Memórias de uma Fruta Madura

June 4, 2017 | Autor: Aglaé Gil | Categoria: Poesia Brasileira, Contos, Literatura Brasileira Contemporânea
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Descrição do Produto

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Memórias
de
uma
fruta
madura


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[a vida em metáforas de nós]

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2015
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Aglaé Gil













Memórias de uma fruta madura


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Cheguei à conclusão de que talvez a minha loucura só me baste a mim.
O problema é que eu não sou o bastante para ela.
Por isso, eu escrevo.



















Memórias de uma fruta madura



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Para dizer 'olá'




Hoje me coube um sopro, muito mais do que um grito de carnaval. Amanheci ideias cálidas e filtrei as águas que me embriagaram ainda cedo. Mantive o sal delas bem rente, em minhas mãos, como quem segura antigos sonhos que alimentaram e alimentam, ainda, a vida.


Memórias de uma fruta madura



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Herança





A vida para mim é como um mar. Porque ela também se refaz de tal forma e em nuances tão diversas, que fico parada à beira do cais, pálida e perplexa. Atrás de mim, séculos de vidas vividas fio a fio, passo a passo. Sorrisos e lágrimas. Angústias e alegrias em mulheres de olhos vivos e atentos. Formamos uma longa e colorida trama. Todas elas e eu também. Porque agora era a minha vez de fazê-lo e de percorrer os campos que hoje são cidades costuradas por avenidas e viadutos, sob o mesmo céu anil. Os rostos delas me mostram um sorriso enigmático. Sou apenas mais uma de uma longa dinastia de mulheres de bem. De mulheres que escolheram traçar seu destino seguindo rumos que, para muitos, não tinham explicação. Muito menos aceitação. Eu mesma rompi com várias convenções. Não quis me deixar vencer. Não sei dizer, agora, se isso foi bom ou ruim. Foi simplesmente o meu modo de encarar a vida. O que é bom? O que é ruim? Os olhos acesos das mulheres que me precederam não respondem às minhas perguntas, mas seguem meus passos e são personagens de minhas tramas, porque elas têm a força que supera o tempo. É como se eu pudesse, do olho do furacão que vez por outra varre minha alma, ouvi-las dizer que, ainda e sempre, vale a pena. Acredito. O furacão de uma mulher pode tornar-se brisa quando ela tem a certeza de que nasceu sob o signo da esperança.






















Memórias de uma fruta madura



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Meus pais



É isto. Bastava que existissem. Bastava que estivessem ali, na cozinha, na sala, no quarto ao lado. Eram pessoas inteiras, mesmo que suas metades doessem. Eram gente de fibra, ainda que às vezes suas barreiras se rompessem. É isto. Bastava que vivessem e respirassem e se movessem. No silêncio deles, aprendi muito. Em suas palavras, mesmo as que me alcançaram com algum fel, encontrei lições de que não me esqueço. Na existência de meus pais, encontrei a roda de mó que gira por mim e vai moendo as dificuldades imensas do caminho.

























Memórias de uma fruta madura



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Primeira lembrança



Engraçado como lembranças são flashes a espocarem na mente. Algumas como que arrancadas de um tempo de que nem se sabe que há memória útil. Como a primeira que tenho, de mim com consciência de mim. Minha mãe dando-me de comer - a mão branca e cheirosa, ornada por uma aliança de ouro amarelo e aproximando uma colher de prata de minha boca. Então uma porta se abre. Estamos na cozinha. O sol entra invadindo todo o aposento e me causa uma espécie de arrebatamento. Sinto aquela luz forte tomar conta de tudo e a me cegar. A sombra, a entrar, é minha irmã. Ela veste seu avental de grupo escolar. Um pequeno coração acelerado a sentir o bom cheiro de sabonete da mão de mamãe. E ouvindo a voz dela e de minha irmã a trocarem algumas impressões sobre o dia. É minha primeira lembrança. É forte e viva. É como uma conta em um longo rosário de pedras coloridas que foi se formando. Foi se fazendo eu.

















Memórias de uma fruta madura


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Doce lembrança





Ela era doce que só.
Até cheirava parecido com aquele açúcar de confeitos.
Sorria o sorriso manso das chegadas incertas, mas trazia um par de olhos tão doces como as carolinas de limão das vovós, como as balas de coco das vendas.
E abduzia a atenção de quem vinha, assim como a de quem ia. Ela não andava como todo mundo: ela volitava feito as almas em algum ponto-campo-jardim de Deus.
As mãos traziam acenos igualmente doces. Sinais repletos de uma sabedoria que não se aprende. Daquelas que se apreende, quando Deus dá.
As pessoas pensavam até que, quando ela saía de algum lugar, a luz ficava até mais fraca. Havia uma total fragilidade em tudo que existia fora daquela pessoa especial, repleta de todos e vazia de ninguém.
Alma de algodão, certo dia apenas foi e não voltou.
Dizem que foi viver de novo com os irmãos mais próximos. Os anjos amigos do arcanjo Gabriel.



















Memórias de uma fruta madura


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Quem vai





Alguns nomes já não estão em meu caderno. Uso pronomes. Não os apaguei. Eles se retiraram sozinhos, com vagar e em silêncio. Não os escrevo mais. Não picho muros de minha mente. Foram-se, como escolheram. Eu estou onde escolhi. E as páginas, o vento de mim as virou.

































Memórias de uma fruta madura


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A menina do corredor




E lá estou eu, de novo. Sou a menina do corredor. Eu a alcanço. Eu a enlaço, dou a ela o carinho que aprendi ser importante demais para se deixar de ter. Lá está a menina, com sua lágrima brilhando enquanto atravessa o escuro. Tão fácil abraçar a menina - a menina que fui eu. Dizer a ela que, afinal, tudo ficará bem. Sei, porque sou ela, que está pensando que ninguém apareceu para lhe abraçar. Mas eu estava lá. Sempre estive. Ah. É uma longa história, mas é minha história e a vida...já contou.

























Memórias de uma fruta madura


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A vida nas mãos



Do outro lado da rua havia umas laranjeiras carregadas, os galhos pesados de tantas laranjas. Cheiravam tão bem! Eu tinha vontade de ficar à sombra de uma delas e me empanturrar. Dava água na boca. Havia quanto tempo eu não comia uma laranja assim, tirada do pé? Era como se fossem uns duzentos anos! A soma dos anos...vinte, trinta, duzentos... que importava? O que é o tempo? A laranja, enfim, tinha um sabor doce e sua acidez era desejada pelo paladar. Desceram-me pela garganta: sumo, gomos, bagaço. Era como um néctar precioso de todos os deuses. Aquela laranja, de repente, era como a vida - tinha o gosto da vida. No céu, já pelo meio da tarde, o sol pestanejava entre as nuvens passantes. Para onde iam, afinal? Quanto vagar naquele céu de inverno do hemisfério sul! O céu era o tempo - tinha a cara do tempo. Passava, preguiçoso. Mas também corria, veloz e furioso feito o vento que varre nuvens lá em cima. Lá em cima. As mãos estavam lambuzadas de laranja. Vontade saciada, dia ganho. Vida bonita, clima bom. A sensação de poder ser o que quisesse voltava. Logo eu, que saíra de uma dor qualquer e retornava à rua das possibilidades. Adiante, depois da próxima esquina, poderia haver mais frutos e mais cores. As cores eram os meus sentimentos: vestidos conforme pedem as estações.



















Memórias de uma fruta madura


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Uma cicatriz





Uma amiga, certo dia, deu-me uma frase que, vez ou outra, retiro da gaveta.
Ela disse: "A ausência é a nossa ferida".
E, porque a ausência se repete e não sacia a sede de nós, amanhece e anoitece crescendo sem medo e arrasadora. Mancha dolorida, água que esvazia, sentimento que não cabe em lugar algum. Os ausentes, estes são segredos em nós. E são nós de cordas em nossos segredos. E, porque se tornam uma ferida grande e dolorida, estarrecem e desmancham o sagrado, que é a nossa presença por seus caminhos frios. Que as lágrimas, as que não preenchem o vaso, sirvam para lavar a dor da ferida e preparar a pele para os novos ventos do sul ou do norte.
























Memórias de uma fruta madura


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Rastros




Que todas as coisas tenham um sabor de verão mesmo no outono de minha vida. E que eu tenha a verdade em mim a perseguir meus danos e as perdas que sofri ao longo de um caminho repleto de sol e molhado pela chuva que somente os abismos conhecem. Não sei de mim muito mais do que o resto da gente que anda e percorre sonhos e faz trejeitos malucos de quem sabe o que faz. Ninguém sabe. Ninguém consegue colher exatamente o que plantou. Porque as ervas daninhas andaram crescendo em torno dos vastos campos semeados de amor e os canteiros ressecaram em busca das mãos. As mãos que deveriam trazer água e que jamais chegaram.
Tudo poderia ter um outro sentido, mas o que se perde e não mais se vê tem um destino diferente do que foi traçado por sonhos pueris. Lamenta-se. Mesmo assim, prossegue-se e nada se teme mais do que a noite negra que a tudo contamina e afugenta, não por falta de lua ou de estrelas, mas por não se fazer presente de forma honesta, limpa. Que eu esteja iluminada, então, para que ninguém tenha medo de mim. Nem mesmo meus temores. Nem mesmo eu.
Que meu sorriso antigo jamais se canse e que eu saiba que sendo eu mesma estarei sendo a verdade que persegui por anos e séculos e milênios. Estranho como ela – a verdade - tem o mesmo frescor de minha juventude! Os dias serão de cores diferentes e eu ainda estarei aqui, porque persigo o que desenhei no muro das lamentações e, antes disso, nos círculos de pedras das terras altas, na Pátria eterna e feminina de Avalon. Serei canto de pássaros azuis quando me despedir e tiver em minhas mãos apenas o sorriso poderoso de minha filha. Ela entenderá cada palavra minha, porque reage conforme a atmosfera criou seu rumo. Então, serei o vento a alimentar seu fogo e ela se conduzirá pelas terras planas e desertas sem olhar para trás, porque saberá que pode chegar aos verdes vales que a vida prometeu a mim e que, por legado, serão dela. E assim, serei ainda. Presa e livre nas cores, nas mãos e no peito dela.









Memórias de uma fruta madura


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O dia em que a vida desbotou


Estive lá e, no dia seguinte, já não havia ninguém. De modo que não sei se tudo o que vi e vivi por ali não passou de mera viagem de minha imaginação quixotesca. Do portão em diante, contudo, agora percebo, o jardim é um amontoado de galhos ressecados e uma pequena fonte seca jaz como o todo o ar em torno de mim. Então, como em apenas um dia o jardim que era como o limiar de um olimpo risonho, transformou-se nesse nada tão angustiante? Chamei pelo nome uma, duas, três vezes e mais. Nada me devolveu o som, nem mesmo algum eco distraído. A casa desbotara. A vida em torno e dentro dela desbotara e a poeira assentara-se como se depois de danças e festas descansasse em sono eterno. E eu, empobrecida, senti que precisava mesmo me resignar e fustigar essa minha mania de viajar para dentro e pelos arredores de mim, criando coisas, pessoas e lugares como quem de tudo participa e a tudo desvenda e vê. Do portão para fora - eu já de saída, a imagem mais exata da decepção - a rua tinha alguns sons abafados e o sol aquecia, modorrento, como num início de tarde de janeiro. Mas como se, ainda ontem, ali mesmo, era o frescor de abril! Desci a ladeira, depois que, da esquina, acenei em pensamento para mais um cenário de meus devaneios. Ali estariam para sempre alguns rostos e fatos que me haviam emocionado, encantado, enamorado apenas um dia antes. É. Ficariam guardados de um modo que eu jamais saberia exatamente qual e em sua festa fariam seus próprios comentários sobre a peregrina que por ali passara em pleno acontecimento do nada.
Na ladeira, meninos brincavam e a bola quebrava uma vidraça. Seria aquela beleza mera apenas uma quimera também?
Sorri para mim e, porque sorri, segui.













Memórias de uma fruta madura


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Fruta madura



E nesse gostoso duplicar de passos em meio minha alquimia, desfaço nós que acham de me incomodar a esta altura da caminhada:
sou flor que não se colhe, sou fruta que não se come.
Eu apenas amanheço e anoiteço aqui, deitada sobre minha colcha de retalhos coloridos e desperta, a verdejar sob o sol, em meu quintal.
























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Um blues em mim




Sinto sempre em minha boca esse gosto de um blues que ficou engatado em algum momento, anos atrás. Como um disco riscado, é um gosto de você que vai e volta e vem e vai. Coisas que a gente quer guardar mesmo sem saber. E ainda assim, é como se não se deixasse tocar o velho vinil de onde viriam as notas rasgadas e plangentes de uma guitarra mais antiga que nós. Sentir saudade nem sempre significa querer voltar.






























Memórias de uma fruta madura


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De tempo e de espera




Fico pensando na generosa fatia de tempo que me cabe, neste mundo onde se espalham uns pedaços de nós como sementes, enquanto se vive. O tempo e suas maneiras dóceis e afáveis, quando não cruéis e frias, cortantes, lancinantes. O tempo. O mestre sobre o qual tanto -talvez tudo - já foi dito. Mais um desses irmãos que a nós foram conduzidos para que se mantenha uma parceria - e não uma relação de antagonismo. Mãos dadas com ele, absorvo, mastigo. Eu como a minha fatia com a avidez que me foi própria desde o primeiro abocanhar. E devolvo aos ponteiros dos relógios todos o compasso abençoado, inventado e escandalizado que foge de nós quando queremos segurá-lo, detê-lo, mantê-lo. E então, saciada, deito-me sob à sombra reconfortante de minhas esperas.



















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Chuva de mim





Eu vou caminhar meus pensamentos sob a chuva dos sentimentos. E se alguém me encontrar pelas ruas, peço que apenas me olhe em silêncio e abrace o meu desejo de me deixar molhar.



























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Passagem





Apenas me calo e reflito. Alguns momentos se abrem como um portal para que eu faça uma viagem magnífica pelo tempo. Recolho-me à minha insignificância e pequenez: sei que vou passar. Como tudo, como todos.



























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Do que não me esqueci




Não pense que me esqueci. Não. Não sepultei no concreto minhas lembranças, tampouco afoguei na taça de minha poesia toda a paixão que já senti. O tempo e as marés não esgotam o mar. De onde vieram as paixões certamente há muito mais. É que apenas prefiro me esparramar na areia soltamente, livremente, ao som do mundo e ao beijo de um sol infinito. Não. Eu não me esqueci. Apenas escolhi o leito de areia e brisas sem fim. Por vezes, até, a lua prateia minhas lembranças.



























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Do que me consome



Escondi alguns receios sob as asas da determinação e enfrentei minha face escura. Vim aqui para dizer a você que sinto muito: não ter medo faz de mim a fruta pronta para a saliva da vida.





























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A boca do tempo






Chegou a boca do tempo e comeu o que havia por ali. E havia muito. E havia quase tudo. Veio a boca do tempo e soprou as velas, comeu o bolo e engoliu a festa. E havia festa. E havia fome. A boca do tempo não se fecha. Morde, come, engole os dias meus e os dias seus. A boca do tempo vem e engole e sopra feito vento de amplidão até o que a gente comemora quando se esquece que o tempo tem boca e razão.
























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Avessos







Hoje, além do avesso do avesso, estou na base do 'sei lá'. Sou mais que um ponto, mais que um traço, minha mente corre em busca de uma chuva de letras e tudo o que me vem é este cansaço! Do mesmo jeito que às vezes escrevo até me cansar [sem jamais cansar! ]dou vivas ao 'sei lá' e me curvo à parte de mim que erra por páginas e mais páginas de papel jornal. Jogo e perco. Jogo e ganho. Dou um passo, estou adiante. E volto. É isso.


























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Renascida




Nasci naquele dia e para lá não mais voltei. Foi como uma fruta caindo da árvore. Primeiro, lá longe, adiante no tempo, nasceu a árvore, abrindo a terra e deixando de ser apenas semente. Depois, o renascer feito fruto, amadurecendo e caindo por terra. Terra a terra. Mas, como fruto, rolei para adiante, pelos caminhos traçados por meu Deus. Batendo o pé e olhando de relance as cercas que dividiam terras [de ninguém]. Eu renasci, sim. Mas não voltei para saber por quê. Segui. E, seguindo, me redimi.























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Simples



Eu estava lá, no dia em que aquela alegria imensa, quase esmagadora, fez as malas e partiu, sem dó. Vi o sol se pondo muito antes da hora; vi uma noite sem estrelas e quase todas as flores amanheceram mortas, caídas, esquecidas feito sonhos largados ao longo das estradas compridas. Depois, o dia já era outro e eu estava lá quando vi a flor-menina vicejando solitária sobre um telhado sujo, porém inteiro; pobre, mas digno. Como digno é todo amanhecer mais feliz.

























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Enquanto ele dormia



Enquanto ele dormia, o dia amanhecia e as ruas começavam a se agitar até transbordarem de gente e de sol. Eu olhava pela janela e o dia tinha um gosto de café com leite, forte, que fumegava na caneca que dançava em minha mão. Dentro de casa, silêncio. E ele, dormia. Enquanto isso, o banho me lavava o corpo e a alma. O banho me aprontava e o cheiro de ervas me excitava para o dia. O beija-flor chegava, lambuzava-se de açúcar e partia com aquilo que devia ser um sorriso de passarinho estampado nos olhinhos escuros. As cores do jardim, já repleto de sol, já eram outras; e você dormia. Eu deixava meus cabelos soltos e os escovava por vezes seguidas. Eles já haviam sido mais brilhantes. Já haviam sido mais castanhos. De qualquer forma, continuavam como moldura ondulada de um rosto que - o espelho me mostrava - ganhara uma nova ruga. Enquanto isso, ele dormia. Mais ruído. Tantas vozes. Gente indo, gente vindo. O dia crescia com o sol, que subia. Cães latiam e até um galo, retardatário, cantava de um jeito meio sofrido e assustado. Mas ele, ele dormia. Eu me desfazia da seda que me vestia e já me envolvia com a roupa que enfrentaria comigo o dia que já era maior que eu. Porque era urgente, sempre é. Porque me carregava com ele. Enquanto ele dormia, a vida atravessava - feito uma ferrovia - a cidade nossa. Mas nada daquilo ele via. Por isso, enquanto ele dormia, dormia toda a vida que eu sonhara para mim.


















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Saída




Em alguns lugares a gente não deveria estar. Há certas palavras que a gente não deveria ouvir. Por isso, eu saí de lá para chorar sozinha, aprender a tornar a coisa toda risível. Para beber a vida diretamente de um bule de chá. Chá de tentar de novo.




























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De noites




Eu ficaria ali pelo tempo que me fosse permitido. Havia muito o que pensar e pesar. Havia um rio de palavras a serem escritas e um oceano de sentimentos a serem traduzidos. A noite viria, eu bem o sabia. Mas de noites eu entendia tão bem! Tanto, que eu estava a ponto de exorcizá-las da minha lista de cenários irrecusáveis.




























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Gravata borboleta





Ele usava sempre uma estranha e colorida gravata borboleta e passava, todos os dias, mãos nos bolsos das calças brancas de linho, com uma passada quase dançante. Era feito um personagem das histórias nascidas sob os arcos da Lapa, no tempo em que malandro era malandro mesmo e só malandro. Não se via os olhos. As abas do chapéu faziam sombra. Costumava assobiar a mesma canção. Sempre a mesma melodia. E passava no mesmo horário, todos os dias. Sempre naquele primeiro momento da noite, quando o lusco-fusco escapa num repente e a primeira estrela brilha mais. Eu era menina, brincava na rua com as outras crianças e já começava a enfeitar a minha alma com canções, histórias que ouvia e intuições que tinham asas. Quando ele passava, com aquela gravata borboleta que chamava a atenção até da lua, eu parava qualquer coisa que estivesse fazendo e me sentava no meio fio. Olhar para ele e ouvir seu assobio dava-me a sensação de que estava fazendo uma grande viagem. Para onde exatamente, eu nem sei.



















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Ficou em algum lugar




Apesar de algum esforço reconheço: a solidão desse homem que acreditei ser meu ou de minha vida continua tão grande quanto a do deserto de Atacama. É varrida por ventos violentos que rasgam qualquer possibilidade de aproximação de quem quer que seja. Não foi por falta de tentar, não. Até que eu percebi o quanto seria inútil continuar tentando. Porque existem pessoas que sentem a necessidade premente de estarem sorvendo de si o mel e o fel da própria solidão. Na realidade, acabamos sendo, sempre, muito parecidos. Apesar de eu lhe arrancar sorrisos vigorosos, não pude mostrar a ele que minha ternura poderia fazer de nós um par. Então, certo dia, dia incerto, arrumei minhas coisas: em minha mala, cada peça de roupa estava dobrada com alguma relutância, mas ainda cheirava a lavanda. Da cozinha vinha o aroma do café perfeito, forte, encorpado, para ser bebido tristemente. Lá fora, a garoa lembrava muito mais o mês de agosto. Em minha mente, eu ouvi uma balada. Dividi com ele a última xícara de café, adoçado a gosto, e saí, cantarolando mentalmente como se a balada me salvasse das lágrimas e me impedisse de parecer patética. Da porta para fora, a impressão que tive foi a de que a vida, lá dentro, deixara de existir. Como se desaparecesse tudo, como acontece naqueles jogos em que se sobrepõem os cenários. O choro veio antes de eu terminar a balada em minha mente. Veio manso, sem tremores. Veio escuro, como aquele final de tarde. Veio para levar o grito que não dei. Com uma das mãos, ergui a gola do casaco de malha. Fazia frio. E ainda era janeiro.

















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Metáforas dos dias



Algumas palavras que me arranhavam as gavetas da alma, eu já não disse. Não faziam mais qualquer sentido. A boca parecia costurada com linha colorida, como nas bonecas de pano. E o silêncio tinha um gosto de pão amanhecido e cheiro de café que esfriara na caneca. Entretanto, isso tudo era preferível a usar as palavras guardadas desde um tempo tão remoto que até a memória delas tinha tons sépia. Não que eu tivesse alternativa, já que os ouvidos estavam mais moucos do que sempre e as mentes tão rasas que repetiam atitudes burras travestidas de razão. Não que eu fosse genial, mas bem que sabia sair de labirintos maiores, quando os reconhecia construídos por mãos de papelão e transístores. Algumas palavras eu jamais diria. E o bolor que tais palavras criariam talvez fosse útil nos porões onde, deitados, os vinhos esperam por bocas e festins.





















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Do que nos chega e abraça




As cartas tinham transparência e me mostravam apreço.
A letra graúda e alongada demonstrava generosidade.
Coisa de abrir o peito para dizer de si, sem medos. Eu as li com vagar, como quem bebe chá de camomila ou hortelã.
Li como quem se alimenta de sentimentos amplos, agigantados por gratidão e maravilhada com cada nuança.
As cartas vinham de um tempo que nem sei.
Mas...posso jurar que foram escritas para mim.
























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Águas de olhos





Se eu tivesse lágrimas, teria chorado todas elas enquanto o dia passava e descrevia uma curva no tempo e em minha vida. Mas estavam secos os meus olhos. Fluía deles apenas um olhar parado, algo tardio e denso como o lusco-fusco da tarde. Então, deixei que o vento viesse e trouxesse o orvalho perdido do outro lado do mundo. Talvez um orvalho chorado por olhos mais jovens e ainda repletos das águas da dor.



























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A casa






Aquela casa. Nem era minha. Ali, onde jamais entrei. Ali por onde eu passava e sentia o cheiro de coisas e de vidas minhas. Era como se, por dentro, houvesse pedaços de vida talhados em madeira e um grande, um imenso pedaço de mim.


























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O relógio do nono



Quantas vezes eu entrei pela pequena porta daquele relógio e voltei para o colo de meu avô? O tempo, em minha vida, com exceção de alguns intervalos necessários, foi marcado pelo tique-taque constante, quente, algo triste, desse velho e simples familiar. O nosso relógio, o relógio do 'nono'. Ele ainda bate forte como o coração que eu sentia bater, enquanto meu avô contava histórias e me fascinava com a magia de sua voz grave e mansa e seus meninos olhos azuis. O tempo. O tempo. Este é um mestre que leva e traz para nós as nuances da vida. Vida vivida plenamente. Intensa e amorosamente. E ainda moram os sons na mente menina que jamais saiu de lá, de dentro do relógio, o velho relógio - quase o colo, de meu avô.

























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O que parte, parte a dor







A partida. O abandono. Anos depois, o que resta é lembrança descalçada à entrada, abençoada pela chuva, mofada pela vida. Repisa as mesmas folhas secas que desceram com o vento, das árvores. As que assistiram à 'saideira'. Nada mexido além do tempo. Nada chorado além da dor. Nada acumulado além do pó.
























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Não amor




O amor, naqueles dias, era tão voraz que tinha fome até do medo. E me consumia. Até que me faltasse toda a seiva que me tornava fértil de sentir, eu teimei até que obedeci à queima dos vastos campos de mim. Até que eu desse de cara com minha verdade mais tocante: alma deserta, forjada sob um fogo sem fim. O amor, nos dias que se estendiam sem que o sol saísse da posição mais alta, secava e cegava meus olhos. Meus olhos que só sabiam chorar como se, com isso, fossem encharcar a terra e matar o deserto que se fizera de mim. O amor, naqueles dias, não era amor. Era uma sede inquietante que nada conseguia saciar. O sal das lágrimas apenas confirmava a aridez onde me deitei, tão muda, tão febril. Não. O amor nada tinha de amor. Era mais uma tragédia grega que agora jaz sob a terra partida do mais esquecido sertão de mim.




















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Diálogo





- Amor? Amor é aquela gaveta, ali.
- O que há nela?
- Tudo. Tudo o que já vivi.





























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Moinhos de medo




E havia o velho moinho. Era da idade de minha imaginação. Fazia o cenário ser perfeito. Eu me pergunto, hoje, o que foi feito dele. Onde foram parar as hélices encantadas que rodavam o vento enquanto cantavam as juntas barulhentas? Depois de tanto medo, de tanto distanciamento, voltar às antigas ruas de minha vida: então eu era novamente a menina corajosa, repleta da melodia da imaginação.























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Aos pedaços





Ninguém me contou. Eu vi. Foi em um sábado que ele partiu o coração delicado da moça. Era um dia para não ser esquecido, já que se enfeitara toda para esperar por ele e, além disso, era dia da padroeira da cidade. A festa era ruidosa, a igreja ficava no quarteirão seguinte ao da casa onde morava e ela pensou que os dois iriam passear para saborear, juntos, todos os olhares de inveja das outras moças da cidade e morder juntos as maçãs-do-amor que dona Cotinha iria vender na barraquinha decorada com corações vermelhos. Deram duas, três, quatro, cinco horas e ela no portão, esperando. O vento já estava ficando frio e ela entrou para vestir um casaco de ban-lon sobre o vestido rosa. A tarde caía rapidamente e surgiu uma estrela no céu quando ele finalmente chegou. E chegou para dizer, sem sorrir, que estava de partida. Foi quando eu vi que ela chorou uma lágrima fria. Ele nem percebeu. E partiu. Da igreja, a música chegava aos pedaços, por conta do vento. Aos pedaços, ela gelava por dentro, por conta da dor.

















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Algozes




Um dia, depois de tanto e de quase tudo, eu achei que estivesse surda de tanto ouvir apenas o som gritante da solidão. Foi uma questão de minutos. Em seguida, não sei ao certo o que aconteceu. Não sei se espanei a poeira da autopiedade ou se, simplesmente, me preparei para a vida. O fato é que, sentada à mesa da cozinha e tomando um caldo de mesmices tão-sem-sal, eu comecei, aos poucos, a ouvir os sons do mundo. Era o tilintar dos sinos da matriz. A folia dos meninos que jogavam bola na rua. Era o barulho dos pratos sendo postos à mesa e, mais longe, o grito horrendo de um leitão sendo perseguido para ser abatido - ceia de fim de ano - por um homem, seu eterno algoz.






















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Palavras. Simples assim





Às vezes eu sigo em busca das palavras e, por vezes, é mesmo imensamente difícil tê-las à mão. Geralmente isso acontece quando o que se quer dizer é muito maior do que se imagina. Por isso divago por muito tempo, tateando pelos lugares que conheço bem - se é que se pode de fato conhecer algo ou alguém. As palavras são fugidias assim como os momentos. Eu aprendi. Fugazes e breves como o próprio correr do tempo. Se tenho que correr para registrá-las, já sou passado, no instante seguinte. Se me deixo ficar, na quietude da espera, elas se mostram igualmente lentas, como se brincassem - então, feito pássaros, fogem assim que se percebem capturadas. Talvez seja mesmo essa a maravilha de tudo o que é livre, de tudo o que simplesmente habita o mundo, sem pertencer a ninguém. Poder ir e vir. Poder significar ou apenas se deixar ser. Ser símbolo. Ser sentimento sem ter sentido. Ser uma pintura de histórias escritas antes, pelo amanhecer do olhar de alguém.






















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A moça



Há muito tempo, conheci uma moça que era feita de espera. Sua roupa de domingo era um vestido estampado de rosas claras e a esperança de ver alguém chegar. E por que não? Colher flores de todas as cores e entregá-las assim, sem mais, a quem vier pela rua com aquele olhar de sorriso e espanto diante de mais um dia de sol. Algumas canções estão guardadas lá dentro, bem lá no fundo de nós. Sei lá...um momento, uma conversa, uma emoção. Depois, num repente, elas vêm à tona e encantam e celebram a antiga versão de nós. Bem, o fato é que pela manhã, em algumas manhãs, ainda ouço o sorriso dela. Da moça. Feita de uma espera risonha.























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Do que não digo, do que não vivo





Há coisas que não digo, não. Porque não as sinto. Porque ainda não as senti. Porque não delas sei. Então eu as observo de longe, enquanto estão sendo aprendidas por outras pessoas e reconhecendo que talvez logo cheguem até mim. Como as palavras que colocam na boca da gente. Como as situações que alguns invertem para se colocarem numa posição diferenciada assim nos transformando em algozes. Foram muitas. Foram tantas que eu não saberia de todas elas para contar e transcrever. Nem haveria por que fazê-lo. O fato é que o silêncio na maioria das vezes é o amigo mais provável e verdadeiro de uma pessoa. Principalmente de uma mulher. O que não digo está por aí. Porque não sinto. Porque aprendo dia após dia a prezar o que sei e o que aprendo. Fico olhando a uma distância respeitável e respeitosa. O que ainda não sei bem sabe a hora de chegar até mim. Já não corro, não tento submeter a vida. Um pouco vou. Outro pouco, ela vem. Equilíbrio. E alguma paz.























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Amiga







Ontem, pensei muito em uma amiga, companheira de batalhas plurais. E, por me lembrar dela, lembrei-me daqueles dias. Foram dias difíceis aqueles, sim. Estivemos todos a um passo da entrega, do desengano. Os dias não brincavam mais. As ruas viviam o dia e morriam a noite, vazias. Mas por algum precioso milagre [como se milagre não fosse por si só precioso até demais], nós nos demos as mãos e descobrimos a nossa gana crescendo e o céu se abrindo para soltar borboletas. Estava assinado no bilhete que as trouxera: Luta, sobrenome Esperança. E lá fomos. E fomos nós. Até poder ver os dias brincarem novamente. Mas será que eles brincam, de fato? Ou fomos enganados, entretidos por sonhos e circo? Eu pouco a vejo, hoje, a minha amiga. Quando a vejo, parecemos estar sempre com muita pressa, nossa conversa é ligeira, repleta de banalidades sociais quase que obrigatórias. Na despedida, prometemos muito. Nada cumprimos. E a vida segue o ritmo tão próprio. Ela tem netos e vive com eles. Eu sou família de uma, não conheço a inebriante vida dos avós. Não desgosto de crianças, mas não tenho ímpeto por elas. De algum modo, e isto é tudo, vivemos as duas jovens e idealistas num ponto cardeal do tempo - lá, somos nós as netas, as filhas, logo em seguida as jovens mães. Lá ficamos. Muito de nós por lá ficou.













Memórias de uma fruta madura


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Anos de vários tons



Não sei por que, mas eu fui. Fui e fiquei por muitos anos ali, naquela relação que se equilibrava entre turbulências e mágoas. Não sei quem começou, quem convidou, quem teve a ideia. Foram quinze anos de uma bruma esquisita e profana em minha vida. E um imenso hiato em minha poesia. Ele tinha o hábito triste e mórbido de rasgar meus poemas ainda dentro de mim e jogá-los no cesto das ideias triviais. Assim, tudo foi tão mal escrito e mal vivido que saí com os meus véus em frangalhos, saí com minhas feridas abertas. E meu amor, ulceroso, cansado, doente, ficou acamado por três longos movimentos de translação. É. Por três vezes a Terra teve de dar a volta ao Sol para que eu começasse a dar conta de minha mente e, sobretudo, cerzir e remendar meus véus. De lá para cá, alinhavei com alguns pontos que acreditava estarem totalmente errados, mas, soube quando me reconheci no espelho, mostravam minhas nuances escuras, os mantos sob os quais um bom tanto de mim se escondia enquanto tentava -ou acreditava que tentava - salvar do naufrágio impiedoso um amor que nem era. Jamais, enfim, havia sido. Então, eu havia entrado por uma porta e o amor saíra pela outra - ele com a esperança de que eu reconhecesse sua saída e eu... entorpecida por possibilidades alheias ao que realmente desejava. Então, os anos de várias cores e tons começaram a fazer parte de memórias, nada mais. Com o que pude catar de mim fiz ali um mosaico estranhíssimo, digno de um Dali de saias, mas que cumpre direitinho sua missão. Manter-se, mesmo feito de partes, de cacos de mim, inteiro.















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Portas e janelas




Às vezes a gente abre uma porta ou mesmo uma pequena janela. Outras vezes, a gente fecha com trancas, travas, cadeados e joga a chave fora, como que cuspisse no chão antes de sair. Erramos muito. Em alguns casos, erramos tudo. Alguns dos erros tantos que cometi foram tão lamentáveis que eu sinto minha alma corar de vergonha. Mas é algo meu. São falhas minhas e com elas aprendi lições preciosas. Continuo aprendendo, jamais chegarei a uma formatura nesse curso intenso e humano. Errei com pessoas e, muitas delas, sofreram porque eu devo tê-las confundido com minha maneira de ser. A carência é muita, em todos. É tanta que quando você acena com um gesto educado e gentil, conquista para sempre a "obrigação" de pertencer a quem agradou, por pura atitude natural, espontânea. Isso me assusta e afasta. Tenho problemas com elos desse tipo. Errei por me fazer próxima, muitas vezes, de quem eu não desejava de fato conhecer. Defeitos contra os quais combato sempre e recaio - não sem uma sensação de ser estúpida. E humana. Miseravelmente humana. Talvez minha paixão pelas pessoas de um modo geral e observadora delas, de seus sentimentos seja mesmo uma faca de dois gumes. Há algumas portas fechadas, sim, na sala redonda em cujo centro eu me vejo, vestida de impaciência e algum temor. Há espelhos e, neles, vejo a menina má que também sei ser. Sem saber que sei.












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Quim


Ontem eu vi o Quim. Já fazia tanto tempo que eu achava que não o veria mais, pelo menos nesta vida. Foi naquele dia obscuro, nos anos 70 ainda, quando ele chegou em casa de minha tia com a camisa branca rasgada e a calça jeans toda suja. Havia lama e sangue. Minha tia abriu a porta e ele entrou feito um raio e se agachou perto da janela. Acho que queria ter certeza de que não havia sido seguido. Quando olhou para minha tia passou pelos meus olhos arregalados e demorou-se por um instante. Seus olhos sempre tinham aquela escuridão brilhante. Estavam fundos, então. Tristes, mais sérios, assustados, mas o brilho estava lá. Foi um instante. Uma pequena eternidade, antes que a confusão se armasse em torno dele e de minha tia. Os primos vieram a um chamado e o hóspede de titia, o dr. Monteiro, surgiu do corredor com seu cachimbo na mão direita e a mão esquerda ajeitando os cabelos ralos e grisalhos, a passos largos, ao encontro de Quim. Eu fui a única a ficar ali, entre o corredor e a sala, em silêncio e sem mover um músculo sequer. O bumbo em meu coração era o único movimento em mim e ressoava forte em meus ouvidos, como se eu estivesse do lado avesso. E eu tinha meus quinze, dezesseis anos. Era tão apaixonada por aquele moço misterioso e teimoso e atrevidamente inteligente! Depois que ele partiu, já curado de alguns cortes e vestindo roupas limpas, a casa ficou vazia e silenciosa. E tão espaçosa. Porque Quim e seus dizeres tomavam conta de tudo. Suas ideias ditas de forma tão convincente eram como uma música repetida sem excesso e entendida à medida que transformava os pensamentos de quem ouvia. Na voz grave e firme, havia uma esperança e uma urgência que contagiavam até a mais desesperançada criatura. Ele saiu pela porta em que entrou e acenou para todos parando seu olhar mais uma vez no meu. Um sorriso. Um meio-sorriso e em seguida o som dos passos dele na calçada do jardim. Depois, o portão abrindo e se fechando. Depois, o vazio que durou e latejou em minha cabeça por muito tempo. Até o final daquelas minhas férias fora de minha cidade. Até que eu voltasse e visse um outro céu, outros rostos, ouvisse outros discursos. Minha tia percebera tudo e me dera conselhos, falando-me sobre rapazes como Quim. Eu me lembro de ter dito a ela que ele era apenas um sonho meu. Não o esqueci. Fiquei sabendo dele por um e por outro ao longo dos anos. Soube de sua prisão e de seu exílio. Soube de sua volta ao Brasil em 1982. E que voltara casado com uma francesa. Lembro-me de que, cada vez que ouvia Françoise Hardy eu sentia uma pontada no peito. Depois, as notícias foram rareando. Quim abandonou a política, descasou e casou novamente. Então já era 1990, minha vida corria solta para outros lados e nada mais soube dele. Ontem, sentei-me na cafeteria perto daqui. Pedi meu café e abri meu livro. Quando a garçonete veio até minha mesa trazendo a xícara, levantei os olhos e dei com eles: os olhos escuros e brilhantes de Quim. Ele passava ao largo e deu uma olhadela para dentro da cafeteria. Antes de voltar a olhar para a rua, parou seus olhos nos meus. E nós nos dissemos o de sempre, em silêncio. Um outro dia, talvez. Quem sabe.


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Relembrança




Eu me lembro da vida beijando meu rosto em um dia que era de chegada e suave perfeição. Eu me lembro do cheiro, do hálito sagrado que soprava alegria e molhava minha pele de esperança e um imenso bem-querer.

[e ainda que eu não possa mais sentir tal enlevo, há de ser a lembrança uma daquelas gotas do universo que caem sobre nós quando menos esperamos e que alguns chamam de estrelas cadentes....]





























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Expectar







Olhei para fora e a vida chovia num final de tarde de também final de verão. O meu olhar já ia para fora carregado de uma sensação outonal, meus olhos tinham calafrios prevendo mais chuvas, águas intensas e tudo o que acontecia fora de mim eram as nuvens espessas a desaguarem uma fina garoa. Decepcionante. Pela escuridão, achava-se que a chuva seria pesada, densa, barulhenta. Expectativas nem sempre se cumprem. Na verdade, quase nunca. Por isso o trabalho é tão concreto e gratificante. Trabalha-se e recebe-se pelo que trabalhou. Não há expectativa; há a produção e o produto. Líquido e certo. O mais pode ficar pelo caminho. O sonho e a esperança alimentam os olhares que esperam ansiosos olhando para a esquina de onde pode surgir o bem ou o mal. Coração acelerado. Peito arfante, respiração entrecortada: os sintomas corriqueiros da paixão. Nada que possa se carregar com as mãos ou com os olhos descansados do dever cumprido. O ponto de equilíbrio pode ser o valor que se dá ao que se é. Lá fora a tarde se fez noite e a vida chove um ar abafado, quente. Uma pequena gota de suor eu sinto em minha nuca. Onde toco há umidade e calor. Evapora como os pensamentos, porque eles correm em desenfreada ansiedade. Como são rápidos e tensos! No céu, uma nuvem tem forma de flor escura. Mas uma flor. Que importa a cor quando se é flor? E, sem qualquer expectativa, uma estrela miúda vence o mutirão de nuvens, dá um boa-noite contido e se veste novamente de uma noite que ainda promete mais chuva.











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O olhar de Mona Lisa




Alguém escreveu [acho tão injusto não lembrar quem foi! ]- que, conforme se olha para a Mona Lisa, talvez a obra de arte mais famosa do mundo, percebe-se que ela fala com o observador. O olhar de Mona Lisa. O misterioso olhar que sorri e revela, analisa e esconde. Se não por tudo o mais, por esse pequeno detalhe eu admiro Leonardo. O Da Vinci. Pois como ele conseguiu retratar com tamanha exatidão o inexato olhar de uma mulher? Hoje não sei como é meu olhar. E creio que ninguém mais saberia. No espelho vi uma cor que não é minha. E me deitei em lembranças esquisitas que me levaram de volta aos meus olhos mais verdes e vivos. A Gioconda tem o observador preso a ela, num meio sorriso e em um olhar inteiro. Talvez meu olhar se demore mais no tempo, enquanto o dela atravessa o observador e vai além, até um infinito ponto misterioso onde mora a louca centelha inicial.















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O rasgo

O vento entrando pela janela e mexendo a cortina tornou ainda mais evidente o rasgo. O rasgo na cortina. Quase perfeito, redondo. Um rasgo no tecido feito um rasgo na alma, feito um vazio onde havia algo. Pensei nos meus rasgados panos - rasgados planos, sonhos, atos. Pensei nos vazios de mim e no vazio de outros. E fiquei ali, olhando para aquele rasgo no tecido velho da cortina velha que estava na janela da sala antiga do apartamento antigo, da vida antiga. Logo, era como um rasgo na própria vida. E como se não conseguissem ser outra coisa além de dois observadores obcecados, os olhos teimavam em se isolar naquele rasgo quase perfeito. Redondo. Ali faltava um pedaço de pano como se faltasse um pedaço de alma, um pedaço de vida. Um pedaço de pele. Um membro. Um órgão. Faltava. Já não havia. Já não existia. Contudo, chamava mais, muito mais a atenção assim: pela falta, pela ausência. Por ser rasgo. Não fosse assim, os olhos nem se demorariam no tecido velho da cortina velha que enfeitava havia anos a janela antiga. A ausência faz isso. Chama para si a atenção, a dor, o olho do observador. O vazio faz isso. O membro amputado ainda dói, é o que dizem. É como se fosse mais sentido. O vento já nem ventava e eu estava olhando para o rasgo quase perfeito imaginando como ele acontecera. Talvez apenas o tecido estivesse puído. Era velho. Fora lavado tantas e tantas vezes. O branco já era até cinza. O cinza encardido da poluição que sobe para os apartamentos dos andares mais altos dos prédios. Tudo tão gasto. A vida gasta, a alma gasta que às vezes recebe um sopro de novidade, mas que se pega já arrumando malas para o país onde moram tantas outras, já leves e em processo de reconstrução. Um tecido se rompe pelo tempo. É como tudo. É como a vida. Mas, o que faço desse rasgo? Remendo? Deixo? O que se faz com os rasgos de vida? Qual será o cerzido perfeito? Não sei. Um dia, vi uma noiva passando correndo em frente à casa de minha tia. Os saltos do sapato dela faziam um barulho esquisito que parecia responder aos soluços dela. Fiquei no portão, boquiaberta com aquele espetáculo tão triste. Havia um rasgo no véu dela. O tule rasgado como que puxado por uma raiva absurda, de propósito, para deixar feia a noiva que, só por ser noiva, já se presume linda. Um rasgo. Ela também parecia rasgada como seu véu. Em tiras. Seu soluço seco amedrontava quem ouvia. Vinha de um abismo, ele próprio rasgado em uma superfície antes lisa, ainda que fina.Quem pode cerzir algo tão profundo? E me veio a lembrança tão antiga do véu esvoaçante da noiva sofrida. Louca nave a sapecar as pedras da rua com a dor rasgada de não mais ser. Pensando nisso tudo talvez soletre-me a natureza de mim uma letra que me inspire a descobrir o cerzido perfeito para o rasgado da vida. Então penso no que somos. E somos, cada um e todos, frutos de um violento rasgo que, de um modo ou de outro, abrimos em nossas mães para existir. Para ver a luz primeira. Para aspirar o primeiro golfo de ar. Nascemos assim. Rasgando. E seguimos pela vida a enfrentar rupturas e costuras, alinhavos, maus e bons cerzidos. Mas, antes, somos a embrutecida forma de romper o ventre que nos alimenta. O rasgo, o rasgar, é um mau costume.
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A mulher de amarelo sol


A mulher eu achava engraçada. Ela se vestia de um jeito mais colorido que as demais que eu conhecia, as que viviam na rua em que morávamos, já longe daqui. Em tempo e espaço. Ela passava, ligeira e sorridente. Batom vermelho, pernas finas e longas. Uma imagem longilínea. Falava como andava: com rapidez e pressa. Atropelava palavras. [ou é uma impressão que criei?]. Descia para tomar o ônibus quase todas as tardes. Depois, mais tarde, eu a via subindo, voltando. Nem mais lenta nem cansada. Cumprimentava de novo quem encontrava e passava, atropelando a si mesma. Certo dia, eu me lembro, houve um acidente com o ônibus quase ali, no ponto em que ela descia, muito próximo a nossa rua. Por algum motivo o ônibus caiu de lado, tombou sem jeito. Ela não teve dúvidas. Enquanto outros gritavam, o motorista tentava sair, abrir a emergência, as pessoas que viram desciam a rua para ajudar -ou só olhar - a mulher desceu pela janela do banco em que estava sentada. Primeiro as pernas, depois o tronco. E seu vestido e suas anáguas causaram furor quando se ergueram enquanto as pernas dela se mexiam com agilidade, mas algum atrapalho para pular. As pessoas riam, a chamavam, se aproximavam querendo ajudar. Mas ela nem precisou de ajuda. Assim que desceu se aprumou e, ajeitando anáguas, saias e a bolsa, tudo tão amarelo sol, prosseguiu elegante e rápida. Era como se nem susto houvesse tido. Ela era assim. Eu me lembro. Foi uma figura que marcou. Talvez pelos amarelos, vermelhos e roxos. Talvez pela rapidez dos passos a pisarem ruidosamente as pedras de paralelepípedo. Talvez porque ela tivesse aquela alegria grudada de um jeito tão espontâneo na pele e na alma. E lá se vão cinquenta anos....















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Das perdas

Eu ainda poderia dizer as mesmas coisas a você. Eu poderia ficar horas falando e falando como se enxugasse toda a chuva das nuvens. Mas acho mesmo que ainda assim você não me escutaria. Minhas palavras sempre lhe soaram vazias. De sentido e de som. Se eu falasse demais até entenderia, mas esse não foi nem é o caso. Falei e falo pouco. Apenas agora, talvez movida por essa avalanche de dor, eu desague sem dó ou piedade sobre uma planície sempre risonha e ao mesmo tempo triste. Sobre o vale ressequido do seu coração. Mas não é assim. Não foi assim. Meu silêncio sempre pontuou nossos momentos e eu preferi me calar por muitas coisas que não vêm ao caso. Ainda assim você não me ouve. Nem na minha dor mais aguda. Nem na minha avalanche de mágoas. Afinal....por que iria? Por que ouviria? Sempre fez ouvidos moucos à própria vida. Não me dará respostas. Pensando bem eu não as quero. Importa despejar o óleo sobre o oceano que parece limpo, mas que tem as águas mais turvas de que já se teve ciência. Importam as perguntas, esse tanto de questões deslumbradas de uma mulher que antes não perguntava tanto, mas apenas porque queria deixar o tempo fluir e o momento crescer como um falo de expectativas. Ficará olhando para mim com esses dois olhos mortos, parados como águas de um lago de sal. E ninguém poderá adivinhar o que mora do outro lado deles, nas cavernas escuras, nas órbitas que os guardam e protegem. Nem mesmo a mãe de toda a ira. Minha dor. Antes eu costumava saber o que se passava em sua mente antes mesmo de você olhar para mim. Bastava um leve menear de cabeça, um afligir de mãos, a língua rápida a correr pelos lábios. Tudo antes que os seus olhos chegassem aos meus. Agora? Quem sou eu agora para saber qualquer coisa além de mim, se nem de mim mais tenho pseudocertezas? Antes, quando seus olhos chegavam ao encontro dos meus eu já havia escrito toda a história - já descrevera até mesmo a mentira, se houvesse uma, que me contaria olhando-me como cão sem dono, com aquele par de olhos castanhos moles, aguados, parados. Agora, ainda que eu esteja olhando fundo para eles, nem se passa pela minha mente qualquer meneio de ideia. Não sei quem é você, não sei do ermitão que ruge para mim das cavernas-órbitas de seu olhar. Muito menos adivinho palavras que, provavelmente, jamais ouvirei saírem de sua boca - casa de umas frases que um dia me fizeram feliz. Isso, porque, de sua parte, não há o menor interesse em facilitar os meus dias. Não mais. Nada mais quer ou espera de mim. Já não há utilidade em agradar-me com um riso, uma palavra, uma expressão. Gratuitas maneiras são inúteis, vãs. Há que se medir sempre o valor das horas. De minha parte, já não me contentaria com tão pouco. Um ramo de 'ois'; um colar de sorrisos perolados; uma travessa torcida de nariz; um brilho de estrela cadente no canto dos olhos e outro no céu da boca que eu beijei. Não. Para mim tudo isso seria tão pouco agora. Vivi anos feitos de dias de mais. Dias feitos de horas de mais. E o tempo da dor é este: cada minuto, cada segundo. Um relógio gigante, porém mínimo, registra cada fisgada. E, um certo dia, a gente se vê querendo ser mais do que sempre foi.






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Arremedos de mim




Sou feita de sombras, também. Sou uma pálida busca insana e insone por um toque de amor que me faça melhor. Sou como todo mundo. Mesmo assim, sinto-me diferente, intrusa, aquela que brinca entre o extravagante e o terror simplista. Sou comum. Sou escura. Sou o avesso. Minha e sua. Do tempo e da margem esquerda como afluente esquecido. Às vezes, arremedo de poesia. Às vezes, charlatã de mim mesma. Mas, sempre, muita paixão.





















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Banzo




Alma inquieta. Uma tristeza que sufoca e o olhar perdido em um horizonte qualquer-aquele que só a alma reconhece. Saudade. É saudade, sim. Mas de quê? De quem?
Saudade de terras onde estive, de moradas que habitei, mas que não sei ao certo em que lugar estão, muito menos em qual canto do tempo foram minhas. Saudade. Do que não tive. Ou já tive e perdi...? Saudade, talvez, de sonhos tão sonhados e, pela estrada, abandonados. Saudade. De um rosto, de um nome. De uma música que dancei, solta, livre, nos braços quentes e amáveis de alguém. Muita saudade. Saudade triste. Talvez, de um pedaço de mim que eu mesma roubei e, pela estrada de tantas esquinas, deixei.
Não sei explicar. Ninguém sabe. Eu não sei. Um banzo.


























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Da saudade de mim




Muitas vezes eu já senti saudade da menina que fui. Muitas vezes eu a procurei em vão, como quem revira gavetas à procura de algo que não lembra de já ter dado a alguém. Um dia, tive mesmo a impressão de que ela havia passado pelas ruas de sempre e, entre alegre e triste como ela só, havia deixado um rastro de perfume e se transformado em saudade. Muitas vezes pensei tê-la visto comprando pipocas do carrinho que ficava lá, no Passeio Público, em um domingo qualquer; parecia estar sorrindo para mim enquanto corria para dar comida aos gansos. Afinal, ela jamais decidiu se sentia medo deles ou se os adorava. Talvez as duas coisas. Muitas vezes achei que não tornaria a vê-la, iluminada pelo sol ou pela lua, cantando as canções que ouvia no velho rádio de onde as notas saíam banhando a casa com um som de amor. Vi algumas pessoas sentirem saudade, muita saudade, dela. Essas pessoas me perguntaram por onde andavam aqueles olhos que pareciam duas contas azuis [ou seriam verdes? ].
Dia desses, dei de cara com ela, ela mesma, a menina que eu fui!
Estava ali, a distância de um toque, pendurada em meu pescoço, sorrindo e despenteando meu cabelo enquanto eu tentava arrumá-lo diante do espelho. Agarrei suas mãozinhas quentes, queridas. E então, ficamos a nos olhar assim, com carinho nos olhos. Até que um vento travesso soprou mais forte e meu diário, aberto sobre a escrivaninha, teve suas páginas mexidas. Quando o vento se foi, a página que deixou de se mover continha uma citação de Isadora Duncan, que eu copiara anos atrás porque gostara muito: "Você já foi ousada, não permita que a amansem. " Quando olhei de novo para o espelho, a menina que eu fui não estava lá. Bem. Não exatamente. Apenas notei que em algum lugar dos meus olhos estavam as duas contas, belas e grandes, brilhantes e muito azuis [ou serão verdes? ].






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De dores




Dói aquela dor de que não se pode escapulir. E não há um só canto de quarto, um galho de árvore, terraço de prédio, onde se possa se resguardar desta dor. Ela acena e em seguida penetra, sem nada dizer. Nenhum anjo pode acudir antes que ela se instale. Nenhuma canção pode dela falar com propriedade. Porque, na verdade, ninguém entende a dor do outro. Dói em silêncio porque o grito se perde no vento que assola a cidade, à noite. Noite mais negra que todas as outras. É quando a impaciência se veste de tintas escuras e outras –poucas- claras, para compor uma sentida aquarela entristecida. E escreve seus poemas como quem faz chover estrelas. Do alto de uma torre feita de sonhos que estão prestes a desabar.




























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Uma outra viagem



Não adianta. Quem escreve não deixa de ser triste. É uma essência entre outras, por certo, mas está lá. Uma tristeza infinda. Como uma tatuagem, marca a alma de quem escreve. Se não for assim, não escreve. Não tem jeito. Então, vez ou outra, lá venho eu com minhas lamúrias. A de hoje é aquela, antiga, que a gente ouve por aí todos os dias [ou quase]: tudo passa. E passa mesmo. Passa de um jeito tão rápido que, por mais que a gente saiba disso e sinta que está preparado sempre se surpreende. Quando se dá conta, abre bem os olhos ou os fecha momentaneamente – quem sabe tentando resgatar a imagem 'amarrada' à lembrança – e constata, aturdido: já passou. Chamem do que quiserem. Nostalgia, por exemplo, é uma palavra linda e figura por si só toda uma legião de sensações, sentimentos, lembranças vivas. Não importa o nome que se dê. Dói. E mesmo que se tenha aquela frase pronta em mente, gravada ali a ferro e fogo, quase que por uma obrigação de toda uma geração ["...eu não me arrependo de nada do que fiz"], sente-se a dor que é muito, muito próxima de um arrependimento. A gente se arrepende, sim. De ter passado. De não ter agarrado aquele momento um tanto mais. De não repetir vários outros momentos. A gente se arrepende de ser tão passageiro em meio a um infinito que se expande e expande. Dói. Não importa o que digam. Isso não quer dizer, em absoluto, que tal dor seja ruim e que nos leve a terríveis depressões. Não. É da vida. A dor é da vida, sim. Para cada um rima de um jeito. Mas rima. E o que passa fica ali, feito uma cena que acontece do lado de fora de uma janela. A visão meio embaçada tira da gente a sensação de que quase pode tocar o que se foi e, de novo, estar lá.









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De amar a vida


Então, uma amiga contou-me a longa história sobre os destemidos grãos-de-bico a festejarem, dentro de uma panela de pressão, seu cozimento rápido e forçado. Não parece nada interessante, contudo havia uma riqueza de detalhes contada de forma tão graciosa e simples que tamanha espontaneidade me deu a sugestão de lembrar que fazer amor com a vida é tudo isso. É fazer qualquer coisa com um prazer de encher os olhos de beleza e de água a boca, ou o estômago de borboletas miúdas. E cozinhar o grão-de-bico. Por que não? Principalmente se desse fato a gente puder tirar uma história, uma animada conversa ali, na esquina, enquanto se paga a conta ou faz uma outra coisa qualquer. É. Fazer amor com a vida nos traz estelares orgasmos. Aquele gozo que somente quem não tem medo de pôr a mão na massa sabe e pode sentir.



















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Moradas







Morei em tantos mundos e vi tantas luas
que já não me reconheço em mim cada vez
que volto das viagens inimagináveis de meu coração.
























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Das manhãs







Tenho a mania serena de me encontrar comigo todas as manhãs e bater um papo enquanto bebo um café com leite. Enquanto isso, eu também me alimento de mim, porque me penso e me descubro no nascer de um dia e de uma página que, na certa, escreverei com meus rabiscos nervosos, com minhas frases febris. Mas aquele momento da manhã é meu momento de serenidade. E sobre a mesa, exposta e deliciosa, minha vida entra pela minha boca e faz cócegas, como o morango vermelho de ansiedade e, quem sabe, de paixão.



















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De mel e de fel




Nem todas as noites veriam meu medo e minha solidão. Era tempo de reconhecer as ranhuras da alma por onde passariam, desde sempre, as águas de alguma dor. Serei, até o fim, a minha eterna mania de buscar um abrigo àqueles pequenos demônios que nascem anjos depois de morrerem, dispersos, nas montanhas que tocam o céu de uma mesma e infinita escuridão. E tudo o que não pode ser dito será engolido depois de deixar na boca o gosto inconfundível do que está entre o fel e o mel.


























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Passeando palavras








Quanto a mim, saio e passeio palavras. Ouço as canções trocadas entre o mar e a poesia. Ouço o riso de alguém que me foi importante ecoando pela cidade e aqui, em minha cabeça. Quanto a mim, sou assim, mulher de meia idade, rebelde de todas as causas esquecidas e de algumas ainda fortes e vivas. Quanto a mim, aceno com mãos vazias e o tempo responde, sorrindo. Quando volto, o cansaço me toma pela mão e me leva para a cama dos sonhos possíveis.























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Sempre o tempo





O tempo me atravessa e eu vou atravessando o tempo contínuo, contido, voraz. Acordo feito, mãos dadas, sigo enquanto ele me segue. E enquanto meus dias dançam, eu agradeço ao anjo que canta, em um campanário distante, lá de onde vem a certeza do passo seguinte. Intuo a mensagem que chega. Ela me seduz e me ensina e aprende comigo a levar a vida e o tempo nas mãos.






























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A fé



Ainda ontem me perguntaram sobre a fé. Respondi que a vejo nos olhos do povo, intacta, como desejo que a fé seja vivida e que, em contrapartida, não precise haver tanta dor. Porque a gente toda tira a fé das entranhas e, muitas vezes, come pedra e bebe chuva e lambe o pó da estrada pisada pelos reis que guardam o ouro em mitras e arcas feudais.


[a religião está na face marcada pela vida de quem passa por nós]



















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Uma lua


Na segunda-feira percebi que, ao longo do dia, a lua boiou feito tonta pelo céu , a disputar espaço com o sol. De tal forma bonita era – mesmo tonta, era- que chamava mais a atenção. Redonda e grande, bordada de crateras em ponto cruz, lá se podia ver são Jorge e o dragão vencido, domado, em seus suspiros finais.
Caminhando pelas ruas e observando as pessoas, vi um pai que passeava com seus dois filhos, gêmeos, empurrar um desses carrinhos duplos, a se agachar e tentar mostrar aos meninos a dama branca lá em cima. Os pequenos até que tentaram ver, pois apertavam os olhinhos a procurar. Um deles logo desistiu e voltou à mamadeira de suco para bebê-lo com satisfação; já o outro continuou seguindo o dedo do pai que apontava à exibida lua, tonta, aparecendo fora de sua vez, no céu. Quando a viu, o menino riu uma daquelas risadas grandes, destemidas, que anunciava a descoberta. Em minha caminhada, eu os deixei ali, numa das esquinas da cidade e da vida. Mas a lua, dama tonta e intrometida,
Continuava a caber no meu olhar e no de todos – ainda que poucos lhe dispensassem atenção. Atrevida, a dama, tão branca, leitosa, tinha uma das faces quase risonha; a outra, obscura, naturalmente. Naquele dia, ela dividia, com um generoso sol, o teto de nossa casa, das paragens por onde vamos todos, obscuros ou explícitos em nossas tantas-tontas faces, boiando como a lua, pelo caminho desenhado desde o sempre para o infinito.
























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O tempo espera



Eu queria tanto que pudesse ter visto o momento exato em que o tempo parou; ali, onde a alma acelera e somente ela se move dentro de si.
Era para respirar quase que solenemente e vinha pelo ar o cheiro do voltar.
Ah.
Querida tanto que pudesse ter visto, ali, onde o mundo chegou e ficou atracado, em meus braços enlaçado, enquanto todo o tempo esperou.






























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É devagar





Naquele dia, eu diria adeus e, simplesmente, sairia, daria um ou dois passos e pronto: já seria outra. Mas aprendi, já bem mais tarde, que a gente se afasta na mesma proporção que a vida que chega: numa gestação lenta e visceral da compreensão de que se deve partir e fechar o livro. Como quem só se lança a lamber as próprias feridas para agradar ao amor que goteja para dentro.





















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De amor




Talvez. Talvez o amor diga coisas que eu não entendo. Talvez ele tenha gestos que não me cabem nos olhos ou nas mãos. Talvez eu seja o silêncio do amor. Ou, simplesmente um de seus pincéis.



































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Do que sou





Acontece que, de tudo o que sou, aparece pouco. Às vezes, um sorriso largo; em outras uma lágrima teimosa. Talvez uma mulher sem jeito, uma moça de respeito. Uma menina pelo avesso.























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De janeiros




Penso nos dias modorrentos de um janeiro qualquer, quando a preguiça toma conta de tudo e até minha poesia se deita à sombra de uma árvore frondosa. Em suspenso, as flores de minha vida ficam presas no varal, a secar até ficarem tão secas para que possam enfeitar algumas páginas que deixei em branco. Já não me importo se faz muito calor e se estou desmaiada em minha impossibilidade. Porque sou um longo bocejo como são as tardes de janeiro e me abano de esperança por um vento que venha do sul.

































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Dos cantos de mim





Gosto da meia luz das noites que se iniciam. Gosto de ter à mão palavras, canções, sentimentos – todos tecidos com o tempo pelo amor de mãos e mentes abertas, generosas, afáveis. O tempo é que tece a gente, a malha da alma da gente. Mas nós escolhemos o ponto a ser usado.


























Memórias de uma fruta madura


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Sentires





Leio meus livros e ouço as canções que tocam a minha alma. Escrevo uns poemas e não me canso de assistir ao pôr-do-sol. Sinto, às vezes, que há um templo em mim.

























Memórias de uma fruta madura


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Copo meio cheio




Eu bebo do copo meio cheio e relato minhas horas em folhas de papel que vão se acumulando como pedaços de mim. Escrevo a lápis. Não porque pretenda apagar as palavras, mas porque agora voltei às origens de meus escritos e de minha caligrafia. O lápis desliza e vai tecendo de maneira mais fluente cada palavra, cada frase. Eu bebo do copo meio cheio. E recebo dos dias um tanto de brisa, um tanto de chuva e o pó que se acumula sobre os móveis antigos. Mas antes de assentar sobre eles, a poeira fez pequenas luzes coloridas pelo ar enquanto eu observava, encantada, a sua dança. Assim minha quietude se abraça e se deita bocejando mais letras. Bebo do copo meio cheio. Porque prefiro assim. E para quem prefere beber do copo meio vazio, entrego a caixa repleta dos benefícios da amargura. Se é que ela tem algum.

























Memórias de uma fruta madura


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Nós, os cinco





Sentávamos todos à mesa. Era uma exigência implícita. Comíamos lentamente e falávamos pouco. Ainda ouço os talheres tinindo nos pratos. Cinco lugares à mesa. Cinco vidas unidas em uma só. O pai à cabeceira. Nosso timão. O capitão de nosso barco. Íamos tantas vezes sem rumo certo! Mesmo assim, seguíamos. Tropeçamos muito, sim. Até que nos perdêssemos de nós. Eu os amo em minha memória. Sou deles, ainda. E eles são de mim.



















Memórias de uma fruta madura


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Por ora, despedida




Há muita história dentro da história da gente. Há muitas escolhas a serem feitas. Eu mesma me perco por entre elas. As escolhas e minha história. Sou uma porta ou uma sala de espelhos. E faço, refaço opções e me encontro sempre em mim. O ponto de partida e a praia de chegada. Se me perguntarem, um dia, quando eu precisar me referir a este caminho como passado, eu direi que amei o vento no rosto, a canção da vida e os diálogos com Deus.

























Memórias de uma fruta madura


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Descanso



Agora, debruçado em minhas janelas, dorme o vento. Ele está cansado de soprar a esmo. Espero por ele e com ele. Deve estar liberto da obrigação de correr mundo. Afinal tudo e todos merecem um pouso, um descanso.






























































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