Memória, teorias sociais e da comunicação: reflexões sobre o ato de lembrar nos media

July 24, 2017 | Autor: André Bonsanto Dias | Categoria: Communication, Media Studies, Memory Studies, Comunicação
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Memória, teorias sociais e da comunicação: reflexões sobre o ato de lembrar nos media André Bonsanto Dias1

Resumo Pensar a questão da memória em um processo comunicacional é inseri-la na construção social da realidade, a partir do momento em que o jornalista, ao criar acontecimentos, faz uma apropriação seletiva do passado. Este estudo pretende fazer breves reflexões sobre o “ato de lembrar” nos media, pensando em um “universo de possíveis” entre diferentes aportes teórico-metodológicos referentes às teorias sociais, a comunicação e a memória na mídia, questão crucial para entendermos a memória em seu contexto social. Palavras-chave: Mídia. Memória. Teorias sociais.

Abstract To think about the memory in a communication process is to insert it in the social construction of reality, from the moment the journalist, creating happenings, makes a selective appropriation of the past. This study intends to make a brief reflection on the “act of remembering” of the media, thinking of a “universe of possibles” between different theoretical-methodological approach in social theories, communications and media memory, crucial matter to understanding memory in its social context. Keywords: Media. Memory. Social theories.

1. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Sociedade da Universidade Federal do Paraná – UFPR. Bolsista CAPES. Especialista em Mercados Emergentes em Comunicação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – UNICENTRO-PR. Possui graduação em Comunicação Social (2007) e em História (2008) pela mesma instituição. E-mail: [email protected]

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Introdução – a memória em seu contexto social A questão da memória vem hoje ganhando amplo espaço nos mais diversos setores de nossa sociedade. Seja no âmbito acadêmico ou político-social, fala-se, hoje, muito em memória, sendo que esta problemática tornou-se questão central em diversos debates políticos e culturais referentes ao ato de preservação e do lembrar. Este boom da memória vem ganhando força em nossa sociedade contemporânea, na medida em vemos a utilização e apropriação das novas tecnologias de comunicação e seu “presentismo” histórico que privilegia um presente contínuo e efêmero. Fala-se, inclusive, em uma “cultura da memória” na qual se predomina um constante “medo do esquecimento” propagado em exaustão pelos media. Há nesse discurso uma forte necessidade do ato de recordar, preservar, comemorar, rememorar, para “resguardar” um passado que corre o risco de não mais existir. Este panorama nos leva a crer que não podemos discutir memória hoje “sem considerar a enorme influência das novas tecnologias de mídia como veículos para todas as formas de memória” (HUYSSEN, 2001, p 20-21). Ulpiano Bezerra de Meneses, importante pesquisador na área de cultura, patrimônio e museologia, acredita que esta crescente “popularidade da memória” vem obscurecendo sua natureza de fenômeno social. Fenômeno este crucial para pensarmos a questão sob o viés das teorias sociais. Segundo o autor, a memória deve ser vista como um processo permanente, um trabalho de construção e reconstrução. Para ele, “a memória de grupos e coletividades se organiza, reorganiza, adquire estrutura e se refaz, num processo constante de feição adaptativa” (MENESES, 1992, p.11). A memória deve, segundo o autor, ser encarada como um fenômeno heterogêneo, sendo, por isso, impossível falar em seu “resgate”. Para ele, é do presente que deriva a ambiguidade da memória, que deve então ser vista como uma dinâmica social, logo que desautoriza esta ideia de simples “reconstrução do passado”. “A elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do presente. É do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se efetivar” (MENESES, 1992, p.11). Portanto, se quisermos considerar a problemática social da memória a partir deste referencial, devemos avaliar não apenas os sistemas (mecanismos e suportes/referenciais) e conteúdos (representações desta memória), mas incluir os agentes e suas práticas inseridos neste processo (MENESES, 1992, p.19). No âmbito dos estudos acadêmicos referentes à memória, percebemos um amplo leque de análises que privilegiam desde as concepções filosóficas acerca do tema (Bergson; Freud; Ricoeur), históricas (Le Goff; Nora) às análises sociológicas (Halbwachs; Pollack). Para o historiador Benito Schimidt, este seria o “núcleo duro” teórico metodológico no qual se desenvolvem as pesquisas que partem desta problemática, sendo que termos como “memória coletiva”, “enquadramento de memória”, “lugares de memória” e “esquecimento” já se tornaram lugares comuns nestas análises (SCHMIDT, 2006). No entanto, segundo o autor, estas análises consideram, muitas vezes, os autores de forma muito simplista, utilizando suas teorias e problemáticas de formas um tanto quanto dispersas e desarticu-

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ladas de seu contexto social. O objetivo deste breve estudo é refletir acerca da problemática “memória” no âmbito das teorias sociais e da comunicação, pensando, assim, em possibilidades teórico-metodológicas para os estudos que abrangem a memória em seu contexto social e nos media.

Memória: estrutura, interação e construção social Frente a estas problemáticas, os estudos da socióloga Myrian Sepúlveda dos Santos referentes à memória e teoria social ganham aqui atenção especial. Em seu livro “Memória coletiva e teoria social”, a autora faz um passeio teórico sobre a questão da memória coletiva nas ciências sociais, analisando, segundo ela, um “sentido mais denso” desta memória, onde as análises privilegiam a noção de que os indivíduos “atuam no mundo, conscientes do lugar histórico que ocupam” (SANTOS, 2003, p.20). No livro em questão, a autora analisa a memória enquanto estrutura, interação e construção social, o que torna possível fazermos uma importante relação do conceito às teorias sócias clássicas, possibilitando novos olhares à problemática da memória coletiva social. É a partir de meados da década de 1970 que, segundo a autora, a sociologia procura resolver a “antinomia” entre indivíduo e sociedade através de teorias que pudessem integrar práticas e estruturas sociais, com abordagens que partiam para análises das memórias coletivas como textos simbólicos passíveis de interpretação. “Memórias passaram a ser compreendidas a partir de estruturas coletivas, processos interativos, práticas reflexivas e construções sociais” (SANTOS, 2003, p. 23). Sob esse viés, é interessante refletirmos sobre os estudos do sociólogo francês Maurice Halbwachs e dos psicólogos Bartlett e Neisser que são, para a autora, autores complementares que buscaram compreender os mecanismos responsáveis pelas construções sociais do passado que se realizam no presente. Santos procura desenvolver o argumento de que “construções do passado são sustentadas por estruturas coletivas e criadas por atores sociais” (SANTOS, 2003, p. 34). Ao utilizar o conceito de “quadros sociais da memória”, Maurice Halbwachs contraria os pensamentos de Bergson que focava sua análise em uma memória apenas individual e subjetiva. Para Halbwachs, a memória é uma construção social na qual há sempre memórias individuais e memórias coletivas. No entanto, a memória é sempre vista a partir de um contexto social, do que nos é lembrado. São os indivíduos que lembram, mas é o grupo que define aquilo que deve ou não ser lembrado, “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva” (HALBWACHS, 2004, p.55). Sob este viés de Halbwachs, podemos pensar que os indivíduos não são isolados, mas interagem a partir de estruturas dadas e determinadas, os “quadros sociais” da memória. Este pensamento, influência de Durkheim, enxerga os fatos sociais como “coisas”. Portanto, podemos pensar aqui uma memória de força quase que institucional. Já os estudos dos psicólogos Bartlett e Neisser2 se preocuparam em analisar

2. BARTLETT, Frederic Charles. Remembering: a study in experimental and social psychology. Cambridge. Cambridge University press. 1961; NEISSER, Ulric. Memory Observed: Remembering in natural contexts. San Francisco: W.H Freeman. 1982. Para mais, consultar SANTOS (2003).

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a influência das determinações sociais a partir de esquemas de percepção individuais. Indo além das estruturas coletivas, estes estudos privilegiam a força dos processos interativos nas formas individuais do lembrar. De acordo com estes estudos, as lembranças são constituídas por indivíduos em interação, como se a memória coletiva fosse uma construção simbólica da realidade (SANTOS, 2003). Esta memória, enquanto construção social, é uma memória que se dá e se constitui no presente a partir das interações sociais. Para Bartlett, os “indivíduos têm razões e intenções com significados próprios no processo de construção de suas memórias” (SANTOS, 2003, p. 34). A memória, então, deve ser vista aqui como algo inerente ao indivíduo, que se encontra em um grupo social e se associa à percepção, imaginação e ao pensamento construtivo. Portanto, para ele, a memória é um processo de interação entre os indivíduos e seu meio, onde só recordamos ou percebemos aquilo que é significativo para nós mesmos (SANTOS, 2003). Diferente de Halbwachs, que via nos “quadros sociais” o ponto de partida para a análise, Bartlett “direcionou sua pesquisa para o estudo dos processos pelos quais condutas individuais eram forjadas no contexto social. Suas análises não se voltavam para o estudo de representações ou práticas coletivas, mas para condutas individuais associadas a condições sociais determinadas” (SANTOS, 2003, p. 57). Esta é a tese de que a memória se faz num processo de conhecimento de mundo e se dá pela busca de sentido. Para o psicólogo Ulric Neiser, o processo de rememorar só pode ser explicado inserindo-o na vida cotidiana: “indivíduos estão sempre reconstruindo experiências passadas através de sua inserção no mundo que os cerca” (SANTOS, 2003, p. 63). Segundo Santos (2003, p. 64), os estudos de Neisser ganham então destaque, pois se voltam às análises das circunstâncias e contextos em que a memória se insere. Esta abordagem enfatiza que os indivíduos se utilizam do passado de forma contínua para definir identidade e reformar comportamentos. A partir destes autores, devemos analisar a memória em seu contexto social como construções do passado que são sustentadas por estruturas coletivas e criadas por atores sociais. No entanto, como enfatiza Santos, estes dois pressupostos não podem ser considerados de forma excludentes. É importante citarmos aqui a influência que algumas das teorias sociais puderam abarcar a estas noções de memória, fundamental para entendê-las em seu contexto social. O interacionismo simbólico, proposto por Herbert Blumer, foge do “determinismo sociológico” de Halbwachs, partindo da premissa de que a ação coletiva e do grupo se dá pela ordenação das ações individuais. Esta concepção dá à interação simbólica um caráter “distinto” e “peculiar”, que envolve uma interação mediada por uso de símbolos, interpretação e compreensão de significados que envolvem as ações (BLUMER, 1982). O autor afirma que o ser humano possui um “si mesmo”. Portanto, este indivíduo pode ser objeto de suas próprias ações. Ações estas que o fazem “atuar” em seu mundo de forma “consciente”, conferindo “significado” a estas ações. Assim, para Blumer, as ações não são parte de um estímulo prévio da sociedade e sim um produto do próprio indivíduo que age com este intuito de “atuar”. O individuo, então, constrói seus objetos baseando-se em sua própria atividade. É isto que ele considera “interpretar e atuar baseando-se em símbolos” (BLUMER, 1982, p. 61).

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A interação simbólica sempre se dá em um determinado contexto social, no qual o individuo orienta suas ações levando em consideração a realidade das coisas e interpretando-as de acordo com sua importância. Não é consequência de outros fatores externos, mas sim do modo em que o indivíduo “maneja” suas ações de acordo com o contexto e as ações que está a elaborar. Já a Fenomenologia Social, proposta por Alfred Schutz, afirma que há uma realidade “real” a partir da perspectiva do sujeito, daquilo que ele dá sentido em seu “mundo da vida” e a partir de suas interações. Portanto, o indivíduo utiliza-se de certa “intencionalidade” que está ligada às experiências neste mundo, eliminando, assim, noções pré-concebidas da realidade, colocando-a “entre parênteses”. Este cenário do “mundo da vida” se dá, então, pelas experiências subjetivas do indivíduo e suas interpretações na vida cotidiana (SCHUTZ, 1979). A Fenomenologia Social parte, então, de uma “teoria subjetiva da ação humana” que se dá por “razões” e “objetivos” específicos. Os textos de Wagner, em sua introdução à obra “Fenomenologia e Relações Sociais”, de Schutz, indicam-nos que o indivíduo, em seu modo de orientação dentro do mundo da vida, é incitado e guiado por instruções, exortações e interpretações que lhe são dadas por outros. Se ele constrói a sua própria visão de mundo à sua volta, o faz com o auxílio das matérias-primas que lhe são oferecidas nessa contínua exposição aos homens, seus semelhantes (WAGNER, 1979, p. 19-20).

A partir destas premissas, podemos articular uma possível relação entre a questão da memória e as teorias sociais acima citadas. Ao pensarmos a memória em seu contexto social e, levando em consideração suas implicações com a psicologia social, levamos a crer que o “ato de lembrar” só ganha “sentido” a partir do momento em que são constituídas por indivíduos em interação. Como nos coloca Schutz, podemos pensar também que a memória e o ato de lembrar estão intrínsecos a um “mundo da vida”, onde devemos considerar não apenas as constituições simbólicas provenientes das interações, mas como estas se dão a partir dos outros, ou como pensa Halbwachs, “do que nos é lembrado”. Portanto, pensar esta dicotomia indivíduo/sociedade é questão primordial nos estudos que querem focar a memória sob um viés interdisciplinar, sob o qual esta passa a ser compreendida como parte das estruturas, das práticas reflexivas e das construções sociais. É fundamental, portanto, pensarmos a memória coletiva enquanto agente constituinte de uma “construção social da realidade” como nos coloca Berger e Luckmann (1985). Segundo eles, a realidade é construída socialmente e se dá a partir de um conhecimento de mundo. Neste viés, a vida cotidiana se apresenta como uma realidade interpretada pelos homens, um mundo intersubjetivo dotado de sentido, no qual, segundo os autores, não se pode “[...] existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com os outros” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 40). Estas atividades estariam, então, sujeitas ao hábito, que conservam caráter significativo ao indivíduo e são “tipificadas” a partir da institucionalização. Segundo os autores, as instituições “controlam a conduta humana estabelecendo padrões previamente definidos de conduta, que a canalizam em uma direção por oposição às muitas outras direções que seriam teoricamente possíveis” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 80). Este “mundo social”, em constante processo

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de construção contém, então, segundo eles, uma ordem institucional em expansão, que se experimenta a partir de uma realidade objetiva. Neste aspecto, podemos pensar as memórias, atreladas em seu contexto social, enquanto “instituições” que auxiliam na legitimação de dado conhecimento da realidade objetiva. Ao pensarmos a memória como “fato social” como nos propõe Halbwachs, uma memória quase que institucionalizada, podemos considerar que, assim como a realidade, a memória é também constituída socialmente. Podemos, inclusive, trabalhar com a dialética “conhecer” x “lembrar”, na qual a realidade se daria a partir do “conhecimento”, ou seja, daquilo que nos é “lembrado”. É partindo desta perspectiva que podemos pensar a questão da memória sob o viés da comunicação social, refletindo um pouco como estas são institucionalizadas e legitimadas na e pela mídia, a partir do momento em que representam determinado tipo de “realidade” construída e constituída socialmente.

A memória e o “ato de lembrar” nos media Ao pensarmos o processo de construção social da realidade a partir da memória na mídia, podemos afirmar que esta se dá a partir do momento em que o jornalista faz uma apropriação seletiva do passado. Segundo Marialva Barbosa, uma das maiores especialistas nos assuntos referentes à memória e aos meios de comunicação, a mídia trabalha constantemente com a dialética da lembrança e do esquecimento, pois ao selecionar o que deve ser notícia e o que vai ser esquecido, ao valorizar alguns elementos em detrimento de outros, os meios de comunicação reconstroem de maneira seletiva o presente, construindo hoje a história desse presente e fixando para o futuro o que deve ser lembrado e o que precisa ser esquecido (BARBOSA, 2005, p. 108).

Esta questão nos faz pensar que a memória propagada na e pela mídia, uma memória institucionalizada, constrói e legitima uma realidade a partir do momento em que seleciona aquilo que deve ou não ser noticiado, conhecido e lembrado. Como nos afirma Berger e Luckmann, as instituições atuam como “[...] facticidades históricas e objetivas, defrontam-se com o indivíduo na qualidade de fatos inegáveis. As instituições estão aí, exteriores a ele, persistentes em sua realidade, queira ou não” (BERGER; LUCKMANN, 1985, p. 86). Portanto, os profissionais da mídia, atuando a partir dos meios de comunicação, tornam-se uma espécie de “senhores da memória”3 da sociedade, pois “ao legitimar o acontecimento, divulgando-o e tirando-o de zonas de sombra e de silêncio, impõe uma visão de mundo que atua outorgando poder” (BARBOSA, 2005, p. 109). O jornalista, então, ao construir o acontecimento, seleciona parte da realidade,

3. Termo utilizado pelo historiador Le Goff (1994).

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partindo do pressuposto de que os leitores “gostariam de saber” algo do que as instituições querem “fazer saber”. Ou seja, “ao ser capaz de transmitir a informação – a capacidade de saber – e ao produzir uma língua legítima, no sentido de reconhecida, os meios de comunicação passam a ser portadores desse reconhecimento” (BARBOSA, 2004). A partir destes pressupostos, podemos pensar que a mídia, ao selecionar, construir e revelar seus acontecimentos levando em conta a dialética da lembrança e do esquecimento, atua como importante “lugar de memória”4 da contemporaneidade. É esta uma das questões centrais e mais recorrentes no que concernem os estudos que relacionam a questão da memória e os meios de comunicação social. Em seu livro “Percursos do olhar”, Marialva Barbosa analisa o que ela chama de “estratégias de atualização da memória”, partindo de uma reflexão sobre o problema da memória no âmbito dos meios de comunicação (BARBOSA, 2007). Entendendo a memória como vestígios, rastros, um passado constituído no presente, a autora acredita que a constituição dos chamados “lugares de memória” se dá a partir de um momento em que há este fenômeno de “aceleração” da história, portanto uma necessidade urgente pelo ato de recordar. Para ela, esta “volatilidade” do presente se dá graças às tecnologias de comunicação que geram uma espécie de sensação de instantaneidade. Nesse sentido, torna-se “urgente” a necessidade de criar “âncoras memoráveis”, os “lugares” que têm características funcionais, materiais e simbólicas. Segundo Barbosa, a multiplicação dos lugares de memória de Nora cria uma espécie de valorização do futuro, pois dessacraliza o passado ao mesmo tempo em que cria a ilusão de sua preservação. Os lugares da memória que se constituem na e pela mídia surgem, então, em um momento em que não há mais memórias “espontâneas”. Ao mesmo tempo em que registram o presente, relembram e fazem relembrar o passado a cada instante. Portanto, podemos pensar que a questão da memória na mídia desloca os estudos para a questão da identidade e representação, pois é por meio da memória que podemos afirmar que identidades são fundadas, sendo que ela implica uma certa “proibição” do esquecimento (BARBOSA, 2007). Nesta perspectiva, a memória inaugura, na contemporaneidade, um novo “regime” do ato de lembrar, multiplicando os espaços de rememoração, que – ainda que transitórios e incompletos – refletem o desejo de ancorar um mundo em crescente mobilidade e transformação e de compensar a perda de elementos mais sólidos e concretos que, antes, serviam de referência para os sujeitos (BARBOSA, 2007, p. 41).

Ainda neste âmbito da mídia como importante “lugar da memória”, devemos levar em consideração a obra “Mídia e Memória”, organizada por Ana Paula Ribeiro e Lucia Maria Ferrei-

4. O termo “lugares da memória” foi cunhado pelo historiador francês Pierre Nora, para caracterizar certos lugares “onde a memória se cristaliza e se refugia” (NORA, 1993, p. 07). Para Nora, há um “desmoronamento da memória”, pois vivemos em um mundo de constante massificação e mediatização. Portanto, segundo o autor, os “lugares de memória” são primordiais numa sociedade que não mais habita sua própria memória, portanto, existem hoje lugares de memória, pois não existem mais, efetivamente, meios de memória.

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ra. O livro contém uma série de artigos que partem desta intrínseca relação entre mídia e memória que presenciamos atualmente na chamada “cultura da memória”. Segundo as autoras, os meios de comunicação, ao mediar a relações dos sujeitos com as transformações de seu cotidiano, produzem sentidos para os processos históricos em que estes se encontram inseridos, participando assim da própria construção de suas subjetividades. Portanto, a mídia evidencia em seus discursos “[...] entre todos os fatos da atualidade, aqueles que devem ser memoráveis no futuro, reinvestindo-os de relevância histórica. Constitui-se, assim, um verdadeiro “lugar de memória” da contemporaneidade” (RIBEIRO; FERREIRA, 2007, p. 07). A obra, lançada no ano de 2007, surge para “comemorar” o bicentenário da imprensa no Brasil que se deu em 2008. Fato constatado pela grande maioria dos artigos e análises partirem da relação imprensa e memória. Os estudos que analisam as “comemorações” e “rememorações” são também questão central nas análises referentes ao ato de lembrar na mídia. Partindo do pressuposto de que a mídia “constrói” esta realidade a partir do que nos é lembrado, muitos estudos focam a questão do ato de lembrar àquilo que se dá e se inscreve na mídia, a partir do acontecimento. Assim como o livro anteriormente citado, a obra “Comunicação, Acontecimento e Memória”, compila alguns dos trabalhos apresentados no XXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, realizado em 2004, na PUCRS que, sob o mesmo tema, discutiram assuntos que então estavam em voga devido, principalmente, às “comemorações” dos 40 anos do golpe militar no Brasil. Esta temática, articulada pela principal entidade referente aos estudos de comunicação no país, evidencia a atual importância da memória para os estudos de comunicação.5 Em um dos estudos, Christa Berger, analisando as questões de Todorov referentes à memória, afirma que os jornalistas são “narradores que cumprem funções de mediação entre o passado e o presente.” Eles podem, portanto, segundo ela, ser incluídos no rol dos “comemoradores”, pois um veículo de comunicação pode cumprir função semelhante aos museus e monumentos, por exemplo, pois celebram e registram os fatos. “Mas aos jornalistas cabe atualizar e dar sentido ao acontecimento fundador, ao mesmo tempo que informar o modo como a sociedade recupera e celebra o passado, produzindo novos acontecimentos” (BERGER, 2005, p. 65). Para a autora, é preciso se pensar qual o sentido desta memória propagada pela mídia. Qual o sentido que adquirem, ao serem “atualizadas” pelo jornalismo. Pois, segundo ela, O percurso que traz o passado (acontecimento primeiro) para o presente (reavivamento do acontecimento pelo seu potencial de atualidade) é trabalho de memória em forma de narrativa que se apresenta como um fato jornalístico. O passado, trabalhado como memória é reapresentado como atualidade, nesta reapresentação há o encontro de uma memória e um novo acontecimento. Deste encontro brotam sentidos. O jornalismo não

5. É com objetivos próximos a estes que a Rede Alfredo de Carvalho é idealizada em meados de 2001. A Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia, Rede Alcar, como é conhecida, é hoje a principal (senão a única) associação que reúne instituições e pesquisadores da comunicação que se articulam em pesquisas e análises históricas e da memória dos e nos meios de comunicação. Segundo José Marques de Melo, fundador e idealizador da Rede Alcar, a entidade surge com o principal objetivo de “desenvolver ações públicas destinadas a comemorar os 200 anos de implantação da imprensa no Brasil, preservando sua memória e construindo sua história.“ (MARQUES DE MELO, 2002, p. 11). O que nos mostra mais uma vez este caráter “comemorativo” da memória na mídia.

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transporta a memória pública, histórica ou coletiva de maneira inocente, mas no enlace com um novo acontecimento, a condiciona e acomoda na sua própria estrutura e forma (BERGER, 2005, p. 66).

Esta memória “comemorativa”, propagada e atualizada constantemente pela mídia, esta memória “reapresentada como atualidade” que se dá pelo acontecimento midiático, faz com que, para a autora, a comemoração acabe se tornando um produto da cultura de massa. No caso dos passados históricos traumáticos, por exemplo, a autora acredita que “o sentido jornalístico vai desde lembrar o que não nos é permitido esquecer até lembrar para estar de acordo com as leis do mercado que comercializa e lucra com o passado envolto em nostalgia” (BERGER, 2005, p. 68). Portanto, a memória institucionalizada e legitimada pela mídia impõe uma nova “temporalização” que se dá e se constrói na constante presentificação do acontecimento do passado, na qual os meios de comunicação atuam como mecanismos constituintes da memória ao trabalhar com as comemorações e rememorações (BARBOSA, 2007). Marialva Barbosa, ao analisar as “comemorações” que se deram na virada do século passado, impulsionadas pela Rede Globo, sobre a questão dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil (campanha “Brasil 500 anos”), acredita que a utilização destes “marcos comemorativos” que reatualizam o passado é de grande importância para uma prática jornalística entendida como prática social. Para ela, “se a narrativa jornalística é marcada, sobretudo, pela identidade do instante, é preciso, também, criar mecanismos que se delimite o déficit existente em relação à alteridade temporal” (BARBOSA, 2007, p. 55). No entanto, assim como Berger, Marialva acredita que a retórica jornalística da comemoração materializa a memória por meio de uma “indústria da comemoração”, na qual, segundo ela, a memória histórica que “se condensa em torno dos lugares e dos monumentos, também se sintetiza em torno das celebrações. E nesta construção e, por extensão, na constituição de uma dada identidade coletiva, a mídia desempenha papel essencial” (BARBOSA, 2007, p. 55). Podemos afirmar, então, que, nestes casos, a memória age enquanto “instituição social” na medida em que trabalha para legitimar uma dada construção social da realidade que se inscreve nos acontecimentos midiáticos. Acontecimentos que nos são lembrados a partir de uma perspectiva que, no âmbito dos media, envolve relações de poder, vestígios, falas e não-ditos, e que evidenciam uma memória constituída e construída socialmente. Pensar a problemática da memória a partir destas questões é inseri-la dentro da perspectiva social, na qual há um constante embate pela “legitimação” destas memórias. É pensar em um “universo de possíveis”, como nos coloca Marialva Barbosa, nesta estreita relação entra a memória/história e a comunicação, relação que envolve noções do acontecimento no tempo e espaço e que seleciona, constrói e legitima diariamente uma dada realidade que se constitui a partir do que nos é lembrado na e pela mídia.

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