120] para subsidiar o grande projecto do Conde de Arnoso: eternizar Eça numa estátua, da autoria de Teixeira Lopes.23 Lembramos que este monumento, erguido no Largo Barão de Quintela, era para o conde Banckow a prova convincente da identidade, por ele ignorada, de Eça de Queirós como escritor. No entanto, o monumento espelha a dificuldade de definir Eça: por um lado, analítico-irónico e, por outro, ansioso por regressar à simplicidade, consciente da imperfeição deste regresso. Ao alegorizar a citação “Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia”, tirada do contexto da escrita irónica d’ A Relíquia, o dilema torna-se

Eça declamando, vestido de Mandarim. É sa bido que o autor chegou a instalar um estúdio de fotografia nessa casa. 23 Sobre estes aspectos vd. os respectivos artigos “O C on de de Arnoso”, “A estátua de Eça em Lisboa” e “Suave Milagre” de A. Campos Matos (1988). 22

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explícito. A estátua cumpre a tarefa duvidosa de eternizar o “renegado do idealismo” (NC: 101) dum modo idealizante. Longe de ‘leituras’ unívocas da memória, resta-nos propor uma leitura plural e sempre renovada dos textos, consciente da história da recepção queirosiana mas também das convicções do próprio Eça sobre leitura e memória. O que se diz no fim das “Memórias e Notas” sobre o grande autor defunto, Carlos Fradique Mendes, aplica-se a José Maria Eça de Queirós: Nos tempos incertos e amargos que vão, portugueses destes não podem ficar para sempre esquecidos, longe, sob a mudez de um mármore. (FM: 114)

Bibliografia Corr = Correspondência, 2 Vols., (Ed.) Guilherme de Castilho, Lisboa: Imprensa Nacional 1973. DE = O Districto de Évora”, in: Eça de Queiroz Obra Completa, Vol. III, Rio de Janeiro: Editora N ova Aguilar, pp. 115-658. FM = A Correspondência de Fradique Mendes, Livros do Brasil NC = Notas Contemporâneas, Livros do Brasil Bonnet, Jean-Claude (1998), Naissance do Panthéon. Essai sur le Cul te des Grands Hommes, Paris: Fayard. Bourget, Paul (1883), Essais de Psychologie contemporaine, Paris: Ed. Alph one Lemerre. Buescu, Helena Carvalhão (1998), Em Busca do Autor Perdido, Lisboa: Edições Cosmos. Campos Matos, A. (1988), vários artigos in: Dicionário de Eça de Quei roz, (Coord.) A. Campos Matos, cit. 2ª ed. 1993. Grossegesse, Orlando (1991), “O animal filosófico e a escrita autobiográfica. De E.T.A. Hoffmann a Eça de Queiroz”, Runa. Revista portuguesa de estudos germanísticos, 15-16, Coimbra, pp. 131-149. Grossegesse, Orlando (1993), “A Correspondência de Fradique Mendes - uma autonecrografia”, in: Queirosiana N º 5/6, Baião, pp. 227-240. Grossegesse, Orlando (1997), “A Santida de como problema discursivo”, in: Vária Escrita Nº 4, Sintra, pp. 139-154.

19 Pires de Lima, Isabel (1988), “A hugolatria queirosiana”, in: Dicionário de Eça de Queiroz, (Coord.) A.Cam pos Matos, cit. 2ª ed. 1993, pp. 498-500. Pires de Lima, Isabel (1993), “Os dois Anteros - o olhar de Eça”, in: Actas do Congresso Internacional Anteriano, Ponta Delgada: Univ. dos Açores, pp. 327 -339. Reis, Carlos (1982), “Teoria literária de Eça de Queirós”, in: Construção da Leitura. Ensaios de metodologia e de críti ca literária, Coimbra: Almedina, pp. 137-150. Reis, Carlos (1984),

“Fra dique Mendes: Origem e Modernidade de um Projecto

Heteronímico”, in: Cadernos de Literatura Nº 18, Coimbra, pp. 45-60. Reis, Carlos (1993), “Um bardo dos tempos novos: a imagem queirosiana de Antero”, in: Actas do Congresso Internacional Anteriano , Ponta Delgada: Univ. dos Açores, pp. 561-572. Reis, Carlos / Milheiro (1988), A Construção da Narrati va Queirosiana. O Espólio de Eça de Queirós, Lisboa: Im prensa Nacional – Casa da Moeda.

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