Memória, identidade, cultura: ensaios

June 6, 2017 | Autor: Shirley Carreira | Categoria: Cultural Identity, Memory Studies, Cultural Memory, Memoria Histórica, Identidade, Memória social
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SHIRLEY DE S. G. CARREIRA PAULO CÉSAR OLIVEIRA ANDREA SANTOS PESSANHA (ORGS.)

Memória, Identidade e Cultura: ensaios

ISBN 978-85-98716-12-1

SHIRLEY DE S. G. CARREIRA PAULO CÉSAR OLIVEIRA ANDREA SANTOS PESSANHA (ORGS.)

Memória, Identidade e Cultura: ensaios 1ª. edição

BELFORD ROXO

2016

© Shirley de S. G. Carreira, Paulo César Oliveira, Andrea Santos Pessanha (Orgs.) Diagramação: Shirley de S. G. Carreira e Paulo César Oliveira

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) M533 Memória, Identidade e cultura: ensaios/ Shirley de S. G. Carreira, Paulo César Oliveira, Andréa Santos Pessanha (Orgs.); Revisão e diagramação: Shirley de S. G. Carreira – Belford Roxo: UNIABEU, 2016. ISBN: 978-85-98716-12-1 Esta disponível on-line em: www.uniabeu.edu.br 1. Literatura contemporânea 2. Memória étnica. 3. Imigrações. 4. Identidade. 5. Cultura I. Carreira, Shirley II. Oliveira, Paulo César III. Pessanha, Andréa Santos, IV. Título CDD 869.3 Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Luís Cláudio Borges

SUMÁRIO Apresentação

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MEMÓRIA E CULTURA: TRAVESSIAS LITERÁRIAS

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A sul, o deserto: travessias identitárias na literatura angolana Claudia Fabiana Cardoso

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Sobre a monstruosidade: uma leitura de O filho da mãe, de Bernardo 27 Carvalho Paulo César Oliveira Uma encruzilhada discursiva entre Nove noites e Memórias do cárcere Erick da Silva Bernardes

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Memória de velhos, representações da história: um olhar sobre Leite 48 Derramado e a máquina de fazer espanhóis Shirley de Souza Gomes Carreira Dissolução da memória e liberdade: a busca pela reinvenção identitária em Aguapés, de Jhumpa Lahiri Célio Saraiva

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Experiência e memória: retalhos da história na poética de Milton Hatoum Aídes José Gremião Neto

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O estranho espelho do texto literário Anderson Figuerêdo Brandão

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MEMÓRIA E IDENTIDADE: TRAVESSIAS HISTÓRICO-CULTURAIS

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Significados de ser abolicionista: jornais Cidade do Rio e Gazeta 93 Nacional na construção da memória sobre o fim do cativeiro Andrea Santos da Silva Pessanha Chaiene Silva de Oliveira Andrade Memórias do cativeiro: os escravos da família Jordão da Silva Vargas, 102 litoral sul-fluminense, século XIX Marcia Cristina Reis de Vasconcellos Pibid Uniabeu: o ensino de história e identidade. Um relato de 115 experiência Thereza Azeredo O elo forte da corrente: a imigração portuguesa e o catolicismo na 120 Baixada Fluminense, 1950–1959 Kátia Luciene de Oliveira Santana Rodrigo Gomes da Costa 4

Memória, identidade e cultura: ensaios

Igreja Evangélica Luterana do Brasil – etnografia um trabalho de campo Juliana Carvalho

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Apresentação Os trabalhos que compõem esta publicação refletem dois movimentos complementares. O primeiro deles refere-se à constituição do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da Uniabeu (LABMEMI), com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ). O segundo, à produção oriunda do grupo de pesquisa que se consolidou a partir da criação do LABMEMI, refletindo a feliz consonância entre o apoio do poder público aos projetos de educação e cultura e a efetiva produção de conhecimento que essas parcerias propiciam, o que este e-book comprova. Em tempos de crise, no qual a cultura e a educação, compreendidas por parcela do poder como despesa, ao invés de investimento, tornando-se os primeiros alvos na lista de cortes orçamentários, nunca é demais lembrar as palavras de Marc Augé: A educação continua sendo a melhor garantia. Em toda verdadeira democracia, a mobilidade de espírito deveria ser o ideal absoluto, a primeira obrigação. Quando a lógica econômica fala de mobilidade é para definir um ideal técnico de produtividade. É o ponto de vista inverso que deveria inspirar a prática democrática. Assegurar a mobilidade dos corpos e dos espíritos o mais cedo e pelo maior tempo possível levaria a um excedente de prosperidade material.1

O apoio de entidades como a FAPERJ a projetos de pesquisa como esse permitiu que, na Baixada Fluminense, em Nilópolis, um grupo de excelência se consolidasse através do LABMEMI. Essas ações tiveram como ponto de partida o cadastramento no Diretório Nacional dos Grupos de Pesquisa do CNPq do grupo “Poéticas do Contemporâneo”, formado por UERJ; UESC e UNIABEU. Esse grupo, iniciado há quatro anos, fortaleceu as condições para que o núcleo de pesquisa de memória e identidade se materializasse. Com os recursos da FAPERJ, foram criados um laboratório de estudos equipado com computadores, impressoras, mobiliário, ar-condicionado e uma pequena biblioteca, que agora funciona em uma confortável sala, cedida pela Uniabeu, como contrapartida ao apoio financeiro recebido. Essa materialização de um projeto intelectual em um espaço de estudos e produção de conhecimento agora beneficia alunos e professores, pesquisadores jovens e seniors, contribuindo para uma das missões da universidade, que é a

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AUGÉ, Marc. Por uma antropologia da mobilidade. São Paulo: Editora da UNESP; Maceió: EDUFAL, 2010, p. 108.

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Memória, identidade e cultura: ensaios

ênfase na pesquisa e na extensão. Palestras, encontros, seminários, como o que deu origem a esta publicação, são alguns dos produtos oriundos do investimento em pesquisa e no laboratório. Neste e-book, oferece-se ao público o trabalho intelectual de discentes e docentes da Uniabeu, além da produção exógena de alunos e professores que agregaram suas reflexões ao trabalho pioneiro do LABMEMI. Com isso, cumpre-se uma outra missão da universidade, que é expandir e compartilhar seus conhecimentos, levando suas reflexões para fora da instituição e agregando a ela saberes das demais universidades parceiras. O LABMEMI torna-se um projeto inclusivo e expansivo, interdisciplinar, interdepartamental e interinstitucional. Os artigos selecionados para esta publicação refletem essa conjunção. Se pudéssemos escolher algumas palavras-chave para definir a unidade dos artigos que formam esta publicação, três avultariam como essenciais: educação, mobilidade e fronteirização. No artigo de Cláudia Fabiana Cardoso, “A sul, o deserto: travessias identitárias na literatura angolana”, vê-se desconstruída a noção de deserto como vazio, espaço de clausura, para que se estabeleça outra noção, a de mobilidade que, ao lado da questão da fronteira é elemento reflexivo que transita pelas obras de Ruy Duarte, Pepetela e Ana Paula Tavares. Segundo Cardoso, esses escritores são pensadores de fronteiras, que levam adiante as pioneiras incursões de Guimarães Rosa pelo sertão literário, definido por ele como lugar onde tudo cabe. Os três escritores inserem na recente literatura de África, nas palavras da autora, “novas noções geográficas” em que “o narrador convida o leitor a olhar, a abrir-se às imagens íntimas que religam o homem ao mundo, com o deserto, mais uma vez, a apontar a constante fluidez de fronteiras”. Dos desertos africanos, o leitor será guiado a São Petersburgo e à Tchetchênia lidas por Paulo César Oliveira, em “Sobre a monstruosidade: uma leitura de O filho da mãe, de Bernardo Carvalho”. Neste trabalho, discute-se a questão da monstruosidade como alegoria para os processos de exclusão do outro, daqueles que são vistos como uma anomalia em um sistema planetário que promete o deslocamento entre fronteiras, mas que constantemente as apaga ou borra. O retorno de certos fundamentalismos, a intolerância, a violência contra minorias, temas caros ao romance de Bernardo Carvalho, determinam o literário como discurso potente, pronto a falar por e com aqueles que se veem alijados do projeto da globalização. 7

Bernardo Carvalho também comparece, ao lado de Graciliano Ramos, no texto de Erick Da Silva Bernardes, intitulado “Uma encruzilhada discursiva entre Nove noites e Memórias do cárcere”. No trabalho, compreende-se que, às mobilidades geográficas, políticas, populacionais e aos processos migratórios e de cruzamento de fronteiras, uma outra forma de movimentação – a do pensamento – aproxima tempos e espaços distintos em uma simbiose singular, em que o escritor literário faz de suas vozes narrativas campo privilegiado para a reflexão crítica da sociedade e da cultura. Assim, escritores aparentemente díspares e separados no tempo-espaço da história literária brasileira aproximam-se pelo tema das viagens, que, ao final é o que também move a memória, dado que ela é percurso, através dos universos narrativos, reais e imaginados, com que lida a literatura. Para Bernardes, ao se “aproximar os dois ficcionistas analisados”, revela-se um caminho sinuoso, no qual tanto Carvalho quanto Ramos se apropriam de retalhos históricos, jornalísticos e literários para poderem compor suas histórias”, o que nos leva novamente a defender a ideia de uma mobilidade do pensamento a se deslocar para áreas diversas dos saberes das humanidades. Esse deslocamento é o que aproxima os romances Leite derramado, de Chico Buarque e A máquina de fazer espanhóis, de Walter Hugo Mãe. Em “Memória de velhos, representações da história: um olhar sobre Leite Derramado e A máquina de fazer espanhóis”, de Shirley de Souza Gomes Carreira, é novamente a análise comparativa que nos faz aproximar universos literários distintos. Na reflexão crítica entre a memória individual e a memória coletiva, Carreira investiga vestígios, indícios e pistas deixadas pela memória que, não sendo história, permite, entretanto, que validemos o passado através da interpretação. Para Carreira, “na memória, há uma coexistência do passado e do presente”. Assim, o caráter memorialístico dos dois romances estudados vincula-se estreitamente às criações ficcionais que os protagonistas de Buarque e Mãe vão tecendo sobre si. Assim, conclui a autora, o que vemos são personagens cujas identidades são “forjadas sobre as próprias fraquezas”. Uma outra história, a do sujeito que rememora e com isso traz para o relato não somente sua experiência individual, mas a memória de toda uma coletividade, vai sendo magistralmente ficcionalizada pelos dois romancistas aqui privilegiados. Em “Dissolução da memória e liberdade: a busca pela reinvenção identitária em Aguapés, de Jhumpa Lahiri”, Célio Saraiva mostra que a temática da identidade 8

Memória, identidade e cultura: ensaios

e da memória étnica é tema que recorta a trajetória da escritora e propõe aqui discutir de que forma esta modalidade de memória se dilui e se apresenta no contato com realidades sociais conflitantes. Ainda no que se refere à memória, a obra de um autor contemporâneo, como Milton Hatoum muito nos têm a oferecer em termos de reflexão crítica, teórica e filosófica. Por meio de sua poética, Hatoum espelha o drama familiar aliado ao drama da história, da macro-história que, entretanto, para ele, não pode mais se constituir como um relato da verdade. Por isso, ao tratar de “Experiência e memória: retalhos da história na poética de Milton Hatoum”, Aídes José Gremião Neto propõe enveredar pelos meandros da poética do autor para investigar de que modo uma autorreflexividade latente em sua obra sugere aos leitores uma ruptura com esquemas centralizadores, já que Hatoum opta quase sempre por uma apropriação ética do sujeito sem voz na semântica dos discursos que compõem a contemporaneidade e suas narrativas inclusivas. O texto que fecha esse primeiro bloco de artigos, mais voltado à literatura e seus discursos, é “O estranho espelho do texto literário”, de Anderson Figuerêdo Brandão. Nesta reflexão, há um diálogo entre literatura e sociedade, especialmente guiado pela leitura do mestre Antonio Candido, no qual são discutidas as relações entre a sociedade refletida ficcionalmente e os aspectos hermenêuticos, funcionais e estruturais do texto literário. Focalizando o romance O cortiço, de Aluízio Azevedo, que também mereceu uma importante reflexão de Candido, as relações entre o tempo histórico da escrita e aparecimento da obra são estudadas para que se possa, não somente, iluminar o presente com um saber do passado, mas também lançar luz sobre uma determinada época histórica que clama por ser reconfigurada, no caso a segunda metade do século XIX brasileiro. Chegamos ao conjunto de artigos mais voltados à experiência da reflexão histórica e sociológica que, entretanto, revelam consonâncias fortes com o campo da reflexão literária, confirmando as ilações de Roland Barthes, de que o saber literário é polissêmico e interdisciplinar. Deste modo, o processo de leitura que se configura em “Significados de ser abolicionista: jornais Cidade do Rio e Gazeta Nacional na construção da memória sobre o fim do cativeiro”, de Andrea Santos da Silva Pessanha, faz emergir da trama do discurso jornalístico o papel fundamental da leitura e da interpretação no trabalho do historiador, crucial à análise dos sentidos múltiplos dos processos de abolição e do pensamento dos abolicionistas. O embate 9

ideológico entre os dois periódicos estudados revela as contradições e ideologias envolvidas nos processos de compreensão do momento histórico do fim da escravatura, como conclui Pessanha: “Com o 13 de Maio, as diferenças entre os dois periódicos afloraram-se, tendo a indenização como divisor de águas. Para a Gazeta Nacional, ser abolicionistas era defender a liberdade política através da república. Já para o Cidade do Rio, ser abolicionista era permanecer na luta contra a indenização. Estas questões fundamentais para os contemporâneos forneceram elementos para a consolidação da identidade dos dois periódicos, atraindo um público leitor, e projetando uma imagem para o futuro”. Em “Memórias do cativeiro: os escravos da família Jordão da Silva Vargas, litoral sul-fluminense, século XIX”, de Marcia Cristina Reis de Vasconcellos, nas palavras da autora, o leitor é levado a “adentrar o cotidiano das senzalas pertencentes aos Vargas”, o que o leva a melhor compreender “o patrimônio catalogado em seus inventários post-mortem, que se encontram no Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, os registros de batismos e de casamentos presentes nos livros paroquiais de escravos existentes no Convento do Carmo e na Igreja de Jacuecanga, em Angra dos Reis, e dados contidos no Almanak Laemmert e em livros produzidos por historiadores locais”. Assim, a memória local e a memória coletiva encontram-se com a memória individual, refazendo e ressignificando os saberes acerca da ignomínia da escravidão, mostrando que o papel da pesquisa e da investigação de fontes e arquivos não se demite da função interpretativa que recorta o trabalho do historiador. “Pibid Uniabeu: o ensino de história e identidade. Um relato de experiência”, de Thereza Azeredo, como já se pode ler no título do artigo, avalia a importância do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), uma das ações do governo federal no sentido de estimular, valorizar e elevar a qualidade da formação de professores para a educação básica”. O PIBID, para a autora, é responsável direto pelo sucesso do subprojeto “Identidade: Eu, Nós, o Outro”, do curso de História da Uniabeu. O maior valor agregado ao Programa, segundo Azeredo, pode ser verificado no estímulo à autonomia intelectual dos discentes, objetivo maior de uma educação que preza pela autonomia dos egressos. Tratando também da questão dos processos migratórios, tema caro à contemporaneidade e presente em sua agenda, quando se trata de nossa conturbada civilização dita globalizada, “O elo forte da corrente: a imigração 10

Memória, identidade e cultura: ensaios

portuguesa e o catolicismo na Baixada Fluminense, 1950–1959”, de Kátia Luciene de Oliveira Santana e Rodrigo Gomes da Costa, é trabalho de extrema relevância por contemplar a região da Baixada Fluminense, um dos objetivos específicos fundamentais do LABMEMI. Para os autores, os relatos dos portugueses “demonstram um misto de deslumbre e assombro com o que presenciavam ao desembarcar aqui. Seguindo a sua visão europeia, o Rio de Janeiro refletia os aspectos da civilização e avanço do Velho Continente, no entanto, os negros, mulatos e operários, todos considerados inferiores, acabavam por manchar e ferir os costumes delicados”. Na busca de compreender o embate entre as visões conflituosas dos imigrantes portugueses, os autores recorrem à Nova História, e com ela visam a narrar a epopeia dos que “reconstruíram suas vidas, sofreram, alguns prosperaram outros não, e ajudaram a construir a História recente da região” em que se aloca nosso LABMEMI. Finalmente, fecha esse e-book o trabalho de Juliana Carvalho, “Igreja Evangélica Luterana do Brasil – etnografia, um trabalho de campo”. A proposta do artigo é investigar as relações entre os elementos litúrgicos da Igreja Evangélica Luterana Bom Pastor com o mercado fonográfico gospel e para tanto sua autora lança mão do trabalho etnográfico para uma melhor compreensão do papel da música no culto e suas implicações mercadológicas. Conforme dissemos no início desta apresentação, o papel da educação, em tempos de crise, é o de colaborar para que o progresso material de um povo, de uma nação seja cumprido de forma a beneficiar o conjunto da sociedade. Apoios como os da FAPERJ nos levam a acreditar firmemente que educação jamais poderá ser concebida como gasto e nem poderá, como vem sendo feito, ser o alvo primeiro dos cortes orçamentários, caso um governo que se prega democrático queira fazer dessa premissa uma verdade. Em tempos de perigo, o saber humanístico deve ser estimulado, colocado acima dos interesses políticos e das ideologias para que possa servir de farol a uma sociedade dada, que será, enfim, a grande beneficiária da educação e da pesquisa, o excedente de que falou Marc Augé, indispensável à luta pela prosperidade material e dos espíritos.

Os organizadores

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MEMÓRIA E CULTURA: TRAVESSIAS LITERÁRIAS

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Memória, identidade e cultura: ensaios

A SUL, O DESERTO: TRAVESSIAS IDENTITÁRIAS NA LITERATURA ANGOLANA Claudia Fabiana Cardoso1

Sertão: estes seus vazios. O senhor vá. Alguma coisa ainda encontra. João Guimarães Rosa

O deserto sempre esteve associado à ideia comum do vazio, de lugar desabitado, sem vida, que é, afinal de contas, o sentido que o termo literalmente conserva. Contudo, é fato que os desertos não são totalmente desertos. Há muito o que encontrar nesses seus vazios, sejam eles físicos ou simbólicos. Em todos os desertos de terras áridas vivem homens, animais e plantas. A água, elemento vital, não falta de todo, pois além das chuvas, mesmo que escassas, e da umidade do ar, há regiões cortadas por rios, além da presença de águas fósseis do subsolo. É o que, em parte, acontece nos desertos do Namibe e do Kalahari, presentes em Angola. Namib significa, na língua dos namas, “lugar vasto, onde não há nada”, em referência às características inóspitas deste deserto, que ocupa uma área de 80.900km² e se estende por uma faixa de 1.900km ao longo da costa atlântica, no sudoeste da África, desde a Província do Namibe, antiga Moçâmedes, em Angola, percorrendo todo o litoral da Namíbia até o rio Olifants, na Província do Cabo, na África do Sul. Ocupa um terreno rochoso entre o Atlântico e as escarpas do platô interior, dividindo-se em três faixas: a litorânea, bastante estreita e sujeita a influências marinhas; o Namibe exterior, que preenche o restante da parte ocidental do deserto; e o Namibe interior, presente na parte oriental2.

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Doutora em Literatura Comparada (UFF), Professora Titular da UNIABEU, Professora da FAETEC e Membro do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da Uniabeu. 2 Para as noções geográficas gerais dos desertos do Namibe e do Kalahari, consultamos, especialmente, a Encyclopedia of Africa, editada por Henry Louis Gates Jr. e Kwame Anthony Appiah (2010).

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A proximidade com o mar influenciou, em parte, a aridez do deserto do Namibe, devido aos ventos do oceano e ao ar seco arrefecido pela corrente marítima de Benguela. Em contrapartida, a interação do ar quente com a corrente fria provoca neblinas e nevoeiros que, durante a noite, penetram dezenas de quilômetros terra adentro, sendo responsáveis por uma das mais importantes fontes de umidade no deserto. Este fenômeno, além de levar vida à região, permite que sedimentos depositados no oceano sejam deslocados para o interior, formando, assim, as vastas dunas do Namibe, que podem atingir 400m de altura. Além disso, nas regiões de montanha do Namibe interior, estendem-se rios que atravessam o deserto a caminho do mar, entre eles o Girau, o Bero, o Curoca e o Cunene, e alimentam a vegetação do litoral e do planalto adjacente. Em uma das muitas indicações geográficas que o narrador de Vou lá visitar pastores, de Ruy Duarte de Carvalho, faz ao futuro visitante do terreno kuvale, está o roteiro dos três primeiros rios ora mencionados: Antes de partir para o deserto, e para além dele, à procura dos Kuvale, comigo se entretanto ainda me apanhares na cidade, ao meu encontro se eu já tiver partido, proponho-te o programa que já tinha pensado para ti: dar uma volta pelos três rios que, quando trazem água, deságuam perto. (...) Para começar irás ao Bero, é o que te proponho. (...) Mas este trecho do curso inferior do Bero é, todo o ano, um vale, verde e extenso, aberto no deserto. Aberto no deserto porque de um lado e outro é falésia de grês. Quando enche alaga tudo, em volta, e o chão é fértil. E quando seca retém as águas debaixo da areia, basta cavar, regar, cultivar mesmo na areia, vai ver vai dar. Olivais e vinha. (CARVALHO, 1999, p. 36).

Enquanto o Namibe está ao longo da costa, o deserto do Kalahari situa-se mais a leste. O deserto propriamente dito, segundo os geógrafos, possui cerca de 900.000km² de extensão, distribuídos entre a Namíbia, o Botswana e a África do Sul. Contudo, os arredores da chamada bacia do Kalahari abrangem mais de 2.500.000km², prolongando-se até as fronteiras com Angola, Zâmbia e Zimbabwe. Considerado, em grande parte, um semideserto, de clima semiárido, com temperaturas que oscilam entre 0ºC, no inverno, e 40ºC, no verão, o Kalahari, além de extenso, é bastante imprevisível. As chuvas, que não passam de 175mm por ano, também são instáveis, podendo cair torrencialmente em um momento, provocando inundações, ou não chegar por um longo período de seca e estiagem. Além disso, a vegetação herbácea e arbustiva, própria das savanas, e a extensa bacia de areia

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Memória, identidade e cultura: ensaios irrigada pelas chuvas são convenientes para o pastoralismo praticado por inúmeros grupos que vivem no território. Geograficamente, uma linha de planaltos e maciços montanhosos separa o deserto do Namibe do Kalahari. Entretanto, como defende Cássio Hissa, se a cartografia pode, previamente, ser entendida como “técnica de representação de realidades espaciais” (2002, p. 29), por outro lado não objetiva “reproduzir as realidades, ponto por ponto” (Idem, p. 29). Os próprios mapas são sistemas de representações,

considerados

“texto-imagem-representação,

referente

à

espacialidade das coisas” (Idem, p. 30). Na busca por um conhecimento socioespacial, o geógrafo acentua que os limites e as fronteiras são móveis, sempre podem ser vistos por um novo ângulo. É o que acontece entre o Namibe e o Kalahari: há uma mobilidade entre seus limites. Não pretendemos nos deter no vasto território africano ocupado pelos dois desertos, mas na região onde se avizinham no sul de Angola, marcada por uma mobilidade de fronteiras que incorporam, inevitavelmente, “o conteúdo histórico e cultural numa superposição cumulativa de tempos e espaços” (HISSA, 2002, p. 38). A começar pelo movimento de inúmeras populações que, ao longo dos séculos, remodelou a dinâmica socioespacial do sul angolano. Em entrevista a Daniela Moreau, em uma de suas muitas viagens pelo deserto, Ruy Duarte de Carvalho dispõe geograficamente alguns dos lugares ocupados por sociedades pastoris na fronteira entre Angola e Namíbia, situando-as dialeticamente no tempo e no espaço: Portanto, ao longo dessa fronteira de Angola com a Namíbia, há várias populações que se repartem de um lado e do outro da fronteira. Nesta ponta noroeste da Namíbia, para onde estamos indo, vivem populações de língua herero. São populações pastoris, nas quais a atividade econômica fundamental, e exclusiva quase, é a criação de bovinos, ovinos e caprinos. Se seguirmos ao longo da fronteira em direção ao leste, encontraremos outras populações, como os Ovambo, que correspondem também a populações do sul de Angola e do norte da Namíbia. (...) Mais para leste encontraremos ainda outras populações, que são populações bantas também, que são os Guenguela, e que também se repartem de um lado e do outro da fronteira. (...) Até o fim do século XVIII, pouco se sabe do que se passa nesta bolsa que corresponde a esta faixa do deserto do Namibe, a este interior da Namíbia que estamos agora a atravessar, e àquilo que está a leste e é o Kalahari do Botsuana atual. (MOREAU, 2006).

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A população angolana é constituída, em sua maioria, por grupos étnicos de origem bantu: ovimbundu, ambundo ou akwambundo, bakongo, tchokwe, lunda, ganguela, ovambo, herero. Existe uma pequena minoria de povos autóctones não bantu, com destaque para os bosquímanos. No sudoeste de Angola, destacam-se os Nyaneka, os Ovambo e os Herero, estes dois últimos em ambos os lados das fronteiras com a Namíbia e o Botswana, como nos orienta Ruy Duarte. Sobre os Herero, em Aviso à navegação, o autor esclarece: Os Kuvale são Herero, portanto, encravados na aridez e na areia, "residuais" e sobreviventes de uma guerra total. São Herero em Angola, tal como o são os Ndombe, a Norte, os Hakahona e os Dimba, a Leste, os Himba, a Sul. Estes estendem-se para além do rio Kunene, pela Namíbia, onde se misturam ou encostam aos Herero que, com os Mbandero entram pelo Botswana. (...) Os Herero de hoje provêm de populações pastoris de língua banta que terão chegado à costa ocidental da Africa, pelo Leste, a nível do paralelo de Benguela, e que, alcançadas as estepes que precedem o mar, flectiram para Sul, cada vez se internando mais nas bordaduras do Deserto do Namibe e depois para Leste, até ao Kalahari. (CARVALHO, 1997, p. 5).

A matéria é vasta, contudo, a breve explanação de Carvalho que ora destacamos nos revela que há uma travessia de sociedades pastoris entre os desertos do Namibe e do Kalahari. E que ele próprio, na sua visita recorrente aos pastores, transita entre esses espaços, intersecionando-os. O ensaísta Luís Quintais lê Ruy Duarte exatamente como o homem que “perigosamente acolhe, escolhe desertos, e que sintomaticamente procura refúgio a sul, nesse país que é o encontro de dois desertos: a Namíbia.” (QUINTAIS, 2008, p. 11). Para ele, ao privilegiar o deserto, Ruy Duarte deixa-se seduzir pelos riscos e pelas possibilidades latentes dos vazios de um sertão, reivindicando uma espécie de fusão pessoal com a paisagem. E acrescenta: “dir-se-ia que o Namib e o Kalahari se encontram num ponto: e porque os nomes de homens são lugares, gostaria de dizer que é o Ruy o lugar em que o Namib e o Kalahari se encontram.” (Idem, p. 11). Enquanto Ruy Duarte dedicou-se, especialmente, aos Herero, com destaque para os Kuvale, “os mucubais do imaginário angolano” (CARVALHO, 1999, p. 22), que não passam de 5.000 e mais da metade ocupa a província do Namibe (Idem, 1997, p. 6), Ana Paula Tavares aproxima-se, com frequência, dos Nyaneka e dos Kwanyama, que estão, respectivamente, nas províncias da Huíla e do Cunene. Em um de seus depoimentos, a poeta declarou ter sido um privilégio nascer em uma região de encontro entre muitas sociedades, com a presença de europeus pobres ou 16

Memória, identidade e cultura: ensaios ricos e de africanos pastores, que pareciam não pertencer àquela sociedade, invisíveis que eram aos olhos dos outros. E foi este privilégio, o privilégio de ter nascido ali, de ter uma avó negra do Kwanyama, e uma avó branca de Castelo Branco, e pobre, muito pobre, que me deu essa fala, a outra fala. Do que é que elas falavam, aquelas duas mulheres, à noite, quando estavam ali sozinhas, quando a criançada toda – muita, muitos! – já estava a dormir, de que é que elas falavam? Havia o ruído de fundo que eu fui à procura. (TAVARES, 2008, p.48).

Nessa sua procura, Paula Tavares recorre não apenas às falas do lugar que apreendeu por conhecimento próprio, mas também a fontes escritas, como narrativas, poemas e mitos traduzidos por missionários no século XIX. Além disso, se o português é a sua língua de domínio, os sons de outras línguas africanas acompanham-na. Na crônica “Língua materna”, a escritora problematiza a noção de primeira língua no contexto colonial angolano, reforçando a ideia de que “como as pessoas, a língua alarga-se à convivência com as outras, oferecendo-se mesmo ao acto de incorporar no seu próprio corpo outras sonoridades, outros empréstimos.” (TAVARES, 1998, p. 13). E, assim, diante de inúmeras experiências e patrimônios, trabalha, canibaliza e devora um “legado que a sorte pôs a sua disposição”, como enfatiza (Idem, 2008, p. 49). Seu trabalho é fruto de uma antropofagia literária, no sentido metafórico usado por Oswald de Andrade, ou seja, uma atitude estéticocultural de assimilação crítica de elementos culturais do europeu em Angola, bem como de elevação de valores culturais internos, que foram ignorados pelo processo de colonização. Dialogando com poetas e intelectuais africanos e estrangeiros, Tavares assume uma postura crítica frente às tradições, realizando uma “canabalização” das fontes e das experiências dos povos pastores da Huíla. Sua intenção é clara: deglutir inúmeros patrimônios para nos devolver uma poesia carregada de novas experiências de sentido, originais e angolanas. “Boi, boi/ Boi verdadeiro,/ guia a minha voz/ entre o som e o silêncio” (TAVARES, 2011, p. 118) são os versos que abrem a primeira parte do livro Dizesme coisas amargas como os frutos e apontam um dos signos trabalhados nesse seu processo de reivindicação antropofágica: o boi, fonte de riqueza, de prestígio e de sacralidade. Especialmente criadores e pastores de gado, os Nyaneka-Humbi, à semelhança dos Ovambo e dos Herero, veem no boi o princípio organizador da sociedade. A invocação feita pela poeta, pedindo ao “boi verdadeiro” que guie sua voz, pode ser associada também ao culto do “boi sagrado”, que representa a

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memória dos antepassados e dos antigos pastores nyaneka. Na cerimônia religiosa anual da Ondyelwa, que significa “cortejo guerreiro”, espíritos ancestrais da prosperidade, da fecundidade e da proteção do gado e da comunidade são invocados, com danças e cânticos ao fim da longa caminhada. Vale destacar que um dos filmes de Ruy Duarte de Carvalho documenta o ritual. “Ondyelwa, festa do boi sagrado” integra uma série de dez documentários chamada “Presente angolano – tempo mumuíla”3, feita para a televisão angolana, em 1979. O título da série coloca em perspectiva o quadro atual da realidade angolana, preocupação constante no trabalho de Duarte. Como já dissemos, coexistem em Angola uma grande diversidade de culturas nacionais, com grupos que preservam, cada um em sua medida, suas especificidades culturais. As dinâmicas do tempo, as identidades do espaço dessas “ex-nações”, para usar outro termo empregado pelo antropólogo, são problematizadas não só nos seus filmes, mas em toda sua obra. Em Os papéis do inglês (2000), por exemplo, a história do Inglês que o narrador pretende investigar se dá “no ano de 1923 à beira do rio Kwando, do lado de Angola mas próximo da fronteira com o que é hoje território da Zâmbia” (Carvalho, 2000c, p. 18). O narrador-autor no início da sua viagem está no Namibe, extremo oposto do sul angolano. Os personagens, na busca dos reveladores papéis, transitam pela Huíla, o Cunene e o Cuando Cubango. Enfim, o espaço do romance é a região sul de Angola, cenário mapeado e problematizado em relação a outros locais de cultura, inclusive Luanda, a capital distante do interior. Ontem, durante o dia todo, trovejou demais de um lado e do outro, e anda a rodear, a chuva. Correu pelo Bumbo, apontada a noroeste, saiu do Cahinde e deve ter atingido o Virei até ao Kuroka, a sul, e a Bomba a sudoeste, e até mesmo, talvez, para além dos Paralelos, a damba da Delfina, esse deserto todo. (...) A ocidente é o céu e a nascente a serra, com bruma na base e recortada na claridade luminosa das nuvens altas que pairam sobre os promontórios do platô da Huíla. (...) Longe de Luanda, Luanda é longe, e é sempre longe, de Luanda aqui. (CARVALHO, 2000d, pp. 22-23).

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A respeito dos Muílas (ou Mumuílas), citamos o próprio Ruy Duarte de Carvalho: “Os Mumuílas, localizados nas terras altas do plateau da Huíla, separados do mar pelos contrafortes da serra da Chela e pela faixa semi-desértica e desértica da região norte do deserto do Namibe, constituem com os Mungambwe a etnia Nyaneka, que, com mais nove povos caracterizáveis separadamente, integram o grupo étnico-linguístico Nyaneka-Humbe. Enquanto a tradição oral recolhida e tratada os faz proceder do Norte, não de mais longe do que de zonas afectas a outros elementos do mesmo grupo linguístico, os dados históricos oficiais situam nos séculos XV e XVI os movimentos migratórios que os teriam trazido pelo Sul e a que se teria juntado a discutida invasão dos Jagas, pelo Norte, também no século XVI. As informações demográficas disponíveis situam em cerca de 40.000 o número total de Nyaneka” (2008, p. 437).

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Memória, identidade e cultura: ensaios O romance discute, na verdade, inúmeros papéis sociais, culturais e políticos que precisam ser revistos, em um processo de ampliação de fronteiras entre “esse deserto todo” do sudoeste de Angola e noroeste da Namíbia e o resto. Assim como Ruy Duarte, Paula Tavares é uma pensadora de fronteiras, de inúmeras passagens que, na vida moderna, se tornam cada vez mais irreconhecíveis e não experenciadas. Nos seus livros de crônicas, O sangue da buganvília, de 1988, e A cabeça de Salomé, de 2004, por exemplo, encontramos inúmeras reflexões da autora sobre a história e a cultura de seu país. Os textos do primeiro foram escritos em Lisboa para serem lidos em um programa de rádio, já os do segundo foram publicados no jornal Público entre os anos de 1999 e 2002. Ambos funcionam como veículo de informação, de sensações, e de conhecimento da sua realidade. As crônicas, impregnadas de prosa poética, são sentenciosas histórias do cotidiano, em que tudo nas narrativas acontece em reflexão. O diálogo travado com o leitor, com personagens de origem africana, com provérbios, cantigas e máximas pertencentes à cultura angolana, e com inúmeros escritores, entre eles Luandino Vieira, David Mestre, Mia Couto, Sophia de Mello Breyner, Eduardo Lourenço, Virgínia Woolf e o próprio Ruy Duarte de Carvalho, só para citar alguns, nos aponta, mais uma vez, a capacidade que sua obra tem de trocar experiências. Entre elas, as dinâmicas de um lugar a sul, com mapas e roteiros de viagens a conduzir dias e novas formas de ver o mundo. Na crônica “O mapa do Natal”, a escritora acompanha a personagem central, sua madrinha, no desenho das “quatro pontas de um mapa da terra e da sua vida, guardado no armário dos esqueletos, dentro do caderno azul” (TAVARES, 2004, p. 99). A narrativa procura descrever poeticamente memórias de um lugar e de um viver em ciclos que se renovavam com a proximidade das festividades do Natal, com as crianças “aprendendo a ler, no mapa, palavras no cruzamento de rotas, umas mais visíveis do que outras” (Idem, p. 100). Em um dos momentos desse refazer de caminhos, a imagem do deserto fértil, que faz crescer o alimento e a palavra, modifica paradigmas de representação de um vazio cultural e restaura experiências de saberes: Por cima do deserto cresceram laranjais, o centeio, para ser colhido duas vezes por ano, e o milho que transformava as nossas mãos numa massa de bolhas, quando o despíamos e deitávamos os dentes, um a um, para dentro dos silos alojados na varanda do sobrado. No terreiro, dormia o café, acordado duas vezes por dia, por uma espécie de ancinho de madeira e pelos nossos pés descalços.

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Seguindo o desenho do mapa, a madrinha tratava o café como se fosse água benta, ouro em grão. Falava arábica e dividia-o em lotes, dizendo: “moca, fino, paiol e escolha”. Descobrimos no mapa, debaixo das árvores-sombra, escrita a tinta azul, a palavra KAFFA. A tratar do café, aprendemos a iludi-la um pouco, misturando lotes, e ouvimos expressões bizarras como calda bordalesa, míldio e cobra chicote. Não sabemos se no mapa, se de verdade, a madrinha tratava do café a pensar na vinha da memória. (TAVARES, 2004, p. 101).

Ora, o deserto inscrito nesse mapa de tesouros locais guarda segredos a serem descobertos, ritualisticamente, pelas gerações futuras, via palavra e gesto. A procura das crianças por vestígios de uma história e seus enigmas, como o sentido da palavra “kaffa”, “fala arábica”, escrita “debaixo das árvores-sombra” e imediatamente associada ao café –

de origem africana, da região de Kaffa, na

Etiópia – pode ser lida como a própria representação do nascimento sagrado da terra e do homem. Não é à toa que no “mapa do Natal”, o café, um dos produtos de consumo mais importantes em todo o mundo, também seja tratado “como se fosse água benta, ouro em grão”. Desse modo, “a pensar na vinha da memória”, assim como a madrinha, Paula Tavares alarga as margens do presente. Para encontrar a fecundidade de um deserto, é preciso olhar além do horizonte de areia e perceber a potencialidade de seus vazios e silêncios. Assim como a poesia, a singularidade do deserto está na sua voz à espreita, “melhor dizendo: do sotaque de sua voz. É uma modulação indefinida, inconfundível e que fatalmente, a torna outra. É a marca, não do pecado, e sim da diferença original” (PAZ, 1993, p. 141). Desse mofo, o deserto pode ser visto como descobrimento, enfim, individual e coletivo; como lugar de experiências, onde a vida tem significados móveis, ultrapassando todas as categorias de definição; e, ainda, como labirinto e como possibilidade de morte e renascimento. Mircea Eliade lembra que “um labirinto é a defesa, por vezes mágica, de um centro, de uma riqueza, de uma significação.” (1987, p. 137) e que seu simbolismo está ligado a um modelo de existência: através de provações que se renovam, o ser humano está sempre avançando em direção ao seu próprio centro, a si mesmo. Este não é também um sentido simbólico comumente atribuído ao deserto? Penetrar no deserto, assim como no labirinto, pode ser um ritual iniciático. É lugar próprio aos questionamentos e à experiência elementar do sagrado, visto que coloca o sujeito no limiar de uma experiência interior, abrindo-o à própria consciência de se existir no mundo. 20

Memória, identidade e cultura: ensaios O deserto como labirinto e também como provação aparece no imaginário de inúmeras culturas e, na literatura, são diversos os textos que destacam o símbolo. Lembremos, por exemplo, do conto “Os dois reis e os dois labirintos”, de Jorge Luis Borges, escritor que trabalhou a figura do labirinto em várias de suas obras. Nesta narrativa, há um labirinto de caminhos tortuosos e de percursos falsos, construído por um rei da Babilônia para menosprezar a força de qualquer um que arriscasse entrar nos seus domínios, e outro que é o deserto, sem muros, portas ou qualquer obstáculo. Quando um rei dos árabes, depois de ter sido humilhado no labirinto enganoso do soberano babilônico, volta à Arábia, executa sua vingança: Amarrou-o sobre um cavalo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: “Oh, rei do tempo e símbolo do século. Na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos”. Em seguida desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. (BORGES, 1998, p. 676).

Esse deserto-labirinto é o espaço infinito, sem medida, podendo ser comparado ao deserto de Maurice Blanchot (1984), pois é o lugar onde o homem não consegue permanecer; ainda que esteja dentro, está sempre fora: O deserto ainda não é o tempo, nem o espaço, mas um espaço sem lugar e sem engendramento. Aí, apenas, se pode errar, e o tempo que passa não deixa nada atrás de si, é um tempo sem passado, sem presente, tempo de uma promessa que só é real no vazio do céu e na esterilidade de uma terra nua onde o homem nunca está presente, mas sempre fora. O deserto é esse fora, onde não se pode permanecer, pois estar aí é sempre já estar fora.” (BLANCHOT, 1984, p. 88).

Nesse caso, a experiência do deserto é a da errância e do exílio, onde o estrangeiro que aí está se encontra ao mesmo tempo fora de casa e ausente de si, em um labirinto cuja única saída é a construção de um novo mundo nesse lugar. A imagem do deserto é utilizada por Blanchot para falar de um “espaço literário” que sempre volta ao vazio, estando próximo da origem, pois o poema é começo, é fala “que jamais começa mas diz sempre de novo e sempre recomeça” (1987, p. 29). Para o ensaísta francês, o escritor deve entregar-se ao interminável processo de reencontro consigo através da escritura, como uma legitimação de sua própria existência. Daí a experiência da solidão, da entrega ao interminável e ao fascínio da ausência de um tempo “sempre presente, sem presença” (Idem, p. 21).

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Encontramos menção ao deserto vasto e silencioso, labiríntico, lugar de origem, de abrigo e de perigo, de travessia e de convocação da palavra poética em inúmeras obras, como no célebre romance brasileiro Grande sertão: veredas. Em Guimarães Rosa, o deserto-sertão, além de suas também noções geográficas, ergue-se como símbolo da condição humana, da metáfora do mundo. “O sertão é do tamanho do mundo.” (ROSA, 2001, p. 89), diz o narrador Riobaldo em certa altura. O “grande sertão” é cheio de desafios, é a constatação recorrente de que “viver é muito perigoso” (Idem, p. 41)4. Ademais, o sertão é fundamento, amarra da obra, sustentando-a e alargando-se para além do lugar: “O sertão é sem lugar.” (Idem, p. 370); “Sertão é o sozinho. (...) Sertão: é dentro da gente.” (Idem, p. 325). Por isso, o que o narrador conta é uma reflexão sobre a vida e seus mistérios: Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas, é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe! (...) Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. (ROSA, 2001, p. 116).

Ao tentar reorganizar fragmentos de si e do mundo, o narrador aproxima-se do sagrado como experiência essencialmente da ordem da consciência, como o pensa Mircea Eliade, ou seja, é pela experiência interior que cada um poderá reconhecer o sagrado no mundo (1987, p. 114). Assim, não podemos considerar apenas os vazios de um deserto, o nada, tampouco pretendermos que seja o término, uma vez que é, na mesma medida, o começo. O símbolo é, de fato, ambivalente, mas, em geral, relaciona-se ao sagrado. Chevalier e Gheerbrant acrescentam que ele “é a esterilidade, sem Deus. É a fecundidade, com Deus (...). O deserto revela a supremacia da graça; na ordem espiritual, nada existe sem ela; tudo existe por ela e só por ela.” (1999, p. 332). Quando o pensamos como um lugar de encontro com a experiência do numinoso5, reforçamos a ideia de travessia e de passagem operada pelo sujeito que se aventura a percorrê-lo.

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Uma das frases que mais se destaca no texto, como nas passagens: “Viver é negócio muito perigoso...” (ROSA, 2001, p. 26); “Viver nem não é muito perigoso?” (Idem, p.51). 5 Segundo Rudolf Otto, é o sentimento único vivido na experiência do sagrado, em que se misturam a fascinação, o medo e o aniquilamento.

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Memória, identidade e cultura: ensaios O deserto como devir também está presente em Pepetela, para citarmos mais um nome importante da literatura angolana. A imagem aparece desde Muana Puó, obra inaugural do autor, escrita em 1969 e publicada em 1978. O livro conta a história de dois amantes tentando viver em um mundo “ovalizado”, cuja geografia é traçada através dos contornos da máscara ritualística tchokwe que dá título ao texto. Os dois encontram-se no centro da face oval, separados por uma montanha: “Ela” chegara naquele ponto vinda de muito longe, fugindo das amarras a que era imposta; “Ele brotara no deserto” (PEPETELA, 2009a), tendo-o percorrido até chegar “àquele local, onde não havia areia” (Idem, p. 15). Ambos desafiaram as leis divinas ao subirem à montanha, cada um do seu lado, ela, no direito, e ele, no esquerdo. Na narrativa, há também os corvos e os morcegos, que metaforizam, respectivamente, opressores e oprimidos. São figuras noturnas, cada qual pela posição que ocupam, mas problematizam a busca por transformação, a passagem da sombra à luz. É assim que os protagonistas e outros morcegos chegam a Calpe, a cidade utópica erguida na base da montanha, no meio da máscara-território, simbolicamente um entrelugar onde todos podem experimentar a liberdade e a possibilidade de relações humanas mais justas e harmoniosas. Os amantes procuram-se a todo tempo, um ao outro e a si mesmos e, como no ritual de iniciação, se separam e morrem, para, esperançosamente, renascerem em outra condição. “Ela”, mesmo inquieta e insatisfeita com os numerosos amantes, “ajudou a construir o mundo” (Idem, p. 147) até sua velhice. “Ele”, desiludido com a quebra do seu sonho de amor incondicional e com a “impossibilidade de viver no mundo sem ovalidade” (Idem, p. 145), volta ao deserto para nele morrer: Ajoelhou-se no deserto e implorou-lhe que o cobrisse. Deitou-se ao comprido, fechando meigamente o traço luminoso sobre a linha da vida. Uma brisa ligeira soprou e a areia foi-se depositando, bago a bago, sobre ele. Depois mais depressa. Mais depressa, mais depressa. Um vendaval levantou-se em cânticos luminosos e turbilhões de areia verde-violeta, da cor do céu, vieram depositar sobre o seu corpo miríades de rosas-diamantes. A mão fechada ficou de fora. Transformou-se em estranha papoila violeta, uma bola de lágrima no seio. O deserto cobriu-o com a paixão do deserto e, única amante fiel, guardou o seu segredo para toda a posteridade. (PEPETELA, 2009a, p. 146).

A morte é recoberta por cores luminosas, apresentada como mais uma fase no processo de travessia de um sujeito em estado de contínua transformação.

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Segundo Laura Cavalcante Padilha, “nessa história, o caminhar para a morte é inevitável” (2009, p. 53), contudo, o desencanto é relativizado, com a narrativa apontando também “um movimento de esperança” (PADILHA, 2009, p. 53). A máscara simboliza e efetua uma passagem, que também pode ser entendida como a transição a ser empreendida pelo homem colonizado na reconstrução da sua identidade. A pesquisadora destaca que a recuperação da máscara sagrada Muana Puó, usada na festa da circuncisão de meninos tchokwes, funciona “como uma representação plástica da força e da resistência do povo angolano, em sua luta contínua para reverter não apenas a violência colonizatória, mas a sua resultante talvez mais perversa: o silenciamento de suas formas simbólicas, culturais e artísticas.” (Idem, p. 50). A fim de dar voz a inúmeras culturas africanas, Pepetela, assim como Ruy Duarte de Carvalho e Paula Tavares, recupera a força do sul angolano. O deserto, onde nasce e morre o personagem masculino de Muana Puó, está em um sul silenciado a ser redescoberto. A este mesmo deserto, Pepetela voltou inúmeras vezes para efetuar sua travessia literária. Da sua obra de estreia até aqui se somam duas dezenas de livros; entre os mais recentes, está O planalto e a estepe, de 2009. Se na narrativa alegórica de 1969, o casal de amantes se encontra e se separa, quarenta anos depois a história de amor contada se realiza entre encontros e desencontros, novamente na tensão entre aspirações coletivas e individuais, porém, como uma “esperança louca” (PEPETELA, 2009b, p. 187), que faz o protagonista “desejar sobreviver, diferente de alguns homens bons que preferiram deixar-se morrer ou mesmo cometer o suicídio.” (Idem, p. 187). O diálogo com Muana Puó é evidente, a começar pela imagem dos olhos dos amantes apresentada logo na abertura do romance. Já no epílogo o narrador autodiegético faz um balanço da sua própria história, “que poderia contar vezes sem conta” (Idem, p. 187), Entretanto, deambulo em novas viagens. Etereamente. Podia ir visitar as estepes da Mongólia, ou as montanhas Altai. Ou até plantar sobre as ilhas do Pacífico. Mas não me apetece. Prefiro o Planalto a partir da Chela, as rochas de muitas cores, as falésias e suas cascatas, o verde dos prados, o campo das estátuas, o milho ondulando, as árvores retorcidas pelo vento. E pairar sobre a gigante fenda da Tundavala, fenda que aponta o deserto. E o mar. E aponta o Sul, o grande Sul. O Sul da minha vida. (PEPETELA, 2009b, pp. 187-188).

A fenda da Tundavala é um recorte ao longo da parede do planalto da Huíla. A escolha da paisagem novamente nos remete à Muana Puó, à montanha que se, 24

Memória, identidade e cultura: ensaios antes, representava também uma barreira ao encontro dos amantes, agora provoca nova abertura no quadro de busca do ser humano, demonstrando que os deslocamentos no espaço são, simultaneamente, travessias no tempo. Pepetela conduz o leitor ao alto, para fazê-lo penetrar no espaço do deserto, esse lugar, para nós, de experiências transgressoras. A visão literária da paisagem angolana do Sul aparece desde o início de O planalto e a estepe, com outra passagem que merece destaque: Vivi sempre com muitas pedras à minha volta. É bom ter pedras na vida. Sobretudo lembrar as que se teve. Nunca poderia esquecer o campo das estátuas. Muito menos agora. Os rochedos indicavam a direcção. Havia depois uma pequena planície com flores de muitas cores no tempo da chuva. E estávamos na fenda sem quase dar por isso. Já viram uma montanha cortada a pique, em cima o verde do planalto, em baixo o amarelo do deserto? É quase assim. Só não é exactamente assim porque no meio há o Morro Maluco, o qual corta de verde e castanho o amarelo do deserto, lá em baixo. O deserto leva para o Namibe, o grande Sul que alguns chamaram Kalahari. Uma sorte. (PEPETELA, 2009b, p. 15).

Novamente o Namibe e o Kalahari são mostrados em confluência. A visão do espaço parece prolongar novas noções geográficas. O narrador convida o leitor a olhar, a abrir-se às imagens íntimas que religam o homem ao mundo, com o deserto, mais uma vez, a apontar a constante fluidez de fronteiras. É um lugar, de fato, onde o pensamento se amplia em travessias labirínticas, em viagens iniciáticas, de construção e de valorização de uma identidade “em curso”, em constante processo de transformação.

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SOBRE A MONSTRUOSIDADE: UMA LEITURA DE O FILHO DA MÃE, DE BERNARDO CARVALHO Paulo César Oliveira1

O romance O filho da mãe, de Bernardo Carvalho (2009) foi o produto final de um controvertido projeto, intitulado “Amores Expressos”, que se destinava a levar escritores brasileiros a diversos recantos do planeta para um estágio de seis meses. No projeto, cada escritor residente tinha a missão/obrigação de escrever um romance sobre uma história de amor que necessariamente se desenvolveria em seu local de residência provisório. O objetivo era aliar a questão da experiência vivida à ficção, uma espécie de confirmação da ideia de que a literatura não deve apenas mimetizar a vida, é a própria vida que deve incorporar a literatura a seus processos. Nesse sentido, o escritor incorpora a ficção em seu mundo e em sua vivência concreta. O romance produto dessa pesquisa poderia ser publicado pela editora associada ao projeto, a Companhia das Letras, embora à editora fosse reservado o direito de não publicar as obras que julgassem incompatíveis com sua linha editorial, o que não foi o caso de O filho da mãe, de Carvalho, que efetivamente publicaram em 20092. Esse romance dá continuidade a uma série de narrativas que teve em Nove noites, um momento particularmente feliz da produção mais recente de Carvalho. Em O filho da mãe, algumas obsessões e discussões crítico-estéticas de Carvalho ampliam sua relação entre o que chamamos de “mundo crítico do texto”, que o escritor vem construindo, obra a obra, e o que também denominamos “texto crítico do mundo” (OLIVEIRA, 2010). Passemos,de imediato, à apresentação e análise de algumas de nossas hipóteses de leitura. Na cena de abertura do romance O filho da mãe, de Bernardo Carvalho, há um encontro das personagens Marina Bóndareva e Iúlia Stepanova, antigas amigas de escola, personagens estratégicas para o desenvolvimento da narrativa central do 1

Doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor Adjunto de Teoria Literária da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da Uniabeu. Líder do Grupo CNPq “Poéticas do Contemporâneo” e vice-líder do Grupo CNP “Nação-Narração”. 2 Cabe ressaltar que romances do projeto e recusados pela Companhia das Letras foram publicados por outras editoras.

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Paulo César Oliveira romance, como veremos. Após receber de seu médico a notícia da morte iminente por conta de uma doença fatal, Iúlia decide compensar o fato de não ter tido filhos com a tentativa de salvar a vida do filho de alguém, o que a leva a procurar o Comitê das Mães dos Soldados de São Petersburgo, instituição que procura ajudar jovens soldados a escaparem da convocação para a guerra. Lá, ela irá oferecer ajuda a algum jovem recruta. No Comitê, Iúlia reencontra Bóndareva, uma das líderes do Comitê, ela própria vítima da guerra da Tchetchênia, por conta do suicídio de seu filho. Por meio desse reencontro, o leitor saberá da história de Ruslan e Andrei, personagens centrais do romance e cuja história se entrelaça, tragicamente. A história do reencontro dessas mulheres anuncia, portanto, uma outra, a dos dois jovens. Sabemos, in ultima res, que Andrei fora morto em uma missão nas montanhas ao sul de Grózni. De Ruslan, teremos ciência de que é filho da russa Anna com o tchetcheno Chackban. Ruslan é abandonado pela mãe, na Tchetchênia, e deixado aos cuidados do pai e da avó, Zainap. Com a morte de Chackban, Zainap consegue, antes de morrer, levar o neto para fora país, rumo à Rússia. Ruslan tenta contactar a mãe e ao mesmo tempo luta para sair do país. É nesse contexto que Ruslan encontra Andrei, então soldado do exército russo. Andrei é forçado por seus oficiais superiores a se prostituir para levar dinheiro ao quartel. É quando Ruslan rouba a carteira de Andrei, junto com o dinheiro da prostituição, que a história dos dois se cruza, o romance se bifurca, passando ao duplo relato: seria uma história de amor entre dois jovens envolvidos na tragédia da guerra entre seus países ou o relato de mães e mulheres que tentam desesperadamente salvar os seus filhos e os de outras mulheres? Há uma voz heterodiegética que sustenta uma aparente adesão à narrativa realista, mas outras vozes vão surgindo e formando um mosaico de temas e reflexões que nos remetem àquilo que Roland Barthes entendeu como sendo as três “forças da literatura”, das quais a mimesis e a mathesis serão as mais focalizadas neste trabalho. Se a representação ficcional da Segunda Guerra da Tchetchênia se estrutura através do tema da maternidade, uma outra representação, mais abrangente e de maiores pretensões, delineia na trama romanesca processos de interpretação e reflexão do mundo contemporâneo, em que a falência do projeto da modernidade é

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Memória, identidade e cultura: ensaios ficcionalizada em O filho da mãe por meio do que chamamos de poética das ruínas. A fala de Iúlia, ao final do romance, traduz bem essa afirmação: Ninguém quer ler o que está por vir, à beira do abismo. As pessoas precisam se agarrar ao que já conhecem. Os modernismos não podem mesmo durar. Nem as revoluções. Ninguém vai construir uma casa à beira do abismo (CARVALHO, 2009, p. 186).

Ao definir (e profetizar) tais histórias de amor, a personagem Iúlia acaba por estruturar

no

romance

uma

compreensão

ficcional

do

estatuto

da

contemporaneidade, conforme entendemos na leitura acerca da história e do tempo histórico, em Walter Benjamin (1985) e Giorgio Agamben (2009). Para Agamben, é preciso olhar a contemporaneidade da mesma forma como observamos o tempo que se esvai pelo retrovisor de um carro. Estamos imersos no presente, mas ao mesmo tempo vislumbramos um passado fugidio, enquanto vivenciamos o desenrolar dos eventos, em uma espécie de aqui/agora/sempre, um continuum que não admite reduções ou dicotomias e sim o fluxo. Deste modo, Iúlia nos ensina que o futuro como devir é um tempo que jamais chega, que não basta nem se basta, mas se configura como promessa, como estado messiânico no qual percebemos o salvador (e que talvez não nos salve). As histórias de amor, como todas as histórias, são passíveis, portanto, de serem lidas como ruína: poética da ruína. A ruína possibilita uma visão mais aberta da história, e por não se encantar facilmente com a totalidade estabelece nas frinchas do precário, como propôs Walter Benjamin (2011, p. 262), ao tratar do drama trágico: [...] a força determinante da forma histórica do tempo não pode ser totalmente apreendida por nenhum acontecimento empírico, nem absorvida completamente por ele. Um tal acontecimento, que seria perfeito no sentido da história, é antes um elemento empiricamente indeterminável, ou seja, uma ideia. A esta ideia do tempo preenchido chama-se na Bíblia – e esta é a sua ideia histórica dominante – o tempo messiânico. Em qualquer caso, a ideia do tempo histórico preenchido não é ao mesmo tempo a ideia de um tempo individual. É esta a determinação que, naturalmente transforma totalmente o sentido desse preenchimento, que distingue o tempo trágico do messiânico.

Para Benjamin, um acontecimento empírico não traz a compreensão da totalidade da forma histórica do tempo, já que entre o tempo histórico preenchido e o tempo individualmente preenchido impõe-se uma diferença: no tempo histórico preenchido, sendo da ordem do messiânico, se estabelece um devir incessante; já

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Paulo César Oliveira no tempo histórico individualmente preenchido, há consciência de que não se pode para sempre nele habitar. Por isso, a “morte é uma imortalidade irônica”, é “a origem da ironia trágica”, em que “o mais pequeno passo em falso leva à culpa” e “o mais ínfimo descuido, o mais inverossímil acaso acarreta a morte, quando todas as palavras do entendimento e da resolução dos conflitos [...] não são ditas”, o que nos situa “perante aquela típica influência exercida pelo tempo do herói sobre todos os acontecimentos, porque no tempo preenchido todos os acontecimentos são função desse tempo próprio” (BENJAMIN, 2011, p. 262). Essa inadequação do sujeito com seu tempo, essa tensão entre a consciência de que o tempo historicamente preenchido nos ultrapassa, podemos chamar de narrativa romanesca. Nela, o sujeito degradado em um mundo arruinado só pode expressar o descompasso entre sua experiência e o mundo, matéria privilegiada pela ficção romanesca e modo essencial de a narrativa ficcional pensar o lugar do sujeito no mundo circundante. Daí advém a característica fundamental desse modo de ser do sujeito no mundo: o sujeito é sempre ser histórico e, como tal habita o mundo de forma trágica, já que não podemos viver fora dele, nem fora do tempo. O mundo se impõe como limite e clausura, já dado desde nosso nascimento. Assim, a forma do trágico seria espectral, concentrada na repetição, na forma não fechada de um jogo sem vencedores e sua lição consiste na consciência de que não se pode viver no tempo histórico preenchido, somente nele habitar, influir, retardando o inevitável momento da catástrofe. Para essas questões, nos impomos um parêntese crítico. No mundo líquido-moderno, confinar e excluir estabelecem novas formas de vigilância. Partindo do conceito de ban-óptico – termo cunhado por Didier Bigo, e retomado por Zygmunt Bauman (2013) para definir certas categorias de indivíduos que não se alinham a padrões comportamentais e que se encontram em desacordo com certas linhas de atuação defensáveis, em certos espaços definidos – vemos encerradas neste campo de controle as vítimas das guerras, os refugiados, os expulsos de suas terras por conta das catástrofes naturais etc. Sob a vigilância banóptica, estão aqueles sujeitos confinados em certas áreas, expostos a uma triagem do tipo que aceita ou recusa sua entrada ou seu trânsito em certas áreas comuns. Vale recordar, como já vimos, que é justamente em um campo de refugiados da Inguchétia que Zainap decide morrer para salvar o neto, que se recusa a entrar em território russo sem a avó. O suicídio, no exemplo, explora veementemente o 30

Memória, identidade e cultura: ensaios caso de uma doação de vida ao outro, tema de que trataremos mais adiante. Isso responde ao problema do comunitarismo na sua forma líquido-moderna, em que se estabelece um paradoxo: a comunidade requer fazer parte de algo, o que é bom, mas a liberdade das escolhas individuais diz o contrário. O desafio de se habitar o mundo da modernidade oblíqua pode ser um modo de compreender as formas com que o sujeito consegue se equilibrar nesse paradoxo das relações entre o senso de comunidade e as liberdades individuais: Em termos sociológicos, o comunitarismo é uma reação esperável à acelerada “liquefação” da vida moderna, uma reação antes e acima de tudo ao aspecto da vida sentido como a mais aborrecida e incômoda entre suas numerosas consequências penosas – o crescente desequilíbrio entre a liberdade e as garantias individuais. O suprimento de provisões se esvai rapidamente, enquanto o volume de responsabilidades individuais (atribuídas, quando não exercidas na prática) cresce numa escala sem precedentes para as gerações do pós-guerra. Um aspecto muito visível do desaparecimento das velhas garantias é a nova fragilidade dos laços humanos (BAUMAN, 2001, p. 195).

Bauman

(1999,

p.

114)

acredita

que

“o

confinamento

espacial,

o

encarceramento sob variados graus de severidade e rigor, tem sido em todas as épocas o método primordial de lidar com setores inassimiláveis e problemáticos da população, difíceis de controlar”. Essas questões são cruciais à nossa reflexão e, para fecharmos a contribuição de Bauman, se conjugam ao problema da “cena moral primordial”, definida por ele como o local da reunião moral de dois, ou seja: é o terreno onde “se cultiva toda responsabilidade para com o Outro e o terreno de aprendizado para toda a ambivalência necessariamente contida na pressuposição dessa responsabilidade” (BAUMAN, 1998, p. 90), em que todos partilhamos objetivamente a culpa pelo sofrimento e o infortúnio humano. Esse aprendizado de leitura nos conduz a algumas interrogações, que serão apenas esboçadas neste texto. Dois fragmentos da narrativa de O filho da mãe nos servirão de imagens-força, ou fragmentos-força e nos ajudarão a dar forma ao que aqui se investiga: alegoricamente combinados, o tema do kunak e a reflexão sobre a quimera forma o eixo de nossa comunicação. O substantivo kunak vincula-se a um componente ético, que a narrativa do romance estrutura, tanto em relação à história das mães, quanto em relação ao drama trágico das personagens Ruslan e Andrei. Já o termo quimera estabelece alegoricamente uma relação coextensiva: é representação do mundo e do sujeito

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Paulo César Oliveira como malformação, desvio em relação à normalidade, equivalente a uma certa monstruosidade. Em O filho da mãe, a expressão kunak refere-se a um estrangeiro ou a membro de outro clã ou de outra tribo com quem se estabelece um pacto de proteção e fraternidade, de acordo com as tradições inguches (CARVALHO, 2009, p. 39). Kunak era também a forma como o pai da personagem Ruslan o tratava. Kunak expressa um sentido ético que o romance procura conferir a personagens de um mundo fechado, em que a realidade da guerra e da opressão só permite o amor entre ruínas. Expressão desse estado de clausura é a descoberta da sexualidade por Ruslan, em sua primeira relação amorosa, com Akif, colega de faculdade morto na guerra, o que denota os sentimentos de perda, abandono e não pertencimento que em um contexto de guerra, serão percebidos por Ruslan, pelo estatuto de paria que ele carrega, ou como se ele próprio fosse uma representação da quimera: seja por ser homossexual, em uma sociedade onde “qualquer tchetcheno a quem se fizer a pergunta dirá que não há homossexuais na Tchetchênia” (CARVALHO, 2009, p. 35); ou por ser tchetcheno, em meio a uma guerra contra o domínio russo; ou ainda, por ser filho de uma russa e de um tchetcheno, o que o torna um híbrido monstruoso, aquilo que para os camponeses supersticiosos de seu lugar de origem seria uma espécie de maldição ou mau presságio, a figura a ser eliminada para que se restaure a “normalidade” e o “bem”. A figura da quimera3 como representação da monstruosidade – o termo pode significar tanto a “malformação de uma planta ou animal”, como também “o que se desvia do normal”, ou ainda “objeto de grande tamanho e frequentemente assustador”, “mau exemplo” etc. – é parte de um

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Figura mística caracterizada por uma aparência híbrida de dois ou mais animais, sendo portanto, uma fera ou besta mitológica. Abaixo, podemos visualizar duas representações da quimera:

Fonte: https://www.google.com/search?q=imagens+da+quimera&hl=en&tbm=isch&tbo=u&source=univ&sa= X&ei=OeUBVO_gOYz5yQS_2ILoAQ&ved=0CB4QsAQ&biw=1280&bih=531.

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Memória, identidade e cultura: ensaios processo de alegorização da própria condição do sujeito em meio a um mundo em que os processos de subjetividade e alteridade não se concretizam, e as promessas e conquistas da modernidade se mostram irregulares e claudicantes, arcaicas e perversas, quando se trata de certas regiões do globo. Se a Ruslan e Akif restava amar sob escombros, por extensão, essa forma da ruína expressa alegoricamente o estatuto do pertencimento desses sujeitos à nação, compreendida aqui, provisoriamente, como corpo suficientemente grande de indivíduos que nela se reconhecem pertencentes, seja por meio de procedimentos linguísticos ou pela partilha territorial, aquilo que se solidificou na noção de Estadonação, conforme estudou a fundo Eric Hobsbawn (2013), ao tratar dos movimentos contraditórios da nação e do pertencimento (HOBSBAWN, 2013). Quando lida com essa relação tensa, entre o real representado e o dado empírico, o texto literário estabelece certos paralelismos entre os imperativos da reflexão ficcional e a necessidade de se dizer o que não pode ser dito por meio de outras formas de compreensão do mundo, como a história, por exemplo. Conforme mostrou Benjamin, (2011, p. 240): “a verdade não consiste num intencionar que encontraria na empiria a sua determinação, mas na força que marca a própria essência dessa empiria”. Do saber literário, podemos recolher alguns ensinamentos, como a aprendizagem acerca de um período pouco estudado entre nós: o romantismo russo, que nos auxilia na leitura de O filho da mãe. Em um fragmento do poema “Valerik”, de Mikhail Lermontov (2014)4, podemos estabelecer relações intertextuais de interesse à compreensão da narrativa carvaliana: The fight was over. All was still. The bodies made a grisly hill. Blood trickled from them, steaming, smoking... `Just tell me, my kunak, What do they call this little river?' `They call it Valerik', he said, `Which means The River of the Dead. Those who named it are in Heaven...' Then someone else's voice I heard, `This day is for the war decisive'. I caught the Chechen's glance derisive. He grinned but did not say a word. (Grifos nossos).

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A guerra acabou. Tudo estava imóvel. Os corpos formavam uma pilha medonha. O sangue gotejava, fumegante, esfumaçante... ‘Só me diga, meu kunak, Qual o nome desse riacho?’ ‘Chamam-no de Valerik’, disse ele, ‘Que quer dizer O Rio dos Mortos’ Os que o assim o chamaram estão no Céu...’ Então, a voz de alguém eu ouvi, ‘Este é um dia decisivo para a guerra’. Vi o escárnio no olhar do tchetcheno. Ele sorriu forçadamente, mas não disse palavra. (Grifos nossos).

Nossa tradução livre da versão em inglês do poema de Mikhail Lermontov.

Paulo César Oliveira

Lermontov, escritor romântico russo do século XIX, foi testemunha da batalha entre tchetchenos e russos, ocorrida nas proximidades do vilarejo de Valerik, na Tchetchênia, em 1840. A história nos mostra que no século dezenove mais de 30 etnias se uniram para enfrentar o imperialismo russo. Como vemos, a representação histórica em O filho da mãe, por conta dos efeitos do discurso literário fora de seu campo original, nos remete a saberes que ultrapassam a mera mimetização da guerra no presente e requer do leitor-modelo a incorporação de outros saberes – de forma privilegiada, o saber histórico – para que os fragmentos configurem mais claramente o fulgor da ideia: será esse um romance de guerra, ou sobre mães em contexto de conflito? Será narrativa sobre filhos da guerra, ou ainda um romance de amor, ou de temática filosófica? Da mesma forma, a figura da quimera conclama os saberes mitológicos, míticos ou filosóficos. Como alegoria de um mundo em desagregação e de clausura, a compreensão da figura da quimera é uma das chaves de leitura do romance. Junto com a noção de philia, contida na ideia do kunak, a quimera estrutura possíveis modos de entrada na narrativa de Carvalho. Em uma outra passagem do romance, Andrei lê uma reveladora carta, deixada por Ruslan entre os lençóis da cama: Quando eu era pequeno, viajando pelas montanhas com o meu pai, para conhecer a terra dos seus antepassados, passamos por uma casa onde havia nascido um animal que era dois sem ser nenhum. Uma égua dera à luz um potro no qual estavam misturados dois embriões. A isso chamam quimera, como depois eu ia aprender na faculdade. Era um animal estranho, parecia um potro, mas era outra coisa, dois fundidos num só, indistintos. Não conseguia ficar em pé. As quimeras são raras e os pastores nas montanhas as veem como portadoras de mau agouro, porque põem a reprodução num impasse, fazem da reprodução uma monstruosidade. Por isso, quando esses animais não morrem ao nascer, os próprios camponeses se encarregam de lhes dar um fim. Nas montanhas, todo homem tem um kunak, um amigo estrangeiro que o salvará da morte e que ele também tem a obrigação de salvar. Nenhum homem será completo enquanto não encontrar o seu kunak. Só então poderá seguir o próprio caminho em paz, sabendo que existe no mundo alguém, como ele, com quem ele pode contar na vida e na morte. As quimeras morrem para que sobreviva o pacto dos que não podem contar nem com Deus nem com os anjos (CARVALHO, 2009, p. 161).

As duas imagens-força a que anteriormente aludimos, aqui avultam para configurar a representação da ideia contida na proposta de nossa leitura preliminar. Futuramente, precisamos compreender como essa ficcionalização do mundo por 34

Memória, identidade e cultura: ensaios Bernardo Carvalho pode servir também à reflexão teórica, no aprendizado daquilo que Walter Benjamin nos legou, com seu estudo sobre o trágico e a alegoria. Por ora, pudemos apresentar as figuras do kunak e da quimera como dois modos de estruturação de uma linha de leitura de O filho da mãe, em que observamos a força de mathesis que faz do texto literário ir além da mimesis, configurando-se como jogo da semiosis, ou jogo semiótico, que trapaceia com a língua, deforma a história oficial, e acaba por arruinar as pretensões de uma modernidade pautada pelo elogio fácil da razão, mas que deixa de lado a monstruosidade, efeito perverso que instaura, seja como barbárie, como apontou Benjamin, como banalização do mal, conforme Hannah Arendt pensou, ou ainda por meio de uma ética claudicante, dado apontado por Zygmunt Bauman como sintoma da modernidade líquida. Essas considerações iniciais estipulam possibilidades de relacionar o tema da mobilidade e da clausura às questões da memória e da experiência. Pois não seria O filho da mãe mais um exemplar da forma como a ficção moderna vem retomando sua investigação sobre o mundo de forma a dar ciência da necessidade de que o discurso aberto da literatura possa, com mais firmeza e legitimidade, trazer para o campo da mathesis o mundo do saber que pressupõe a discussão ética? Essas indagações, aqui apenas esboçadas, requerem um sujeito inquiridor, aquele que, por se lançar em atividade tão democrática quanto ligada à alteridade, que é a pesquisa, encontrará na literatura e nos temas da mobilidade, da clausura e da memória um espaço de reflexão a ser continuamente ampliado. Esse trabalho é cooperativo, humano, e se liga aos pressupostos das Ciências Sociais, tão combalidas, hoje, mas essenciais, na tarefa que hoje se impõe como fundamental, que é a de recuperar aquele elemento essencial à nova organização planetária: a ética.

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UMA ENCRUZILHADA DISCURSIVA ENTRE NOVE NOITES E MEMÓRIAS

DO CÁRCERE

Erick da Silva Bernardes1 Reflexões sobre a Via Cavalgando três dias e três noites ele chegou ao lugar, mas decidiu que ao lugar não se podia chegar. Parou, pois, para pensar. Este deve ser o lugar. Se cheguei a ele, então não tenho importância. Ou pode não ser este o lugar. Não há, pois, importância, mas eu próprio não sou diminuído. [...] Na história só se diz que se deve chegar ao lugar. Cavalgando três dias e três noites ele chegou ao lugar, mas decidiu que ao lugar não se podia chegar. (BLOOM, 2002, p. 207).

INTRODUÇÃO Este trabalho estuda o tema das viagens como metáfora, em Nove noites, de Bernardo Carvalho (2006) e Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos (2011). Geralmente, a crítica vem se debruçando sobre aspectos políticos, históricos e antropológicos nas duas obras. Por isso, justifica-se, aqui, o interesse pela análise dos expedientes metafóricos relacionados à temática da viagem, uma vez que este tema não tem suscitado a mesma atenção por parte dos estudiosos de Ramos, tampouco pelos críticos de Carvalho. A linguagem literária será investigada sob três pontos de vista distintos. Primeiramente, assumiremos a perspectiva do olhar estrangeiro na obra de Carvalho, por meio da figura do americano Buell Quain, em Nove noites. Em seguida, focalizaremos a poética de Graciliano Ramos. Sob a ótica do preso político de Memórias do cárcere (2011), veremos um narrador autodiegético que ficcionaliza seu trajeto, em um porão de navio, quando ruma ao presídio até então desconhecido por ele. Neste trajeto de viagem, discutiremos os processos da memória fragmentada e insuficiente; quem ou o que se conta; e de que forma se cruzam ali ficção e biografia. Apesar da clivagem de tempo e espaço, no (dis) curso dos viajantes de Ramos e de Carvalho, ambas as vozes narrativas assumem olhares convergentes, reciclando o tema da errância. 1

Graduando em Letras na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde é bolsista de Estágio Interno Complementar (EIC) orientado pelo Professor Paulo César de Oliveira.

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Erick da Silva Bernardes

Enfim, nosso alvo será esmiuçar a metáfora “viagem” sob o viés marginal, pois tratam-se de narrativas que contam passagens por lugares afastados do meio social, a saber, em Nove noites (2006), a selva brasileira, e em Memórias do cárcere (2011), o isolamento social. Desse modo, refletimos sobre o paradoxal conceito de estar à margem, situação que se tem mostrado recorrente no panorama literário hodierno, provocando discussões acerca da crise de identidade do homem contemporâneo sob a fragmentação da sua própria história, posta à deriva na dinâmica da literatura pós-moderna.

1. A PALAVRA EM TRÂNSITO

A metáfora ocupa lugar especial na produção literária. Segundo o linguista Tony Beber Sardinha (2007, p. 14), as metáforas “são um modo simples de expressar um rico conteúdo de ideias, [...] criam uma relação de proximidade com o ouvinte, o leitor ou a plateia, pois ao ‘entender’ a metáfora, o leitor passa a ser cúmplice do falante”. Tal cumplicidade permite que o pacto autor-narrador-leitor se legitime, de modo que o leitor navegue pelos espaços discursivos onde o vivido e o imaginado se (con) fundem. Sendo assim, as inferências de viagens são estratégias da linguagem literária em Nove noites (2006) e Memórias do cárcere (2011). A configuração metafórica que permeia os discursos de Bernardo Carvalho e Graciliano Ramos revela ao leitor uma “ambiguidade que circunda a paisagem nova, estranha, que aparece e desaparece como o fenômeno surge e se esvai em sua constituinte fenomenalidade” (OLIVEIRA, 2011, p. 143). Vejamos. No contexto da trama de Nove noites (2006), há duas histórias paralelas com narradores distintos, um homodiegético e outro heterodiegético, que convergem para um mesmo percurso instável e arriscado, no qual as incertezas minam a paisagem circundante: Vistos os dois passos como elementos amalgamados, ou como duplos deste um que é o sujeito-viajante temos configurada a imagem de um sujeito incerto, o qual retira da memória os emblemas do passado e cujos passos na terra nova trilham o caminho do risco em um “horizonte minado”. Viver em um horizonte minado é o risco do viajante, e seu percurso de viagem não nos concede apenas mapas, mas também se oferece à memória como rastro e ruína (OLIVEIRA, 2011, p. 143).

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Memória, identidade e cultura: ensaios Sendo assim, a verdade dos textos é colocada em xeque, tornando-se pertinente

certo

questionamento:

existe

texto

completamente

histórico

ou

completamente ficcional? Qualquer tentativa de resposta via literatura seria insuficiente e arriscada, pois a literatura é em si mesma uma simbiose que contradiz a noção de textos tidos como “puros”. Portanto, nesse jogo real-ficção, a provocação do pensamento subjuga a história propriamente dita, tendo como consequência a necessidade de se discutir o pensamento literário contemporâneo, sem encerrá-lo em respostas insuficientes. Nesse sentido, o narrador não nomeado de Nove noites, ao narrar a história de Buell Quain, já antecipa, numa espécie de prolepse, a chave de leitura da trama, que consistiria o cerne do mistério da morte de Buell Quain, que não será elucidada para o leitor. O diálogo com o leitor parece sincero, mas é cheio de subterfúgios, conforme percebido na “conversa” com o narratário: “As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve (ou lê), e da capacidade de interpretá-las” (CARVALHO, 2006, p. 7). Esse narrador adverte que o leitor deve estar preparado e anuncia um mundo de incertezas: “Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui” (CARVALHO, 2006, p.6). Assim, pela viagem se chega e parte, se recomeça e recompõe o jogo entre ficção e memória: A verdade está perdida entre todas as contradições e disparates. Quando vier à procura do que o passado enterrou, é preciso saber que estará às portas de uma terra em que a memória não pode ser exumada, pois o segredo, sendo o único bem que se leva para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e eu, à espera de um sentido, para acabar morrendo de curiosidade. Virá escorado em fatos que até então terão lhe parecido incontestáveis (CARVALHO, 2006, p. 6).

É sabida a impossibilidade de se recuperar a história de uma vida, portanto, como contar essa vida sem recorrer à metáfora? A incapacidade de especificar o “ser-estar” no mundo necessita de inferências de linguagens diversas (que, se não explicam a vida, pelo menos sugerem possibilidades), tanto em face da insuficiência da língua em transmitir o pensamento, quanto por se saber quão efêmero é o viver. Ao dizer sobre a memória que “o passado enterrou”, o enunciador se autorrevela sujeito falho, incapaz de explicar o “estar” no mundo. Embora seus relatos procurem evidenciar o “passar” pelo mundo, realizando “um importante diálogo com as formas do trágico, ou de outra forma, de empreender uma fértil interlocução [...]” (HELENA,

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Erick da Silva Bernardes

2010, p.63), o sujeito estabelece “uma ponte entre a narrativa na atualidade e a impossibilidade do retorno ao paideuma e à ontologia da tragédia ateniense, na qual o homem era pensado, como singularidade e coletividade, caráter e destino [...]” (HELENA, 2010, p. 63). Enfim, esse narrador / pesquisador que rastreia o percurso do americano Buell Quain embrenha-se num mundo paralelo, no qual o leitor: “Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os mesmo sentidos que o trouxeram até aqui” (CARVALHO, 2006, p. 6). Configura-se então, desta forma, um lugar de risco, desprovido dos caminhos que o leitor comumente busca, a saber, a suposta relação com a história.

2. MEMÓRIA RETIRANTE

É particularmente importante para nossa reflexão entender que a fala dos autóctones denota incerteza, sintoma recorrente em Nove noites (2006), acerca das inseguranças dos seus narradores. Ao prevenir o leitor sobre o instável percurso enunciativo o qual ele deverá encontrar (“é preciso estar preparado”), o narrador já o faz amparado nas próprias experiências frustradas, tanto suas quanto nas de seu objeto de pesquisa, o americano Buell. No charco movediço dos relatos inseguros contados pelos índios, alerta o narratário para que desconfie: Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça, e amanhã quando acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente (CARVALHO, 2006, p. 6).

Sendo assim, nosso posicionamento de análise contraria a visão da figura oprimida e desconfiada do nativo, oposta ao civilizado confiante e firme. A noção romântica sentimentalista, do selvagem subjugado e sofredor, é, de certo modo, desconstruída na trama de Nove noites. Os nativos da história são maliciosos, percebem a clivagem psicológica evidenciada pelas excitações do narrador-repórter do texto de Carvalho. Como são exímios contadores de histórias, mitos e lendas, esse povo ágrafo brinca com a tensão do homem branco, incutindolhe a desconfiança por todo caminho narrado. Afinal, os índios mancham e desmancham a “realidade” do jornalista, sob o discurso oralizado do qual possuem expertise.

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Memória, identidade e cultura: ensaios A diegese é tão instável que o mistério da morte do americano interliga-se aos mitos e lendas do velho Xingu, numa profusão claustrofóbica de inferências e referências, parecendo compor uma colcha de retalhos, algumas vezes, sem sentidos compatíveis, e por outras, verossimilhantes. Sabe-se que “os Kamayurá inventavam histórias e lendas para acirrar o clima de terror. Tinham uma sensibilidade muito aguçada para a maldade psicológica” (CARVALHO, 2006, p. 45). Por isso, tal terror fomentado pelos índios influenciou, tanto o antropólogo-personagem quanto, indiretamente, o jornalista que o pesquisava, compartilhando seus medos diante da solidão da floresta. Esses índios, “de alguma forma devem ter percebido a vulnerabilidade psíquica do antropólogo, tanto que jogavam com a solidão e com seu equilíbrio delicado, dizendo que o pai dele estava chegando [...]” (CARVALHO, 2006, pp. 45-46). Trata-se, portanto, de evidencias acerca da vulnerabilidade psicológica do narrador escritor, devido aos conflitos internos em que ele também estava imerso. Enfim, um sintoma muito comum, não só na trama em questão, mas recorrentemente reconhecível nas obras contemporâneas. Quando comparamos a diegese em Bernardo Carvalho e Graciliano Ramos, percebemos que suas narrativas assumem a mesma perspectiva do viajante solitário. Essa monotongação é percebida na leitura: dois agentes, por um lado (Carvalho e Buell Quain) e, por outro, um autobiografado (Graciliano Ramos). O alagoano, autor-personagem, mergulha nas águas incertas da escritura: “Dávamos um salto para baixo, sem dúvida, mas por muito que sondasse o terreno, não me era possível adivinhar onde iríamos cair. A nossa escolta se compunha de tipos silenciosos, mal-encarados” (RAMOS, 2011. p. 102). Ao ler o texto de Ramos, acompanhamos o narrador-personagem nas entrelinhas de seu (dis) curso, de sorte que, o leitor “mal-encarado” – a quem não se pode encarar – é lançado no pacto autor, narrador e leitor. Vejamos o que esse viajante diz sobre seu ato inseguro: Avancei, um bolo na garganta, o coração a estalar, venci a pequena distância que me separava dos companheiros. Chegamos ao fim da escada, paramos à entrada de um porão, mas durante minutos não compreendi onde me achava. Espaço vago, de limites imprecisos, envolto em sombra leitosa. Lá fora anoitecera; ali duvidaríamos se era dia e noite. Havia nuvens toldadas por espesso nevoeiro: uma escuridão branca (RAMOS, 2011, p. 103).

Sendo branca essa escuridão, pode-se compreender o ato de escrever, em Memórias do cárcere (2011), quando o protagonista mergulha no breu das

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Erick da Silva Bernardes

recordações do submundo do navio, como uma reconfiguração em linguagem literária da sua própria história. No porão do navio Manaus, Ramos foi obrigado a cumprir o seu trajeto até a Ilha Grande, em condições desumanas. No entanto, apesar das agruras sofridas nesse cativeiro flutuante, o afastamento da vida social provoca no escritor alagoano uma reviravolta. Uma nova escala de valores humanos parece ali se delinear. A partir do submundo da embarcação, o narrador põe à deriva seus próprios conceitos, dando ensejo ao início da sua obra memorialística de preso político, mesmo que, ele mesmo relate ter dúvidas do que é ficção e do que é vivenciado. O narrador desconstrói o relato, iniciando uma espécie de metaficção. Nesse sentido, é oportuno introduzir um fragmento das Memórias do subsolo de Dostoievski (2008), ficcionista de profusão psicológica e que vem ao encontro da nossa proposta de elencar a temática da viagem, na dialogia memória e ficção: Admito: o homem é um animal essencialmente construtor, obrigado a se dirigir conscientemente para um fim qualquer; é um engenheiro. Deve, pois, constantemente traçar caminhos novos, não importa em que direções. Mas é talvez por causa disso, precisamente, que tem por vezes desejo de escapar pela tangente, precisamente porque está condenado a traçar um caminho e também porque, por estúpido que seja o homem de ação, ele adivinha por vezes que toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a sua direção que importa, mas o próprio fato de que ela o conduz para um lugar [...] (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 91).

Concordamos com Dostoievski (2008), que a viagem é um discurso, na trilha em que derivam os nossos anseios e paixões, que compõem a história voltada para o biografismo. Contudo, para escrever sobre a vida, via linguagem literária, ou seja, para que o escritor possa construir seu próprio caminho ou estilo, ele precisa desmontar o mundo pronto para construir seu próprio projeto literário: “É indiscutível que o homem gosta muito de construir e traçar caminhos; mas como acontece então que ele ame tão apaixonadamente a destruição e o caos?” (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 92). A resposta a esta questão está na própria necessidade da resposta. É um impasse caótico que “requer a urgência na construção de um empreendimento crítico que dê respostas, ao passo que a resposta não é, conforme certa vertente crítica, passível de ser dada, ao menos sob os antigos critérios totalizantes da crítica tradicional” (OLIVEIRA, 2011, p. 137). Talvez essa atração pelo caminho, que é ao mesmo tempo a vontade de continuar e não de chegar, seja aquele receio de muitos viajantes, “instintivamente medo de atingir o fim” (DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 92).

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Memória, identidade e cultura: ensaios Nesse sentido, o narrador autobiógrafo de Memórias do cárcere acaba por lançar mão de um neologismo, ele cunha a palavra “verbiagem” para referir-se ao (per) curso literário ou o seu (dis) curso metaficcional. Contrariava, portanto, a tendência “realista” da falsa ilusão de retratar a verdade contada por um preso que, paradoxalmente, dizia ser um romancista realista: “Naturalmente essa verbiagem não achava ressonância cá dentro, pois tenho horror aos patriotas, aos hinos e aos toques de corneta” (RAMOS, 2011, p. 98). Assim, ao inventar a providencial palavra “verbiagem” (viagem através da palavra), o escritor alagoano desvela ao leitor o seu caminho narrativo “sob a marca de uma ‘deformação’ corrosiva, a ficcionalidade do que a primeira vista, se apresentaria como biográfico, como testemunhal e confessional” (HELENA, 2010, p. 54). Sendo assim, podemos compreender que essa corrosão põe em evidência a inconsistência de se utilizar o discurso como uma linha histórico-biográfica; linearidade que se torna impossível, porque a vida do ser narrado (confessadamente inviável por Ramos, devido a incapacidade de recordar o que com ele se passou) não se apresentaria mais como um horizonte simples e observável, mas sim como amálgama entre aspectos do vivido sob a reconfiguração do imaginado.

3. O CÂMBIO FLUTUANTE

Se a vida flui como um rio, conforme é corrente no pensamento ocidental, nós a percebemos como viagem e movimento dinâmico, de maneira que excluímos a perspectiva imóvel da paisagem descritiva. Consequentemente, a articulação da linguagem metafórica, acerca do ato de viajar, alinhava, no campo literário, modos estratégicos de composição narrativa, cujo enredo irá concentrar-se na vida (ou vidas) do (s) indivíduo (s) em seus jogos de linguagens para a configuração da trama. Sendo assim, o percurso enunciativo, como um fato contado sobre vida do indivíduo-personagem, vai muito além explicação da escritura linear histórica, como querem alguns leitores e críticos. Porque, quando tomamos os múltiplos sentidos que a palavra viagem pode admitir, inevitavelmente chegamos à compreensão de que tanto Carvalho quanto Ramos sabem bem “manipular” o texto, aproveitando a variedade semântica que a língua oferece. Nesta mesma linha de raciocínio, baseado nos vários sentidos que a viagem 43

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pode nos proporcionar, a professora Lucia Helena discorre sobre quão apropriada é a abordagem de viés psicanalítico para a obra literária. Segundo ela, esse tipo de perspectiva, cujo eixo é o viajante, nos lança nas relações linguísticas capazes de ampliar horizontes de interpretação, quebrando assim a tal precisão histórica; a contramão do suposto embasamento dito real: “Sigmund Freud conceituou, em Os chistes e sua relação com o inconsciente”, excelentes artifícios de linguagem “que atuam no desempenho linguístico de cada um de nós, e que podem estruturar-se sob a forma de jogos de palavra" (HELENA, 2012, p. 40). Nesse sentido, a extensão semântica de “viagem”, tanto nas Memórias do cárcere quanto em Nove Noites, amplia-se a possibilidade de acepção das ideias, não apenas esteticamente, mas no potencial imagético da intertextualização via jogos semióticos. Por isso, acreditamos que é possível estender esta conceituação freudiana, de expansão do poder semântico da metáfora de viajantes, para a linguagem como viagem, produção do conhecimento. Essas estratégias de se jogar com a língua e a linguagem incorporam-se ao conjunto de fatores que irão integrar aquilo que chamamos de economia da língua. Entretanto, ao falarmos de economia, não relacionamos o termo a algum tipo de restrição qualquer que seja, mas sim como troca de valores significativos e relacionados entre si. Entendemos então que, quando se trata de alargamento de sentidos, não será somente a obra literária que viabilizará essa ferramenta de concatenar ideias: ela aponta para “uma propensão pessoal e social que os humanos têm de estabelecerem vínculos entre a linguagem e a economia do inconsciente” (HELENA, 2012, p. 40), isto é, o mundo do texto e o intertexto do mundo, ou a interpretação propriamente dita. Margarida Correia, no artigo “O léxico na economia da língua”, defenderá que o instrumental metafórico é tratado como recurso polissêmico e polirreferencial porque [...] é um mecanismo altamente disponível em qualquer língua e revela-se bastante eficaz, na medida em que permite, nomeadamente, falar de entidades sobre as quais temos um conhecimento mais vago (por serem abstractas, distantes ou não apreensíveis pelos sentidos sem recurso a aparelhagem adequada) em termos de entidades das quais temos um melhor conhecimento (CORREIA, 1995, p. 12).

Em

resumo,

seguindo

o

mesmo

princípio

provocador

de

ideias

e,

principalmente, devido ao sentido de abstração que o termo viagem evoca, pode-se dizer que “a metáfora apresenta-se muito mais que um recurso discursivo ou de

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Memória, identidade e cultura: ensaios estilo: é um mecanismo semântico que contribui decisivamente para a economia da língua” (CORREIA, 1995, p. 12). Ainda acerca do artifício linguístico metafórico, consideramos que esse fator de economia da língua permite o vínculo entre palavra e coisa, tão abstrata que seu significado já é um movimento. Em outras palavras, viagem tem efeito deslizante, mesmo o viajante na prisão, como no caso do narrador autodiegético, Ramos, ou aquele em uma aldeia indígena, conforme o jornalista não nomeado do romance de Carvalho. No caso das memórias ficcionalizadas por Graciliano Ramos, o paralelismo de ideias, do preso que segue um caminho ainda desconhecido serve de estratégia provocadora para o leitor. A trilha a ser seguida se dá no texto biográfico, como queria e ainda quer o consumidor de narrativas “reais”. Neste sentido, o interlocutor, indiretamente, é chamado a participar da história, como se na obra em questão, Memórias do cárcere (2011), ele (o leitor) fizesse parte também do enredo, através da presença de um duplo personagem que discorre sobre o trajeto que o fez chegar até “ali”: Das frases rápidas e obscuras, das idas e vindas percebi vagamente que também ali não havia lugar para nós. Isto me espantava. Como era possível em tão grande estabelecimento não haver cela onde se alojassem os dois indivíduos? Não se tratava disso, foi o que me pareceu: não se procurava uma cela, mas uma determinada espécie de cela. No papel que nos dava ingresso estávamos classificados, etiquetados, é só poderíamos recolher a local previamente estabelecido (RAMOS, 2011, p. 45).

Analisando o trecho acima com um olhar desconfiado, importam-nos sobretudo as brechas deixadas no intercurso do discurso. Quem seriam os dois indivíduos que não têm lugar para se alocarem, senão narrador-personagem e o leitor transformado em personagem? Apesar das diferenças de posicionamentos, eles não seguem aí o mesmo curso, isto é, a história ou a leitura propriamente dita? Do mesmo modo, em Nove noites (2006), o percurso de viagem é também para nós o do texto literário, só que por meio de uma relação “trivial”, em outras palavras, três vias quem se encontram: dois narradores (Manoel Perna e o narrador jornalista não nomeado) e o leitor chamado a participar. Assim, a diegese toma contornos de confissão, um estreitamento de relações entre quem conta e quem lê, como se vê na passagem: “O que agora lhe conto é a combinação do que ele me contou e da imaginação ao longo de nove noites. Foi assim que imaginei o seu

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sonho e o seu pesadelo” (CARVALHO, 2006, p. 41). Em suma, a comunhão entre biografia e ficção acontece e o mútuo conhecimento também (interlocução e paralelismo de ideias por meio da metáfora de viagens). Um e outro, personagem histórico e personagem-narrador, dão início ao gênero híbrido da obra com a marcação inicial do tempo, para não perder de vista o leitor de viés historiográfico, nem a fluência do romance, através da primeira das nove noites do livro homônimo de Bernardo Carvalho, e/ou das memórias de um certo cárcere transformado em obra literária por Graciliano Ramos.

CONCLUSÃO Ao contrário do que acontece nos romances de Graciliano Ramos (excluindo seu livro de memórias Infância, de 1945), nas viagens de Memórias do cárcere a vida (ainda que seja a de um encarceirado) está sempre em movimento, “a sua memória está em constante ziguezague", conforme afirmação de Álvaro Lins (Apud RAMOS, 1978, p. 144). Do mesmo modo, em Nove noites (2006), o estilo de estampar imagens duras, desordenadas, toma movimentos e dinamiza o mundo apreendido sob a angustiante percepção do narrador-personagem, pois ele embasa seu discurso nas lembranças (suas e alheias) para discorrer sobre o mundo obscuro e fragmentado de um passado mal contado. Sendo assim, diante da proposta de comparar gêneros literários “supostamente” diferentes (autobiografia e romance), apontamos caminhos que contribuem para entendê-los sob a ótica da metaficção. Para tanto, na tentativa de aproximar os dois ficcionistas analisados, visamos um caminho sinuoso, no qual tanto Carvalho quanto Ramos se apropriam de retalhos históricos, jornalísticos e literários para poderem compor suas histórias. Enfim, o presente trabalho pretendeu ser uma investigação breve, porém provocativa, de discursos considerados distintos entre si, porém aproximados pelo discurso literário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BLOOM, Harold. A angústia da influência: uma teoria da poesia. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002. CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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Memória, identidade e cultura: ensaios CORREIA, Margarida. O léxico na economia da língua. Ciência da Informação, v. 24, n. 3, 1995, s/p. DOSTOIEVSKI, Fiodor. Memórias do Subsolo. In: ___. Noites brancas e outras histórias. São Paulo: Martin Claret, 2008, pp. 67-98. HELENA, Lucia. Cristais da Memória em J. M. Coetzee: reflexões em torno do estar à margem e do paradoxo em Diário de um ano ruim. Philia & Filia, Porto Alegre, v. 1, n. 2, jul./dez. 2010b, pp. 47-66. ______. Novo nome para um velho Império: ética e literatura no mercado da globalização. In: Soletras, n. 24, jul./dez. 2012, pp. 38-48. LINS, Álvaro. Valores e Misérias das Vidas Secas. In: RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 41. ed. Rio de Janeiro: Record, 1978, pp. 135-167. OLIVEIRA, Paulo César Silva de. Ficção brasileira contemporânea: memória e identidade em questão. In: ___; CARREIRA, Shirley de Souza Gomes (Orgs.). Memória e identidade: ensaios. Rio de Janeiro: Galo Branco, 2011, pp. 137-154. RAMOS, Graciliano. Viagens. In: ___. Memórias do Cárcere. 45 ed. Rio de Janeiro: Record, 2011. SARDINHA, Tony Beber. Metáfora. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.

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MEMÓRIA DE VELHOS, REPRESENTAÇÕES DA HISTÓRIA: UM OLHAR SOBRE LEITE DERRAMADO E a máquina de fazer espanhóis Shirley de Souza Gomes Carreira1 [...] as obras de ficção, ao menos algumas delas, e a memória, seja ela coletiva ou individual, também conferem uma presença ao passado, às vezes ou amiúde mais poderosa do que a que estabelecem os livros de história. (CHARTIER, 2010, p. 21)

INTRODUÇÃO

A memória, compreendida como a capacidade humana de reter fatos e experiências, pode manifestar-se como memória individual, ou seja, a memória que é guardada por um indivíduo e que resume sua vivência e experiências, retendo também os traços da memória do grupo social em que foi socializado, e a memória coletiva, que diz respeito a acontecimentos empíricos, considerados relevantes por grupos dominantes e que são guardados como memória oficial da sociedade. Ao contrário da memória individual, a memória coletiva se expressa em locais de memória que podem ser registros documentais, monumentos, obras literárias e artísticas. As manifestações da memória imbricam-se, portanto, com os fatos históricos, na medida em que estes acabam por se tornar marcos para as associações de ordem memorialística. A história se nutre de indícios, vestígios e pistas que propiciam a compreensão das ações humanas no tempo e no espaço, validando determinadas leituras ou interpretações do passado, porém, “a memória difere da História como campo de produção de conhecimento [...] pode ser histórica, mas não é história por si. É vestígio” (STEPHANOU, BASTOS, 2009, p. 420). Para Henry Rousso, “a memória [...] é uma reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional” (ROUSSO, 2000, p. 94).

1

Doutora em Literatura Comparada Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pós-Doutora em Literaturas de Língua Inglesa e Professora Adjunta de Literatura Inglesa da UNIABEU. Coordenadora do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da Uniabeu. Membro do Grupo CNPq “Poéticas do Contemporâneo”.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Ao erigir uma ponte entre passado e presente, a história fortalece a compreensão

do

tempo

como

um

continuum,

porém

o

que

promove

verdadeiramente essa continuidade é a memória coletiva, por não reter “do passado senão o que ainda está vivo ou é incapaz de viver na consciência do grupo que o mantém” (HALBWACHS, 2006, p. 102). Na memória, há uma coexistência do passado e do presente. Nos grupamentos sociais antigos, cabia aos idosos a função de guardiões da memória. Eles eram responsáveis pela transmissão de fatos e experiências essenciais à sobrevivência do grupo. Com o desenvolvimento humano, foram criadas diferentes formas de registro que alijaram os idosos dessa sua função primeira, dando ênfase à história oficial em detrimento da lembrança. O mundo contemporâneo, que, segundo Huyssen, enfrenta o medo do esquecimento (HUYSSEN, 2000, p. 10), provê suportes para a manutenção da memória, apoiado em um aparato tecnológico com amplitude muito maior do que a memória humana. Para Ecléa Bosi (1997), no entanto, os velhos, ao se distanciarem da capacidade produtiva do trabalho, têm uma nova função social: lembrar e deixar como legado para os mais jovens a sua história. Por ter uma memória social mais contextualizada e definida, derivada de um quadro histórico já finalizado, o idoso seria aquele a quem caberia, ainda, a transmissão de fatos do passado, permeados pelo olhar da testemunha. Este breve introito se faz necessário ao tema deste trabalho: uma análise comparativa de duas obras literárias em que a memória e a história estão ficcionalmente imbricadas. Leite derramado, de Chico Buarque, e a máquina de fazer espanhóis, de Valter Hugo Mãe, são obras que têm em comum protagonistas idosos, a quem o tempo permitiu olhar criticamente o passado que vivenciaram. A literatura tem se revelado um local de memória, um espaço de expressão de memórias individuais e coletivas. Em alguns casos, ela se configura o espaço onde se discute não a memória em si, mas o esquecimento, a necessidade de abdicar das lembranças. Nos romances em questão, a memória individual, posto que de natureza ficcional, entrelaça-se à memória coletiva, recuperando dados que, por sua vez, se reportam às fontes históricas.

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Shirley de Souza Gomes Carreira

1. AS HISTÓRIAS QUE SE CONTAM PELO VIÉS DA MEMÓRIA

A relação dialética entre a memória e o esquecimento será o foco da análise dos dois romances, bem como o modo pelo qual se imbricam e se distanciam na mente do idoso. “Cada sociedade vive de forma diferente o declínio biológico do homem”, afirma Ecléa Bosi (1977, p. 77). O próprio idoso discrimina a si mesmo, às vezes, admitindo que já não tem uma “serventia social”.

Essa percepção agrava-se

quando, por algum motivo, ele se vê excluído do ambiente familiar. O distanciamento traz à baila a rememoração do passado e uma avaliação das experiências vividas. Em sua obra, Bosi sugere que a função social exercida durante a vida ocupa parte significativa da memória dos velhos, ou seja, o trabalho ainda é o grande referencial em suas lembranças. Os dois romances que serão abordados neste texto contrariam em parte a perspectiva de Bosi, visto que são memórias de ações de que nenhum dos dois protagonistas se orgulharia de fato. Assim, a seletividade opera na mente das personagens de modo a solapar aquilo que não deve ser lembrado. Tal como afirma Tzvetan Todorov em Los Abusos de la Memoria (2000, p. 16), “a memória, como tal, é forçosamente uma seleção: alguns aspectos de sucesso serão conservados, outros imediata ou progressivamente marginalizados, e logo esquecidos".

1.1. Quando importa lembrar, quando importa esquecer

A memória de um velho é intermitente. Assim, Leite Derramado, de Chico Buarque, constrói a narrativa de forma análoga, em um jogo que rompe com a lógica e a cronologia; indo e vindo continuamente, em um relato entrecortado dos acontecimentos vividos pelo narrador, Eulálio Montenegro D´Assumpção, um centenário senhor carioca de família aristocrática decadente, que, em seu leito de morte no hospital, relembra fatos de sua vida. Nesse percurso, memória e história estão permanentemente em diálogo. No entanto, a atmosfera de delírio perpassa todo o romance, não delimitando a tênue fronteira entre o real e o imaginário. Por expressar a representação presente de algo

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Memória, identidade e cultura: ensaios ausente, a memória constitui, por vezes, uma cilada. Ao recompor imagens do passado, o ficcionalizamos. O nome do narrador, de origem grega, significa “bom orador”, ou seja, “aquele que tem fluência no falar”. E Eulálio tem necessidade da fala, independentemente de haver ou não interlocutores. Ele deseja narrar o passado, mas sua mente escolhe quais fatos quer relembrar; àqueles que lhe causariam sofrimento, ele prefere dar uma nova roupagem. Mais um doente terminal em um hospital público, Eulálio busca em suas memórias uma forma de individualização, algo que dê sentido à sua trajetória, que está por se findar. Eulálio parece relatar sua história a mais de uma pessoa, cujo estatuto é impreciso. Tanto podem ser interlocutores reais ou imaginários, mas é possível identificar uma suposta enfermeira, a filha Maria Eulália e a própria mãe, a quem, por vezes, se dirige em delírio. As histórias que narra são ora fruto do seu testemunho, ora narrativas alheias, que ele reproduz, ora elaborações de sua imaginação. Embora a ação do romance se passe entre 1907 e 2007, Eulálio busca recuperar sua ancestralidade, como a denunciar que sua autovaloração sempre estivera atrelada à linhagem: Então começo a recapitular as origens mais longínquas da minha família, e em mil quatrocentos e lá vai fumaça há registro de um doutor Eulálio Ximenez d’Assumpção, alquimista e médico particular de dom Manuel I. Venho descendo sem pressa até o limiar do século XX, mas antes de entrar na minha vida propriamente, faço questão de remontar aos meus ancestrais por parte de mãe, com caçadores de índios num ramo paulista, num outro guerreiros escoceses do clã dos McKenzie (BUARQUE, 2009, p. 184-185).

A promessa que faz a uma pretensa ouvinte no início do romance nada mais é do que uma tentativa de prolongar a fantasia de sua existência, simbolizada pela fazenda onde viveu uma infância feliz: “Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das joias e do nome da minha família. Vai dar ordens aos criados” (Buarque, 2009, p. 5).

A fazenda fora uma relíquia do avô, vestígio do Brasil

Colônia: Meu avô foi um figurão do Império, grão-maçom e abolicionista radical, queria mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África, mas não deu certo. Seus próprios escravos, depois de alforriados, escolheram permanecer nas propriedades dele. Possuía cacauais na Bahia, cafezais em São Paulo, fez fortuna, morreu no exílio e está enterrado no cemitério familiar da fazenda na raiz da serra, com a capela abençoada pelo cardeal arcebispo do Rio de Janeiro. Seu ex-escravo mais chegado, o Balbino, fiel como um cão,

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Shirley de Souza Gomes Carreira

ficou sentado para sempre sobre a tumba dele (Buarque, 2009, p. 15-16).

Em meio a divagações em que planeja a venda da fazenda para reaver o casarão de Botafogo que o pai construíra, sobrevém a memória de que nem a fazenda nem o casarão existem mais. Um súbito flash de lucidez em meio ao devaneio. A dialética entre a lembrança e o esquecimento manifesta-se na fala de Eulálio em toda a narrativa. Os fragmentos de memória surgem em decorrência do seu desejo de enfatizar o poder dos Assumpção, relegando à invisibilidade uma história de preconceito e crueldade, traduzida por suas vagas lembranças da violência imposta aos escravos por membros da família. À medida que a narração prossegue, é possível perceber que o narrador tivera na tradição familiar o amparo para a constituição da própria identidade. Ainda que não admita, Eulálio sempre vivera à sombra das identidades alheias e, ao fim da vida, a memória dessa dependência aflora, quando ele se reporta a um tempo em que os nomes de família abriam portas e concediam privilégios sociais, rendendo-se ao fato de que, no presente, eles já não têm valor algum, como no momento em que tenta impedir a invasão do seu apartamento pela polícia: Não demorou muito, sete agentes da polícia invadiram nosso apartamento, vasculharam tudo, sacolejaram Maria Eulália, perguntaram por um tal de Pablo, e eu lhes disse que havia um equívoco, o garoto era um Assumpção de boa cepa. Ainda lhes apontei o retrato do meu avô na moldura dourada, mas um brutamontes me deu um tapa na orelha e me mandou enfiar o avô no cu. (BUARQUE, 2009, p.127).

De certo modo, o dilema de todo ser humano, ou seja, a tensão entre a projeção da própria subjetividade e o sentido de pertença, em Eulálio, resumira-se efetivamente ao pertencimento à linhagem dos Assumpção. Porém, no quarto de hospital onde se encontra, ele é apenas mais um: “Aqui não gozo de privilégios, grito de dor e não me dão meus opiáceos, dormimos todos em camas rangedoras. Seria até cômico, eu aqui, todo cagado nas fraldas, dizer que tive berço” (BUARQUE, 2009, p. 50). A história que desordenadamente tenta recordar é um relato de decadência, fomentado pelos desvios de comportamento familiar que marcaram os Assumpção, desde os parentes mais distantes, que chegaram ao Brasil com a Corte de Portugal em 1808; passando por seu avô, que foi comerciante de escravos à época de D.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Pedro II, até o pai, senador da República, traficante de escravos e comerciante ilegal de armas, atividade que legara ao filho. A riqueza familiar fora construída por meio do tráfico escravagista, embora o narrador afirme que “o dinheiro dos Assumpção sempre foi limpo” (BUARQUE, 2009, p. 78). O início da derrocada da família começa na crise de 1929 e tem o seu ciclo de ruína encerrado com o golpe militar de 1964, quando o neto de Eulálio, “comunista da linha chinesa”, é morto nos porões da ditadura. Como golpe fatal, seu tataraneto é preso como traficante de drogas. No auge de sua miséria, Eulálio recupera memórias de uma existência marcada pelo preconceito, pelo racismo e pela aversão às classes populares. Recorda-se da figura da mãe, que só conversava em francês à mesa para que os subalternos não tomassem ciência do assunto; que, ao conhecer sua futura esposa, Matilde, perguntara-lhe se ela tinha “cheiro de corpo”. Recorda-se, principalmente, do seu amor por Matilde, e do inconformismo com que lidara com a sua perda. Ao longo do romance, Eulálio insinua que ela o abandonara, partindo com seu amigo médico, Dubosc. Em seu delírio, cria situações de confronto com o médico pelo amor de Matilde e aspira ao seu retorno, abatida pelo arrependimento. Somente ao fim do romance, com a proximidade da morte, Eulálio cogita que sua mulher está morta e que seu desaparecimento fora em virtude de ter se afastado para se tratar, devido à tuberculose. Ao narrar à enfermeira os episódios das mortes do pai e do neto, por exemplo, ele as confunde, reproduzindo-as em espelho. A morte do pai lhe parece plausível, haja vista a incapacidade deste de adequar-se à modernidade: E ainda que me escutasse, talvez seguisse igualmente para a emboscada. Porque talvez tivesse a intuição de que em breve os tempos seriam outros, e meu pai jamais se prestaria a permanecer num tempo que não era o seu. Sua fortuna no estrangeiro estava para evaporar, e não consigo imaginá-lo sem suas viagens anuais à Europa, seu camarote, seus hotéis, restaurantes e mulheres de primeira classe. Na política, a civilidade daria lugar ao cabotinismo e ao espalhafato, e tampouco vejo meu pai pedindo votos em praça pública, subindo em palanques, apertando a mão de populares, sorrindo para fotografias com a roupa suja de gordura (BUARQUE, 2009, p. 156).

As lembranças do pai são sempre mascaradas pela negação das suas atividades ilícitas. Talvez uma forma de apegar-se a uma última réstia de memória de riqueza e dignidade.

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O fim do neto, torturado e morto na época da ditadura, marca mais um passo na dissolução da família: [...] o Eulálio mudou de nome, dizem que era um destemido, partiu determinado a enfrentar as Forças Armadas. Maria Eulália nunca mais dormiu direito, saía toda manhã atrás de más notícias e só voltava tarde da noite com boatos pavorosos. Numa alta madrugada ouvi barulheira à nossa porta, e eu já ia chamar a polícia, crente que era o Xerxes com saudade de bater na minha filha. Mas era a polícia, vinte agentes arrombaram o apartamento, bagunçaram tudo, sacolejaram Maria Eulália e me falaram grosserias. E a coitada, que já vivia em sobressalto, se petrificou na minha frente no dia em que o telefone tocou para mim, ninguém nunca me telefonava. Um tal de coronel Althier perguntou se eu era eu mesmo, o Assumpção, me tratava com certa camaradagem. Coronel Adieu?, perguntei, a ligação estava péssima, cheia de interferências. Althier!, coronel Althier!, disse o homem, ele queria confirmar meu parentesco com um indivíduo de nome Eulálio d'Assumpção Palumba. É meu neto, falei, é o meu único neto, e o coronel me deu os parabéns, tinha boas-novas para mim. Boas-novas, repeti, e Maria Eulália pegou a tremer de corpo inteiro, ressuscitava nela a esperança de ter o seu Eulálio de volta. Entretanto o coronel me cumprimentava pelo filho do Eulálio, recém-nascido no hospital do Exército, cinquenta centímetros, três quilos e meio. O bebé deveria ser confiado a seus parentes mais próximos, uma vez que a mãe, conhecida apenas por nomes fictícios, lamentavelmente falecera no trabalho de parto.

Finalmente, a morte do bisneto, marca o último degrau na decadência familiar: Até que uma noite atendi ao primeiro toque do telefone, eu não desistia de esperar pelo coronel Althier. Mas um delegado de polícia me perguntou se era da residência de Eulálio d'Assumpção Palumba Júnior. Corri ao motel Tenderly, onde meu bisneto jazia nu de borco num carpete com cheiro nauseante. Segundo o delegado, os funcionários do motel suspeitaram de um sequestro, quando viram entrar uma quarentona jeitosa num carro de luxo, tendo no banco do carona um jovem de aparência humilde. Hesitavam em chamar a polícia, quando ouviram seis estampidos, e não houve tempo de anotar a placa do carro que partiu em disparada. Precipitaram-se a socorrer a senhora, e qual não foi sua surpresa ao dar com o corpo do suposto delinquente. Mas não precisava o delegado agadanhar meu braço, porque eu não ia mexer no menino, só queria limpar com o lenço o sangue dos seus lábios carnudos. Ao pé da cama estavam suas roupas, que a perícia já tinha revistado à procura de tóxicos, recolhendo uns trocados, chaves, agenda telefônica e carteira de identidade. Maria Eulália preferiu não vir comigo ao cemitério São João Batista. Os coveiros estavam de má vontade, e quando o caixão bateu com peso no fundo da tumba, o baque abafado me soou como o fim da linha dos Assumpção. Para mim já estava bom, bastava.(BUARQUE,2009, p.152).

A imagem do tataraneto traficante de drogas tem o efeito de uma myse en abyme, pois espelha a do traficante de escravos, seu avô. Ainda assim, Eulálio 54

Memória, identidade e cultura: ensaios busca disfarçar as evidências: “Sou muito grato ao garotão [tataraneto], mas para ganhar milhões sem instrução alguma, deve ser artista de cinema ou coisa pior, pode escrever aí” (BUARQUE, 2009, p. 94). Simbolicamente, Eulálio associa a perda de status à pretensa honraria prestada a seu pai, ao darem a um logradouro público o seu nome: Se bem que durante dois anos ele foi uma praça arborizada no centro da cidade, depois os liberais tomaram o poder e trocaram seu nome pelo de um caudilho gaúcho. [...] Tempos mais tarde um prefeito esclarecido reabilitou meu pai, dando seu nome a um túnel. Mas vieram os militares e destituíram papai pela segunda vez, rebatizaram o túnel com o nome de um tenente que perdeu a perna. Enfim, com o advento da democracia, um vereador ecologista não sei por que cargas-d'água conferiu a meu pai aquela rua sem saída. (BUARQUE, 2009, p. 77-78).

Se por um lado o romance torna clara a necessidade de Eulálio de contabilizar evidências de uma vida bem-sucedida, ainda que por meio da negação do real, por outro, em meio às confusas lembranças, que o levam a contar alguma parte de sua história mais de uma vez e sempre com acréscimo de dados, há como identificar traços empíricos, como o seu primeiro encontro com a esposa, em uma igreja. Eu já a tinha visto de relance umas vezes, na saída da missa das onze, ali mesmo na igreja da Candelária. Na verdade nunca a pude observar direito, porque a menina não parava quieta, falava, rodava e se perdia entre as amigas, balançando os negros cabelos cacheados (...). Mas agora, no momento em que o órgão dava a introdução para o ofertório, bati sem querer os olhos nela, desviei, voltei a mirá-lo e não a pude mais largar. (BUARQUE, 2009, p. 20-21). Não sei se já lhe contei como conheci Matilde na missa de sétimo dia de meu pai, quando ela falou Eulálio, de tal jeito, que nem mesmo as atrizes sensuais conseguiram reproduzir na minha cama. (BUARQUE, 2009, p. 96).

A decadência da família é simbolicamente associada à imagem do leite derramado, ao gesto de Matilde despejando o leite do seu peito na pia do banheiro: [...] nunca lhe contei esse episódio? Então não o leve em conta, nem tudo o que digo se escreve, você sabe que sou dado a devaneios. De bom grado tornarei a lhe falar somente dos bons momentos que vivi com Matilde, e por favor me corrija se eu me equivocar aqui ou ali. Na velhice a gente dá para repetir casos antigos, porém jamais com a mesma precisão, porque cada lembrança já é um arremedo de lembrança anterior. (BUARQUE, 2009, p.136).

Muito embora às vezes diga que consegue lembrar-se de tudo, como na passagem a seguir, a memória de Eulálio é fragmentada: 55

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A memória é deveras um pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode é alguém de fora se intrometer, como a empregada que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como a filha que pretende dispor minha memória na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto. (BUARQUE, 2009, p.41).

Como afirma Ecléa Bosi, em O tempo vivo da memória: “[...] a apreensão plena do tempo passado é impossível, como o é a apreensão de toda a alteridade” (BOSI, 2003, p.53). Eulálio, no fundo, tem dificuldade para recordar sua própria história. Se repete parte dela, se necessita retomá-la para acrescentar dados, é no esforço de apreendê-la completamente: Se com a idade a gente dá para repetir casos antigos, palavra por palavra, não é por cansaço da alma, é por esmero. É para si próprio que um velho repete sempre a mesma história, como se assim tirasse cópias dela, para a hipótese de a história se extraviar (BUARQUE, 2009, p.96).

Por outro lado, ele tem um lampejo de consciência de que há fatos que gostaria de esquecer para sempre: “Com a idade a gente dá para repetir velhas lembranças, e as que menos gostamos de revolver são as que persistem na mente com maior nitidez” (BUARQUE, 2009, p.163). Do mesmo modo, demonstra ter clareza da desordem de suas lembranças: “Não é culpa minha se os acontecimentos às vezes me vêm à memória fora da ordem em que se produziram” (BUARQUE, 2009, p.188). A forma inconsciente com que o narrador manipula o passado pode ser explicada pela reflexão de Bern sobre a função da lembrança: A função da lembrança é conservar o passado do indivíduo na forma que é mais apropriada a ele. O material indiferente é descartado, o desagradável, alterado, o pouco claro ou confuso simplifica-se por uma delimitação nítida, o trivial é elevado à hierarquia do insólito; e no fim formou-se um quadro total, novo, sem o menor desejo consciente de falsificá-lo. (apud BOSI, 1994, p.253).

À medida que rememora o passado, Eulálio reflete sobre a fragilidade da memória, conferindo ao texto um caráter metamemorialístico. No entanto, o que perpassa o texto é a necessidade de narrar, de registrar a própria saga, de perpetuar a existência por meio da narrativa: “Muita vez de fato já invoquei a morte, mas no momento mesmo em que a vejo de perto, confio em que ela mantenha

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Memória, identidade e cultura: ensaios suspensa a sua foice, enquanto eu não der por encerrado o relato da minha existência” (BUARQUE, 2009, p.184). Seu último relato é também narrado em espelho, pois ao receber a visita da filha e do tataraneto, sobrevém-lhe à memória a visita que fizera ao tetravô em seu leito de morte, ainda menino e acompanhado da mãe. O fim do relato, com a enfermeira cobrindo com o lençol o rosto do velho tetravô, coincide com a morte do narrador.

1.2. Lembranças ultramarinas

Igualmente idoso, o narrador de a máquina de fazer espanhóis vivencia experiência análoga à de Eulálio. Aos 84 anos, após a morte da esposa, António Silva, é enviado pelos filhos a um asilo para idosos, onde tem a oportunidade de rememorar a sua vida, suas escolhas e infortúnios. No Lar da Feliz Idade, para onde é levado “com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias”; as fotografias lhe são tiradas, para que não cultive a dor da perda e são substituídas por uma imagem de Nossa Senhora de Fátima, para que aprenda a rezar e salve sua alma. Doravante, aquele é o lugar onde há de ficar “como uma gelatina de carne a amargar como pra lá dos prazos”, deixando que os filhos sigam suas vidas. Estar ali metido, naqueles primeiros tempos, era literalmente como se me quisessem matar e não tivessem coragem para optar por um método mais rápido. Um método mais rápido que seria seguramente uma maior honestidade, pensava eu. Punham-me aqui e deixavam que me deixavam que me finasse segundo a segundo longe dos seus olhos. (...) Morrer seria só a justiça de não me tornar uma imagem pálida do que fora. Seria como corresponder a um padrão de vida emocional que não era justo que perdesse. (MÃE, 2010, p. 36).

Para António, a ida para o asilo equivale à perda da identidade, da capacidade de decidir o próprio destino. A imagem que passa a fazer de si a partir desse momento é a de um indivíduo em declínio, fadado a viver à sombra do passado. No asilo, relaciona-se com outros cinco idosos, que, como ele, são "todos a mesma coisa, um conjunto de abandonados a descontar pó ao invés de areia na ampulheta do tempo" (MÃE, 2010, p. 28).

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À medida que os dias passam, ele percebe que, para que outros sejam admitidos no Lar, alguém tem de morrer. A consciência de que aquele é um local onde está à espera da morte suscita reflexões sobre coisas que sua mente havia apagado com o tempo. Silva concentra as suas rememorações a partir de 1950, mais especificamente no período em que Salazar esteve no poder, quando os mitos ideológicos fundadores do Estado Novo foram implantados e divulgados como verdades essenciais para os portugueses. Segundo Meneses (2011), em sua biografia de Salazar, Apesar de toda a ênfase na legalidade e respeito pelos direitos do indivíduo que alegadamente distinguiam o Estado Novo dos regimes totalitários da época, a verdade é que o silenciamento de ideias dissidentes assumiu um papel vital no regime que Salazar estabeleceu. Não é claro se ele esperava genuinamente que a oposição fosse desaparecendo com o tempo, mas as vozes dissonantes dificultavam-lhe a tarefa de falar em nome da nação, pelo que concebeu medidas para as silenciar. A repressão do Estado Novo não era uma força todo-poderosa capaz de se manifestar em todas as povoações e lares, ou de estabelecer categorias de homens e mulheres julgados irrecuperáveis; não era necessário recorrer a violência sistemática num país onde a maioria da população não se incomodava com a política e não acreditava vir algum dia a receber algo de bom dos parlamentos e Governos em Lisboa. Assim, Salazar controlava, ou melhor ainda, mandava outros controlarem, um sistema de repressão que era tão seletivo e repressivo como tinha de ser para preservar a paz sem causar escândalo - um equilíbrio subtil nem sempre mantido.(MENESES, 2011, p.183).

O narrador, que é apresentado ao leitor nas primeiras páginas, é paulatinamente desconstruído, à medida que António, que se julgava um homem bom,

vê-se

desafiado

pelas

próprias lembranças,

por um

passado

que

cuidadosamente procurara esquecer por estar ligado à repressão do regime salazarista, ao qual cedera por conivência e conveniência, desculpando-se sempre com a ideia de que o fizera para proteger a família: [...] não creio que algum dia tenha sido suficientemente amigo de alguém. fui sempre um homem de família, para a família, e o meu raio de acção esgotava-se essencialmente na minha mulher, nos meus filhos, e nos meus pais enquanto foram vivos. mas os que não tinham o meu sangue estariam sempre desclassificados no concurso tão rigoroso dos meus sentimentos [...], eu e a laura fizemos a vida através de um padrão discreto de rebeldia. era uma rebeldia nenhuma, mas antes uma mágoa que não nos fazia agir contra nada nem contra ninguém, e só nos amargava as idéias os intentos dos outros, isto passava sobretudo pelo regime, claro, ao qual não desobedecíamos mas do qual não gostávamos particularmente. era uma prudência, como afirmávamos nas poucas conversas secretas em que mencionávamos entre os dois o assunto. e não foi o rapaz

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Memória, identidade e cultura: ensaios estudante, comunista e revolucionário, que ajudei um dia na barbearia, capaz de mudar algo na minha maneira de me preocupar com os outros. (MÃE, 2010, p. 198-199).

António Silva tenta, de certo modo, eximir-se de culpa, demonstrando que, mesmo após muitos anos de instalação do Estado Novo, o povo português se mostrava indeciso entre aceitar o regime como um sistema de repressão e manipulações ou acreditar que realmente trazia algum benefício à população: [...] mas em mil novecentos e cinquenta as coisas não estavam ainda tão definidas, é isso que tento dizer. o certo e o errado eram difíceis de discernir. pois o benfica ainda não se fizera glorioso, nem salazar parecia ainda o estupor que o povo pudesse reconhecer cabalmente. não sabíamos nada (MÃE, 2010, p 82).

À luz da própria covardia, António Silva revisita o passado, o espectro da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) a impor silêncio e conscientiza-se de sua submissão à política de Salazar, que evocava “Deus, Pátria, Família” como ideologia, mas, na prática, operava por meio da repressão a qualquer oposição política. [...] sabe, senhor silva, é preciso que se suje o nome de salazar para todo o sempre, é preciso que o futuro lhe reserve sempre a merda para seu significado, para que os povos se recordem como foi que um dia um homem só quis ser dono das liberdades humanas, para que nunca mais volte a acontecer que alguém se suponha pai de tanta gente. este tem de ser um nome de vergonha. o nome de um porco, para que ninguém, para a esquerda ou para a direita, volte a inventar a censura e persiga os homens que têm por natureza o direito de serem livres. e eu respondia-lhe, cala- te, miúdo, ainda me arranjas umas férias nos calabouços. fica calado. […] mas adoraria sentir coragem para me pôr ali aos berros também, mesmo exagerando, mesmo que dizendo parvoíces só pelo prazer de as poder dizer, de poder ajuizar por mim o que quisesse ajuizar. na minha barbearia. ao menos na minha barbearia. ao menos na minha casa. na minha casa e com a minha boca livre. é um porco. (MÃE, 2010, p. 160).

Segundo Fernando Rosas (2001), [...] o salazarismo neste período da sua história, assente numa certa ideia mítica de nação e de interesse nacional, tentou, também ele, ‘resgatar as almas’ dos portugueses, integrá-los, sob a orientação unívoca de organismos estatais de orientação ideológica, ‘no pensamento moral que dirige a Nação’, ‘educar politicamente o povo português’ num contexto de rigorosa unicidade ideológica e política definida e aplicada pelos aparelhos de propaganda e inculcação do regime e de acordo com o ideário da revolução nacional. Neste contexto, sustenta-se a ideia de que o Estado Novo, à semelhança de outros regimes fascistas ou fascizantes da Europa, alimentou e procurou executar, a partir de órgãos do Estado especialmente

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criados para o efeito, um projecto totalizante de reeducação dos ‘espíritos’, de criação de um novo tipo de portuguesas e de portugueses regenerados pelo ideário genuinamente nacional de que o regime se considerava portador (ROSAS, 2001, p. 1032).

Nos cinquenta anos do regime salazarista (1926-1974), poucas emoções eram permitidas: a rivalidade entre os times de futebol, a aclamação patriótica e o fervor religioso. A visão do português como um “bom homem”, ordeiro e pacífico, fazia parte da ideologia salazarista, coadunando-se à submissão absoluta ao regime. No romance, o discurso insidioso de Salazar é ironizado: [...] parecíamos um grande cenário de legos, pobrezinhos mas tão lavadinhos por dentro e por fora, a obedecer. divirtam-se, gentes da minha terra, não é desgraça ser pobre, punha-se a amália a dizer, e que numa casa portuguesa há pão e vinho e um conforto pobrezinho e fartura de carinho. (MÃE, 2010, p. 156).

Conforme aponta Rosemary Afonso (2010, p. 60), o asilo é “uma metonímia de um país em extinção”, uma vez que os velhos que lá vivem pertencem à última geração que vivenciou diretamente a ditadura. Ao confrontar-se com eventos que passara a vida a tentar esquecer, António Silva tem a oportunidade de enfrentar a sua própria natureza e covardia: [...] naquela altura eu tinha de gritar. precisava de dizer que me arrependia [...] arrependia-me do fascismo e de ter sido cordeiro tão perto da consciência, sabendo tão bem o que era o melhor valor, nas sempre ignorando, preferindo a segurança das hipocrisias instaladas, eu precisava de gritar dizendo que queria morrer português, queria ser português, com a menoridade que isso tivesse de implicar, porque fui um filho-da-puta, e merecia ser punido, fiz do meu país um lugar de gente desconfiada, nenhum povo unido, eu precisava que me deixassem morrer inteiro, um monte de peles e carnes derrubadas, mas inteiro, com a vergonha de ter sido conivente e o orgulho de ter percebido tudo. porque eu precisava de morrer consciente, recordando cada minuto do tempo com a minha laura, recordando como se a vida se fizera em torno dela e da família, como me terá parecido que assim devia ser um homem, como assim me havia bastado a cidadania. assente sobretudo no amor. não me tirem a consciência do amor e da sua perda. (MÃE, 2010, p. 285286).

O tempo de onde a voz de Silva se enuncia é o mundo contemporâneo, em que o desencanto toma conta do país a ponto de fazer com que os portugueses desejem mudar de nacionalidade. Assim como Eulálio, António precisara relegar parte do passado ao esquecimento para que sobrasse algo digno de ser lembrado.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1994, p. 426).

Para Raposo & Rodrigues, [...] discutir a memória com base em alguns fatos históricos implica observar a trajetória de um país que já tivera planos de ser um grandioso império, que conquistara e colonizara terras além-mar, mas que não conseguira manter toda a sua imponência e, por isso, voltou-se aos caminhos interiores da terra portuguesa. Desse modo, quando o Estado Novo surgiu com a sua imposição cultural e o projeto de construir o homem estadonovista, foi preciso direcionar o discurso ao que era mais caro aos portugueses: o nacionalismo. Entretanto, logo veio aos portugueses a percepção de que a condução nacionalista era também fascista e, ao fim de quarenta e um anos, a Revolução dos Cravos trouxe, dois anos após o movimento militar, a democracia de volta aos portugueses. Nesse tempo, era preciso então pensar novamente a nação: como reconstruí-la? Quais os novos (ou velhos?) caminhos a seguir? Lançado em Portugal trinta e seis anos após o 25 de abril de 1974, a máquina de fazer espanhóis retoma questionamentos acerca da situação portuguesa, contudo, de modo mais veemente, apresenta uma memória agonizante, pessimista, como se já fosse tarde demais para as respostas esperadas.(RAPOSO & RODRIGUES, 2014, p.103).

Valter Hugo Mãe expressa não apenas a desesperança experimentada por seu protagonista, mas também a do povo português, ao referir-se ao estado de espírito de António Silva: “[...] o que sente, senhor silva. e eu repeti, angústia, sinto angústia” (MÃE, 2010,p.250); uma angústia derivada da sensação de perda do mito de potência, criado com a expansão ultramarina, que acompanhara por muito tempo a história de Portugal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O teor memorialístico dos dois romances examinados está intrinsecamente relacionado às figurações que os protagonistas criam de si mesmos; identidades forjadas sobre as próprias fraquezas. Se o narrador de Leite derramado agarrava-se à própria linhagem para conferir a si mesmo alguma dignidade, António Silva buscava no núcleo familiar a justificativa para a própria fraqueza de caráter e omissão.

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Ao contrário do que afirma Bosi sobre o papel da memória dos idosos, o legado dos velhos nos dois romances examinados constitui um exemplo negativo, uma lição sobre o que não deve ser reproduzido. O esquecimento se revela como um recurso utilizado pelos protagonistas para criar imagens mais apropriadas de si mesmos ao longo da vida; imagens com as quais são obrigados a se confrontar na velhice. A narração em ambos os romances dialoga com episódios e períodos históricos, imbricando-se neles, trazendo-os para o universo ficcional, mas, ao mesmo tempo, forçando o leitor a uma leitura crítica. É no trânsito entre o passado e o presente, entre a verdade estrita e aquela fabulada na imaginação que se escreve e inscreve a História humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AFONSO, Rosemary G. a máquina de fazer espanhóis, de Walter Hugo Mãe: Qualquer discurso pode ser autoritário. Revista Eletrônica do Instituto de Humanidades, v. 9, n. 33, abr./jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 15 abr. 2012 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CARREIRA, Shirley de S. G. O mundo em minúsculas: uma leitura de a máquina de fazer espanhóis. Letras, Santa Maria, v. 22, n. 45, p. 265-275, jul./dez. 2012. CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel, 1990. _____. A história ou a leitura do tempo. Tradução de Cristina Antunes. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004. HUYSSEN, Andreas. 2000. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. MÃE, Valter Hugo. a máquina de fazer espanhóis. São Paulo: Cosac Nayfy, 2010. MENESES, Filipe Ribeiro. Salazar: biografia definitiva. Tradução de Teresa Casal. São Paulo: Leya, 2011. POLLACK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n° 3, 1989, p. 3-15.

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Memória, identidade e cultura: ensaios ROSA, Fernando. O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado Novo e a questão do totalitarismo. Análise Social, vol. XXXV, no. 157, 2001, pp.1031-1054. ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos e abusos da história oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 93-102. STEPHANOU, Maria; BASTOS; Maria Helena Câmara. História, Memória e História da Educação. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS; Maria Helena Camara (Orgs.). Histórias e Memórias da Educação no Brasil. Vol. III – Século XX. 3. Ed. Petrópolis: Vozes, 2009. p. 416-429. TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000.

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DISSOLUÇÃO DA MEMÓRIA E LIBERDADE: A BUSCA PELA REINVENÇÃO IDENTITÁRIA EM “AGUAPÉS”, DE JHUMPA LAHIRI Célio Saraiva1 A memória é uma espécie de esquecimento recuperado pela linguagem Milton Hatoum

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, numerosas obras literárias escritas por autores de origem indiana têm trazido à baila questões relacionadas à migração e os traumas a ela associados, dentre eles, autores aclamados como Anita Desai, Bharati Mukherjee, Arundhati Roy, Amitav Ghosh e Salman Rushdie, este último considerado o autor que trouxe popularidade à literatura indiana em língua inglesa. Nilanjana Sudeshna Lahiri, conhecida por meio de seu Daak naam2 , Jhumpa Lahiri, é uma escritora indiana, de origem inglesa que, atualmente, vive na Itália. Seus romances giram em torno da saga de indianos que saem de sua terra natal e vão para a América em busca de uma vida melhor e vivenciam conflitos identitários e de adaptação ao Ocidente. Ao tratar do processo de aculturação de indianos no continente americano, Jhumpa Lahiri maneja bem, em sua criação ficcional, a oscilação entre valores culturais. As personagens das histórias de Jhumpa experimentam um constante conflito entre sua herança cultural e os valores da nova cultura em que se inserem. Sua obra é composta por dois livros de contos, dois romances e uma série de ensaios acadêmicos. Seu primeiro livro, a coletânea de contos intitulada Interpreter of Maladies, de 1999, venceu o prêmio PEN/Hemingway Award, como a melhor ficção do ano, bem como o conceituado prêmio Pulitzer. O segundo livro, The namesake, lançado em 2003, marcou a estreia da autora em romances. O terceiro foi um retorno às coletâneas de contos: Unnacostumed Earth, publicado em 2008. O mais recente, que será objeto de análise destes texto, foi Lowlands (Aguapés, na tradução para o português), de 2013, indicado ao Man Booker Prize e ao National Book Award for Fiction e vencedor do prêmio DSC Prize for South Asian Literature. 1

Graduado em Letras- Português- Inglês pela UNIABEU. Membro do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da UNIABEU. 2 Espécie de apelido dado a indivíduos bengaleses quando nascem.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Nascida Jhumpa Lahiri, assim como Salman Rushdie, afirma ser cosmopolita, ou seja, não pertencer a lugar algum. Segundo Gustavo Cohen: A geração de Lahiri é conhecida, graças a críticos literários, como os “netos da meia- noite”, homenagem alusiva ao livro Midnight’s Children de Salman Rushdie, romance indiano em forma de parábola sombria da história da Índia pós-independência que rendeu a seu autor o distinto Booker Prize em 1981 e novamente em 1993, em uma versão especial do mesmo prêmio, atribuindo ao livro status de melhor romance britânico do último quarto de século. (COHEN, 2010, p.83).

Desde seu primeiro livro até Aguapés, Lahiri segue motivada pela temática da identidade e dos meios de manutenção da memória étnica.

1. LIBERDADE E (RE) INVENÇÃO ATRAVÉS DA MEMÓRIA

O trânsito por novos lugares tornou-se matéria de criação literária, de modo que escritores imigrantes, através da literatura, registram o difícil processo de adaptação a outras culturas, as complexas relações com o outro, principalmente quando se trata do conflito entre oriente e ocidente. Esse trânsito entre culturas afeta diretamente a operação da memória. A memória, segundo Le Goff é: La mémoire telle qu'elle apparaît dans les sciences humaines essentiellement en historie et en anthropologie - et s'occupe donc surtout des mémoires collectives plutôt que des mémoires individuelles, it importe de dessiner sommairement la nébuleuse mémoire dans le champ scientifique global. Mémoire, propriété de conservation de certaines informations, renvoie d'abord à un ensemble de fonctions psyches grâce auxquelles l'homme peut actualiser des impressions ou des informations passées qu'il se représente comme passées.3 (LE GOFF, 1988, p.105).

O presente trabalho visa a apresentar de que forma a memória étnica pode ser diluída no novo meio social e cultural e até que ponto o processo diaspórico 4 intervém nas escolhas dos indivíduos. Ao analisar a personagem Gauri do romance Aguapés, de Jhumpa Lahiri, buscaremos evidenciar como a identidade tem relação direta com a memória e como 3

A memória está presente na área de humanas – principalmente história e antropologia - e, portanto, atenta-se especialmente às memórias coletivas, em vez de memórias individuais, que são de suma importância no campo científico global. A memória é certa propriedade de retenção de informações e refere-se principalmente a um conjunto de funções psíquicas que, através das quais, o homem pode atualizar impressões ou informações funções passadas como elas são passadas. (Tradução nossa) 4 Diáspora é o deslocamento de um local ao outro por razões específicas.

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isto afeta o comportamento do indivíduo – na experimentação de sentimentos complexos em relação ao passado e ao presente. Pollak estabelece o link entre a construção da identidade e a memória coletiva: Podemos portando dizer que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (POLLAK, 1989, p.5).

2. A REINVENÇÃO DA IDENTIDADE COMO PROCESSO DE DISSOLUÇÃO DA MEMÓRIA

O romance Aguapés, de Jhumpa Lahiri, compreende a saga de dois irmãos que cresceram juntos e optaram por caminhos opostos. Um, Subhash, de temperamento sereno e cordato, opta pela vida acadêmica e vai viver na costa norte-americana e o outro, Udayan, irmão impulsivo, politizado e radical, opta por juntar-se ao movimento naxalita a fim de desconstruir os paradigmas da sociedade que influenciam para uma monstruosa desigualdade social. A história gira em torno das escolhas feitas por eles e a partir das consequências dessas escolhas a narração se desenvolve. Uma dessas consequências é a morte de Udayan, que deixa sua esposa grávida. Conforme os costumes locais, Gauri, a esposa, é acolhida por Subhash, quando este fica sabendo da morte do irmão. Gauri é uma mulher independente que compartilhava os ideais do falecido esposo. No entanto, o fato de presenciar o assassinato do marido resulta em um processo de forte degradação emocional. A chegada de Gauri aos Estados Unidos com Subhash constitui o impulso para a reinvenção de sua identidade e a dissolução dos elos com a terra natal. A princípio, Gauri buscava compreender o modus vivendi americano: Gauri, à tarde, depois de parar a chuva, vestiu o casaco de frio por cima do sári, calçou as botas, pôs gorro e luvas. Percorreu a calçada molhada, subindo a ladeira, virando na altura do centro acadêmico. Viu o movimento dos estudantes entrando e saindo, homens de jeans e jaqueta, mulheres de calças escuras justas e casacos curtos de lã, fumando, conversando. (...) No outro lado do campus, ela entrou numa pequena mercearia ao lado da agência de correio. Entre os pacotes de manteiga e as caixas de ovos, encontrou algo chamado cream cheese, que vinha embalado num papel prateado,

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Memória, identidade e cultura: ensaios parecendo um sabonete. Comprou, achando que talvez fosse chocolate, dando a nota de cinco dólares que Subhash deixava todos os dias, enchendo com o troco o bolso fundo do casaco. Dentro da embalagem estava algo denso, frio, levemente ácido. Quebrou em pedacinhos e comeu puro, de pé no estacionamento da mercearia. Ignorando que se comia espalhado num biscoito ou numa fatia de pão, saboreando a textura e o gosto inesperado, lambendo o papel (LAHIRI, 2014, pp.171-172).

Estrangeira, Gauri experimenta os conflitos próprios do clash cultural, mas a necessidade de esquecimento funciona como um gatilho, a apressar o seu processo de aculturação. O primeiro sinal da ruptura se manifesta no vestuário: Alguns dias depois, Subhash chegou ao apartamento e não a viu sentada na sala de estar, como geralmente estava naquele horário, lendo um livro no sofá, fazendo anotações, tomando uma xícara de chá. (...) Alguns minutos depois, ele ouviu um barulho da chave na porta. O cabelo dela agora terminava de repente na altura do queixo, alterando drasticamente seu rosto. Estava de calça comprida e um suéter cinzento. As roupas cobriam o corpo, mas acentuavam o contorno dos seios, o volume firme do ventre. O feitio das coxas. Ele afastou os olhos, embora já tivesse se imprimido na retina a visão dos seios expostos (LAHIRI, 2014, pp.184-185).

Bauman (2003, p.10) afirma que carecer de uma comunidade é sinônimo de não ter proteção, porém, no caso específico de Gauri, há um trânsito identitário que corresponde à passagem de uma comunidade à outra. A experimentação do sentimento de liberdade começa a dissolver a memória restante que tinha de Udayan e afeta o seu relacionamento com Subhash. Segundo Giddens (1990, p.21), “os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram, de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social”. Em Gauri os sintomas da desordem se traduzem na busca de si mesma: Ela notou um homem que a olhava, virando levemente a cabeça quando ela passava. (...) No começo, ele lhe pareceu pouco atraente, fisicamente. (...) Seguiu-o ao centro acadêmico. Sentia suas inibições se dissolvendo. (...) Ele parou para pegar um exemplar do jornal do campus, dando uma rápida olhada. Então viu que ele ia até um dos sofás, inclinava-se para beijar uma mulher que estava esperando. Tocava-lhe o joelho. Gauri se refugiou no único lugar que lhe ocorreu, o enorme banheiro feminina, empurrando a porta pesada, cruzando o tapete espesso da antessala, trancando-se num banheiro. Estava sozinha, não havia ninguém nos banheiros vizinhos e não conseguiu se conter, levou a mão ao seio, acariciando-o, a outra mão abrindo o zíper do jeans, encaixando os dedos na saliência do osso, a testa apoiada no metal frio da porta (LAHIRI, 2014, pp.225-227).

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Bauman (2002, p.78)5 afirma que quanto mais se experimenta a individualidade na liberdade, mais se necessita dela, como a dependência de uma droga. A sensação de liberdade apodera-se de Gauri de forma tão brusca que acaba interferindo em suas responsabilidades enquanto mãe, visto que passou a sair todas as tardes, deixando a filha, Bela, em casa sozinha: Tornou-se um desafio, um quebra-cabeças para resolver, para manter o espírito aguçado. Uma maratona pessoal que se sentia obrigada a correr constantemente, crendo que, se parasse, perderia a capacidade de realizá-la. Antes de sair, verificava se o fogão estava desligado, as janelas fechadas, as facas fora de alcance. Não que Bela fosse daquele tipo de criança. Assim começou de tarde. Não todas as tardes, mas várias, até demais. Desorientada com o sendo de liberdade, devorando a sensação como um mendigo devora a comida. Às vezes, ia simplesmente até a loja e voltava, sem comprar nada. Às vezes realmente pegada a correspondência, sentava num banco do campus e verificava (LAHIRI, 2014, p. 229).

Apesar de um novo corte de cabelo, das roupas novas e das escapadas para o campus sem qualquer motivo claro, Gauri ainda mantém um vínculo com Subhash e a filha, uma relação que, aos poucos, vai se traduzindo em distanciamento. Quando o pai morre, Subhash viaja para a Índia, a fim de prestar-lhe as últimas homenagens e para apresentar Bela à família. Gauri não os acompanha. É a oportunidade perfeita para libertar-se do espaço doméstico, que também é um mantenedor de memória, segundo Elhajji (2002). Ao retornarem à América, Subhash e Bela percebem que algo aconteceu: Ao se aproximarem de casa, Bela, filha de Gauri, viu que a grama tinha crescido quase até a altura do ombro. Ela andou como detetive pela casa. Desceu até a sala e a cozinha, subiu até os quartos, onde o corredor era acarpetado com o mesmo material verde-oliva de trama cerrada, unindo os quartos como um musgo que se alastrava de uma porta para outra. (...) Na mesa ao lado havia uma folha de papel. Uma carta. (...) A carta tinha sido escrita em bengali, e assim não havia o risco de que Bela decifrasse o conteúdo (LAHIRI, 2014, pp. 274-275).

Formada em Filosofia, Gauri opta pela vida acadêmica e vai para a Califórnia para exercer a docência e buscar desenvolvimento intelectual: Além da docência, sua produção era contínua, respeitada por alguns pares. Publicara três livros: uma avaliação feminista de Hegel, uma análise dos métodos interpretativos em Horkheimer e o livro baseado em sua tese, que derivara do ensaio cheio de erros que escrevera

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Cuanto más se hace, tanto más se necesita y tanto más desdichada se siente la persona privada de la droga indispensable.

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Memória, identidade e cultura: ensaios para o professor Weiss: A epistemologia da expectativa em Schopenhauer (LAHIRI, 2014, p.303).

Aos olhos do leitor, Gauri surge como uma mulher egoísta, incapaz de reconhecer o sentimento de Subhash, que efetivamente a ama.

No entanto, a

mulher em que se torna oculta a luta para superar o trauma. Ela opta pelo silêncio e pelo esquecimento. Pollak (1989) afirma que, por vezes, o silêncio constitui uma válvula de escape a uma experiência traumática. O isolamento oferecia seu próprio tipo de companhia: o silêncio confiável dos aposentos, a tranquilidade constante das noites. A segurança de encontrar as coisas onde deixava, a promessa de não haver interrupções nem surpresas. O isolamento a acolhia ao final de cada dia e se deitava imóvel ao seu lado à noite. Não tinha a menor vontade de vencê-lo. Pelo contrário, mantinha um relacionamento com ele, mais satisfatório e resistente do que os relacionamentos que tivera nos seus dois casamentos. (LAHIRI, 2014, p.307).

Contraditoriamente, por mais que busque a assimilação ao novo país, os traços inconfundíveis de sua origem continuam colocando-a a margem: Ela explorara pouco, mas se sentia protegida por aquele espaço impessoal contínuo. A vegetação espinhosa, o ar quente, as pequenas casas de concreto armado com telhados vermelhos – tudo lhe dera boas-vindas. As pessoas com quem cruzava pareciam menos reservadas, menos críticas, oferecendo um sorriso, mas depois seguindo em frente. Dizendo-lhe, nessa terra de luz intensa e sombras fortes, para recomeçar. E apesar de tudo, apesar das roupas ocidentais, dos interesses acadêmicos ocidentais, ela continuava a ser uma mulher que falava inglês com sotaque estrangeiro, cuja aparência física e a cor da pele eram inalteráveis e, tendo como pano de fundo a maior parte dos Estados Unidos, ainda pouco convencionais. Continuava a se apresentar com um nome incomum, o primeiro dado pelos pais, o último pelos dois irmãos que desposara (LAHIRI, 2014, p. 306).

A Gauri indiana permanecia ali, no subconsciente, entretanto, a mudança é inevitável, conforme afirma Hall (1992, p.2): “o sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem. Se os “homens fazem a história, mas apenas sob as condições que lhes são dadas” (MARX, apud Hall, 1992, p.9), pode-se dizer que Gauri apropriou-se de todas as condições e reinventou-se, e traçando uma nova história. A necessidade de assinar os papéis do divórcio faz com que Gauri vá ao encontro de Subhash e acabe por ver-se face a face com a filha que abandonara e que a rejeita veementemente em função disso.

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Esse encontro faz com que Gauri repense todo o seu passado e a sua trajetória. O exílio e o afastamento reacendem a sua memória do passado, mas não de seu passado com Udayan ou com Subhash, mas do passado antes de se envolver com os dois irmãos. Marc Augé diz que o lugar antropológico pode ser considerado relacional, histórico e identitário (AUGÉ, apud CARREIRA, 2012). Gauri retorna à India, buscando renovar os laços com o seu lugar antropológico e resgatar os os sentimentos deixados na Índia: Comprimiu-se à grade da sacada. A altura era suficiente. Sentiu o desespero subindo dentro de si. E também uma clareza. Uma necessidade. Este era o lugar. Esta era a razão de sua vinda. A finalidade de seu retorno era despedir. Imaginou-se impulsionando uma perna, depois a outra. A sensação de nenhum apoio, de nenhuma resistência. Levaria poucos segundos. Seu tempo chegaria ao fim, só isso. Quarenta anos antes, não tivera essa coragem. Tinha Bela dentro de si. Não era a vacuidade, não era a casca vazia da existência que sentia agora (LAHIRI, 2014, p.417).

O fim do romance, com o retorno de Gauri à América, acena com uma possibilidade de redenção, que chega com uma carta da filha a admitir uma futura reconciliação.

CONCLUSÃO

A história de Aguapés é um relato de perdas e ganhos, calcado nas diferenças culturais e na busca de definição identitária, que, no caso específico de Gauri, é consequência de seu contato com o Ocidente. A sensação de liberdade experimentada vai de encontro aos ideais libertários que a motivavam na juventude. A obra de Jhumpa Lahiri é permeada de personagens cuja identidade é cindida, hifenada, mas há também espaço para as identidades híbridas, em que o legado cultural de duas nações se misturam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

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Memória, identidade e cultura: ensaios CARREIRA, Shirley. A representação da identidade em Hell-Heaven, de Jhumpa Lahiri. Revista Soletras, n. 23, p. 81-92, 2012. COHEN, Gustavo. Da intérprete de enfermidades às terras não familiares: a ficção de Jhumpa Lahiri. Lumen et virtus, v.1, n.2 , maio de 2010, pp.81-92. ELHAJJI, Mohammed. Memória coletiva e espacialidade étnica. Revista Galáxia (PUC-SP). n.4, p. 177-191, 2002. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 1998. LAHIRI, Jhumpa. Aguapés. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Globo, 2014. ______. The Namesake. New York: Mariner Books, 2003. ______. Interpreter of maladies. New York: Houghton Mifflin, 1999. ______. Unaccustomed earth. New York: Vintage, 2008. LE GOFF, Jacques. Historie et mémoire. Paris: Gallimard, 1988. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p.3-15, 1989. RUSHDIE, Salman. Midnight’s Children. London: Random House, 2006. SARAIVA, Célio. Conflito cultural e adaptação: a manutenção da identidade do imigrante em “O Xará”, de Jhumpa Lahiri. Revista Alumni, v. 1, n. 2, p.25-33, 2013.

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EXPERIÊNCIA E MEMÓRIA: RETALHOS DA HISTÓRIA NA POÉTICA DE MILTON HATOUM Aídes José Gremião Neto1

INTRODUÇÃO

Nossa proposta de leitura da poética hatouniana baseia-se na observação do conjunto de produção artístico-intelectual do escritor, colaborando para a ampliação de sua fortuna crítica. Longe de darmos conta da pluralidade semântica do conjunto da produção de Milton Hatoum, efetuaremos um recorte em sua produção romanesca. É válido assinalar que o projeto literário de Hatoum se desdobra em outras produções do escritor, como sua novela Órfãos do Eldorado (2008) e seus volumes de contos e crônicas, respectivamente A cidade ilhada (2010) e Um solitário à espreita (2013), este último composto por crônicas publicadas inicialmente no jornal Estado de São Paulo e reeditadas para este livro. Por acreditarmos que todo trabalho demanda não só disciplina como também metodologia, optamos por nos concentrar no presente recorte para, em reflexões futuras, abarcar toda a poética hatouniana. O manejo estético presente nesta poética nos desafia a procurar sempre uma espécie de terceira margem, linhas e entrelinhas, provocados pelas narrativas de Milton Hatoum. A produção romanesca hatouniana se inicia oficialmente em 1989, com a publicação de Relato de um certo Oriente. Tanto este livro quanto seu sucessor, Dois irmãos (2000), foram recebidos com êxito pela crítica, e também indicaram um projeto estético em aberto. Mais adiante, com as publicações de Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008), tal projeto torna-se mais visível. Cabe salientar que não se trata aqui de traçar uma linha cronológica em consonância com a publicação dos romances de Hatoum. O objetivo deste trabalho é demonstrar como tais narrativas traçam uma linha no tempo, ainda que de forma anacrônica. Em outras palavras, a análise conjunta desses romances possibilita uma incursão na história coletiva, representação da experiência. Isto porque a enunciação literária se 1

Graduando do curso de Letras da UERJ (Português-Literatura) e bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PIBIC/UERJ, sob orientação do professor Doutor Paulo César Silva de Oliveira. Membro da equipe de pesquisadores do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da UNIABEU.

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Memória, identidade e cultura: ensaios distingue em relação ao discurso histórico, que pretende um tom mais objetivo dos fatos, desejando aproximar-se o máximo possível da realidade. Nas palavras de Anatol Rosenfeld, sobre o “enunciar do historiador”, observamos que “o historiador se situa, como enunciador real das orações, no ponto zero do sistema de coordenadas espácio-temporal” (ROSENFELD, 2011, p. 25), evidenciando que, se por um lado o narrador da ficção situa seu discurso em “objectualidades intencionais”, por outro, o historiador o faz procurando omitir tais ‘objectualidades’ para “franquear a visão da própria realidade” (ROSENFELD, 2011, p. 18). Ainda sobre a relação entre os discursos histórico e literário, Linda Hutcheon (1991) assinala que a literatura contemporânea, ou “pós-modernista” – termo com o qual a autora prefere trabalhar – está inserida em um aporte teórico-reflexivo que estabelece diálogo com a (s) história (as) dos sujeitos e suas respectivas manifestações críticas. No entanto, esta aproximação crítica entre sujeito e sua própria história não se dá a partir de uma fundamentação histórica (HUTCHEON, 1991), nem apenas através da ironia, mas sim por meio da paródia, que seria um dos elementos relacionados àquilo que a estudiosa chama de “metaficção historiográfica”. Sendo assim, segundo Hutcheon (1991), o pós-modernismo seria não uma mera marca no tempo, mas um conjunto de ideias surgido a partir da década de 60 que, dentre muitas outras coisas, “[...] ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as contradições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido. E, na arte, ele o faz deixando visíveis as contradições entre sua autorreflexividade e sua fundamentação histórica” (HUTCHEON, 1991, p. 15). Corroborando com nosso estudo, veremos que a autorreflexividade é uma marca, não só dos narradores criados por Milton Hatoum, mas de toda a enunciação hatouniana que, de acordo com nossa leitura, sugere uma ruptura com esquemas tradicionais de centralização do eu ainda vigentes no tempo “meta-histórico” das diegeses. Portanto, a poética hatouniana pode ser vinculada aos pressupostos da “poética do pós-modernismo” pensada pela estudiosa canadense, já que este tipo de escrita poética “[...] se limitaria a ser autoconsciente para estabelecer a contradição metalinguística de estar dentro e fora, de ser cúmplice e distante, de registrar e contestar suas próprias formulações provisórias” (HUTCHEON, 1991, p. 41). É a partir desse quadro desafiador dos conhecimentos, sobretudo o histórico e o literário, que a ficção contemporânea questiona não só a validade da hegemonia 73

Aídes José Gremião Neto

da história como também procura desestabilizar os conceitos de uma tradição – que, dentre outras coisas, alinha e separa, de maneira sistemática, ambos os discursos. O que está em foco, deste modo, são os sistemas múltiplos de referência que nos circundam e as diversas constituições dos pilares ideológicos das formas de lidar com as lembranças na construção do objeto ficcional. Neste viés, nossa proposta estabelece diálogo com a questão da memória, bastante estudada na obra do escritor. Embora não haja até o momento trabalhos específicos e/ou aprofundados na presente proposta apresentada por nós, buscaremos dialogar com as variadas modalidades discursivas que nos circundam, com ênfase nos discursos histórico e literário, para propor processos significativos, contribuindo para a fortuna crítica do escritor. Como dito, a produção romanesca de Milton Hatoum abarca um recorte de retalhos da história, que se estende desde 1914 até o fim da ditadura militar. Mais especificamente, é possível dizer que cada romance do autor perpassa um período da história, narrada, obra a obra, de maneira anacrônica. Em prol de uma metodologia, optaremos por efetuar uma apresentação cronológica da produção do escritor, com alguns apontamentos que orientarão a subsequente leitura conjunta das obras. Vale dizer que isso não implica correspondência sistemática entre uma linha do tempo linear das histórias com o surgimento das obras do escritor. Relato de Um Certo Oriente (1989), primeiro romance publicado, é uma narrativa multivocal que aos poucos reconstrói a história de uma família libanesa que migrou para o Brasil entre os anos de 1914 e 1924. O fato de a narrativa oscilar entre o passado e o presente da diegese, possuir cinco narradores e iniciar-se in media res já assinala uma de suas características: buscar reconstituir histórias de um tempo perdido na memória. No entanto, a reconstituição da história dessa família libanesa esbarra, no decorrer de toda narrativa, na recompilação da história de uma família que viveu na Manaus ficcionalmente retratada por Hatoum. Em outras palavras, a narrativa, reconhecendo-se como ficcional, revela histórias possíveis de sujeitos que participaram da história. Assim como o discurso histórico, a literatura é um discurso que antes revela fatos potencialmente possíveis de acontecerem do que verdades narradas tal como acontecidas. Embora haja algumas distinções que separam em gêneros tais discursos – como a posição da voz enunciativa – não aprofundaremos, por agora, nessas discussões. Seguiremos os ensinamentos de Roland Barthes (2007), a literatura possui três forças: mímesis, mathesis e semiosis, 74

Memória, identidade e cultura: ensaios correspondendo respectivamente à tentativa de representação, aos saberes dispostos no texto, e ao jogo com os signos. Para a presente abordagem, reforçamos a mathesis, os mais variados saberes presentes na diegese hatouniana, inclusive os conhecimentos históricos e a possibilidade de inferências que esses saberes nos permitem. Retomando o estudo da narrativa, vemos que o Amazonas, mais precisamente Manaus, é antes uma marca geográfica e não somente um traço restrito ao aspecto regional. Isso se dá principalmente pelo fato de a diegese depender, sobretudo, de relações humanas para sua constituição, como ensina Antonio Candido (2011, p. 31): “Em todas as artes literárias e nas que exprimem, narram ou representam um estado ou estória, a personagem realmente ‘constitui’ a ficção” (Grifos do autor). Nosso ponto fulcral de abordagem não se concentra apenas nos fatos ou nos momentos históricos presentes na escrita, mas sobretudo na forma como os seres ficcionais de Hatoum viveram e encararam esses fatos históricos, (re)atualizando, na leitura, as possibilidades de construções históricas em busca

de

uma

reflexão

de

nossa

configuração

no

mundo

circundante.

Cronologicamente, o tempo da narrativa do Relato estende-se de 1924 até 1954, anos marcantes e de grandes mudanças na história. O enredo de Relato de um certo Oriente tende a ser desorientador num primeiro contato. Isso se deve, dentre outros aspetos, às informações disseminadas no decorrer de uma narrativa densa, composta tanto por idas e vindas no tempo quanto por mudança das vozes e de transcrições de discursos de variadas modalidades. É através deste caminho que vamos desvendando o passado dessas vidas, que por sua vez, se alimentam do passado. Neste enredo, as estórias destes narradores se afunilam, na tentativa de, ao visar reescrever ou desvendar parte do passado, reconhecer-se a si mesmo enquanto integrante da história . A partir disto, a narradora principal – que não é nomeada – faz uma incursão pela memória coletiva na busca de reconstrução, ainda que fragmentada, do passado. Ao manter contato por meio de cartas com um ‘tu’, que no desenrolar da diegese descobrimos ser seu irmão, a narradora compila parte de sua história, da qual participam também os discursos de um fotógrafo chamado Dorner, da amiga da família, chamada Hindié, e do patriarca da família, não nomeado. É interessante apontar espécies de desencadeadores de discurso, a começar pela narradora principal, que regressa a sua terra natal após longa ausência, passa a palavra a seu irmão, por meio de 75

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cartas, que por sua vez revela as cartas do fotógrafo Dorner. Já este, por conseguinte, transcreve o discurso oral do inominado patriarca. Em geral, as histórias que coexistem durante todo o enredo são histórias do dilaceramento de vidas e famílias; todos, sem nenhuma exceção, definham, seja por ter suas próprias causas, seja pelo do outro. É no espaço confuso da memória e na localização marginal de Manaus que o fotógrafo Dorner, com sua lente de criticidade, é uma espécie de “[...] morador-asceta de uma cidade ilhada, obstinado a passar toda uma vida a proferir lições de filosofia para um público fantasma [...]” (HATOUM, 1989, p. 120), segundo a narradora relata para seu irmão, um “tu”. Na sequência, ela ainda revela: Não posso saber se a solidão o dilacerava, se alguma morbidez havia na decisão de fixar-se aqui, escutando sua própria voz, dialogando com o Outro que é ele mesmo: cumplicidade espetacular, perversa e frágil. Nas tuas raras alusões a Dorner, falavas, não de um ser humano, e sim de uma ‘personagem misteriosa’, de um ‘náufrago enigmático que o acaso havia lançado à confluência de dois grandes rios...’ Tu e tua mania de fazer do mundo dos homens uma mentira, de inventar ilusões no teu refúgio... para poder justificar que a distância é um antídoto contra o real e o mundo visível. (HATOUM, 1989, p. 120-121).

Para muito além dessa passagem, que junto ao náufrago de vidas evoca o náufrago da memória e da escrita, há outros pontos que merecem destaque: Emilie, que passou sua vida vendo as confusões entre os filhos, assistindo sua filha Samara sofrer e tendo que conviver entre o extremo da falta de tolerância religiosa entre ela e o marido; Samara Délia, perseguida pelos irmãos descritos como ‘ferozes’ pela narradora – por motivos que não nos é dado sabermos –, e que guarda o segredo sobre a paternidade de sua filha surda-muda, Soraya Ângela, morta ainda criança; e Hindié, a amiga fiel que presencia e relata parte da história da matriarca Emilie. Em meio a tudo isso, a narradora principal se martiriza, tanto na vontade de compilar o passado da melhor maneira possível para tentar compreender melhor seu presente, quanto no choque com o espaço físico de Manaus, a “cidade ilhada”, que em sua descrição sofre uma espécie de agressão física. Há ainda a figura de Anastácia, a empregada criada pela família com tratamento de escrava, uma espécie de margem da margem. Mas a ideia de margem já imbrica em si uma ideia de centro. Em nossa leitura as margens se desencadeiam para, no fim, apontarem todas numa mesma direção: a busca pela reflexão, a quebra com os pilares solidificados e unívocos. Nesta perspectiva,

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Memória, identidade e cultura: ensaios podemos inferir que tudo é uma espécie de margem coexistindo: a família libanesa que migra para um espaço de diferença, em uma cultura diferente; a empregada quase escrava que, embora convivendo em um meio socioeconômico e cultural que não é o seu, tem tanto a aprender quanto a ensinar; e a cidade, que no discurso da história oficial é em si uma margem. Mas como tudo no âmbito fictício é pictórico, lemos isto como uma espécie de caminho possível, como discurso aberto e, portanto, dialógico. Esta Manaus integra o universo semântico de penúria dessas vidas em trânsito. Um exemplo da Manaus decadente pode ser visto no espanto da narradora quando do seu regresso a uma terra há muito não vista, uma terra estrangeira. Na volta a este espaço, ela se ressente “[...] da silhueta dos animais e do seu alarido inconfundível.”, do asfalto que, a esta altura, cobriam as pedras cinzentas, e vê: [...] de longe Manaus emergir do Negro, lentamente a cidade desprender-se do sol, dilatar-se a cada remada, revelando os primeiros contornos de uma massa de pedra ainda flácida, embaçada. Essa passagem de uma paisagem difusa a um horizonte ondulante de ardósia, interrompido por esparsas torres de vidro, pareceu-me tão lenta quanto a travessia, como se eu tivesse ficado muito tempo na canoa. Tive a impressão de que remar era um gesto inútil: era permanecer indefinidamente no meio do rio. Durante a travessia esses dois verbos no infinitivo anulavam a oposição entre movimento e imobilidade (HATOUM, 1989, p. 110).

A relação direta que podemos estabelecer entre esta obra e a sua sucessora, a saber, Dois irmãos, no nível da enunciação, é o ponto de partida de cada uma, já que ambas se iniciam in media res. Outros aspectos as aproximam, como a voz narrativa, o tema da decadência, não só de uma época histórica, mas também das várias vidas em trânsito. No que diz respeito à voz narrativa, vemos que em Dois irmãos, ao contrário de em Relato de um certo Oriente, há apenas um narrador. Todavia, a enunciação deste narrador imbrica diversas vozes e perspectivas, com idas e vindas no tempo. Este narrador homodiegético, filho da empregada doméstica com um dos ‘dois irmãos’, junta no papel histórias contadas e vividas, estando ambas miscigenadas entre cartas e discursos transcritos. No presente da enunciação, envolto nas idas e vindas das lembranças, o narrador Nael, diz o seguinte sobre o movimento da memória que oscila entre os escritos de Antenor Laval e as estórias contadas por Halim: “Ia de um para o outro, e essa alternância – o jogo de lembranças e esquecimentos – me dava prazer” (HATOUM, 2006, p. 197). Tal prazer se traduz

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também no prazer da escrita, como os típicos narradores das crônicas produzidas por Hatoum. No que diz respeito ao contexto histórico, o enredo de Dois irmãos se passa entre os anos que antecedem e sucedem a Segunda Guerra Mundial, revelando também uma Manaus universal situada em dois extremos: a mais profunda decadência financeira e humana – com extrema desigualdade – e a euforia do desenvolvimento econômico, que se deu nos anos do pós-guerra. A personificação desses dois momentos históricos distintos está refletida na figura dos dois gêmeos: de um lado, “A loucura da paixão de Omar, suas atitudes desmesuradas contra tudo e todos’’; de outro, “[...] os projetos de Yaqub: o perigo e a sordidez de sua ambição calculada”, como mostra o narrador (HATOUM, 2006, p. 196). Ao logo da narrativa, observamos duas Manaus, palco de um drama familiar, a dialogar com a Bíblia, mais objetivamente, com a narrativa de Esaú e Jacó, título do romance homônimo de Machado de Assis, outro intertexto importante. Temos uma Manaus ainda não degradada pelas demandas industriais do capitalismo: é a Manaus de uma exploração ainda tímida da borracha, com sua natureza intacta, de certa maneira ainda selvagem e primitiva, porém mais humana. Embora grande parte da narrativa se desenrole numa Manaus degradada ou em pleno movimento de deterioração, na qual há apagões e penúria, a antiga Manaus é mencionada em alguns pontos do enredo, sempre em contraste com sua faceta já metamorfoseada: “Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com o seu passado” (HATOUM, 2006, p. 197). Outro exemplo nos diz: No centro da praça não havia mais a multidão de pássaros que encantava as crianças. Agora o aviário que tanto me fascinara estava silencioso. Sentados na escadaria da igreja, índios e migrantes do interior do Amazonas esmolavam (HATOUM, 2006, p. 181).

A precarização de Manaus perpassa a narrativa e pode ser associada à degeneração da família de libaneses, provocada pela rivalidade entre os gêmeos Omar, o Caçula, e Yaqub. A figura de Yaqub, o filho estrangeiro em relação a seu próprio lar, separado bruscamente da família pela vontade da mãe, pode metaforizar esse momento de crescimento econômico no país, como personificação deste crescimento, embora retardatário, de Manaus. É um crescimento ambicioso, que mais se confunde com a ideia que é posta em cheque pelo narrador: a noção de progresso. Logo no início da narrativa, quando Yaqub retorna a seu lar, depois de 78

Memória, identidade e cultura: ensaios anos vividos no Líbano, e passa a se afogar nos estudos, há uma antecipação dos acontecimentos, que a teoria literária chama de prolepse, conforme a nomenclatura de Gérard Genette (1972): “Os religiosos sabiam que o ex-aluno tinha futuro; naquela época, Yaqub e o Brasil inteiro pareciam ter um futuro promissor” (HATOUM, 2006, p. 33). Mais tarde, com o êxito profissional e econômico de Yaqub, e a contínua crença no progresso e no futuro da nação, o narrador estabelece a seguinte comparação entre a ajuda que Yaqub dá à família de longe e o momento histórico: “Se a inauguração de Brasília havia causado euforia nacional, a chegada daqueles objetos foi o grande evento de nossa casa. O maior problema era o corte quase diário de energia [...]” (HATOUM, 2006, p. 97). Sendo, portanto, a inauguração de Brasília uma euforia nacional, a ajuda de Yaqub na doação de objetos e reforma da casa e da loja da família se revela como uma repercussão desta ‘euforia’ em Manaus, local que, no entanto, sofria as consequências maléficas da criação da nova Capital Brasília. Yaqub está para Manaus, assim como Brasília está para o país. Para completar o que afirmamos, não podemos deixar de fora o momento em que, no fim da narrativa, o narrador põe em cheque a noção de futuro como progresso: “Queria distância de todos esses cálculos, da engenharia e do progresso ambicionado por Yaqub. Nas últimas cartas ele só falava no futuro, e até me cobrou uma resposta. O futuro, essa falácia que persiste” (HATOUM, 2006, p. 196). O futuro e o progresso, tanto no caso de Manaus, com seu crescimento desordenado, quanto no caso da família libanesa, com seu fim trágico são uma espécie de ruína produzida por agentes do progresso como Yaqub, no caso o filho vingativo. Antes de passarmos ao próximo romance, é válido apontar outras aproximações entre Dois irmãos e Relato de um certo Oriente. A primeira, trata da condição das empregadas que coadjuvam as tramas: tanto Anastácia Socorro, em Relato quanto Domingas, em Dois Irmãos, exercem um papel próximo ao de uma escrava. Numa segunda observação, vemos a figura feminina associada à administração de uma loja – em Relato é Samara Délia a administradora da Parisiense e em Dois Irmãos é Rânia quem gerencia o Biblos. Vale mencionar a existência de dois irmãos ferozes que, em Relato não são nomeados e possuem uma participação relativamente curta no enredo, já em Dois Irmãos a ‘ferocidade’ fraterna pode remeter à rivalidade existente entre Yqub e Omar. Vale lembrar que 79

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uma abordagem comparatista não é feita só por semelhança, mas também por dissonância, sendo, por isso, necessário encararmos tais aproximações apenas como frutos de um mesmo projeto literário. No enredo de Cinzas do Norte, vemos que tudo também se encontra descentralizado, a começar pela narrativa que, como as supracitadas, inicia-se in média res, sendo elaborada pelo personagem Olavo, cujo apelido é Lavo. Lavo, narrador homodiegético, conta a história de seu amigo Raimundo (Mundo) – um garoto com inclinações artísticas que sofre em decorrência do autoritarismo de seu pai Trajano (Jano), homem arrogante que o importuna com sua insistente vontade de ver o filho dando continuidade aos negócios da família. Não se sabe exatamente o motivo pelo qual Lavo se propõe a remontar a história de Mundo. Sabe-se apenas o que o narrador nos diz ao iniciar seu testemunho: “Uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem à memória com a força de um fogo escondido pela infância e pela juventude” (HATOUM, 2010, p. 7). Como é possível observar, aqui se torna latente o caráter da memória na prosa de Hatoum, o que movimenta sua narrativa, favorecida por espaços vazios de um passado que, não podendo ser amplamente (re) estabelecido, esgarça o horizonte de interpretação. A obra se passa no contexto da ditadura militar de 1964, entre os anos de 1964 e 1980, mais uma vez na cidade de Manaus. Trajano, com toda a sua fúria e acompanhado pelo seu fiel amigo, o cachorro Fogo, encarna a figura da autoridade de quem manda, seja por conta de suas relações com o capital, seja pela brutalidade absoluta, reforçada por suas relações com a ditadura pós-64. Mais uma vez, o narrador situa-se na margem sociocultural em relação ao momento de sua estória. Lavo, órfão e sobrinho de Ramira – costureira que sustenta Lavo e seu Tio Ranulfo, tio Ran –, ao narrar a batalha de Mundo contra o pai e, por extensão, contra toda uma tradição materializada na ditadura exercida pelos militares, remonta os cacos de parte de uma história coletiva catastrófica: a derrota da democracia. O papel do artista não pode ficar de fora de nossa discussão, já que Mundo almejava ser artista sem submeter-se às regras dos ditadores. Mundo e Arana, personagem que também é artista e que tanto influencia Mundo, assim como Ranulfo, são as peças-chave do quebra cabeça que, embora incompleto, o narrador tenta montar. No final, descobriremos a verdadeira figura de Arana: não só artista vendido, mas pai verdadeiro de Mundo, o que não se deixa vender.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Ademais, a narrativa também multivocal, composta pela junção de vozes que se diversificam entre cartas e relatos orais, oscila entre tempos distintos, que culminam em uma melhor compreensão do presente da enunciação, um presente que não é dado a priori, que não desvenda o passado compilado por vozes que em diferentes momentos conferem um status de criticidade ao enredo, como mostra as palavras de Mundo, escritas em carta a Lavo, durante seu exílio na Europa, antes de morrer: “[...] o que restou de tudo isso? Um amigo distante, no outro lado do Brasil. Não posso mais falar nem escrever. Amigo... Sou menos que uma voz...” (HATOUM, 2010, p. 231). A esta passagem antecede a seguinte reflexão de Mundo frente a sua trágica escrita: “Pensei em escrever minha vida de trás para frente, de ponta a cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, escrever é quase um milagre” (HATOUM, 2010, p. 230). Ambas as passagens reforçam o que antes já tinha sido expresso por Mundo a respeito de sua condição frente à escrita, quando começara a escrever a Lavo: “Malditos papiletes, Lavo! E malditas palavras emperradas, frases travadas... Desenhar é minha sina, escrever é um martírio [...] Se eu não começar a rabiscar agora, nunca mais” (HATOUM, 2010, p. 179). A narrativa que se inicia com uma calorosa imagem entre Jano e Fogo, que não se desgrudam, percorre um tempo histórico que se confunde com o percurso da ditadura militar. Com o desenrolar do enredo, o fim da ditadura se anuncia breve, culminando não só com o término da estória, mas também com o fim de Jano, de Fogo e do palacete, já em ruínas. A imagem das ruínas se multiplicam: Alícia, mãe de Raimundo se vicia no álcool e no jogo; Ramira, Mundo, Jano e o cão Fogo morrem; Ranulfo permanece solitário e revoltado, envolto em suas memórias; e o narrador se torna testemunha da ruína, uma voz na ruína. É válido atentar também para a condição da cidade, que vai se metamorfoseando numa esperança falida de progresso. Sua decadência pode ser observada em momentos distintos do enredo, como quando Ranulfo presencia a demolição do palacete e da vegetação em seus arredores: [...] tinha visto a placa de demolição. ‘E sabes quem estava na calçada? Aquele gigante, o Palha... Conversava com três homens, gente de fora, do Sul. Ou estrangeiros. Apontavam aqueles edifícios horrorosos no centro, perto do teatro Amazonas [...] A trepadeira estava seca, as azaleias também. Arrancaram o caramanchão Uma pena! Antes eu passava lá e sentia o cheiro... parava para cheirar os copos-de-leite (HATOUM, 2010, p. 167).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Num contexto em que tudo remete a cinzas, ou melhor, às cinzas da ditadura, Cinzas do Norte, junto com os outros dois romances de Milton Hatoum traça uma linha da história de uma Manaus, situada num certo “oriente” do Brasil. Esta linha no tempo das descontinuidades, embora situadas no século XX, indaga os preceitos de uma cultura tradicional ainda viva. Essas narrativas autoconscientes recortam o período que se estende desde uma Manaus pacata, repleta de promessas de desenvolvimento – Manaus da exploração da borracha – até uma Manaus corroída pela chegada do capital e pelo consequente crescimento desenfreado: a Manaus da ditadura de 64. Nesse meio tempo, há, ainda, uma outra Manaus: localizada temporalmente no pós-guerra, palco da migração desenfreada, e da vã promessa de progresso que também tomava conta do país. É nesta perspectiva que essas três obras, observadas de maneira conjunta, compõem uma das faces do projeto literário de Milton Hatoum. Além disso, é importante assinalar que outras frentes de produção do escritor corroboram essa leitura. No entanto, tendo em vista o recorte necessário que este tipo de trabalho requer, não pudemos abarcar ainda toda a poética do escritor. Isso, por um lado, nos estimula a continuar esta proposta que aqui se inicia, certos de que há um longo caminho a trilhar. Nos próximos trabalhos, analisaremos a novela Órfãos do Eldorado (2008), também situada no momento histórico da exploração da borracha, e o volume de contos A cidade ilhada (2010) e o livro de crônicas Um solitário à espreita (2013).

As discussões encaminhadas até aqui, embora nem de longe

tenham esgotado o assunto, serviram de escopo reflexivo para algumas esferas polissêmicas do discurso literário contemporâneo. Até o presente momento, foi feita uma leitura de narrativas de Milton Hatoum, com ênfase em suas vastas implicações na construção contínua de uma memória coletiva. Vale lembrar que tais implicações são infindáveis, pois não se pode gerir um lugar que se nutre de relações paratópicas, conforme a nomenclatura de Dominique Mainguenau (2001). Nesta relação paratópica, isto é, da qual partilham diversas esferas e agentes análogos à constituição do objeto literário, estão incluídos os mais variados conhecimentos com os quais o discurso literário pode dialogar (a partir tanto da amplitude semântica da obra quanto pelas inferências de cada leitor). Como leitores, propusemos recuperar parte dessa memória histórica a ser reconstruída no projeto literário de Milton 82

Memória, identidade e cultura: ensaios Hatoum; um projeto que vai além dessa reconstrução histórica, vai de encontro de uma discussão humana ético-planetária. Como toda pesquisa requer, ficamos com o recorte dessas narrativas hatounianas, para não ultrapassarmos o espaço e o objetivo deste trabalho. Assim, concluímos provisoriamente que o universo em que se situa a poética de Milton Hatoum, aqui respresentado pelos romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, é rico em conhecimentos a serem explorados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BARTHES, Roland. Aula. 15. ed. São Paulo: Cultrix, 2007. GENETTE, Gérard. Figures III. Paris: Seuil, 1972. HATOUM, Milton. Um solitário à espreita. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. ______. Cinzas do Norte. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ______. A cidade ilhada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ______. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008a. ______. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008b. HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ROSENFELD, Anatol. Literatura e Personagem. In: CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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O ESTRANHO ESPELHO DO TEXTO LITERÁRIO Anderson Figuerêdo Brandão1 O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver à realidade. Sainte-Beuve

As relações possíveis entre a Literatura e a Sociedade costumam existir como um espelhamento entre a obra e o construto hermenêutico a ser urdido a partir da formulação de sínteses. Essas são oriundas das leituras que produzem movimentos dialéticos entre o texto literário e os auxiliares, os históricos, os sociológicos e também os de cunho filosófico, específicos a serem adotados para os estudos como os nossos, fundamentados em elementos do ethos marxista. As leituras do texto evidenciam, sob a sua fatura, uma série de aspectos ressaltados a partir da perspectiva sobre a qual o leitor assume se posicionar. Alguns são mais evidenciados do que outros justamente porque a visão do leitor propicia um recorte voltado para os elementos mais significativos oferecidos pela obra estudada e que podem auxiliá-lo na construção de seu texto crítico. No entanto, quaisquer que sejam as perspectivas teóricas do pesquisador, percebemos que seu trabalho tem um ganho considerável em qualidade quando as análises são realizadas partindo de elementos pertencentes à própria obra literária, como nos ensina Antonio Candido (2008). Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não ilustrativo. (CANDIDO, 2008, p. 17).

O poeta (compreendêmo-lo aqui também como o escritor) é, de acordo com a nossa epígrafe, a sua própria mônada, o espelho único que reflete diferentemente de qualquer outra superfície especular, mas os elementos que compõem a imagem

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Doutor em Ciência da Literatura (UFRJ) e Professor Adjunto da UNIABEU. Membro do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da UNIABEU. Membro do grupo de pesquisa CNPq Poéticas do contemporâneo. Professor da Faetec.

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Memória, identidade e cultura: ensaios criada, o construto urdido, não lhe são exatamente próprios ou exclusivos. Em primeira instância, de onde eles seriam provenientes senão dos emaranhados de discursos com os quais ele, a todo tempo, está a entrar em contato? E esses discursos poderiam estar em qualquer outra esfera que não a relativa à própria essência dos existentes em sua época, fossem eles obtidos ou não através de pesquisa?Não dar conta desse fato seria confinar o artista a um espaço ou mesmo a uma instância que não estivesse no mundo, mas em uma utopia autorreferencial. No fundo, aqui nos encontramos na dicotomia já tradicional entre uma referencialidade ideal, pura, utópica e, não podemos deixar de notar, ideológica e a distopia, na qual a arte estaria mergulhada nas contingências do mundo, enlameada com os crivos e perspectivas sociais e culturais de determinada época ou mesmo perfil psicológico coletivo. Os partidários desse último posicionamento gostam de pensar no discurso artístico como um espaço tão mágico quanto o existente em seus próprios pensamentos, esquecendo mesmo que a inversão platônica entre os mundos real e ideal encobria os interesses ou mesmo necessidades de sustentação daqueles filósofos que o discípulo de Sócrates sonhava em manter como regedores da República. Por outro lado, de forma alguma o texto literário permite apenas um tipo de leitura, mas é possível que haja textos mais ou menos propícios para determinados tipos de análise e é por esse motivo que o pesquisador deve, num primeiro momento, realizar uma seleção acurada da obra que ele pretende analisar, a fim de que os textos selecionados possam lhe oferecer uma maior quantidade do material mais adequado à sua perspectiva teórico-metodológica, mas sem deixar de ter em vista de que esses mesmos elementos devem, ainda segundo Antonio Candido, ser oriundos da fatura mesma da obra e não de quaisquer aproximações que desejem ser realizadas de fora para dentro. Um determinado texto, por exemplo, pode servir bem mais para uma análise psicológica do que outro e vice-versa, enquanto o segundo parece apontar no sentido de uma visão mais sociológica ou mesmo um terceiro, por sua própria constituição, pode estar voltado em grande parte para as peculiaridades semiológicas da linguagem, sendo as referências aos discursos de outras disciplinas, que não as estritamente relativas à linguagem, desnecessárias ou pouco produtivas.

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O movimento, portanto, deve ser aquele que parte da obra literária para outras esferas discursivas e não o contrário, pois isso seria impor ao texto literário uma

perspectiva

teórica

não

interpretativa,

mas

totalizante

ou

mesmo

essencialmente judicatória. Não é a obra que deve se adequar à teoria, mas a teoria é que deve ser usada e adequada às características da obra. Quanto ao fato de que os elementos interpretativos devem ser absolutamente internos aos caracteres formais da obra ou mesmo devem corresponder a uma referencialidade absolutamente externa ao texto literário, Antonio Candido nos ensina que uma justa medida na observação das características internas e externas não pode estar, segundo as suas palavras, “dissociada”: Hoje sabemos que a integridade da obranão permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo, Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como dignificado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 2008, p.14).

Na verdade, o que pretendemos é inserir as nossas considerações não somente no âmbito da curiosidade sociológica, mas no que diz respeito a uma crítica da própria estética, que não pode ser entendida como um discurso que esteja além do emaranhado de ideias presentes em determinadas obras. Ou seja, como Antonio Candido estipula “– o que só ocorre quando esse traço social constatado é visto funcionando para formar a estrutura do livro”. (CANDIDO, 2008, p.16). Se o que se apresenta na estrutura romanesca é uma totalidade (LUCKÁCS, 2009), estaria essa mesma isenta das influências ideológicas que permeavam a época de construção da obra? Ou seja, a naturalização de classes sociais, com suas características funcionais e mentais seria fruto de uma mera descrição do fato social ou um construto realizado a partir de determinados pressupostos teóricos e metodológicos contingentes a uma determinada época? É dessa forma que o todo orgânico que se pode evidenciar de uma obra não revela uma construção estética que esteja – a priori – isenta das influências ideológicas de seu tempo, ou mesmo que se possa desvincular das ideias através das quais classes sociais são representadas nas obras. Ainda com Candido,

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Memória, identidade e cultura: ensaios podemos, sob esse aspecto, tentar buscar na própria obra a sua construção estética e, nessa mesma, a sua fatura ideológica: O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo.(CANDIDO, 2008, p.17).

Em nossa pesquisa buscamos rastrear alguns elementos da identidade de alguns personagens, construtos tecidos com a costura da contaminação ideológica, na qual os desfavorecidos ocupam naturalmente as suas condições inferiores. Fazemos isso porque intuímos que a literatura, estranho espelho do mundo, tem o seu quinhão de contribuição para a construção de perfis identitários nos quais os menos favorecidos são vítimas naturalizadas, somente para identificar um dos muitos exemplos, de suas próprias incapacidades e não de sistemas interessados em aliená-los de suas dimensões como sujeitos históricos: As grandes obras-primas da literatura mundial delineiam sempre, cuidadosamente, a fisionomia intelectual dos personagens. E a decadência da literatura manifesta-se sempre e - talvez jamais tão claramente como nos tempos atuais – na pobreza da fisionomia intelectual, no fato de que escritores ou negligenciam conscientemente este problema, ou não têm condições de colocá-lo e resolvê-lo. (LUCÁKS,1968, p. 188).

O fenômeno da tipificação do personagem está ligado a elementos que são de fundamental importância para a compreensão da ação da ideologia nas narrativas romanescas. Ou seja, a própria aptidão do personagem em, através de suas características e ações, fornecer as suas concepções de mundo fazem com que o leitor compreenda os elementos oriundos da relação problemática entre o real e o imaginário a fim de reconstruir as bases da verossimilhança que dará um estatuto mais ou menos firme às máscaras que atuam nas tramas. É dessa forma que, em nosso trabalho, num primeiro momento, resolvemos nos concentrar na leitura de um de nossos textos literários,O cortiço, para tecer as nossas considerações e aplicar o escopo teórico com o qual temos trabalhado. Estamos realizando um trabalho que procura perceber as bases históricas e ideológicas de Bertoleza, a mulata cafuza que passa por toda a narrativa a trabalhar obsessivamente para João Romão a fim de ganhar a dignidade de se tornar uma pessoa, de transcender o seu estatuto de objeto. O seu final trágico é justamente a

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constatação de que todo o seu esforço foi inútil – o processo de reificação com o qual lutou durante toda a sua vida foi responsável por seu retorno à condição de escrava, fato que acabou por se transformar na causa de seu suicídio. O que podemos perceber é que o personagem caracterizado reflete os problemas de seu tempo, mas sob uma perspectiva ideológica muitas vezes singular. É nesse momento que encontramos a relação entre o personagem e a alienação ao seu próprio tempo ou mesmo à sua própria classe. Na verdade, os problemas são realmente os que podemos perceber como pertencentes ao tempo, mas o que se torna importante, mas do que uma caracterização do tempo é a visada, a perspectiva sob a qual ele é observado. De quais formas é possível percebemos esse fenômeno? Será que as ideias presentes em nosso tempo também não nos influenciam igualmente ao ponto de nos colocar sempre sob a ótica de uma determinada perspectiva? Em quais critérios esbarramos quando dizemos que é absurdo o determinismo que caracteriza como inferior as etnias negra e indígena e superior a europeia? Acontece é que o livro não foi escrito para ser lido apenas por nossos ancestrais, talvez menos conflitados pela razão – a nosso ver, absurda – entre etnias dispostas hierarquicamente. Esses textos servem, hoje, como fonte de enganos se forem lidos sem um aparato teórico e ideológico que disperse fenômenos como o da eugenia que embasou ideologicamente por tantos anos a relação mais ou menos conflituosa entre senhores e escravos. Hoje em dia, é claro que o fenômeno da eugenia, por exemplo, perde a sua força e chega a nos parecer inverossímil, mas não pelas razões e pelas explicações ou mesmo pela ótica com as quais são dimensionados e inseridos na narrativa. Dessa forma, podemos chegar à conclusão de que há o encobrimento de uma realidade de formas de apresentação de poder e a sua real dimensão ou melhor a sua dimensão mais concreta. Na dimensão concreta, o determinismo das classes se perde e aflora a relação mais clara de formas de dominação que estão presentes na imanência das relações e que podem ser descobertas através da comparação e do desvendamento das relações históricas que efetivamente ocorreram. É preciso tomar consciência de que as relações sociais transpostas para o texto literário são vistas por um aspecto, por uma fase, por uma ótica e que essa se transforma em premissas ideológicas que ajudam a tecer o perfil dos personagens. 88

Memória, identidade e cultura: ensaios É necessário que o analista tenha consciência de que a tomada de posição em relação ao problema deve ser uma tomada consciente da presença dos construtos como problemas que precisam ser desvendados, desconstruídos e redimensionados tendo em perspectiva a presença mesma dessas formas ideológicas. Aí está a diferença entre a naturalização e o problema, posto que o problema é aquilo que poderá ter uma solução, que chama e que pede o auxílio da razão para que ele seja resolvido. Da mesma forma, aquilo que está naturalizado no mundo não se oferece com um problema, justo porque a força ideológica procura homogeneizálo às práticas de forma que não vejamos as relações de poderio como elas são realmente, mas como contingências imanentes à própria vida, ou mesmo às condições mesmas da própria existência: Uma caracterização que não compreenda a concepção do mundo própria do personagem não pode ser completa. A concepção do mundo é a mais elevada forma de consciência; por isso, o escritor que a ignora suprime o aspecto mais importante do personagem que pretende criar. A concepção do mundo é uma profunda experiência pessoal do indivíduo singular, uma expressão altamente característica de sua íntima essência, e reflete ao mesmo tempo os problemas gerais da época. (LUKACS, 1968, p. 189).

E se essa concepção de mundo, conforme nos mostra Lukács, está fundamentada em um construto ideológico que ratifica a posição inferior de determinadas classes sobre as outras? Se essa construção não tem outra função, além de compor uma caricatura, de naturalizar uma hierarquia na qual os menos favorecidos ocupam um lugar que lhes é formalizado pelos construtos ideológicos do texto? Nem sempre a formulação anterior é óbvia e se realiza através da submissão pelo trabalho. A literatura também pode marcar a presença de trabalhadores que, apesar de sua condição inferior, possuem uma relativa independência. Nesse caso, a força laboral pode significar para o personagem a libertação da dependência de gênero, que confina a mulher num grau inferior, passivo em relação ao seu marido, tradicionalmente concebido como o gestor da família. Na verdade, o construto ideológico que a caracteriza está voltado para a sua capacidade de se tornar o elemento destruidor do personagem Jerônimo através de sua sexualidade transgressora da família tradicional. Ela, perigosamente, escolhe os seus parceiros. Sua feminilidade brasileira será a responsável pelo fim do casamento de Jerônimo, como também por sua derrocada e decadência no alcoolismo.

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Escapando do livro O cortiço, nossa pesquisa também está voltada para a caracterização da confecção de identidades sob o aspecto da união entre as favelas e a classe média burguesa carioca sob o domínio do samba. É dessa forma que o que fazemos é tanto mais mostrar os elementos essenciais que estão imersos nas naturalizações ideológicas impregnadas nas narrativas a fim de evidenciar as contradições que se mostram perfeitamente visíveis e que podem nos levar a traçar considerações importantes sobre o caráter geral do tempo em que a obra nasceu ou mesmo o

confronto entre as temporalidades

específicas intrínsecas à obra ou extrínsecas ao texto mas presente como elemento de formação quando da gênese ou criação do texto literário. Ainda com Lukács, podemos notar que: O profundo conhecimento da vida jamais se limita à observação da realidade cotidiana, mas consiste, ao contrário, na capacidade de captar os elementos essenciais, bem como de inventar sobre tal fundamento, personagens e situações que sejam absolutamente impossíveis na vida cotidiana, as que estejam em condições de revelar, à luz da suprema dialética das contradições, as tendências e forças operantes, cuja ação é dificilmente perceptível na penumbra da vida de todos os dias.(LUKÁCS, 1968, p. 196).

Nessas tendências e forças da vida cotidiana encontram-se as formas de dominação implícitas na superestrutura ideológica retratada nos textos que estudamos em nossa pesquisa. Nosso trabalho é revelá-las em sua dimensão de construto, em estratégias narrativas que demonstram os jogos dialéticos do poder de tecer o perfil de personagens que se tornam representativos das classes sociais menos favorecidas. O que realmente nos apavora na maldição de Sísifo não é a ação do personagem, a repetição mesma de um ato que se multiplica no infinito, mas o estado de sua subjetividade em relação à ação repetitiva. Como ele, tentamos enganar a morte somente para ter a certeza de sua inexorabilidade. Como ele, sabemos que não poderemos impedir as forças que levarão a pedra para o seu estado de origem. E mesmo assim, como ele, não desistimos. Talvez sejamos renovados a cada vez que a pedra retorna ao seu ponto de partida, posto que se a ação é repetitiva, o sujeito que a realiza não é. A cada tentativa, como diria Heráclito, somos novos e os mesmos. Apesar do sofrimento, renovamo-nos e essa é a questão mais importante. A questão fundamental não se

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Memória, identidade e cultura: ensaios encontra no trabalho, mas na renovação do personagem que acredita realmente que aquela será última vez que a pedra será levada para o alto. E o que seria o trabalho de Sísifo senão a luta contra os mesmos problemas que, em vão, a civilização tenha resolver – o medo da morte, o ódio pelo outro, a transgressão da igualdade, da fraternidade e da liberdade, a tradição esmagadora da dominação do homem pelo homem? A força da gravidade que inexoravelmente leva a pedra ao seu ponto de origem está em nós – são as nossas pulsões egóicas, a força de nossa sobrevivência individual e talvez a causa do fracasso do homem genérico da utopia marxista. Só nos resta, claro, continuar a empurrar a pedra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: AZEVEDO, Aluísio. Aluísio Azevedo: ficção completa em dois volumes. Rio de Janeiro (RJ): Nova Aguilar, 2005. v. 2. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2008. LUKÁCS, György. Marxismo e teoria da literatura. São Paulo: Civilização Brasileira, 1968. LINS, Paulo. Desde Que O Samba e Samba (Em Portugues do Brasil). São Paulo: Planeta do Brasil, 2012.

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MEMÓRIA E IDENTIDADE: TRAVESSIAS HISTÓRICO-SOCIAIS

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SIGNIFICADOS DE SER ABOLICIONISTA: JORNAIS CIDADE DO RIO E GAZETA NACIONAL NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA SOBRE O FIM DO CATIVEIRO Andréa Santos da Silva Pessanha1 Chaiene Silva de Oliveira Andrade2 Neste artigo, discutiremos os significados de ser abolicionista, no período próximo à assinatura da Lei Áurea, em dois jornais que participaram da campanha contra o cativeiro na capital do Império, a saber: Cidade do Rio e Gazeta Nacional. Ao fazermos esta opção, analisaremos como estas duas folhas buscaram construir a memória sobre o processo que culminou no término do trabalho escravo e como tais periódicos sedimentavam sua identidade em um contexto dinâmico para a imprensa brasileira. Em novembro de 18887, o jornal Cidade do Rio ao condenar à violência praticada pela polícia de Campos contra os abolicionistas, assim caracterizou o grupo: Cônscios da grande responsabilidade que temos perante a história de nosso país, temos querido somente caminhar dentro da legalidade, quando já devíamos ter empregado os meios de que se servem nossos inimigos, e podíamos tê-lo feito, se antes de tudo não fosse nosso intuito salvar a honra de nossa pátria sem recorrer a meios revolucionários3.

Já em abril de 1888, o jornal Gazeta Nacional, em abordagem à fuga de escravos de fazendas paulistas, procurou demonstrar que os cativos não cometiam violência ao abandonarem os proprietários em função do espírito ordeiro que os abolicionistas procuraram cultivar: “O historiador dessa enorme crise social e econômica terá de registrar essa pureza de intenções, esse escrúpulo em evitar perverter o espírito do escravo, armando-o contra o opressor e induzindo-o a vindita sangrenta(...)”4. Este papel na manutenção da ordem era primordial porque, na visão 1

Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense. Professora da UNIABEU – Centro Universitário. Professora da FAETEC – Secretaria do Estado de Ciência e Tecnologia/ RJ. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq “Poéticas do Contemporâneo: estudos de sociedade, história e literatura”. Membro do Grupo de Pesquisa “Grupo de Estudos Afrobrasileiros e Educação”. Membro do Laboratório Memória e Identidade com apoio financeiro da FAPERJ. 2 Graduada em História do UNIABEU. Bolsista de iniciação cientifica da FAPERJ. Pesquisadora do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade da UNIBEU. 3 07 de novembro de 1887, p.1. 4 Gazeta Nacional, 29 de abril de 1888, p.1.

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Andrea Santos da Silva Pessanha Chaiene Silva de Oliveira Andrade da folha, estes agentes eram os amigos que os cativos confiavam: “Verá essa multidão negra (...) voltar olhos esperançados para os poucos amigos que proclamavam seus direitos de homens (...)”5. A leitura das passagens acima indica que a preocupação com a construção da memória sobre a abolição no Brasil foi basilar para os homens da imprensa do Rio de Janeiro de então. Os trechos fizeram referência à história ou aos historiadores, explicitando o desejo que a imagem que consolidavam para os agentes do fim do cativeiro não fosse reconhecida somente pelos contemporâneos, objetivavam uma projeção para a posteridade. As identidades que sedimentavam no presente, deveriam ser lembradas no futuro. Desta forma, os artigos buscavam padronizar motivações, projetar destinos e oferecer significado às trajetórias dos abolicionistas ligados aos periódicos (VELHO, 2003, pp. 103-105). Nos últimos momentos da escravidão, a memória alimentava, consolidava a identidade deste grupo na imprensa. Memória e identidade são campos intrinsecamente ligados quando pretendemos entender as trajetórias e os significados atribuídos aos agentes e grupos sociais. Identidade é uma construção social, produzida na complexa relação do indivíduo de uma comunidade com outros agentes desta. Memória refere-se a uma reconstrução atualizada do passado. Não se trata, pois, de uma reprodução fiel. As experiências pretéritas são reinventadas a cada fase da vida do indivíduo e a cada geração. Ao mesmo tempo em que modelam os sujeitos e as sociedades, são modeladas por estes (CANDAU, 2014, p. 16). Nesta perspectiva, devemos olhar conjuntamente para as concepções pessoais, para as experiências intersubjetivas e para as formas coletivas. A percepção que o indivíduo possui de si depende, entre outros aspectos, da percepção que tem de seu grupo social,do encontro que estabelece com outras comunidades - que podem estar temporal ou geograficamente próximas ou distantes – e da compreensão do passado6. O jogo da memória que fundamenta a identidade é construído por lembrança e esquecimento (RICOUER, 2007). 5

Idem, ibidem. Na Psicologia, em sintonia com a História, com a Antropologia e com a Sociologia, existe uma concepção semelhante quando se discute a relação trajetória, memória e identidade: “Os significados presentes nas histórias de vida são polifônicos, construído ao longo de gerações, em um jogo entre histórias coletivas e individuais, gerados na relação dos indivíduos que se desenvolve, sendo afetados pelos valores e crenças construídos nas interações sócio-históricas” (BARBATO & CAIXETA, 2011, p. 106). 6

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Memória, identidade e cultura: ensaios A imprensa do Rio de Janeiro na fase do ocaso do Império participou do jogo do poder da sociedade. Os artigos eram uma maneira de resguardar o que aqueles homens pretendiam que fosse eternizado, ocultado ou preterido. A forma como as narrativas eram apresentadas representava a construção seletiva da memória, a afirmação de uma versão contemporânea sobre os acontecimentos em detrimento de outras (BARBOSA, 2000, p. 64). Assim, os periódicos eram, por excelência, espaço de poder ao assumirem papel central na dinâmica do que as elites desejavam que fosse lembrado e esquecido e, fundamentalmente, como os sujeitos/acontecimentos fossem registrados (LE GOFF, 2003, p.422). Compartilhamos da visão que mesmo os relatos e lembranças individuais são coletivos, já que foram sistematizados a partir das experiências vividas dentro de um grupo (HALBWACHS, 2003, p. 30). Da mesma maneira, concordamos com a concepção que um discurso nunca rompe um silêncio absoluto, pois faz parte de uma rede de comunicação (BAKHTIN, 1997: p. 291). Por natureza, sempre dialoga com outros textos e são representativos de sua contemporaneidade. A escolha destes periódicos ocorreu pela proeminência que tiveram na Corte ou pela projeção social dos que estavam em sua direção ou colaboraram em seus números. Entre estes sujeitos, encontramos o monarquista André Rebouças (concentrou a divulgação de seus artigos antiescravistas no Cidade do Rio), o republicano Aristides Lobo (redator principal do Gazeta Nacional) e José do Patrocínio (proprietário do Cidade do Rio) que transitou entre republicanos e monarquistas. O Cidade do Rio foi fundado em 1887 por José do Patrocínio e ficou sob sua direção até 1903, ocasião em que o jornal foi a falência. Foi um dos principais órgãos da imprensa abolicionista na Corte (FERACIN, 2006: 151) e “servia de espaço para respostas” de grupos contrários aos republicanos do Rio de Janeiro no que tange à abolição e ao papel desempenhado pela princesa Isabel (MACHADO, 2010: 314). Com quatro páginas, dedicava as iniciais às questões antiescravistas e às polêmicas com outras folhas, por exemplo, a Gazeta Nacional. Promovia manifestações públicas, estimulando os meetings abolicionistas. Na última página, encontravam-se os anúncios. A Gazeta Nacional tinha por subtítulo Órgão Republicano, explicitando sua vinculação partidária (PESSANHA, 2010). Aristides Lobo, signatário do Manifesto Republicano de 1870, foi seu redator. Circulou na Corte de dezembro de 1887 a 95

Andrea Santos da Silva Pessanha Chaiene Silva de Oliveira Andrade junho de 1888. Com quatro páginas, era de circulação diária, não saindo somente na segunda-feira. Na primeira página, estavam os artigos propriamente de divulgação da campanha abolicionista e da republicana. A última página também era dedicada aos anúncios. Era conhecida e lida por expoentes contemporâneos ligados ao Partido Republicano. José do Patrocínio, com quem travou polêmicas, lastimou o fato dos republicanos permitirem que por problemas financeiros a Gazeta chegasse ao fim. O jornalista paulista Rangel Pestana recomendou a leitura do artigo da Gazeta sobre as comemorações do 13 de Maio e reproduziu parte de seu conteúdo. Evaristo de Moraes(1985, p. 18), escrevendo suas memórias sobre o movimento republicano em 1936, destacou a presença da folha entre os republicanos da Corte. Pelos nomes envolvidos nas duas redações, ao analisarmos seus artigos, encontrar-nos-emos com o pensamento da Geração de 1870. Esta foi composta por uma intelectualidade que pensou o Brasil do final do século XIX, criticando a ordem política, econômica e social e elaborando projetos que colocassem o país no rumo do progresso e da civilização7. A Europa e os Estados Unidos eram exemplos que deveriam ser seguidos na concepção destes homens. Atuaram principalmente como jornalistas, médicos, advogados, engenheiros e além de uma postura de interpretação do contexto, preocupavam-se com a intervenção na sociedade. O recorte temporal, de 1887 a 1889, atende à busca de uma aproximação com as narrativas difundidas na imprensa nos momentos finais da escravidão - fase em que a campanha abolicionista inflamou a cidade do Rio de Janeiro – e no período imediatamente posterior ao 13 de Maio. Antes da assinatura da Lei Áurea, apesar das diferenças políticas entre o Cidade do Rio e a Gazeta Nacional, podemos identificar um ponto convergente na imagem que buscavam veicular sobre os abolicionistas. Estes eram retratados como homens que agiam com consciência de sua responsabilidade com o presente e com o futuro, portanto, com a história, sem recorrer a meios revolucionários e com escrúpulo em evitar perverter o espírito do escravo. Alcançar o fim do cativeiro a partir da ordem social era a tônica das duas folhas mesmo nos momentos de maior agitação entre os escravos. A postura dos dois periódicos reforça o pensamento da Geração de 1870 em relação ao trânsito do trabalho escravo para o livre. A manutenção dos níveis de 7

Um estudo sobre a Geração de 1870 com uma distinção entre seus grupos políticos a partir da aproximação ou afastamento com o Império, encontramos em ALONSO (2002, p. 165-222).

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Memória, identidade e cultura: ensaios produção, do vínculo entre antigos proprietários e cativos e, no limite, da paz social eram elementos constantes nas narrativas. Neste sentido, o Cidade do Rio publicava em novembro de 1887: Não para suplicar, mas para esclarecer, cumpre os abolicionistas dizer a Vossa Alteza Imperial que eles não querem a anarquia. Para saber o autor de um crime desconhecido, é preciso, antes de tudo, saber a quem ele pode aproveitar. Não é aos abolicionistas que aproveita a anarquia, nesta última hora da escravidão.8

Seguindo a mesma lógica sobre o papel dos escravos, a Gazeta Nacional apresentava em suas páginas em abril de 1888: Nem os abolicionistas tão injuriados na dolorosa fase de luta de conquista incansável, fizeram do escravizado um ente pervertido e criminoso, nem o escravo tem-se mostrado inapto para esta mudança de condição, hoje prometido, embora de modo vago, pelo governo.9

A palavra crime, criminoso são termos que constam nos dois fragmentos 10. A atuação dos abolicionistas foi representada como oposta à violência, não estimulando ações que ameaçassem à sociedade como um todo ou aos senhores em particular. As folhas esforçavam-se para dissociar a imagem da luta pelo fim do cativeiro com o conflito. Veiculavam que os escravos, mesmo quando em fuga, agiam no sentido de fazer valer a dignidade humana, não objetivavam a quebra da ordem social. Os abolicionistas tinham um papel importante nesta conduta. A afirmação de André Rebouças no jornal Gazeta da Tarde11, em ano anterior ao recorte deste estudo, corrobora esta concepção: “Nesse longo período, ainda não foi possível aos escravocratas, senhores de todas as posições oficiais, dispondo de fortunas colossais; levar a juízo um abolicionista e provar que ele tivesse cometido o menor delito”.12

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21 de novembro de 1887, p.1. 29 de abril de 1888, p.1. 10 Um instigante estudo sobre processos criminais envolvendo escravos e forros, encontramos em PIRES (2003) que,ao abordar os motivos dos delitos, agentes, possibilidades de interpretações das falas e espaços de conflitos, reconstruiu as experiências cotidianos destes sujeitos. Sobre o medo que a ação dos cativos gerava nos segmentos proprietários, ver AZEVEDO (1987). 11 Jornal de propriedade de José do Patrocínio. 12 05 de maio de 1884, p.1. 9

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Andrea Santos da Silva Pessanha Chaiene Silva de Oliveira Andrade O Cidade do Rio e a Gazeta Nacional apresentavam diferenças no que tange ao tripé monarquia – república –abolição, porém detectamos um ponto de interseção na visão que pretendiam sedimentar para os contemporâneos e para o futuro sobre a atuação dos abolicionistas. O paternalismo foi o cimento das narrativas. Ele e a pedagogia da violência foram mecanismos utilizados pelos proprietários para controle dos escravos desde o Brasil-Colônia. Na imprensa abolicionista da cidade do Rio de Janeiro, o paternalismo apresentava-se numa linguagem que buscava a mediação dos conflitos entre senhores e escravos (MACHADO, 1991; PESSANHA, 2005). Por meio de um estilo sentimental, almejava-se a sensibilização da opinião pública, uma mudança de comportamento em relação à escravidão. Era propagado que a conciliação ligava-se à construção de vínculos de gratidão dos escravos em relação aos senhores. Neste sentido, a estratégia deveria ser a concessão de manumissões, que colocariam em relevo a benevolência senhorial. Os abolicionistas eram promotores da mudança sem desestabilização, pois conciliavam a defesa dos interesses humanitários dos cativos às necessidades das fazendas. Após o 13 de Maio, na disputa da construção da memória da abolição, existiu um afastamento do jornal Gazeta Nacional em relação à outras retóricas antiescravistas. O Cidade do Rio apresentou uma nova causa: a defesa da abolição sem indenização. Já a Gazeta Nacional permaneceu omissa a esta discussão e colocava a emergência da república como complemento do fim do cativeiro. Assim, se antes da abolição encontramos pontos de convergência, após a Lei Áurea o afastamento se acentua, chegando a existir uma polêmica entre os dois periódicos. No mês posterior à assinatura da Lei Áurea, a Gazeta Nacional explicitava que a república significava a manutenção do país no rumo do progresso. A defesa do fim da centralização política seria a nova causa da folha: A liberdade da raça escravizada deve seguir a liberdade política da pátria. (...) Cidadãos, trabalhemos. Não percamos tempo. É necessário inaugurar a República Federal. É a conclusão da obra iniciada com a abolição do cativeiro. Continuemos a ser abolicionista13.

Neste mesmo período, o jornal Cidade do Rio publicava: 13

05 de junho de 1888, p.1.

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Memória, identidade e cultura: ensaios A Propaganda abolicionista foi sempre feita evangélica e cientificamente. Combatemos nove anos em nome da caridade de Jesus, da Religião da Humanidade de Augusto Comte, da consanguinidade e da unidade atávica de todos os seres da Família Humana, seguindo Charles Darwin. (...) Fomos e somos, ainda neste momento, evolucionistas.14

Qual era o sentido da evolução esperada naquele momento pela propaganda abolicionista? Era justamente a firmeza do ideal da abolição sem indenização. A cisão com os republicanos era fortalecida nos discursos a partir do embate sobre a compensação financeira. De acordo com esta lógica, em junho de 1888, o Cidade do Rio argumentava: A lei de 13 de maio de 1888 extinguiu a escravidão, mas o escravismo ficou vivo, aceso e flamejante. Ele está proliferando monstruosamente; gerando e dando à luz indenizistas, republiquistas e hipotequistas aos milhares.15

José do Patrocínio assumiu que a luta contra a indenização era a razão de permanecer na imprensa: Terminada a 13 de maio, na lei, a luta abolicionista, pensei em retirar-me da imprensa, posto que para mim não tinha sido senão dos mais cruciante sacrifício. Eu esperava apenas registrar as aclamações triunfais à abolição, para dar por finda minha missão jornalística. Fui, porém, surpreendido pela grita de uma propaganda que ameaçava destruir pela indenização a obra imortal de 13 de maio. O meu lema, desde o primeiro dia em que me apresentei ao público, foi sempre abolição imediata e sem indenização. Os escravistas reclamavam esta; eu conservei na imprensa para resistir-lhe16.

A indenização tornou-se ponto de ruptura entre os abolicionistas da Corte e os republicanos. A estratégia da Gazeta Nacional era a omissão no que tange ao ressarcimento aos proprietários. Procurava fortalecer a identidade do grupo como abolicionista a partir da defesa do fim da centralização política representada pela monarquia, da defesa do federalismo:

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22 de junho de 1888, p.1. 27 de junho de 1888, p.1. 16 04 de janeiro de 1889, p.1. 15

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Andrea Santos da Silva Pessanha Chaiene Silva de Oliveira Andrade Ao tratar-se da urgente reforma e supressão da escravatura em nosso país, foi nosso parecer que deveria ela arrastar consigo o trono e instituições que a favorecerem e dela hauriram vida e selva. (...) É nossa crença indestrutível que a libertação dos escravos só podia efetuar-se simultaneamente a nossa emancipação política17.

Para a Gazeta Nacional, uma posição favorável à indenização poderia gerar afastamento de fazendeiros, que viam na mudança de regime uma possibilidade de compensação pela perda dos cativos. Já próximo à assinatura da Lei Áurea, a folha consolidava as bases de seu abolicionismo recorrendo ao passado, não assumia uma postura mais contundente sobre a compensação financeira: “Hoje (...), podemos dizer, como os republicanos de 1817, que a suspeita de sermos abolicionistas nos honrou, quando essa suspeita era cheia de perigos;depois que ela se tornou gloriosa só ao governo e aos seus amigos pode ser lançada”18. Desta forma, o Cidade do Rio e a Gazeta Nacional tiveram pontos de aproximação e de afastamento ao longo da campanha antiescravista na Corte. O paternalismo foi o ponto de interseção por meio de um discurso que enfatizava a preocupação dos abolicionistas com a ordem, em conter qualquer ação mais abrupta dos escravos. No limite, a alforria deveria ser alcançada pela benevolência senhorial, das associações ou do Estado. No discurso destes jornais, a ação direta dos cativos poderia gerar instabilidade - muito embora fosse inevitável naquele contexto - tinha na conduta pacífica dos abolicionistas uma garantira para manutenção da ordem. Com o 13 de Maio, as diferenças entre os dois periódicos afloraram-se, tendo a indenização como divisor de águas. Para a Gazeta Nacional, ser abolicionistas era defender a liberdade política através da república. Já para o Cidade do Rio, ser abolicionista era permanecer na luta contra a indenização. Estas questões fundamentais para os contemporâneos forneceram elementos para a consolidação da identidade dos dois periódicos, atraindo um público leitor, e projetando uma imagem para o futuro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES: Cidade do Rio -07 de novembro de 1887, 21 de novembro de 1887, 22 de junho de 1888, 27 de junho de 1888, 04 de janeiro de 1889. 17 18

22 de maio de 1888, p.1. 24 de abril de 1888, p.1.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Gazeta da Tarde – 05 de maio de 1884. Gazeta Nacional -29 de abril de 1888, 24 de abril de 1888, 22 de maio de 1888, 05 de junho de 1888. AZEVEDO, Célia Maria. Onda negra, medo branco. O negro no imaginário das elites. Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. BARBATO, Silviane; CAIXETA, Juliana Eugenia. História de vida, identidade e memória: uma proposta metodológica In: BASTOS, Liliana Cabral; LOPES, Luiz Paulo da Moita. Estudos de identidade: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2011. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1997. BARBOSA, Marialva. Os donos do Rio. Imprensa, poder e público. Rio de Janeiro: Vícios de Leitura, 2000. CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014. FERACIN DA SILVA, Ana Carolina. De“papa-pecúlios” a Tigre da Abolição: a trajetória de José do Patrocínio nas últimas décadas do século XIX. Tese de Doutorado em História. Campinas, UNICAMP, 2006. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003. MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e brados: a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro. 1880-1888. Tese de Doutorado, São Paulo: USP, mimeo,1991. ____. Encontro e desencontros em José do Patrocínio: a luta contra a indenização aos “Republicanos de 14 de Maio” In: RIBEIRO, Gladys; FERREIRA, Tânia (orgs.) Linguagens e práticas da cidadania no século XIX. São Paulo: Alameda, 2010. MORAES, Evaristo. Da monarquia para a república (1870-1889). Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1985. MOUILLAUD, Maurice. O nome do jornal. In:MOUILLAUD, Maurice; PORTO, Sérgio. (orgs.) O jornal. Da forma ao sentido. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2002. PESSANHA, Andréa Santos. Da abolição da escravatura à abolição da miséria: a vida e as idéias de André Rebouças. Rio de Janeiro: Quartet/UNIABEU, 2005. ____. O Paiz e a Gazeta Nacional: imprensa republicana e abolição. Rio de Janeiro. 1884-1888. Tese de doutorado – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. PIRES, Maria de Fátima Novaes. O crime na cor: escravos e forros no Alto Sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo: Annablume/FAPESP, 2003. RICOUER, Paul. A memória, a história, e o esquecimento. Campinas: UNICAMP, 2007. VELHO, Gilberto. Memória, identidade e projeto. In: Projeto e Metamorfose. Antropologia das Sociedades Complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

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MEMÓRIAS DO CATIVEIRO: OS ESCRAVOS DA FAMÍLIA JORDÃO DA SILVA VARGAS, LITORAL SUL-FLUMINENSE, SÉCULO XIX Márcia Cristina Reis de Vasconcellos1

INTRODUÇÃO

Os vínculos de parentesco e de amizade estabelecidos pelos escravos de dois proprietários angrenses, Manoel Jordão da Silva Vargas e Antônio Jordão da Silva Vargas, irmãos, membros de uma das famílias mais numerosas da região e integrantes da elite local, serão analisados nas folhas a seguir. Para que possamos adentrar o cotidiano das senzalas pertencentes aos Vargas, analisamos: o patrimônio catalogado em seus inventários post-mortem, que se encontram no Museu da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, os registros de batismos e de casamentos presentes nos livros paroquiais de escravos existentes no Convento do Carmo e na Igreja de Jacuecanga, em Angra dos Reis, e dados contidos no Almanak Laemmert e em livros produzidos por historiadores locais.

PASSEANDO POR ANGRA DOS REIS

A cidade que hoje conhecemos como Angra dos Reis, no litoral sulfluminense, foi localizada pelos portugueses no dia 6 de janeiro de 1502. (MENDES, 1995, p. 7). Entretanto a ocupação do território, como em outras partes da América portuguesa, sofreu avanços e recuos em função de embates com os povos nativos. (ALMEIDA, 2013). Em 1560, a localidade foi elevada à condição de povoado, ocupando o território conhecido como Vila Velha, em frente a Ilha da Gipóia. Em 1593, tornou-se paróquia sob a invocação dos Santos Reis Magos, estendendo-se da margem esquerda do Rio Itaguaí à Ponta do Cairu, compreendendo, além do atual município de Angra, o maior em extensão, também os de Mangaratiba e de Parati (LIMA, 1972, p. 89). Nessa centúria, uma das atividades desenvolvidas era a lavoura da cana-de1

Doutora em História pela USP. Professora do curso de História da UNIABEU e das Faculdades Integradas Campograndenses (FIC´s/FEUC), Rio de Janeiro. Membro da equipe de pesquisadores do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade.

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Memória, identidade e cultura: ensaios açúcar e de alimentos, e a pesca da baleia praticada na foz do rio Mambucaba (MACHADO, s.d., p. 20). No século XVII a povoação transformou-se em vila e deslocou-se para o atual sítio, em frente à Ilha Grande. (CAPAZ, 1996) Em 1667, com a fundação da paróquia de Nossa Senhora dos Remédios de Parati, o território de Angra passou a ter como limites a faixa de terra entre o rio Itaguaí e o rio Mambucaba (LIMA, 1972, p. 153). Durante esses anos, o porto de Angra teve um modesto crescimento e um pequeno comércio era realizado com o interior, “serra acima”. Instalou-se, na segunda metade do século, um estaleiro para a construção de fragatas que seriam usadas para a navegação e policiamento marítimo, e difundiu-se a pesca da baleia. O intenso contado com a Baía da Ilha Grande estimulou a pesca. A vinculação com o mar foi igualmente vista por Marcílio (1986), em relação a Ubatuba: “essa paisagem facilitou e, mesmo convidou seus moradores à vida marítima, da pesca artesanal à navegação costeira” (MARCÍLIO, 1986, p. 40). Na virada para o século XVIII, a descoberta de ouro na região que denominou-se Minas Gerais promoveu uma mudança no ritmo de vida de toda a colônia, inicialmente visível para aquelas localidades que diretamente serviram-lhe de acesso (SOUZA, 1994, p. 32), como Parati e o resto do litoral sul-fluminense. A partir daí, houve uma corrida de homens, vindos de outras partes da colônia e de “além-mar”, rumo às minas. Não obstante, a única alternativa de acesso ligando o Rio de Janeiro àquela área era Parati (SOUZA, 1994, p. 33), por meio do “Caminho Velho” do Rio de Janeiro ou dos Guaianazes. Pelo “Caminho Velho”, ia-se do Rio de Janeiro, por mar, até Parati. De Parati seguia-se por terra até Taubaté, “onde era vencida a Serra do Facão” (SOUZA, 1994, p. 33), considerada de grande aspereza e hostil. De Taubaté, chegava-se a Pindamonhangaba, Guaratinguetá, até as roças de Garcia Rodrigues e, finalmente, ao Rio das Velhas (ANTONIL, 1982, p. 184). Segundo Antonil (1982, p. 184), o trajeto era concluído em 30 dias. O movimento acabou dinamizando Parati. “A vila tinha crescido, cultivou-se mais a terra, aumentou o movimento do porto, do comércio, do transporte de mercadorias e escravos” (SOUZA, 1994, p. 37). A agitação que se abateu sobre a comunidade paratiense, também beneficiou a vila de Angra, para onde foram os “descaminhos” do ouro: A partir de Angra dos Reis, desde o início do século XVIII, subiam exploradores da Serra do Mar, provavelmente buscando alternativas

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Márcia Cristina Reis de Vasconcellos

para a saída do ouro proveniente das Minas. Podemos supor, assim, que por essa época o contrabando permitiu o sustento de muitas famílias e povoações angrenses (MACHADO, s.d., p. 23).

Em virtude do constante risco de contrabando, principalmente realizado no percurso marítimo do “Caminho Velho”, da aspereza e da longa duração da viagem, a Coroa incentivou a abertura de outro percurso que fosse somente terrestre entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais (SOUZA, 1994, p. 33). Foi construído o “Caminho Novo” ou de Garcia Rodrigues Paes (MACHADO, s.d., p. 23). Sobre ele, sabemos que as obras foram iniciadas ainda em 1698. Três anos depois, em 1701, dava passagem somente a pedestres (SOUZA, 1994, p. 33-34). Nos seis anos seguintes, Paes se dedicou à melhoria da estrada; enquanto Bernardo Soares de Proença realizou reparos, garantindo a diminuição do tempo de viagem, chegando, finalmente, a doze dias (SOUZA, 1994, p. 34). O trajeto diminuiu o trânsito existente no porto de Parati e, indiretamente, no de Angra. A abertura do “Caminho Novo” desviou grande parte do movimento comercial de Parati, porém, segundo Souza (1994, p. 38), a vila continuou articulada à efervescência mineira, através do vale do Paraíba  área cada vez mais povoada e produtiva, importante pólo de abastecimento das Minas. Ainda segundo a autora, “embora de importância secundária, o porto de Parati estava inserido na florescente economia da região” (SOUZA, 1994, p. 38). Os paratienses dedicavam-se também à agricultura de gêneros alimentícios e à produção da aguardente que, em pouco, se tornou uma das mais conhecidas (GURGEL; AMARAL, 1973, p. 47-48). Diante da redução do fluxo pelo “Caminho Velho”, foram abertos “caminhos” paralelos, ligando as Gerais aos portos do litoral sul-fluminense, que serviram para o contrabando. Este tornou-se prática tão habitual na região que foi criado um “sistema” de “apoio” aos contrabandistas, voltado para a comercialização de alimentos, “um sistema de suporte aos bucaneiros de além-mar, com a intensificação de contrabando e da venda irregular de mantimentos aos estrangeiros” (CAPAZ, 1996, p. 99). Esta prática ocorreu, igualmente, em diversos pontos do litoral brasileiro, por exemplo, o litoral norte paulista (FERNÁNDEZ, 1992, p. 53). Na segunda metade do século XVIII, contribuíram para que a lavoura canavieira se espalhasse do Recôncavo da Guanabara para as planícies de Campos e Cabo Frio: a transferência da sede do vice-reinado para o Rio de Janeiro,

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Memória, identidade e cultura: ensaios o desenvolvimento do porto carioca, baseado em manufaturados, escravos e ouro, e o estímulo dado pela metrópole visando a intensificação da produção agrícola colonial, incluindo, além do açúcar, fumo, anil, café etc. (SOUZA, 1994, p. 38). Para Angra, as mudanças ofereceram novas possibilidades de atividades econômicas, amenizando reflexos à economia local decorrentes da crise da mineração (MACHADO, s.d., p. 24). No final do século, o movimento portuário dinamizou-se, antigas atividades se ampliaram e novas surgiram. O cultivo de anil disseminou-se, principalmente entre as grandes propriedades (MACHADO, s. d). Expandiram-se a lavoura de alimentos e a atividade pesqueira. No entanto, a produção com maior revitalização foi a aguardente, absorvendo o cultivo da cana-deaçúcar de Angra e de Parati. (FRAGOSO, 1992, p. 81). Em 1794, Angra dos Reis já contava com 14 engenhos e 91 engenhocas (ARAÚJO, 1945, p. 67). No ano de 1799, dos 616 engenhos localizados na Capitania, 324 (52,0%) estavam ao redor de Campos, no litoral sul-fluminense havia 39 (6,3%), 25 (2,1%) em Cabo Frio e 228 (37,0%) nos contornos da Guanabara. Das 253 engenhocas, Campos possuía quatro (1,6%), Cabo Frio, nove (3,6%), contornos da Guanabara, 85 (33,6%) e o litoral sul, 155 (61,3%) (MARCONDES, 1995, p. 247248). Araújo (1945), em visita a Angra dos Reis, em fins do século XVIII, observou que: [...] apesar de não ser das melhores a situação da vila, por circulada de morros a curta várzea, em que se levantou, fronteira à Ilha Grande (da qual tomou o nome a terra firme); é contudo acomodada à vivenda, por gozar de clima temperado, ar sadio, e abundante água e ser mui apta para o negócio mercantil, distando alguns palmos da foz do mar, onde se acha seguro ancoradouro para vasos de transportes. (ARAÙJO, 1945, p. 79-80).

Havia um movimento comercial na vila, envolvendo cultivos da localidade, e “mais de quinze lanchas armadas a sumaca” (ARAUJO, 1945, p. 85), além da produção da aguardente, cultivos de arroz, café, anil, cacau, algodão, legumes, laranja, banana e mandioca para fabricação da farinha (ARAUJO, 1945, p. 68). Entretanto a área sofreu com a redução territorial em função da fundação da paróquia de Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba (LIMA, 1972, p. 153). Em fins do século XVIII, com a expansão cafeeira, o polo dinâmico da atividade econômica deslocou-se de Parati para Angra. Isso se deu em virtude não

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só das vantagens do porto localizado na vila, mais profundo e livre de assoreamento; mas também, pela existência de pequenos embarcadouros naturais, como os de Jurumirim, Bracuí, Ariró, Frade e Mambucaba, fixados na Baía da Ilha Grande, próximos às produtoras de café “serra acima” (CAPAZ, 1996, p. 100-101). O litoral sul-fluminense especializou-se no escoamento da produção proveniente do vale do Paraíba. A abertura ou melhoria das vias de comunicação no vale do Paraíba fluminense e paulista deve ter ocorrido entre fins do século dezoito e a primeira metade do dezenove, adicionalmente, como portas de saída para os cafés da mencionada região, desenvolveu-se os portos localizados no golfo angrense (MOTTA, 1999, p. 51).

Foram recuperados caminhos antigos e novos foram abertos: Pelo vale do Ariró, além da ‘estrada de barro’, à margem da qual surgiu, na primeira metade do século XIX, Santo Antônio do Capivari (hoje Lídice), no caminho em direção a São João Marcos, passavam as estradas do Caramujo (em direção a Bananal), e a ‘estrada João de Oliveira’, que desembocava na foz do Jurumirim. Pelo vale do Bracuí, outro caminho subia a serra em direção a Bananal. E pelo vale do Mambucaba atravessava a Serra da Bocaina em direção a Areias (MACHADO, s.d., p. 26).

Em Angra chegavam tropas de São João Marcos, de Resende, de Piraí, de São Paulo e de Minas Gerais (LAMEGO, 1964, p. 241). O porto, neste contexto, tornou-se de grande importância, “é o seu porto o mais próximo e o melhor dos surgidouros para a exportação” (LAMEGO, 1964, p. 241). O fluxo pelos portos de Angra foi intensificado até os anos de 1860, sendo o café

o

principal

item

de

exportação,

seguido

pela

aguardente

e

fumo

(VASCONCELLOS, 2001). O café provinha também de plantações locais, vistas por viajantes que passaram pela localidade. Segundo Pohl (1976, p. 69), que esteve no Brasil entre 1817 e 1821, os cafezais faziam parte da paisagem, além de cana-de-açúcar, bananeiras e laranjeiras. Kidder (1980) observou, em 1839, após a elevação da vila de Angra à categoria de cidade (CAPAZ, 1996, p. 175), plantações de café e de cana-de-açúcar nas terras da freguesia da Ilha Grande. (KIDDER, 1980, p. 183). Dados extraídos do Almanak Laemmert indicaram a existência de fazendeiros e lavradores de café, somando, por exemplo, 114, em 1862, enquanto, em 1854, 10 eram definidos como fazendeiros de café e aguardente e 79 se dedicavam ao cultivo de café e mantimentos. Segundo este mesmo almanaque, no ano de 1854 o café

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Memória, identidade e cultura: ensaios transportado provinha de Angra, mas também da “serra acima”: “navegam por este município cinco vapores e vários barcos que carregam café da província de São Paulo e deste município, sendo o do município acima de 250.000 arrobas” (ALMANAK LAEMMERT, 1854, p. 23). No litoral existiam armazéns de café. Sobre eles, sabemos que em 1848 havia 21 armazéns, além de negociantes de café, correspondendo a 15, no ano de 1856. (VASCONCELLOS, 2001). Enfim, em parte do século XIX, a população de todo o litoral e, em particular, da região em estudo, estava voltada para o cultivo de café e de alimentos. O movimento de seus portos, por sua vez, estimulou a economia, por meio da venda de excedentes aos homens que subiam e desciam a serra, além de propiciar [...] o aumento da oferta de empregos assalariados. Mestres de embarcações, marinheiros, caixeiros de negociantes circulavam constantemente na rota do comércio. Parte da população livre encontrou maiores oportunidades de ganhar o seu sustento no manejo dos pontos de pernoite que se formaram no percurso das tropas. Forneciam alimentação, lugar para dormir, foragem para os animais (MARTINHO & GORENSTEIN, 1993, p. 167).

No entanto, ao longo da segunda metade do século ocorreu, gradativamente, a redução do movimento portuário, associada à construção da Estrada de Ferro D. Pedro II que, em 1864, chegou a Barra do Piraí, em 1871, a Barra Mansa e, em 1877, a Queluz (EL-KAREH, 1982). O café, até então escoado pelos portos do litoral sul-fluminense, passou a ser transportado por via férrea, oferecendo aos seus usuários, mais rapidez e segurança. Além disso, a estrada de ferro [...] rompia com os antigos parâmetros de localização e velocidade, ou seja, mexia com o espaço e o tempo; mais concretamente, a ferrovia era capaz de transportar grandes quantidades de carga entre Rio e São Paulo, deixando para trás as antigas trilhas e estradas de barro, com suas tropas, cavalos e liteiras. Estas continuaram a ser utilizadas, porém perderam seu papel de transporte dominante” (MACHADO, s.d., p. 28).

Vinculado à queda do escoamento do café, a partir de 1870, “em Angra dos Reis, os casarões assobradados que tinham depósitos de café na parte térrea, foram sendo abandonados e começaram a ruir” (CAPAZ, 1996, p. 202). Destino semelhante tiveram as estradas que conduziam as produções até o litoral, como as de Ariró, de Mambucaba e de Parati (CAPAZ, 1996, p. 203). Ao lado desse fator, podemos citar o término do tráfico de escravos, em 1850. Com isso, grosso modo, ocorreu o encarecimento da mão-de-obra escrava, gerando

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dificuldades por parte dos pequenos produtores escravistas na obtenção de trabalhadores, levando muitos, inclusive, a vender seus escravos para o tráfico interno. Na década de 1880, havia em Angra um pequeno cultivo de cana-de-açúcar e o café, ainda plantado em Mambucaba e Ilha Grande, rendia ao município apenas 40.000 quilos, com preços de quatro mil réis (4$000) para cada 10 quilos (LIMA, 1872, p. 127). A aguardente continuava a ser fabricada. Mambucaba, em 1889, possuía quatro engenhos, produzindo em torno de 600 pipas anuais (LIMA, 1972, p. 175); na Ilha Grande havia seis engenhos, com fabricação de 700 pipas anuais (LIMA, 1972, p. 183); na Ribeira, 15, dando, anualmente, 1.500 pipas de aguardente (LIMA, 1972, p. 195); e em Jacuecanga, 10 engenhos produziam 1.200 pipas (LIMA, 1972, p. 203). Portanto, as vidas de Manoel e de Antônio Jordão da Silva Vargas e de seus escravos estiveram permeadas pelas mudanças ocorridas no oitocentos. A seguir, conheceremos um pouco a vida dos dois irmãos.

OS JORDÃO DA SILVA VARGAS

Ao consultarmos os livros de historiadores como Alípio Mendes (1970, 1972) e Honório Lima (1972) encontramos referências à família. Mendes (1972), em livro sobre a criação da Santa Casa de Angra, afirma que após um ano da fundação da Irmandade da Misericórdia, no centro de Angra, ocorrida em 1836, ingressaram Antônio Jordão da Silva Vargas, Tomé Jordão da Silva Vargas, Francisco Jordão da Silva Vargas, além dos médicos Clarimundo Jordão da Silva Vargas e Pedro Jordão da Silva Vargas, dentre outros (MENDES, 1972, p. 34). No ano de 1887 foi a vez de Miguel Jordão da Silva Vargas, Vicente Jordão da Silva Vargas, Felisbino Jordão da Silva Vargas, Anacleto Jordão da Silva Vargas e Antônio Jordão da Silva Vargas, esse, possivelmente, filho ou sobrinho do Antônio que estamos trabalhando (MENDES, 1972, p. 115-116) A família também deu nome a logradouros, como a antiga Travessa do Martiniano, em referência a Martiniano Jordão da Silva Vargas, atual Travessa Estevão José Pereira (MENDES, 1970, p. 403) E mais recentemente, em sessão da Câmara dos Vereadores, no ano de 1988, o vereador Nilton Barbosa dos Santos destacou as “famílias angrenses tradicionais”, como “família Jordão, 108

Memória, identidade e cultura: ensaios família Elias, família Gibrail Rocha, família Salomão Reseck, família Galindo e família Sarmento” (apud ANGRA DOS REIS-1502/2013, 2013, 94). Portanto, não resta dúvida da antiguidade e da quantidade de membros que compunham os Jordão da Silva Vargas. No entanto, infelizmente, pouco sabemos dos desmembramentos da família na passagem para o século XX. Voltemos ao século XIX: os inventários de Manoel e de Antônio foram abertos, respectivamente, em 1862 e em 1855. Embora os documentos citados acima sejam essenciais para conhecermos o patrimônio dos dois, correspondem a uma fotografia da vida material no momento da morte. Por isso, antes de apresentarmos o que os avaliadores citaram, optamos por analisar alguns dados encontrados em outras fontes, indicadas na introdução. Começamos por estudar Manoel. No Almanak Laemmert de 1848, ele aparecia como juiz de paz em Mambucaba, além de ser indicado como fazendeiro e cafeicultor. Anos antes, em 1834, reuniu-se com outros moradores de Mambucaba a fim de levantar fundos para a construção de nova igreja, em função da condição precária em que se encontrava a até então existente, construída há 79 anos. (MENDES, 1970, p. 357). Já em seu inventário aparecem plantações de café, cultivo de mandioca e canoas, que serviam para o transporte e para a pesca. Foi inventariante o genro, e, ao mesmo tempo, sobrinho, José Jordão da Silva Vargas Júnior. Seu patrimônio estava localizado próximo ao Rio Mambucaba, fronteira entre Angra e Parati, na Freguesia de Mambucaba, e na freguesia de Angra dos Reis, no centro da cidade. Manoel tinha, dentre outros, uma casa na rua das Flores, no centro da Vila, e outra na rua do Comércio, com fundos para a rua das Flores, em Mambucaba. As ruas do Comércio e das Flores concentravam os imóveis mais importantes da localidade, segundo Lima (1970). Nesta freguesia possuía, também, terras, forno e roda para fabrico de farinha, além de terras e um rancho no alto da Serra, no local chamado Faxinal. Manoel apoiava a criação de laços matrimoniais entre integrantes da família, como foram os casos de suas filhas Geraldina Angélica da Silva e de Felisbina Rosa da Silva, casadas, respectivamente, com José Jordão da Silva Vargas Júnior e Antônio Jordão da Silva Vargas, ambos sobrinhos de Manoel. Esta estratégia buscava, por certo, garantir a manutenção de parte do patrimônio entre os Jordão da Silva Vargas, o que de fato ocorreu, mas, com certeza, não da forma esperada pelo 109

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falecido. Manoel deixou aos herdeiros dívidas maiores do que o valor dos seus bens, que foram arrematados em praça pública para o pagamento dos credores, como o tenente coronel Bento José Fernandes e José Antônio Guimarães de Lemos, residentes na corte, e dois integrantes da família, Pedro Jordão da Silva Vargas e o próprio genro, José. Arrematados foram também os 17 escravos avaliados, sendo que quatro eram crianças, nascidas na localidade, e 13 adultos. Dos adultos, nove eram africanos e quatro crioulos. Dos que tinham mais que 14 anos, nove eram do serviço da roça, um trabalhava como carpinteiro e outro na cozinha. Quinze (88%) estavam envolvidos em laços familiares: foram localizadas três famílias legítimas, envolvendo sete escravos; duas ilegítimas, com seis escravos; e dois viúvos. Além do elevado percentual de cativos aparentados, também chama a atenção a manutenção das famílias após a arrematação, isto é, não houve nenhuma separação depois do falecimento de Manoel Jordão da Silva Vargas. Ou seja, uma demonstração do reconhecimento, da parte dos livres, dos vínculos parentais entre os cativos. Tais vínculos foram observados também nos registros de batismo existentes nos livros paroquiais de Mambucaba, entre os anos de 1824 e 1860. Participando dos 39 sacramentos existiam 10 famílias encabeçadas por mães, em tese, solteiras, e 17 casais legalmente unidos na igreja, confirmando a tendência ao parentesco entre escravos de Manoel. Irmão de Manoel Jordão da Silva Vargas, Antônio teve seu inventário aberto em 1855 pela viúva Dona Ana Luiza de Araújo Continho Jordão. Assim como ela, eram herdeiros 12 filhos, sendo que três eram casadas com seus tios, demonstrando uma preocupação com o patrimônio familiar. Também apareciam como genros de Antônio, os irmãos Antônio Joaquim de Oliveira Galindo e Candido de Oliveira Galindo. No Almanak Laemmert dos anos de 1848 e de 1855, apareceu como capitão e fazendeiro de café, respectivamente. A última atividade foi citada no inventário, quando foram calculados 42 mil pés de café, assim como arroz, milho, mandioca, laranjeiras, bananeiras e 15 coquinhos da Bahia. Era proprietário de dois sobrados, um em Monçuaba e outro no centro de Angra; quatro moradas de casas em Monçuaba, centro e Ilha Grande; engenho de cana, moinho de café, ranchos e canoas. Entre animais, destacavam-se quatro vacas, um touro, dois cavalos e 20 110

Memória, identidade e cultura: ensaios carneiros. Tinha posse de joias em prata e ouro, e uma pequena dívida passiva, o que permitiu que seu patrimônio fosse dividido entre seus herdeiros, ao contrário do que ocorreu com Manoel Jordão da Silva Vargas. Dos escravos que tiveram referência aos ofícios, 31 dedicavam-se ao serviço de roça, um doméstico e outro era pedreiro. Havia um remador, um serrador, uma lavadeira e um carpinteiro. Grande parte dos cativos eram africanos e com idade acima de 15 anos e 56% estavam inseridos em famílias. Destas, predominavam aquelas legitimadas pela igreja, somando sete, enquanto quatro eram ilegítimas. E, quanto aos registros de batismo, verificamos 19 sacramentos, entre os anos de 1824 até 1855, sendo sete famílias com mães solteiras, envolvendo 17 cativos, e cinco nucleares (ou legítimas), com 17 membros. Enfim, Manoel e Antônio incentivavam o reforço de laços entre membros da família, garantindo a circulação do patrimônio no interior do grupo dos Jordão da Silva Vargas. Seus escravos estavam, em geral, inseridos em laços familiares, legitimados ou não, e em vínculos de amizade com outros cativos, libertos ou homens livres. O parentesco que emergia das senzalas era respeitado pelos membros daquela família, resultando do reconhecimento da humanidade dos africanos e seus descendentes.

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PIBID UNIABEU: O ENSINO DE HISTÓRIA E IDENTIDADE. UM RELATO DE EXPERIÊNCIA Thereza Azeredo1

O curso de História da UNIABEU participa do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) com o subprojeto Identidade: Eu, Nós, o Outro. O PIBID é uma das ações do governo federal no sentido de estimular, valorizar e elevar a qualidade da formação de professores para a educação básica. Neste sentido, por meio de uma seleção da CAPES, são concedidas bolsas a alunos de graduação em licenciatura, a professores de cursos de graduação em licenciatura responsáveis pela execução do projeto selecionado e a professores de unidades escolares da educação básica nas quais os projetos serão executados. De acordo com a proposta aprovada junto à CAPES, o subprojeto Identidade: Eu, Nós, o Outro tem por objetivo discutir o caráter cultural inerente ao processo de formação da identidade e da alteridade, bem como estimular uma postura crítica e combativa em relação a comportamentos e valores que gerem preconceito e discriminação em suas variadas expressões; oportunizar, aos discentes envolvidos, a

vivência no cotidiano escolar de questões teóricas/metodológicas vinculadas a sua formação docente debatidas na universidade; e implementar, em unidades de educação básica, ações que sensibilizem para a dinâmica social que envolve a construção da identidade e da memória em diversas temporalidades e espaços. Para atingir tais metas, diversas atividades são realizadas nas escolas que participam do Programa. Com a proximidade da realização das eleições em outubro de 2014, uma das ações foi o desenvolvimento em três aulas, durante o mês de setembro, de estratégias que fomentassem o interesse pela política brasileira e que fornecessem meios para que os discentes se enxergassem como agentes de transformação social. Os alvos foram três turmas de 1º ano do ensino médio. O primeiro momento se resumiu a duas aulas expositivas e dialogadas, sendo os temas da primeira Política e cidadania: direitos e deveres e A constituição dos Poderes Legislativo e Executivo e o da segunda aula Facções políticas e posições

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Graduanda em Licenciatura em História da UNIABEU - Centro Universitário e bolsista pela CAPES do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência- PIBID.

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Thereza Azeredo

ideológicas. O intuito foi o de possibilitar uma noção da organização política tanto estrutural quanto doutrinária, que pudesse servir como ponto de partida para uma tomada de consciência. O segundo momento do projeto consistiu na apresentação de trabalho dos educandos, onde eles se organizaram em grupos políticos com causas partidárias definidas. Foi necessário todo um aparato de convencimento, como um jingle, um candidato, propostas coerentes e uma boa articulação do grupo, usados, por seu turno, como critérios de avaliação. A soma desses critérios correspondeu a uma das notas do bimestre. A encenação teve o objetivo de ressaltar, de modo lúdico, a significância do tema e aferir a compreensão dos conteúdos anteriormente ministrados. Tivemos, contudo, surpresa ao constatar resultados que não havíamos previsto. Primeiramente, o trabalho ofereceu aos alunos a oportunidade de debater problemas imediatos que os cercam na escola. O estímulo ao exercício cidadão possibilitou a autonomia de pensamento, que levou, consequentemente, a uma visão crítica com a percepção de situações inconvenientes que são próximas aos estudantes. Tal fato dialoga com o artigo 35, inciso III, da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (1996), que afirma ser de finalidade do ensino médio “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (CARNEIRO, 2010, p. 277). Acredito que os alunos tenham se percebido, ainda que em um círculo pequeno, como sujeitos históricos, o que pode ser o primeiro passo em direção a uma percepção social para além das demandas pessoais. Como afirmaram Carla Pinsky e Jaime Pinsky, cada aluno tem de se perceber a partir de seu tempo, de sua sociedade e de seu próprio contexto e, assim, ele possui a liberdade de optar. Sua vida é feita de escolhas que ele, com grau maior ou menor de liberdade, pode fazer, como sujeito de sua própria história e, por conseguinte, da História Social do seu tempo (2007, p. 28).

Outro efeito inesperado foi o de incitar nos discentes uma busca de si. A atividade acabou por ser usada como pano de fundo para defesa de suas ideologias. Houve um autoconhecimento e/ou reconhecimento de suas visões de mundo e consequente reforço das identidades dos jovens. Tratarei de três grupos em especial, mas primeiro se faz necessário definir o conceito de identidade.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Joël Candau, em sua obra Memória e Identidade, o descreve como uma representação. Segundo ele, [...] as identidades não se constroem a partir de um conjunto estável e objetivamente definível de “traços culturais” [...], mas são produzidas e se modificam no quadro das relações, reações e interações sociossituacionais – situações, contexto, circunstâncias –, de onde emergem os sentimentos de pertencimento, de “visões de mundo” identitárias ou étnicas (2014, p. 27, grifos do autor).

Kathryn Woodward (SILVA, 2014), ao analisar a identidade pela perspectiva não essencialista, dialoga com o autor ao entendê-la como um conjunto de semelhanças e diferenças partilhadas por um grupo, que são, por sua vez, mutáveis ao longo do tempo, mas acrescenta o fato dela não ser uma entidade autônoma e independente. A base da mesma está na diferença estabelecida entre as representações de outras identidades. Só há identidade se houver diferença e viceversa; sua característica é, pois, ser relacional. As mesmas representações definem condições sociais de inclusão e exclusão de um dado grupo e se este partilhará de alguns aspectos materiais da sociedade. Assim, os sistemas simbólicos fornecem novas formas de dar sentido à experiência das divisões e desigualdades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e estigmatizados. [...] A discussão sobre identidade sugere a emergência de novas posições e de novas identidades, produzidas, por exemplo, em circunstâncias econômicas e sociais cambiantes (Idem, p. 20).

Por conseguinte, a identidade é um produto das relações sociais, ao mesmo tempo em que dá significado e significação a elas. Desta maneira, podemos entender o conceito como um sentimento de pertencimento compartilhado por certo grupo de pessoas, manifestado por meio de um discurso semelhante que está, por fim, atrelado ao contexto social e político desse grupo. Assim sendo, estamos falando de várias representações, ou melhor, de identidades, no plural. Tal fato faz com que os sistemas simbólicos de um determinado grupo sejam suprimidos por outro, correntemente imperante. A partir daí, a identidade passa a ser uma maneira de autodeterminar-se frente a um sistema social, valorizando suas visões de mundo. É esse o sentido de identidade, a partir do qual devemos analisar a atividade realizada pelos discentes. Foram três propostas de grupo para a presidência. O PCA, Partido Contra o Aborto, teve um discurso radical que rejeitava a prática mesmo em casos de violência sexual, pautado em uma leitura da preservação da vida em primeiro lugar.

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Esse discurso pode estar ligado às vivências e percepções dos integrantes do grupo como um todo, em particular, concepções religiosas e como o próprio tema surgia naquele contexto nos meios de comunicação. O segundo grupo não se assumiu como um partido político, como fizeram todos de sua turma, mas como um grupo anarquista. Sua proposta baseava-se na derrubada, por meio da revolução, da falsa democracia controlada pelas grandes corporações. Procurou manter uma postura de questionamento maior às propostas e identidade colocadas pela turma. O ser diferente para ser a marca que pretendia sedimentar: [...] a identidade e a diferença se ligam a sistemas de poder. Quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade. [...] Questionar a identidade [...] significa [...] questionar os sistemas de representação que lhe dão suporte e sustentação (SILVA, 2014, p. 91).

O terceiro grupo, por seu lado, tratou de um tema comum quando o assunto é identidade. O PSP, Partido Sem Preconceito, pregou a liberdade de escolha, assim como o respeito às diferenças. As sociedades modernas [...] não têm qualquer núcleo ou centro determinado que produza identidades fixas, mas, em vez disso, uma pluralidade de centros. Houve um deslocamento dos centros. [...] Não existe mais uma única força, determinante e totalizante, [...] que molde todas as relações sociais, mas, em vez disso, uma multiplicidade de centros (LACLAU apud SILVA, 2014, p. 30).

Em um mundo plural e globalizado, como o de hoje, as identidades podem surgir de qualquer lugar dando voz a minorias antes silenciadas e marginalizadas, e é, a partir disso, que a solidariedade pode acontecer. Fazendo uma observação geral, constatamos que os temas levantados como bandeira por cada grupo refletiram preocupações individuais e sociais. Ao mesmo tempo, a forma como defenderam trazia uma carga de como eram vistos e se viam naquela unidade escolar. Assim, a partir da atividade envolvendo as eleições, emergiram questões ligadas à cidadania e à identidade. Uma ação como esta, que trate de política e cidadania, pode e deve ser discutida em outras matérias de humanidades, como Sociologia e Filosofia, por exemplo. O projeto eleições pode ser usado por outros professores como uma experiência laboratorial, sendo, obviamente, adaptado às peculiaridades de cada disciplina.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Em suma, creio que o projeto tenha alcançado resultados para além dos fins a que se aventou. A discussão/sensibilização para as questões

vinculadas à

cidadania foi inicialmente o almejado, porém o estímulo à autonomia intelectual dos estudantes, assim como o autoconhecimento e o consequente reforço de identidades, tornaram a atividade eleições uma ação enriquecedora, socialmente responsável e adequada ao momento político. Ademais, o projeto esteve atrelado, ao menos em seu estágio inicial, com a disciplina de História, não permitindo um ensino crítico operacionalizado em detrimento da visão histórica. Por fim, ele ratificou a importância do subprojeto de História da UNIABEU e dialogou com seu propósito primeiro: a identidade pessoal, a coletiva e a cultural.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CARNEIRO, Moacir Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva, artigo a artigo. 17. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. Por uma história prazerosa e consequente. In: KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5. ed. São Paulo: Contexto, 2007. CANDAU, Joël. Memória e identidade. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2014. SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 14. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

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O ELO FORTE DA CORRENTE: A IMIGRAÇÃO PORTUGUESA E O CATOLICISMO NA BAIXADA FLUMINENSE, 1950–195940 Kátia Luciene de Oliveira Santana41 Rodrigo Gomes da Costa42 Mande notícias do mundo de lá’ diz quem fica (...) Todos os dias é um vai-e-vem, a vida se repete na estação, tem gente que chega pra ficar, tem gente que vai pra nunca mais, (...) tem gente a sorrir e a chorar... E assim, chegar e partir, são só dois lados da mesma 43 viagem... Eu amo tudo o que foi, tudo o que já não é, a dor que já não me dói, a antiga e errônea fé. O ontem que a dor deixou, o que deixou alegria só porque foi, e voou e hoje, é já outro dia. Fernando Pessoa

As palavras da canção transcritas na epígrafe que abre este artigo, tão belamente interpretadas pela cantora brasileira Maria Rita, e o poema do grande poeta português Fernando Pessoa, ilustram perfeitamente os sentimentos e pensamentos daqueles que deixam sua terra, a terra dos seus pais e, quem sabe, tentar a sorte em um local novo e desconhecido. Os barcos que atravessaram o Atlântico traziam os imigrantes com suas malas que continham não apenas seus simples utensílios e singelas lembranças, mas, além de tudo, grandes medidas de angústias e esperanças. O intenso fluxo e o encontro de interesses mútuos fizeram com que a imigração entre Portugal e o Brasil marcassem profundamente a história dessas duas nações irmãs, que, como toda família que se preza, tem seus momentos repletos de afeições e amores, mas também passam por tempestuosas desavenças. No final do século XIX e início do XX, os ventos da modernidade que por aqui assopravam traziam consigo cada vez mais os conceitos de civilização e progresso (NEVES, 2003, pp. 15, 19). Do lado de cá do oceano, éramos um jovem país 40

Uma primeira versão deste texto foi publicada na Recôncavo – Revista de História da UNIABEU, v.5, n.9, julho-dezembro de 2015. 41 Graduanda do Curso de Licenciatura em História da UNIABEU - Centro Universitário. Membro do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade/UNIABEU-FAPERJ. Bolsista da CAPES atuando no PIBID-UNIABEU. 42 Graduando do Curso de Licenciatura em História da UNIABEU - Centro Universitário. Membro do Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade/UNIABEU-FAPERJ. 43 NASCIMENTO, Milton; BRANT, Fernando. Encontros e Despedidas. Intérprete: Maria Rita. NY: Warner Music. 1 CD. 2003.

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Memória, identidade e cultura: ensaios empenhado em construir uma identidade nacional, no entanto, durante esse processo, as outras nações começaram da mesma forma a desenvolver seu conceito sobre nós. Durante o período dos Oitocentos, chegavam inúmeros intelectuais e estudiosos focados na coleta de amostras de animais e plantas para serem objetos de estudo nas mais variadas partes do mundo. Por aqui passaram Charles Darwin, Jean Debret e muitos outros que ajudaram a formular uma visão sobre o Brasil (OLIVEIRA, 2011, p. 7). Os relatos destes viajantes demonstram um misto de deslumbre e assombro com o que presenciavam ao desembarcar aqui. Seguindo a sua visão europeia, o Rio de Janeiro refletia os aspectos da civilização e avanço do Velho Continente, no entanto, os negros, mulatos e operários, todos considerados inferiores, acabavam por manchar e ferir os costumes delicados. A miscigenação, que passa a ser vista como uma característica própria do povo brasileiro, transforma-se em um desafio científico para a época. Influenciados pelo pensamento internacional, nossos intelectuais buscavam formas de produzir aqui uma população branca que levaria o país ao tão sonhado progresso, e “a hegemonia desse processo obviamente caberia ao português branco, latino, católico. (...) o imigrante, além de vir preencher uma demanda de braços para o trabalho, teria o papel de contribuir para o branqueamento da população” (OLIVEIRA, 2011, p. 10). Do lado de lá do oceano temos uma velha Europa sacudida por revoluções e mudanças. Até a eclosão da Primeira Guerra Mundial, em 1914, o continente europeu era majoritariamente agrário, mantendo-se esta atividade à frente da manufatura de bens de consumo, do pequeno comércio e indústria e, em todos os países, a terra ainda era a forma fundamental de riqueza. Notoriamente, com o passar do tempo e o desenvolvimento da indústria, a agricultura perdeu espaço para o lado industrial, mas, mesmo assim, a propriedade agrária ainda era de importância fundamental sendo o principal setor das economias europeias. O continente europeu era uma sociedade de senhores rurais e camponeses (...) a grande propriedade fundiária consistia a principal fonte não só das extravagantes rendas e riquezas das elites agrárias, como também de desmedido prestígio social, predomínio cultural e influência política (...) o pequeno campesinato se via desamparado (MAYER, 1987, p. 33) [grifo nosso].

Apesar da grande importância da terra nesse período, a distribuição desta entre as pessoas não era equilibrada. Por exemplo, por volta da segunda metade do

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século XIX, cerca de 4 mil pessoas controlavam 50% das terras do Reino Unido, nas regiões centro-oeste e sul da Alemanha 50% eram arrendadas, e na Rússia 10% da nobreza controlava 75% das terras, assim, o esmagador contingente do campesinato era excluído dessa partilha. De modo geral, grande parte da população fixava-se na agricultura, porém, a maioria não possuía seus lotes e muitos recebiam “meros retalhos de terra (...) beiravam a pobreza”, outros arrendavam um lote a altíssimo preço, onde um “pedaço de terra vale agora tanto quanto antigamente uma légua” valia, ainda assim, isso não os impedia de serem explorados pelos grandes proprietários (MAYER, 1983, pp. 33-39; CASTRO, 1996, p. 21). Os anos entre 1873-1896 foram marcados por grandes deflações nos principais setores agrários. O aumento de impostos, a entrada em massa de cereais e carnes mais baratas de outros lugares fizeram com que os preços caíssem, eliminando a concorrência do pequeno agricultor, levando-o ao endividamento e a falência que acabavam forçando o pequeno proprietário a vender as terras que possuíam (MAYER, 1983, p. 41; ALVIM, 1998, p. 219). Em contrapartida, esse mesmo período conhece o crescimento acelerado das cidades. Com o processo da Revolução Industrial ganhando maior forma e força, as indústrias das cidades requeriam mais trabalhadores, indo, desta maneira, de encontro ao que estava acontecendo nos campos com a expulsão dos camponeses, tanto no sentido literal, com a tomada das terras dos pequenos produtores pelos grandes proprietários, quanto no sentido figurado do êxodo rural, onde aqueles que se desfizeram de seus lotes veem-se obrigados a buscar maneiras de sobrevivência nas cidades (MARTINHO, 2006, p. 185; ALVIM, 1998, p. 223). Este último fator, somado ao aumento demográfico nunca antes registrado na Europa, fizeram com que o quantitativo de pessoas fosse maior do que a indústria conseguia absorver, formando, portanto uma tropa de desempregados e desocupados, que assolados pela miséria e pela fome poderiam suscitar inúmeras e poderosas revoltas populares, então, Imigrar foi a solução ideal encontrada, uma vez que esse panorama geral harmonizavam-se perfeitamente com as necessidades dos novos países – Estados Unidos, Argentina e Brasil – que por motivos variados iniciaram um grande movimento de atração de imigrantes para as suas terras. (ALVIM, 1998, pp. 219-220).

Nesse contexto de idas e vindas, a história dos imigrantes lusitanos e a Baixada Fluminense acabam por cruzar-se. A desocupação de cortiços e casas de

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Memória, identidade e cultura: ensaios cômodos na cidade do Rio de Janeiro, promovidas pelas reformas urbanísticas do prefeito Pereira Passos, ainda nos primeiros anos do século XX, paulatinamente leva a população mais pobre a ocupar as áreas periféricas da cidade (OLIVEIRA, 2001, p. 29). Fatores internacionais, como a guerra, e internos, como as pragas nas lavouras de laranja, principal produto de exportação da Baixada, trouxeram rápida deterioração às terras produtoras, que levaram a uma queda no comércio local e na qualidade de vida da população. Os investidores retiram-se da região e voltam-se para as áreas urbanas e industriais. As cidades em volta da capital começam a ser reconhecidas como cidades dormitório. Porém, as décadas de 1950/1960 marcam a vinda de grande contingente populacional para esta região, entre eles, os imigrantes portugueses que trabalhavam no Rio e moravam no entorno (SOUZA, 1992). Para quem sonhava em ter seu pedacinho de chão, os loteamentos, tão comuns neste período, era a alternativa para quem tinha algum dinheiro. Claro que ocupações clandestinas, invasões, fizeram parte do dia a dia. Onde anos antes havia a maior produção de laranjas do mundo, via-se agora nascer um grande núcleo populacional. A base documental deste trabalho é entrevistas realizadas com aqueles que chegaram naquela época e seus descentes. Com o intuito de impedir a identificação, os nomes adotados são fictícios. Filha de pai português, a entrevistada relata que o avô chegou em 1952, dois anos e meio antes da família, para tentar uma vida melhor. Seu pai, três tios e avó vieram depois, quando seu avô já havia conseguido comprar um lote em Vila Norma, em São João de Meriti: Lembro que o dono do botequim, seu Manoel, onde a gente comprava café, onde meu pai se reunia pra beber, era português. Eu era amiga da filha dele, Fátima. (...) Quando nasci, meus avós e meus tios tinham casas de aluguéis ali mesmo. (SOUZA, ML. O Elo Forte da Corrente, 24/07/2015. Entrevista concedida a Kátia Santana e Rodrigo Gomes).

A ideia de prosperar através da materialização do trabalho, segundo os relatos, tomava forma com a aquisição de loteamentos, por parte destes imigrantes, que juntavam cada centavo com a intenção de adquirir terrenos comprados a preços mais baixos na região da Baixada Fluminense, para especulação imobiliária ou mesmo para exploração comercial, tendo em vista a demanda crescente na região por comércio de gêneros de primeira necessidade. “Hoje as coisas estão bem

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melhores”, diz Dona Edna, ao fazer referência das dificuldades no transporte, nas ruas sem saneamento, no comércio precário da região. Foi muita luta. (...) No dia 11 de novembro de 1952 embarquei no cais de Alcântara – Lisboa, no velho navio Lavoisier, com destino ao Rio de Janeiro, levando comigo algumas roupas que minha mãezinha colocou na mala, uma caixa de ferramenta de pedreiro que tinha usado em Portugal, e a obrigação de pagar a dívida que minha mãe contraiu para minha passagem. Era isso, ou servir no exército ao completar 18 anos durante quatro anos, nas colônias africanas, nas guerras de independência ( SILVA, A. O elo forte da corrente, 02/08/ 2015. Entrevista concedida a Kátia Santana).

Esta foi a observação do Sr. Augusto, comerciante e empresário bem sucedido na região de Mesquita e Nova Iguaçu, dono de imóveis e apartamentos de aluguéis, padarias, referindo-se aos seus primeiros anos aqui no Brasil. Sua vinda para cá, não é muito da diferente dos demais “patrícios” que aqui chegaram, de acordo com os relatos: “em busca de emprego e melhores condições de vida”. Com uma dose extra de coragem e muita fé no coração, arriscavam-se em embarcações precárias, contando muitas vezes com a receptividade de parentes e amigos que vieram antes, a partir do discurso de aqui era uma terra de oportunidades.

OS COSTUMES E A RELIGIÃO COMO FORMAS DE VIVER E SOBREVIVER

Ainda que variadas partes tentassem reorganizar o homem e seu cotidiano, esses encontraram a resistência das pessoas a mudanças tão díspares de sua cultura. Desta feita, “os costumes mostraram-se mais fortes do que a lei” (PERROT, 2009, p. 79). Não admitindo intromissões na sua maneira de viver, elas buscavam preservar as tradições e costumes adquiridos dos seus antepassados e passados de pais para filhos por gerações. As pressões exercidas pelos poderes públicos muitas vezes ocasionaram diversas reações violentas em oposição (ALVIM, 1998, pp. 227228). O fim do Império e início da República no Brasil foram marcados pela abolição da escravatura e a expansão da cafeicultura, por isso era uma situação emergencial a substituição da mão de obra escrava, sendo, desta maneira, o trabalhador imigrante uma saída para o problema. Para vencer a concorrência de países como Argentina, Cuba, EUA e México como destino imigratório, o governo brasileiro utilizou-se largamente da propaganda para retratar o Brasil como o Jardim das Delícias, a Terra da Promessa, o que acabava por ser “comprovado” pelo ouro 124

Memória, identidade e cultura: ensaios reluzente nas igrejas e nos palacetes que os que haviam conseguido enriquecer aqui mandavam construir por lá, acabando, assim, por seduzir aqueles que se aventurassem em buscar uma vida melhor (CASTRO, 1996, p. 28; SCHWARCZ, 2010, p. 35). Seguindo inicialmente para os campos e posteriormente para as cidades, no seu dia a dia eles procuraram reparar o seu mundo deixado para trás e o reerguer agora no Novo Mundo. Nisso coube à religião e aos costumes um papel fundamental. Para compreendermos a profundidade e a importância da religião nesse contexto, cabem aqui algumas palavras do campo da psicologia para auxiliar-nos. Bertolucci traça um panorama sobre o que ela denomina de “vazio existencial”, que é caracterizado pela quebra da “redoma conceitual na qual a pessoa se refugiava”. Essa sensação de perda na vida, tendo muitas vezes o seu estopim na rejeição, na exploração, acabava por desencadear essa sensação de incompletude, fazendo aflorar sentimentos como frustração pelos ideais não atingidos e pressão constante, criando no indivíduo a necessidade de buscar uma solidez em que pudesse apoiarse (BERTOLUCCI, 1991, pp. 61-64, 74-78). Ao projetarmos tais conceitos sobre as situações sofridas pelos imigrantes portugueses, muitas foram as perdas destes ao virem para o Brasil: desde conviverem com uma Europa arrasada pela guerra, passando pelo desprezo de seus governantes e a perda dos bens, ao chegarem aqui, verem seus sonhos e esperanças desvanecerem diante da exploração dos fazendeiros e patrões das indústrias e comércio, perseguidos pela miséria e sem contar com o apoio do governo brasileiro, tais pessoas puderam encontrar na religião o tão desejado “bote salva-vidas” diante do tempestuoso “mar” de incerteza e insegurança. Segundo Santayana, a religião tem o poder de dar direção a inúmeros aspectos da vida (SANTAYANA, 1982, p. 3, 4), por isso, acreditamos que, diante de todas as dificuldades encontradas, o viver religioso (tanto no sentido sagrado, como no sentido cultural) podia tornar-se o elo entre o grupo em si e comunidade e sua terra natal (preservando, mesmo que em parte, as suas raízes) e, como abordado por Geertz, prover uma válvula de escape diante das pressões e sofrimento enfrentados (GEERTZ, 2008, p. 76). Era de grande preocupação a manutenção do seu viver religioso entre os portugueses. Dubuisson mostra que cabe à religiosidade um papel unificador, pois

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“la religion tend à valoriser ce lien qui relie (religare) l'homme à Dieu (…).”44 (DUBUISSON, 1998, p.44). Ligar, unir, conectar, verbos que exprimem a primordialidade da ação tomada pelos lusitanos aqui residentes. Afinal, no cotidiano, a força da situação muitas vezes os impedia de seguir rigorosamente as suas tradições, conforme relatado pelo Sr. Augusto Silva, onde em vez de comerem as comidas típicas da sua terra natal, como peixes, crustáceos e outros frutos do mar, a necessidade fazia com que se adaptassem e, como ele diz, “comíamos o que aparecia”, mas a sua religião não era algo negociável, a tal ponto que o um dos seus maiores receios estava na profissão de fé de sua esposa. Silva narrou: “Quando eu rezava, pedia só uma coisa a Deus: que ela fosse católica”. Quando questionado o porquê, ele explica que isso seria o laço que os uniria e dessa forma poderiam transmitir um pensamento uno aos filhos. No entanto, com o passar do tempo, o nascimento dos filhos e a formação de famílias luso-brasileiras, alguns costumes foram modificando-se. Dentre as tradições, boa parte delas ligadas ao catolicismo, como batismo, casamentos, observância das festas santas, o luto é apontado como a característica que menos se manteve aqui no Brasil. O luto perpétuo, guardado pelas esposas até o fim da vida (a menos que se cassasse de novo), sob vestimentas pretas e véus, foi sendo transformado, apesar da resistência dos mais antigos. “Ainda guardamos o luto, mas de forma diferente. O luto ainda é guardado, ele existe, porém menos rigoroso (…). Além dos vestidos, as mulheres ainda colocavam um véu preto na cabeça. Aqui não é mais assim” ( SILVA, A. O elo forte da corrente, 02/08/ 2015. Entrevista concedida a Kátia Santana). As paróquias eram também um ponto de encontro social, e a Igreja da Matriz em São João de Meriti é citada como referência, bem como a paróquia de Nossa Senhora da Conceição em Nilópolis. As reuniões nas paróquias não significavam apenas uma busca espiritual, mas também uma forma de encontro com seus compatriotas e ter um convívio social com seus iguais, além disso, as festas organizadas eram formas de manutenção de alguns costumes, como expressado pela Sra. Mara ao lembrar-se de sua infância: “Quando eu era pequena, lembro-me de fazer parte do Coração de Maria e que a missa de domingo era o dia de encontrar a 'portuguesada' toda na Igreja. Achava isso normal.”( SOUZA, ML). 44

“a religião tende a valorizar esse elo que conecta (religare) o homem a Deus (...).” – Tradução Livre.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Outrossim, com objetivo de preservar sua cultura, já no século XIX, fez-se surgir clubes e sociedades de assistência, como o Real Gabinete Português de Leitura, Beneficência Portuguesa, Caixa de Socorro de D. Pedro V e o Liceu Operário Português. (OLIVEIRA, 2001, p. 32) Esse comportamento, tão peculiar a vários outros grupos de estrangeiros, como estratégia de autoajuda em terras distantes, hoje é percebido nas parcerias comerciais, nos casamentos que ainda acontecem entre famílias amigas. Obviamente, conflitos ocorreram entre os que se mudavam para cá e a população nativa. Muitos brasileiros sentiram-se ameaçados nas frentes de trabalho ou desfavorecidos nas relações comerciais, acusando então os portugueses de cobrar altas taxas nos aluguéis de imóveis, sovinas, de trapacear no peso dos produtos no comércio. Contudo, apesar das contendas iniciais, acreditamos que o catolicismo, por fim, auxiliou a integração dos portugueses à sociedade brasileira. Tendo sido colonizado por Portugal, o Brasil sempre teve sua história entrelaçada com a Igreja. No período de 1950, segundo dados do IBGE, cerca de 93,5% da população do Brasil declaravam o Catolicismo Romano como sua profissão de fé. Desta forma, as festas litúrgicas, os feriados em dias santificados e outros rituais puderam ser mantidos e acabaram por aproximar portugueses e brasileiros. Dona Edna descreve assim esse tipo de relação: “Como o Brasil foi colonizado por portugueses nada disto foi problema; todas estas questões eram muito semelhantes, não interferindo (…) foi naturalmente uma integração total, uma perfeita miscigenação” (GOMES, E. M. O elo forte da corrente. 03/08/2015. Entrevista concedida a Kátia Santana). Até mesmo algumas particularidades características do catolicismo praticado no Brasil, que de início causaram um certo estranhamento, foram bem absorvidos com o passar do tempo. A vida dos imigrantes portugueses que conseguiram prosperar na Baixada Fluminense nem sempre foi traduzida em sucesso, e novamente a religiosidade pôde prover um auxílio para conviverem com os sofrimentos enfrentados. Para Geertz, a religiosidade provê às pessoas formas que as ensinem a “não evitar o sofrimento, mas como sofrer, como fazer da dor física, da perda pessoal (...) algo tolerável, suportável – sofrível (...)”, assim os homens teriam nascidos para lutar, e a religião os colocaria cara a cara com os confrontos da vida (GEERTZ, 2008, p. 76). Essa forma de pensar é corroborada pelo Sr. Leonardo, ao abordar essa temática,

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ao contar seu início no Brasil, quando seu pai viveu anos em empregos informais e com a vida sofrida: “A fé em Deus nos manteve”. Arriscar-se a mudar para um novo país era consolado pela crença na direção e amparo divinos. O Sr. Leonardo Almeida nos conta sobre sua mudança: “Colocamos Deus na frente de tudo. Entregamos nossa vida a Ele e atravessamos o oceano num barco velho. Quando a espera parecia não ter fim, minha mãe se agarrava ao terço. ‘(...) Deus proverá!’” (ALMEIDA, L. P. O elo forte da corrente. 23/08/2015. Entrevista concedida a Kátia Santana e Rodrigo Gomes). Prova disso são as inúmeras imagens trazidas para a proteção, tanto durante a viagem como na chegada ao novo lar. À religião, dessa forma, cabia a função de “fornecer orientação a um organismo que não pode viver num mundo que ele é incapaz de compreender” (GEERTZ, 2008, p. 102). Durante as entrevistas, apesar das diferentes faixas etárias, considerando que alguns registros eram de memória dos relatos passados pelos pais, avós, tios dos entrevistados; outros que vieram do próprio imigrante, pessoas que mesmo de famílias diferentes e das mais diversas regiões de Portugal, relataram uma história fortemente ligada ao catolicismo, em especial à devoção a Nossa Senhora de Fátima. Alguns relatos bastante emocionados, onde o discurso da fé em Deus e na Virgem, como fator de resistência diante das mais diversas dificuldades enfrentadas – moradia, alimentação, trabalhos informais –, nos levam a observar o peso que a religiosidade desempenhou na vida destes homens e mulheres, dispostos a vencer na vida através do trabalho, coisa pontuada por praticamente todos os entrevistados. Alguns não permitiram gravação, apesar da receptividade com a qual fomos recebidos; outros fizeram questão de preencher o próprio questionário. Para Hall, a identidade cultural se dá a partir da pertença a um grupo, uma classe, um Estado-Nação, que a cultura nacional, os símbolos, contribuem para costurar as diferenças numa única identidade. Ainda que a língua e a História entre brasileiros e portugueses apareçam como um facilitador no processo de adaptação destes estrangeiros, o desejo de viver em conjunto aparece nos depoimentos. Um rico legado de memória, ou mesmo uma vontade de perpetuar os costumes, a herança que recebeu, para além de simples estratégia de sobrevivência. Ao responder a pergunta se desejam voltar para Portugal, a maioria responde que não.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Alguns retornaram muitos anos depois apenas a passeio e para visitar os parentes. Observam que são recebidos como brasileiros por seus patrícios (HALL, 2006).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Memória é a capacidade humana de reter fatos e experiências do passado e retransmiti-los às novas gerações através de diferentes suportes empíricos (voz, música, imagem, textos, etc.). Existe uma memória individual que é aquela guardada por um indivíduo e se refere às suas próprias vivências e experiências, mas que contém também aspectos da memória do grupo social onde ele se formou, isto é, onde esse indivíduo foi socializado (Von Simon, 2007).

No nosso cotidiano, recebemos enxurradas de informações que acabam por forçar-nos a selecionar o que deva ser preservado. No entanto, muitas lembranças ficam latentes até que algo ou alguém as façam aflorar do seu estado silencioso (Von Simon, 2007). Memória e identidade caminham lado a lado. As memórias encontram-se impregnadas das formas de ver e pensar da sociedade e do período em que foram produzidas, mostrando inúmeras vezes as suas lutas pela vida e sobrevivência. (Le Goff, 1990, p. 476) Gwyn Prins, aborda o tema à luz da Nova História, discutindo com autores que viam na chancela do documento a única forma confiável de se produzir fontes históricas. Ideias, muito fundamentadas no século XIX, onde o progresso das sociedades mais “evoluídas” estava diretamente ligado ao letramento, à escrita. “O homem se parece mais com seu tempo que com seus pais” (ditado árabe). O historiador do século XIX/início do XX, era um homem do seu tempo. (PRINS, 1992). Como já foi dito anteriormente, a base da presente pesquisa é a História Oral, a partir das entrevistas e respostas aos questionários. Partindo desta premissa, foi possível observar que, para além das respostas dadas pelos entrevistados, objetos materiais pertencentes aos símbolos da cultura portuguesa estavam presentes nos ambientes da vida íntima de cada um. A presença da religiosidade salta aos olhos: símbolos católicos (crucifixos, imagem de Nossa Senhora de Fátima, terços) aparecem nas residências e escritório dos entrevistados, mas também as hortas domésticas que encontramos em todas as casas que ainda mantém algum espaço de quintal, ou ainda em vasinhos de plantas, como couve, alface, tomate, temperos etc., nos terraços dos sobrados, e, até mesmo, em apartamentos. Os entrevistados fizeram questão de mostrar suas hortas, provando, assim, a presença da memória

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Kátia Luciene de Oliveira Santana; Rodrigo Gomes da Costa

de uma prática que alguns cultivam desde os tempos de Portugal, outros porque simplesmente herdaram o costume dos pais e/ou avós. A Nova História abre perspectivas de acesso às fontes, e de interpretação (e reinterpretação) dos documentos. Importa-nos o que é dito, também o que é deliberadamente omitido, ou mesmo aquilo que fica sugerido. Cabe ao historiador investigar. De fato, a História Oral não é das tarefas mais fáceis. Algumas entrevistas foram remarcadas mais de uma vez, algumas respostas dadas de forma vaga. Os questionários apontam para fixação desses estrangeiros nas regiões de São João de Meriti, Mesquita (ainda Nova Iguaçu), Caxias e Nilópolis. Vindos de várias regiões de Portugal, como: Conselho de Murtosa (Distrito de Aveiro); Valongo (Porto); Fao (Lisboa). Foram entrevistadas pessoas entre 40 e 94 anos, portugueses natos e/ou descendentes diretos, no caso filhos. Algumas memórias de imigrantes estão ligadas a perdas materiais, afetivas, emocionais. Deixaram para trás familiares, amigos, amores da juventude, costumes, a casa de seus pais, a “terrinha”, como os mais antigos se referiram a Portugal. A História dos imigrantes portugueses na segunda metade do século XX, ambientada nas décadas de 1950, é parte da História dos excluídos, daqueles que vieram para o outro continente em busca de oportunidade, mas sem garantias de sucesso, munidos apenas de esperança, vontade de trabalhar e fé. Não acessamos grandes fortunas, empreendedores financeiros, uma elite em busca de novos mercados, mas, sim, pessoas simples, que diante de situações tão adversas em seu país, e não por outro motivo, atravessaram o Atlântico, e aqui chegaram. Reconstruíram suas vidas, sofreram, alguns prosperaram outros não, e ajudaram a construir a História recente da região. Com certeza, não esgotamos o assunto, muito menos as fontes. O objetivo deste artigo não é mostrar-se conclusivo para com tema, pelo contrário, diante do que foi abordado, das entrevistas obtidas, material impresso recolhido etc., esperamos abrir portas para mais pesquisas. Em meio à produção deste trabalho, encontramos mais incógnitas que acreditamos merecer atenção, como a Igreja da Matriz de São João e sua importância nesse período, o colégio Santa Maria, que era o local de estudo dos filhos dos portugueses que prosperaram, assim como o comércio de antigos botequins e armarinhos localizados no centro comercial do município de São João de Meriti, que foi, em grande parte, inaugurado nas décadas de 1950 e 1960, e que existe até hoje. Pensamos que tais objeções estão 130

Memória, identidade e cultura: ensaios profundamente relacionadas à presença e atuação dos portugueses, trazendo, assim, valiosa contribuição à pesquisa quanto à imigração na Baixada Fluminense.

Tabelas

Fontes Entrevistas45: ASSIS, C. A. P.;

45

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Os nomes foram omitidos para preservar a privacidade dos entrevistados.

Kátia Luciene de Oliveira Santana; Rodrigo Gomes da Costa

ALMEIDA, L. P.; BARBOSA, J. D. GOMES, E. M.; MAGALHÃS, M. F. C.; OLIVEIRA, A.; PEREIRA, E. A.; SILVA, A.; SOUZA, M. L. CASTRO, Ferreira de. Emigrantes. Lisboa: Guimarães & Cia. 1996.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALVIM, Zuleika. Imigrante: A Vida Privada dos Pobres do Campo. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da Vida Privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, vol. 3, 1998. AZEVEDO, Cristiane A. de. A Procura do Conceito de Religio: Entre o Relegere e o Religare. Religare 7, Março de 2010, pp. 90-96. BERTOLUCCI, Eliana. Psicologia do Sagrado – Psicoterapia Transpessoal. São Paulo: Editora Ágora. 1991. BRASIL. Tendências Demográficas no Período de 1950/2000. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/.../comentarios.pdf. Acessado em 14/08/2015 às 12h45min. COUTINHO, José Pereira. Religião e outros conceitos. Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Vol. XXIV, 2012, pp. 171-193. DUBUISSON, Daniel. L'Occident et la religion: Mythes, Sciencie et idéologie. Bruxelas: Édition Complexe. 1998. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC. 2008. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora. 2006. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: UNICAMP. 1990 . MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Resistências ao Capitalismo: Plebeus, Operários e Mulheres. In: FILHO, Daniel Aarão Reis e FERREIRA, Jorge (Org). O Século XX – O tempo das Certezas: da Formação do Capitalismo à Primeira Grande Guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol. 1, 2006.

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Memória, identidade e cultura: ensaios MAYER, Arno J. A Força da Tradição: A Persistência do Antigo Regime (1848-1914). São Paulo: Companhia das Letras, 1987. MELO, Hildete Pereira de; MARQUES,Teresa Cristina de Novaes. Imigrantes Portugueses no Brasil a Partir dos Recenseamentos Populacionais do Século XX: um Estudo Exploratório. UFF/Economia. Março, 2007. NEVES, Margarida de Souza. Os Cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O Brasil Republicano - o Tempo do Liberalismo Excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, vol. 1, 2003. OLIVEIRA, Lúcia Lippi. O Brasil dos Imigrantes. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2002. PERROT, Michelle. A Família Triunfante. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida Privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Vol. 4. São Paulo: Companhia das Letras. 2009, 5 vol. PRIS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1990. SANTAYANA, George. Life of Reason. Vol. 3. New York: Dover, 1982. SCOTT, Anna. Os Portugueses. São Paulo: Editora Contexto, 2010. SCHWARCZ, Lília Moritz. População e Sociedade. In: SCHWARTZ, Lília Moritz. A Abertura Para o Mundo (1889-1930). Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras. 2010. SOUZA, Sonali Maria de. Da laranja ao lote: transformações sociais em Nova Iguaçu. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1992. VON SIMON, Olga Rodrigues de Moraes. Memória, Cultura e Poder na Sociedade do Esquecimento. Revista Margens Virtual – UFPA. Ano 1. Número 1. 2007. Acessado em http://www.ufpa.br/nupe/artigo1.htm, dia 20/08/2015 às 22h.

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IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL - ETNOGRAFIA UM TRABALHO DE CAMPO1 Juliana Carvalho2

INTRODUÇÃO O presente artigo tem como proposta a investigação dos elementos litúrgicos da Igreja Evangélica Luterana Bom Pastor, a fim de perceber se a mesma possui alguma influência ou correlação com o mercado fonográfico gospel. A escolha por fazer uma etnografia da Igreja Luterana teve como objetivo a compreensão do dinamismo da mesma, bem como a funcionalidade da Igreja ao que se refere a “composição musical” que faz parte do culto. Neste trabalho o método que será usado é o de pesquisa qualitativa, que compõem a descrição densa, como é definido por Geertz (2012). Nesta análise serão considerados todos os processos compostos pelo nosso objeto de estudo, ou seja, o discurso do “nativo”, os hinos, a dinâmica da igreja, os rituais e todo o comportamento que constitui este campo. Segundo Gilberto Velho (1978), a pesquisa qualitativa permite entrevistas abertas, contato direto e pessoal com o objeto pesquisado. O tempo pode ser determinado a longo período, pois necessita de vivência da observância dos aspectos culturais que envolvem o grupo o qual será pesquisado. Desta forma, o grande eixo central da pesquisa são os rituais e as práticas sociais desenvolvidas nos cultos da igreja os quais não devia das concepções do pesquisador, mas sim do ponto de vista do “nativo” (GEERTZ, 2011).

O MÉTODO ETNOGRÁFICO A Etnografia é uma das principais metodologias da Antropologia. Busca-se em sua perspectiva, uma ação “cientifica” de observação do objeto definido. Este “olhar de fora” que Geertz (2012) relata, é a essência do trabalho, pois ao produzir uma

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Este artigo é um dos resultados da pesquisa Trânsito cultural e “barreiras institucionais”: sonoridades católicas e evangélicas em foco (2014-2015) e coordenada por Robson de Paula, doutor em Ciências Sociais (UERJ) e professor e pesquisador da UNIABEU. Devo ainda ressaltar que tal investigação está vinculada ao Laboratório Multidisciplinar de Estudos de Memória e Identidade do ABEU- Centro Universitário. Agradeço ao Programa de Bolsas Institucional-Probin-UNIABEU a bolsa concedida. 2 Juliana Carvalho é psicóloga formada pela UNIABEU em 2015.

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Memória, identidade e cultura: ensaios etnografia, deve-se estar atento as informações que este ambiente pode favorecer como material de pesquisa, sendo um trabalho denso de compreensão da percepção do “olhar” do outro: Fazer etnografia, é estar em contato com o objeto, é entrar em uma área desconhecida e descobri-la -até mesmo em um lugar já visitadoe desvendá-los por partes, “cada pedacinho”, compondo um significado que dá sentido em seu contexto geral (VELHO, 1978).

Podemos dizer de maneira metafórica, que fazer etnografia é como construir uma casa. Ao olhar uma casa já construída não é possível identificar qual cimento, areia, tinta, dentre outros materiais utilizados. Nós só conseguimos enxergar a casa pronta. O pesquisador vai se destinar a descobrir com o proprietário da casa, os motivos que fizeram querer ter esta casa; o porquê dela estar sendo construída naquele local e não em outro; quais os recursos e materiais usados para sua construção; e quem foi os trabalhadores que se empenharam em sua construção. Afim de que, ao olhar a casa pronta, não veja apenas uma estrutura, mas, sobretudo a cultura, os aspectos sociais, a dinâmica e ritual que compõem a mesma. O trabalho etnográfico vai muito além da explicação do objeto em especifico. É pesquisar tudo que compõem este objeto, cada pedacinho que forma sua estrutura, não é apenas o estudo do todo, mas também das partes que o constrói. A etnografia possui uma estrutura, mas não é padronizada, assim ao decorrer da pesquisa novas indagações vão surgindo, da mesma maneira que novos problemas podem ocorrer, os quais também não tinham sido previstos no inicio da pesquisa. O pesquisador deve estar preparado para eventualidades, que exigem novas revisões bibliográficas para embasamento teórico de seu trabalho (GOLDENBERG, 2005). Deve-se ressaltar também que, durante a pesquisa, tanto o recolhimento de dados como também os estudos por parte da teoria, fazem com que o pesquisador venha a crescer cada vez mais como profissional e também em sua esfera pessoal. A linguagem, os rituais, os saberes são elementos que tornam o “outro” algo particular e com identidade própria, produções que constituem uma sociedade e seus padrões e valores. Todo esse mundo é muito interessasse de se apreciar de perto, de estar em contato, e a etnografia nos permite a compreensão de toda essa esfera. De acordo com Marisa Peirano (1992), o trabalho etnográfico só pode ser considerado um trabalho quando o discurso do “nativo” possa ser apreendido. Isso 135

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significa que não se pode ater apenas na literatura sobre o tema estudado. É necessário estar em campo o maior tempo possível para que assim o pesquisador não fuja da proposta real. Segundo Rosália Duarte (2012), a pesquisa qualitativa pode compreender revisões bibliográficas e anotações produzidas na observação participante. Além disso, em especial, no uso da etnografia, o pesquisador deverá apresentar as dificuldades enfrentadas, os erros, as escolhas, que muitas das vezes mudam de acordo com a necessidade de longo prazo na pesquisa. Para a elaboração deste artigo, foi proposto ao “grupo jovem” da Igreja Evangélica Luterana Bom Pastor, que se constitui de cinco pessoas o convite para a realização de uma entrevista semiestruturada, entretanto apenas três destes se propuseram a participar. Na estrutura da entrevista foram abordadas questões sobre musicalidade, crença e temas atuais que fazem parte do meio evangélico. O número de jovens é proporcional à dinâmica da comunidade que possui uma totalidade aproximada de trinta membros, que é dividida da seguinte forma: participa do “grupo das crianças” as crianças que moram próximo a comunidade ou possuem um parentesco com o membro atuante; se considera do “grupo dos jovens” o individuo que passa pelo ritual de passagem do Catecismo Menor de Lutero e não esteja casado, possuindo a idade entre dezoito a trinta anos; sendo considerado do “grupo das servas” as mulheres que se casaram; do “grupo dos leigos” os homens casados. De forma geral, por meio dos discursos extraídos da entrevista, verifica-se que os jovens da Igreja Luterana investigada possuem um trajeto, quanto a sua formação na igreja, que se diferencia a de outros jovens de outras denominações evangélicas. Este trajeto começa com o batismo quando crianças, após isto, passam a infância recebendo os estudos da Escola Bíblica, quando adolescentes fazem o estudo do Catecismo, onde é usado como instrumento teológico o livro Catecismo Menor de Lutero.

A ORIGEM DA IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL: UM BREVE RELATO HISTÓRICO Martinho Lutero nasceu no dia 10 de novembro de 1483 em Eislebem, Alemanha. Martinho começou a estudar direito, porém logo decidiu ser monge, pois queria se dedicar exclusivamente a Deus. Monge católico, doutor em teologia e

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Memória, identidade e cultura: ensaios professor universitário, foi enviado à universidade de Wittenberg para ensinar a Bíblia. Lutero, em 1517, voltou-se para os movimentos da reforma que destinavam a combater a suposta comercialização do perdão e dos pecados (indulgências) e monopolização da bíblia pelo clero. O monge sofreu com a perseguição da igreja católica, a qual não mudaria sua tradição da época por influência do mesmo (Nereu Rui, 1987). Lutero não concordava com a teologia da Igreja, assim o monge deu seu primeiro parecer critico quanto à igreja a partir das indulgências que era estabelecida pela Igreja Católica. Neste momento Lutero começou a se manifestar para o que conhecemos como reforma, pois não concordava com o que as indulgências se remetiam. A indulgência era o real perdão das penas impostas pela igreja na confissão. Pagava-se uma soma estipulada para cada tipo de pecado. Mais tarde a indulgência foi estendida também aos castigos impostos por Deus. Sendo que as obras de penitência não cumpridas em vida deveriam ser expiadas no purgatório3 (IELP, 2014).

Lutero acreditava que as indulgências não cabiam mais na igreja, contudo se manteve prolixo e despertou a atenção do povo. Assim, Lutero manifestou através das 95 teses, cujo representavam 95 afirmações contra os “abusos” da igreja. O objetivo destes documentos era promover, ao povo e aos teólogos da época, um despertar para o “bem” da igreja católica. As teses foram se propagando e sendo traduzidas para diversos idiomas e assim as pessoas iam tomando conhecimento dos feitos de Lutero. Então, ele passou a ser seguido por pessoas que confiavam em seus ensinamentos e na “verdade” pregada. Estes seguidores passaram a ser chamados de “luteranos”, e dessa maneira gradativamente surgiu o nome da Igreja Luterana. Lutero foi excomungado no ano de 1521, pelo papa Leão X, dando início à construção da Igreja Evangélica Luterana, porém apesar dos acontecimentos gerados pela reforma, Lutero não possuía a proposta de fundar outra igreja, e sim, através da reforma, mudar os procedimentos realizados pela Igreja Católica Romana. A partir de 1824, a Igreja Evangélica Lutera chegou ao Brasil, juntamente com os imigrantes alemães, dividindo-se posteriormente em duas denominações:

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Para maiores informações ver: http://www.ielp.pt/images/martinho%20lutero%20-%20biografia.pdf. Acesso em 13 de ag. 2014.

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Igreja Evangélica Luterana (IELB) e Igreja Evangélica de Confissão Luterana (IECLB). A igreja pesquisada faz parte da denominação da IELB, e acordo com o material fornecido nos cultos aos membros, a Igreja Evangélica Luterana não se constitui de seita ou nova denominação. Ela se consistiria em uma “Igreja Original e Apostólica Cristã”, antiga com sua tradição, mas em formato atual.

Emblema da Igreja Evangélica Luterana do Brasil

Fonte4 .

O emblema acima foi criado por Martinho Lutero e aceito oficialmente na 32º Convenção Nacional, em que se comemorava o Cinquentenário da IELB, no dia 27 de janeiro de 1954. Representa simbolicamente a “Fé Cristã”, que sob o Cruzeiro do Sul (constelação de cinco estrelas), em sua doutrina da graça de Deus (a cruz dentro do coração). Esta graça de Deus foi enunciada na morte e ressurreição de Cristo, emergindo do coração das sagradas escrituras que estão abertas ao povo (livro aberto sob a cruz maior). Os Luteranos consideram as escrituras como sagrada e a palavra que provém do Deus Triúno (santíssima trindade representada pelos três círculos menores de proporções iguais abaixo da Bíblia). O nome “Concórdia” significa às interpretações fidedignas as palavras de Deus pelas confissões da Igreja Luterana, reunidas no livro de Concórdias de 1580. Os raios de luz que saem da cruz maior em todas as direções significam que a Igreja Luterana reconhece e cumpre o privilégio de anunciar o evangelho de Cristo a todas as pessoas. Já o círculo interno contém ainda as três colunas mestras da doutrina 4

Para maiores informações ver: http://cristoparatodos.weebly.com/quem-somos.html. Acesso em 7 de mar. 2014.

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Memória, identidade e cultura: ensaios luterana: Sola Scriptura, Sola Gratia, Sola Fide (somente a escritura, somente por graça, somente pela fé). O circulo externo apresenta o nome completo da Igreja Evangélica Luterana do Brasil e o ano de 1904, data da sua fundação. IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL – IELB – COMUNIDADE “BOM PASTOR”: A SOCIABILIDADE DE FAMÍLIA A etnografia foi realizado na Igreja Evangélica Luterana Bom Pastor, situada em Nova Iguaçu, na Rua Goitacazes, número 96, Moquetá. Através de uma carta da instituição UNIABEU ao pastor da comunidade, Hélio Braun, foi possível o inicio deste estudo que busca em seu objetivo uma “descrição densa” de uma das celebrações realizada pela denominação evangélica em questão. A igreja possui em sua maioria membros praticantes que nasceram num “lar de Luteranos”, constituindo suas crenças na doutrina desde muito jovens. São poucos os membros que se converteram à Igreja Luterana. Segundo a pesquisa Novo Nascimento (1998), esta é uma das principais características desta denominação, ou seja, e é uma igreja que se mantém com suas famílias na mesma doutrina por anos, sendo raro a migração dos membros para outras igrejas evangélicas. Assim é possível afirmar que a igreja é de estrutura familiar. Durante a celebração do culto, antes do “sermão”, as crianças se levantam e são conduzidas pela professora da “escolinha dominical” em direção ao altar. Fazem suas ofertas, e a professora pega uma vela que fica acessa no altar e a leva para o salão. Esta vela simboliza a luz de Jesus que acompanha as crianças para seu momento de estudo. Assim as crianças são direcionadas a escola bíblica (nome dado a uma grande sala, à parte da igreja, a qual possui um espaço exclusivo para as crianças). Na escola bíblica as crianças recebem os ensinamentos religiosos por meio de histórias da bíblia e cânticos. Oficialmente a pesquisa teve inicio em primeiro de dezembro de 2013. Neste dia a igreja celebrava o “domingo de advento”. Segundo material informativo da igreja, o advento é um tempo de júbilo e de alegria para a cristandade. A razão do júbilo e adoração a Cristo, pois advento significa vinda, chegada do mesmo. Os quatro domingos de advento lembram os quatro mil anos nos quais o povo de Deus esperou pelo nascimento do Salvador Jesus.

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O advento é simbolizado por uma coroa que representa a vitória de Cristo sobre o pecado. Esta coroa é feita de ramos verdes e possui cinco velas: uma branca (a vela do natal), três velas vermelhas as quais simbolizam a profecia e o nascimento de Jesus Cristo e a terceira vela da cor roxa, ou lilás, representando os pastores. Por estar em época de natal, a igreja estava decorada com uma árvore de natal, próximo ao altar, e com arranjos natalinos ao seu entorno. Além das celebrações religiosas, a igreja possui também festividades, como festa junina, aniversário do ano da igreja, almoço comunitário, que são feitas e administradas pelos grupos que a igreja possui de jovens, servas (mulheres já casadas ou senhoras), leigos (homens) e das crianças, assim nas festividades e encontros toda a comunidade interage participando do evento. IGREJA LUTERANA “BOM PASTOR”: ESTRUTURA FÍSICA E SIMBOLISMO RELIGIOSO A igreja Luterana possui alguns rituais que compõem a sua liturgia. Assim sua estrutura difere de algumas igrejas, possuindo um pavimento linear e colonial. Possui um sino que toca ao iniciar de todo os cultos da igreja. O tocar do sino avisa a comunidade local que o culto esta começando. A igreja possui um tapete vermelho que liga a porta de entrada, que é bem larga e de madeira, até o altar. No altar, há uma mesa onde são colocados, a Bíblia, o cálice, hóstia da santa ceia, duas cumbucas de madeira -onde se deposita as ofertas e o dízimo- e um arranjo de flores. Logo atrás deste há uma cruz de madeira, que representa a ressurreição de Jesus. Ao lado do altar há um púlpito, no qual o pastor realiza a mensagem, também conhecida como “sermão”. No outro canto, há uma cesta de palha, onde os fiéis depositam alimentos não perecíveis para serem ofertados. A igreja possui bancos compridos, onde a comunidade senta. Normalmente as famílias ocupam o mesmo espaço nos bancos, assim sentam nos mesmos lugares e os membros que fazem parte da equipe musical e o presidente da igreja ocupam os bancos da frente, para dirigirem o culto. Os bancos possuem um espaço para os membros ficarem de joelhos, quando indicado na liturgia, ou quando alguém deseja fazer uma oração neste tipo de reverência.

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Memória, identidade e cultura: ensaios Quanto aos instrumentos musicais usado na igreja, há um teclado, um aparelho de som simples, flauta e violão. Na celebração do culto é usado mais o teclado, porém algumas vezes se remete aos outros itens para dinamizar mais a liturgia. Nos Cultos o pastor luterano usa uma batina que possui em sua cor detalhes referente às épocas que a igreja esta celebrando, assim usam-se as cores: branco, azul, vermelho, verde, violeta ou roxo e preto e são chamadas de cores litúrgicas, (LANG, 1987). De acordo com Lang (1987), a cor “Branca”, simboliza Deus, a eternidade e pureza. É usada nos domingos entre Natal, Ano novo e nos domingos de Páscoa. Já a “Azul”, simboliza o céu e a esperança. É usada no período de Advento, no aniversário da igreja e nos dias de Ações de Graça. A cor “Vermelha” por sua vez, simboliza o fogo, sangue, martírio e amor - baseando-se no sangue e na justiça de Cristo. É usada na semana de Pentecostes, no dia da Santa Cruz, convenções da igreja e no oitavo dia da festa da reforma. A cor “Verde” representa a vida permanente, nutrimento e descanso. É usada em batismo e transfiguração do Senhor no primeiro e ultimo domingo após a Epifania. Já as cores “Violeta” ou “Roxo”, simbolizam compenetração solene e da reverencia simbólica da penitencia e da realeza. Cor do luto e arrependimento. É usada no período da quaresma, QuartaFeira de cinzas. E a cor “Preta” representa a ausência de cor simbolizando cinzas, humilhação e luto. É usado somente Quarta-Feira de cinzas e, alternativamente na Sexta-Feira Santa. A CELEBRAÇÃO DO CULTO: ETNOGRAFIA DO “CULTO DO ADVENTO”

Antes de o culto começar, existe todo um preparo na igreja. Uma pessoa fica responsável pela recepção dos membros e entrega da programação litúrgica. Antes do culto as pessoas colocam seu nome no livro da santa ceia. Aos que desejam fazer algum pedido de oração, há um caderno exclusivo para isto que é dado posteriormente ao pastor. Em geral também antes das celebrações, no salão, uma “serva” faz o café, que é servido após o evento. Já no interior da igreja um casal de jovens previamente preparam os hinos que serão tocados, fazendo os arranjos musicais e cuidando do som. As pessoas vão chegando com suas famílias que

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normalmente sentam nos mesmos lugares nos bancos, se cumprimentam e esperam o culto começar. O culto começa com o tocar do sino e entrada do pastor. O mesmo faz a saudação à comunidade, deseja que todos sejam bem vindos e da inicio à liturgia. O pastor faz a invocação: “em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo”. A comunidade diz: “Amém”. No “domingo de advento” no qual foi iniciada a pesquisa, após a invocação, foi feita a leitura do Salmo 122 da Bíblia Sagrada5. Este Salmo foi lido de forma responsiva entre o pastor e a comunidade, da seguinte maneira, o pastor lia os versículos impares e a comunidades os versículos pares. Neste mesmo dia foi feita a confirmação de três jovens à igreja luterana. A confirmação é o momento em que o jovem comunica à comunidade o seu desejo em fazer parte da mesma e assume as práticas da igreja. A Luterana costuma batizar as crianças, sendo assim esta confirmação reafirma a crença dos jovens após estudo do Catecismo Menos de Lutero, que ocorre na adolescência. Assim, os jovens após este estudo, fazem sua aliança pela crença perante Deus e a igreja, a fim de confirmarem a aceitação da doutrina da igreja. Neste momento em que há a confirmação, os jovens passam a tomar santa ceia. A primeira leitura foi feita por um dos jovens que estava se confirmando (Isaías 2:1-5)3, a segunda leitura foi feita por outro jovem também sendo confirmado (Romanos 13:8-14)3. Foi cantado o hino 30 do Hinário Luterano6 e o pastor fez a leitura do Evangelho (Mateus 24:36-44)3. Em seguida, o pastor realizou a mensagem, nela foi falado sobre o ano eclesiástico, o ano da igreja, e a nova temática para 2014: “a igreja comunica a vida comunicando sempre Jesus”. Posteriormente o pastor fez referência aos jovens confirmados: “vivam de modo descente, nada de farras, bebedeiras, brigas e ciúmes e fiquem vigiando, assim disse o apostolo Paulo”. E o pastor fez uma comparação: Se soubéssemos quando o ladrão viria, assim será a vinda de Jesus o filho de Deus, então vigia. Que possamos aceitar esse convite, pois a fonte se esgota, os amigos se vão, o dinheiro se acaba. Jesus é a fonte de agua que nos da vida e vida eterna. Mediante a isto os jovens confirmados farão um voto hoje e devemos orar por eles. (BRAUN, dez. 01, 2013).

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Ver mais detalhes em: Bíblia de estudo plenitude para jovens crescendo no poder da palavra de Deus: Nova tradução na linguagem de hoje. 2008. 6 Ver mais detalhes em: Hinário Luterano. 1986.

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Memória, identidade e cultura: ensaios O pastor fez uma oração e em seguida cantou-se o hino do hinário de número 22, destinado ao recolhimento das ofertas. Neste momento as pessoas se levantaram, foram ao altar e colocaram suas ofertas em uma cumbuca de madeira. Por considerar este espaço sagrado, se comportaram de forma respeitosa. Ao subirem no altar foi feita uma reverência em forma de respeito ao lugar sagrado. Em seguida o pastor pegou o caderno no qual constavam os pedidos de oração que a “comunidade” escreveu antes do culto, e foi feita a “oração da comunidade”. Logo após este momento cantaram o hino 315 do hinário7 para a preparação da confirmação dos jovens. Neste momento os jovens a serem confirmados, os quais vestiam camisa branca simbolizando “pureza”, ficaram de pé em frente ao altar. O pastor se direcionou aos jovens e falou sobre a educação cristã. Neste momento toda a igreja orou o credo apostólico. O pastor fez perguntas referentes à igreja Luterana e perguntou aos jovens a serem confirmados se eles aceitavam ou não. Os jovens responderam que sim. Posteriormente cada jovem leu um versículo da bíblia, o qual se identificava, para proclamar à comunidade. Juntos, os três jovens então subiram ao altar e pela primeira vez receberam a santa ceia. Esta simboliza a comunhão com Deus pelo pão e o vinho. Após este momento, foi feita uma oração. Todos os presentes se cumprimentaram com um aperto de mão, no qual demonstram estarem alegres. Este momento de confraternização foi seguido pela distribuição da santa ceia aos demais. Foi feita uma fila até o altar. Ao chegar ao altar os membros fizeram uma reverência e o pastor, junto com um ajudante, distribui a hóstia (pão sem fermento) e o vinho, ao fazer este gesto o reverendo disse: “coma e beba, este é o corpo e sangue derramado de Cristo para remissão de todos os seus pecados”. As pessoas receberam a santa ceia e fizeram reverência no altar, como o sinal da cruz: Pai, Filho e Espírito Santo. De forma organizada as pessoas voltaram para seus assentos: umas se ajoelham, outras se sentaram para realização da oração pessoal (perdão dos pecados). Neste momento de oração o fiel pede perdão de seus pecados, para que, através da comunhão da santa ceia, Deus possa perdoá-los. Após a santa ceia, o pastor apresentou os informes da Igreja e proferiu a Benção Apostólica: “O Senhor vos abençoe e vós guardeis o Senhor faça resplandecer o

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Ver mais detalhes em: Hinário Luterano. 1986.

Juliana Carvalho

seu rosto sobre ti e tenha misericórdia de ti, o Senhor sobre ti levante seu rosto e vós deis a paz”. (BRAUN, dez. 01, 2013). Neste momento as pessoas ficaram de mãos abertas como se tivessem recebendo esta paz. O culto foi finalizado com um hino luterano e o pastor se dirigiu à porta com o intuito de cumprimentar as pessoas. Após o termino do culto os fies foram ao salão e fizeram sua comunhão: conversam; as crianças brincam; todos participam do café – há também muitas das vezes um lanche que se cobra um valor simbólico, que é feito cada domingo por um departamento diferente: “servas”, “leigos” e jovens. Após, retornam aos seus lares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A etnografia feita na Igreja Luterana levou-se em consideração os eventos que compõem a liturgia do culto por meio da observação e pelo discurso do “nativo”. Assim, ao entender cada parte isoladamente é possível compreender melhor a “atmosfera” e “dinâmica” do objeto como um todo, ou seja, a celebração religiosa. Conforme indiquei, para a realização da etnografia é necessário obter um olhar “destacado” na analise, ou seja, é preciso não deixar que aporte emocional e pessoal interfiram na mesma. Concluímos que a Igreja Lutera Bom Pastor, bem como suas “praticas e rituais”, não possuem influencias do mercado fonográfico gospel em sua liturgia. A igreja nem mesmo possui instrumentos musicais que possam alterar na proposta musical da mesma que se mantém tradicional, utilizando exclusivamente o Hinário Luterano e devocionários. Por tudo que já foi colocado no artigo, percebe-se que há entre os pesquisados uma forte defesa da “identidade Luterana” que se manifesta em todo um “rito” que a torna singular.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BÍBLIA. Bíblia de estudo plenitude para jovens crescendo no poder da palavra de Deus: nova tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2008. Emblema da IELB. Comunidade Evangélica Luterana Cristo pra todos, Osasco. Disponível em: . Acesso em: 7 Mar. 2014.

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Shirley de Souza Gomes Carreira Paulo César Oliveira Andrea Santos da Silva Pessanha

ISBN 978-85-98716-12-1 Todos os direitos reservados aos organizadores. Esta edição não tem fins comerciais.

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