Memórias do Belo Horizonte: digitalização das cadernetas de campo de Aarão Reis

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MEMÓRIAS DO BELO HORIZONTE: DIGITALIZAÇÃO DAS CADERNETAS DE CAMPO DE AARÃO REIS DOS SANTOS, ROBERTO E. (1); FIALHO, THIAGO A. (2) 1. Escola de Arquitetura da UFMG. Departamento de Projetos [email protected] 2. Escola de Arquitetura da UFMG. Grupo MOM (Morar de Outras Maneiras) [email protected]

RESUMO O Museu Histórico Abílio Barreto abriga em seu acervo as Cadernetas de Campo dos levantamentos realizados pela Divisão de Estudos e Preparo do Solo da Comissão Construtora de Belo Horizonte (CCNC). Nesses documentos, produzidos entre 1894 e 1898, estão registrados dados topográficos e cadastrais. Os primeiros incluem tabelas, estacas, distâncias, ângulos, azimutes, alinhamentos e nivelamentos. Para além do cadastro da população, os segundos compreendem terrenos públicos e particulares, posição das edificações e suas divisões interiores, estado de conservação, natureza dos materiais empregados em sua construção e notas detalhadas das benfeitorias existentes nos terrenos adjacentes. Em suma, as cadernetas trazem registrados em código numérico muitos dos aspectos físicos do sítio natural sobre o qual se implantou o plano urbano para a nova capital de Minas Gerais, traçado pelo engenheiro Aarão Reis. Tais dados são passíveis de reconstituição em ambiente computacional por meio de Sistemas de Informação Geográfica (SIG) e de softwares gráficos, dando margem a novas expressões e análises para fontes primárias, como no caso em questão, referenciando novas investigações no âmbito da História Urbana. A inclusão do tempo como variável cartográfica e as diversas possibilidades de visualização de dados ao longo do tempo, para além de ampliar a capacidade de compreensão dos fenômenos urbanos, oportuniza a democratização do acesso a eles, especialmente, no que se refere às transformações impostas ao sítio natural pela urbanização e seus impactos na vida urbana, hoje. Este artigo descreve a metodologia empregada na preservação digital dessas cadernetas e aponta horizontes da pesquisa em que ela se insere, cujo foco principal está na investigação das obras públicas realizadas pelos governos municipais ao longo do século XX. A exemplo do trabalho realizado pelo Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte na preservação e divulgação dos Relatórios Anuais da Prefeitura de Belo Horizonte - 1899-2005, hoje encontrados no Portal da PBH, um dos objetivos deste trabalho é facilitar a consulta das cadernetas por meio da disponibilização de fac-similes autênticos pelo MHAB e, ao mesmo tempo, garantir a integridade dos objetos físicos originais. O trabalho foi desenvolvido em duas etapas. A primeira delas consistiu no registro fotográfico, página a página, das 671 cadernetas, totalizando cerca de 27.000 fotografias, realizadas nas dependências da Biblioteca do Museu Histórico Abílio Barreto, de Outubro a Dezembro de 2014. A segunda etapa, realizada até agora em cerca de 30% do total de fotografias, dedicou-se ao processo de produção de fac-similes em formatos do tipo PDF, precedida do tratamento de imagens e de formatação de slides com inserção das marcas de procedência. Como desdobramento do trabalho, está prevista a modelagem dos dados do levantamento topográfico em ambiente computacional. Um primeiro momento será dedicado à leitura crítica dos memoriais descritivos dos trabalhos de levantamento da Comissão Construtora da Nova Capital e à

interpretação dos métodos e instrumentos aí aplicados, bem como da notação técnica de seus dados numéricos. Num segundo momento, será procedida a transposição de tais dados para softwares de modelagem, a partir dos quais serão realizados testes e simulações da topografia original do sítio de implantação da cidade de Belo Horizonte. Palavras-chave: Preservação Digital, Cadernetas de Campo da Comissão Construtora de Belo Horizonte, História das Obras Públicas.

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Introdução Este trabalho descreve o processo de digitalização das cadernetas de campo dos levantamentos técnicos que fundamentaram os estudos do traçado urbano de Belo Horizonte, realizado pela equipe do engenheiro Aarão Reis no final do século XIX entre 1894 e 1898. Trata-se da primeira etapa da preservação digital dessa parte do acervo da Comissão Construtora da Nova Capital (CCNC)1, hoje sob a guarda do Museu Histórico Abílio Barreto (MHAB). Recentemente esse material foi selecionado pela UNESCO para integrar o Programa Memória do Mundo (Memory of the World – MOW), passando a ser considerado Patrimônio da Humanidade, na categoria arquivística”2. Ainda que um tal reconhecimento, por si só, já demonstre de antemão a relevância e a riqueza dos conteúdos dessa documentação e justifique qualquer esforço para sua preservação, a importância maior de transpor as cadernetas para o meio digital está na ampliação e na democratização do acesso aos seus dados. Todas elas estão sendo transformadas em fac-similes, folha a folha, e futuramente serão disponibilizadas ao público pelo MHAB. Este trabalho também apresenta um estudo analítico-descritivo preliminar dos textos, dos métodos e instrumentos empregados nos levantamentos geodésico-topográfico e cadastral do sítio de implantação de Belo Horizonte, incluindo o arraial do Curral del Rei. A decifração desses procedimentos visa reproduzir em ambiente computacional o sítio natural sobre qual se implantou o plano urbano de Aarão Reis, que dentre outras coisas servirá de base para um estudo histórico do tamponamento dos cursos d’água da área urbana de Belo Horizonte ao longo do século XX. Os dados dos levantamentos anotados nas cadernetas constituem o registro, talvez o mais próximo possível, das condições físicas anteriores ao processo de urbanização. Tanto o trabalho de captura digital quanto o de análise fazem parte de uma pesquisa com foco na História das Obras Públicas em Belo Horizonte, sediada no Grupo MOM, Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, com financiamento do CNPQ e da PRPqUFMG3, em colaboração com o MHAB.

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“A CCNC foi criada por decreto em 14 de fevereiro de 1894. Chefiada pelo engenheiro civil Aarão Leal de Carvalho Reis, a CCNC se instalou no arraial de Belo Horizonte em 1o de março do mesmo ano e iniciou imediatamente os trabalhos de levantamento dos dados técnicos necessários para levar adiante duas tarefas básicas: projetar a nova cidade e construir, até dezembro de 1897, as partes necessárias e suficientes para a instalação do governo mineiro”. Cf. AGUIAR, 2012, pp.5-6. 2

A reportagem “DOCUMENTOS QUE DERAM ORIGEM A BH SÃO PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE: Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital é selecionado pela Unesco para integrar o Programa Memória do Mundo” foi publicada no Diário Oficial do Município – DOU em 8 de outubro de 2015. 3

Até o momento a pesquisa vem sendo conduzida a partir de cinco projetos: Bases Quantitativas para uma História das Obras Públicas em Belo Horizonte (2013); Referenciais para uma História das Obras Públicas em Belo Horizonte: cronologia, periodização e tipologia (2013); Um Século de Obras Públicas: Análise dos Relatórios dos Prefeitos de Belo Horizonte /1898-2005 (2014); Tamponamento dos Córregos da Área Central de Belo Horizonte (2015); e Cadernetas de Campo da Comissão Construtora de Belo Horizonte: registro e sistematização (2015).

Fac-similes A primeira etapa do processo de digitalização ocorreu entre outubro e dezembro de 2014 e teve lugar nas dependências da Biblioteca do MHAB, de modo a evitar qualquer possibilidade de danos, roubos ou extravios dos originais. Além disso, foram tomados todos os cuidados necessários ao seu manuseio seguro, posto que alguns dos exemplares das cadernetas apresentam pequenos sinais de deterioração. A captura digital das cerca de cerca de 27.000 imagens seguiu o tratamento arquivístico previamente definido pelo MHAB, mantendo a mesma codificação já estipulada para cada uma das 641 cadernetas catalogadas. Isso quer dizer que a caderneta constituiu a unidade organizadora dos arquivos. Todas as imagens foram registradas com uma máquina fotográfica NIKON D3100 que gerou arquivos digitais do tipo JPEG, com resolução compatível com as recomendações do Conselho Nacional de Arquivos para digitalização de manuscritos com presença de cor (300 dpi), de modo a garantir a fidelidade ao documento original, isto é, a identificação de todos os seus caracteres – linhas, traços, pontos, manchas de impressão etc. Os arquivos gerados são da ordem de 6 megabytes e estão armazenados no servidor do Grupo MOM/UFMG, com cópia de segurança em seu sistema de backup. FIGURA 1: EXEMPLO DE REPRESENTANTE DIGITAL Fonte: Caderneta CCDT02098 - Acervo MOM / PRJ / EAUFMG / MHAB, fotos de Thiago Alfenas Fialho.

Num segundo momento dessa primeira etapa, em Janeiro de 2015, demos início ao processo de edição das imagens em fac-similes. Esse processo consiste no enquadramento e formatação das imagens e inserção da marca de procedência por meio do software Adobe 4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

Photoshop. À medida que se completa o tratamento de todas as imagens de uma unidade organizadora, isto é, de uma determinada caderneta, é gerado um arquivo do tipo PDF, configurando assim o chamado representante digital4 (Figura 1), que guarda autêntica similitude com o original em termos de dimensão física e cores. Até o momento foram tratadas cerca de 30% das imagens. As questões relacionadas aos procedimentos de acesso, navegação, visualização e gerenciamento (armazenamento e segurança) do banco de imagens, e que complementam o projeto de preservação digital, serão desenvolvidos numa segunda etapa.

Levantamentos Paralelamente ao trabalho de digitalização, vem sendo desenvolvido um estudo descritivo e analítico de seus conteúdos cujos resultados parciais são apresentados a seguir. O primeiro dos três volumes da Revista Geral dos Trabalhos traz um texto assinado por Aarão Reis, engenheiro politécnico responsável pela Administração Central da CCNC5, que esclarece que os levantamentos eram atribuição da 4a Divisão de Estudo e Preparo do Solo, chefiada pelo engenheiro Samuel Gomes Pereira. Os trabalhos geodésicos, de responsabilidade da 1a Seção, foram conduzidos por Ludgero Dollabella; e os trabalhos topográficos, de responsabilidade da 2a Seção, por Américo de Macedo. A finalidade desses levantamentos era produzir uma planta topográfica e uma planta cadastral. A distinção entre geodesia e topografia, tal como nos explica o texto Conhecer o arraial de Belo Horizonte para projetar a cidade de Minas: a Planta Topográfica e Cadastral da área destinada à Cidade de Minas e o trabalho da Comissão Construtora da Nova Capital, explica-se a partir da escala dos levantamentos: [...] o das grandes extensões, acima de 55 km2, propiciado pela geodesia, e o das 2 pequenas e médias extensões, abaixo dos 55 km , dado pela topografia. No 2 estudo dos 51 km da área destinada à nova cidade, a CCNC combinou geodesia e topografia. [AGUIAR, 2012, pp. 6-7].

O mesmo autor esclarece o significado dessas representações para a época em que foram realizadas:

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O representante digital é a representação digital de um documento originalmente não digital. Cf. CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2010, p.4. 5

A organização básica da CCNC comportava três esferas claramente delimitadas: administrativa, financeira e técnica. Entre março de 1894 e maio de 1895, sob a direção de Aarão Reis, a CCNC chegou a ter 147 integrantes, sendo 57 funcionários administrativos e 90 técnicos (48 engenheiros, 11 desenhistas e 31 condutores4). Cf. AGUIAR, pp.5-6.

Conhecer o terreno era conhecer o mundo sobre o qual atuaria o engenheiro para modificá-lo e torná-lo adequado ao homem. Para tanto, era preciso medir e definir com precisão a forma de todo o terreno a ser transformado pelo trabalho humano [...] Era, também, registro da ocupação humana, do uso e da propriedade das terras existentes em um sítio, no caso do arraial que desapareceria para dar lugar à Cidade de Minas. Grande parte dos terrenos sobre os quais a nova capital seria erguida pertencia a particulares. Tomar controle dessas propriedades era condição essencial para que o Estado pudesse construir livre e rapidamente a nova cidade. Para tanto, as propriedades deveriam ser forçosamente vendidas ao Estado, em troca de indenizações em dinheiro ou em lotes na nova capital. Era preciso, então, determinar características de todos os terrenos e edifícios existentes no arraial, para estabelecer seus preços e fazer desapropriações. Ou seja, fazer um registro detalhado desses edifícios e terrenos, fazer um cadastro, fazer uma planta cadastral. [AGUIAR, 2012, pp.6-7]

AGUIAR também apresenta uma descrição dos métodos empregados: [...] triangulação do sítio, com implantação de marcos geodésicos de pedra, configurando no terreno os vértices de 27 triângulos geodésicos; planimetria, com medição de ângulos e distâncias horizontais, tomando como referência os marcos geodésicos; nivelamento, com a determinação, ao longo da estrada que ligava o arraial à Sabará, de alturas em relação ao nível do mar, tomadas a partir da linha da Estrada de Ferro Central do Brasil, às margens do Rio das Velhas, e com a fixação de uma referência de nível no arraial, no Largo da Matriz. [AGUIAR, 2012, p.7]

O já citado primeiro volume da Revista Geral dos Trabalhos também traz um minucioso relatório dos trabalhos até então realizados pela CCNC. O item Estudo e Preparo do Solo, Geodesia e Topografia descreve os procedimentos técnicos para a instalação da linha de base, cujo alinhamento geral foi determinado por estacas de 30 em 30m, para a medição dos ângulos da rede de triângulos utilizados para os estudos geodésicos que fundamentariam a produção da planta cadastral da parte edificada do arraial de Belo Horizonte (Curral Del-Rei) e dos terrenos adjacentes [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.40-41]. Com base no Ofício n. 131 de Samuel Gomes Pereira, Chefe da 4a Divisão, datado de 5 de outubro de 1894, AGUIAR relaciona os equipamentos utilizados: [...] os instrumentos utilizados nos levantamentos foram os disponíveis no comércio do Rio de Janeiro: teodolitos produzidos pela firma inglesa Louis Casella 6 e trânsitos e níveis fabricados nos Estados Unidos por W & L. E. Gurley, utilizados em trabalhos de construção ferroviária. Na avaliação desse engenheiro, esses eram instrumentos confiáveis, mas não necessariamente os mais aperfeiçoados. A importação de aparelhos mais avançados foi inviabilizada pelo bloqueio do porto do Rio de Janeiro em decorrência da Revolta da Armada, que coincidiu com o período de organização da CCNC, e pelo exíguo prazo disponível para os levantamentos, que tornava impossível esperar pela chegada de instrumentos importados. [AGUIAR, 2012, p.8. Grifos nossos]

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Em nota AGUIAR nos explica: “Teodolitos eram utilizados para medir ângulos horizontais e verticais, enquanto trânsitos permitiam medir apenas ângulos horizontais. A medida de alturas em relação a determinado ponto de referência era feita com os níveis. Cf. AGUIAR, 2012, p.8. 4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

A memória descritiva dos trabalhos, assinada por Samuel Gomes Pereira, confirma a afirmação: [...] empregando-se, como goniômetro, o trânsito de Gurley, e, como diastímetro, as fitas de aço. [...] Estas foram aferidas, servindo de padrão para uma outra fita, também de aço, dos fabricantes Chesterman, de Sheffield, aferida na Casa da Moeda do Rio de Janeiro. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.47]

Ele menciona também a utilização da mira de Casella nos nivelamentos [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1985, p.51]. No mesmo documento, o chefe da 4a Divisão descreve os procedimentos de medição: Para medir, estendia-se a fita sobre cavaletes de madeira espaçados de 5 metros e esticava-se, com dinamômetro, até sujeitá-la a uma tensão de 10 quilogramas; nesta posição, a fita era sensivelmente paralela à inclinação do terreno e marcavam-se, então os seus extremos sobre o solo, projetando-os, por meio de prumos, sobre as cabeças das estacas, que se enterravam até ficarem rentes ao chão. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.47-48]

Como uma curiosidade, cabe destacar que anotações na caderneta CCDT02038 também fazem referência à utilização das chamadas Linhas de Siphon, similares às atuais mangueiras de nível, indicando que foram empregadas técnicas mais rudimentares de levantamento topográfico, para além do uso dos aparelhos mencionados.

Cadernetas Até o momento, foram identificados, a partir de seus títulos, cerca de 11 tipos diferentes de cadernetas, a saber: de Caminhamento; de Nivelamento; de Linhas Auxiliares, de Seções Transversais; de Alinhamento; de Detalhes Interiores, de Detalhes Exteriores, de Redução ao Horizonte; e, também, de levantamentos de casos específicos de terrenos, de Medição de Águas e de Dados Demográficos. Entretanto, a já citada Revista Geral dos Trabalhos detalha apenas dois tipos – as de Caminhamentos e as de Nivelamentos. Os primeiros foram classificados em três categorias – linhas de perímetro, linhas auxiliares e seções transversais – assim descritos por Samuel Gomes Pereira: Chamamos linhas auxiliares as que, partindo de um ponto do perímetro, vão se ligar a um outro ponto do mesmo perímetro e que têm por fim auxiliar, servindo de base, o levantamento dos detalhes. As seções transversais são linhas que partem de pontos do perímetro, ou das linhas auxiliares, tendo por fim assinalar minuciosamente todos os detalhes que não convenha levantar pelas auxiliares por causa de obstáculos (casas, muros etc., etc.) ou por ficarem a uma distância inconveniente daquelas primeiras linhas [...] os caminhamentos foram estaqueados de 10 em 10 metros e, nos triângulos, de 20 em 20 metros; empregando-se, como goniômetro, o trânsito de Gurley, e, como diastímetro, as fitas de aço [...] Todas as linhas de perímetro, auxiliares e de seções transversais foram estaqueadas pelo mesmo processo. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.47]

QUADRO 1: COMPARAÇÃO ENTRE MODELOS DESCRITOS NO MEMORIAL DESCRITIVO E CADERNETAS REAIS Fonte: Elaborado pelos autores. Registro de caminhamentos: perímetros e linhas auxiliares Fonte: Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.49

Exemplo de caderneta de Alinhamento Fonte: CCDT02035

Registro de caminhamentos: seções transversais Fonte: Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.49.

Exemplo de caderneta de Seções Transversais Fonte: CCDT02014

Quando comparados os modelos com os exemplares reais, pode-se perceber alterações na terminologia empregada na denominação dos serviços e das próprias cadernetas. As cadernetas de caminhamentos, em que estão registrados estacas, deflexões, azimutes e desenhos de observação, coincidem exatamente com o modelo do memorial descritivo, porém são chamadas Cadernetas de Alinhamento. Por outro lado, as cadernetas de caminhamento de seções transversais estão registradas num modelo distinto daquele que aparece no memorial descritivo, tal como indica o Quadro 1. As cadernetas de alinhamento, para além de demarcar as linhas que seriam posteriormente niveladas, parecem ter também a função de reconhecimento de terreno. Os dados numéricos são acompanhados de minuciosos croquis que, decerto, devem ter ajudado no planejamento das operações de nivelamento e facilitado os desenhos definitivos em escala. 4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

A Figura 3 é um exemplo significativo do foi dito acima. Ela traz uma montagem da caderneta de alinhamento CCDT02311, que registra uma parcela do curso do córrego do Leitão, num trecho de divisa das fazendas de Ilídio Ferreira da Luz e de Cândido Lúcio. FIGURA 3: MONTAGEM DE TRECHO DO CÓRREGO DO LEITÃO A PARTIR DE CROQUIS DE CADERNETA DE ALINHAMENTO Fonte: Montagem elaborada pelos autores a partir da Caderneta CCDT02311.

O memorial descritivo de Samuel Gomes Pereira assim descreve o modelo de caderneta adotado para o nivelamento das linhas: a

Na primeira coluna registram-se os números das estacas dos alinhamentos; na 2 , a a as visadas à ré; na 3 , a altura do instrumento; na 4 , as visadas avante sobre as a estacas de mudança, ou auxiliares; na 5 , as visadas avante sobre as estacas dos a alinhamentos; e, finalmente, na 6 , as altitudes dos diversos pontos do terreno. A separação das visadas avante em duas colunas tem a grande vantagem de facilitar o cálculo da caderneta feito no campo pelo observador. [REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, 1895, p.51]

Tal como indica o Quadro 2, o modelo de caderneta de nivelamento coincide com o das cadernetas reais. QUADRO 2: COMPARAÇÃO ENTRE MODELO DESCRITO NO MEMORIAL DESCRITIVO E CADERNETAS DE NIVELAMENTO REAIS Fonte: Elaborado pelos autores. Modelo para caderneta de Nivelamento Fonte: Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.51.

Exemplo de caderneta real de Nivelamento Fonte: Caderneta CCDTO2029

De modo geral, a notação técnica dos registros é bastante irregular, tanto no modo como são tituladas quanto no modo como são organizadas as informações registradas. Por exemplo, algumas apresentam índices de conteúdos e numeração de páginas, outras não. Percebe-se que algumas delas foram passadas a limpo. A parcela das cadernetas investigadas mais detalhadamente, entre a CCDT02001 e a CCDT02055, trazem a assinatura – Samuel Pereira, Chefe de Seção – com visto de Américo de Macedo, ambos da 4a. Divisão, de Estudos e Preparo do Solo. Além dos levantamentos propriamente ditos, várias outras informações e dados podem ajudar a compreender os procedimentos utilizados nas operações de campo e na organização dos trabalhos. Um exemplo é o dado da Caderneta CCDT02040, que traz uma lista de nomes associados a funções e ferramentas utilizadas nos levantamentos (Quadro 3), a partir da qual podemos inferir, pelo menos em parte, a composição de uma equipe de campo. Outro exemplo é o da caderneta CCDT020033 que, tal como se observa no Quadro 4, revela que a forma de comunicação entre os membros das equipes de campo se fazia por meio de sinais sonoros.

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QUADRO 3: LISTA DE NOMES ASSOCIADOS A FUNÇÕES E FERRAMENTAS UTILIZADOS NOS LEVANTAMENTOS Fonte: Caderneta CCDT02040 Acervo MOM / PRJ / EAUFMG / MHAB, fotos de Thiago Alfenas Fialho. Foi mantida a grafia original.

1 2 3 4 5 6 8 7 11 9 10 12

Antônio Avelino Damas Modesto dos Reis Gabriel Lucio José Victorino Tito Reis José Eloy Sacramento José Mathias José Custódio Arthur Ferreira Elias de Sousa Luiz Gonçalo Benedito Raymundo Guedes

1 1 1 1 1 1f234 4 4 4 5 4 4 123/4 6

a

1 balisa a 1 balisa foice “ “ a 2 balisa a 2 balisa mano[?] foice estoqueiro fileira nível despedido -

QUADRO 4: LISTA DE COMANDOS SONOROS PARA COMUNICAÇÃO À DISTÂNCIA ENTRE OS MEMBROS DAS EQUIPES DE CAMPO Fonte: Caderneta CCDT02033 Acervo MOM / PRJ / EAUFMG / MHAB, fotos de Thiago Alfenas Fialho.

Toque dobrado 1 apito longo 2 “ “ 3 “ “ 4 “ “ 5 “ “ 6 “ “ 7 “ “ Toque e três apitos

Attenção! Suba! Desça! Suba o signal Desça o signal Repita a última operação Prompto Adiante! Prompto Concluído tudo!

Toque e dois apitos

Espere ordem

Conforme já foi dito, as cadernetas trazem ainda detalhes de dados cadastrais, tais como desenhos de ruas e propriedades privadas, e também dados demográficos, tal como está registrado na caderneta CCDT02368, intitulada “Proprietários e Casas de Inquilinos do Arraial”, que serão alvo de estudos futuros.

Decifração das Cadernetas do Triângulo VI A seguir, apresentamos um estudo das cadernetas correspondentes ao Triângulo VI. Essa escolha se deve ao fato de esse triângulo cobrir grande parte da bacia elementar do córrego do Leitão, objeto do suprareferido projeto Tamponamento dos Córregos da Área Central de Belo Horizonte. Inicialmente, foi feita uma linha do tempo das cadernetas que trazem o Triângulo VI em seu título, tal como ilustra a Figura 4.

FIGURA 4: LINHA DO TEMPO DOS TRABALHOS DE LEVANTAMENTO DO TRIÂNGULO VI, BASEADA NAS DATAS DE PRODUÇÃO DAS CADERNETAS Fonte: Elaboração dos autores, a partir das cadernetas mencionadas abaixo.

Como se pode notar, a maior parte das cadernetas foi levantada no segundo semestre de 1894, com trabalhos mais intensos no mês de novembro, provavelmente com a finalidade de evitar os transtornos do período chuvoso. Pode-se também inferir que os trabalhos se iniciam com as cadernetas de Caminhamento, seguidas pelas cadernetas de Alinhamento, Linhas Auxiliares e Nivelamento. Para além das cadernetas com dados de natureza numérica, tratamos de identificar na Planta Geodésica, Topográfica e Cadastral da Zona Estudada as demais informações referentes à posição desse triângulo na rede geodésica definida pela CCNC.

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Num segundo momento, passamos à decifração dos dados das cadernetas na tentativa de transpor seus dados para um software de modelagem tridimensional. Para isso, retomamos o esquema geral (Figura 5) descrito no memorial descritivo dos trabalhos topográficos, já citado, de autoria de Samuel Gomes Pereira, que assim definia os procedimentos de Nivelamento: [...] Todas as linhas mencionadas anteriormente foram cotadas tomando para plano de comparação o nível médio do mar. Partiu-se, com o primeiro nivelamento, da soleira da ponta da E. F. Central do Brasil sobre o ribeirão do Arrudas, cuja altitude é de 692m.346; e subindo pela estrada de rodagem de Sabará até Belo Horizonte, firmou-se o primeiro marco de referência, no Largo da Matriz, na cota 859m.953 [...] Em seguida, damos um croquis representativo das linhas que se estaquearam em cada triângulo para a representação do terreno na planta geral por meio das curvas de nível. [pp.50-51. Grifos do original]

FIGURA 5: ESQUEMAS GERAL DAS LINHAS DE ESTAQUEAMENTO E DO ESTAQUEAMENTO DO TRIÂNGULO VI Fonte: Montagem dos autores a partir de imagem da Revista Geral dos Trabalhos, volume 1, 1895, 1, p.51

O esquema acima serviu de referência para a intepretação dos procedimentos de levantamento do Triângulo VI. Partimos da remontagem da rede de triangulação, que foi justaposta ao traçado da cidade, de modo a facilitar o georreferenciamento aproximado de seus vértices (Figura 6).

Seguindo os procedimentos definidos no esquema geral, com referência nos dados das cadernetas CCDT02220, CCDT02245, CCDT02283, CCDT02286 e CCDT02317, chegamos ao esquema de estaqueamento do triângulo VI, tal como ilustra a Figura 5. FIGURA 6: JUSTAPOSIÇÃO DA PLANTA GEODÉSICA, TOPOGRÁFICA E CADASTRAL (COM DESTAQUE PARA O TRIÂNGULO VI) COM MAPA DE OCUPAÇÃO ATUAL DE BELO HORIZONTE Fonte: Elaborada pelos autores a partir da sobreposição da base cadastral PRODABEL-2010 à Planta Geodésica, Topográfica e Cadastral da Zona Estudada.

Com base nessa interpretação, iniciamos a transposição dos dados das cadernetas de nivelamento supracitadas para o software AutoCAD. Sobre as linhas definidas pela rede de triângulos foram lançados os pontos de cada uma das estacas e o seu nivelamento. Com base nessa constelação de pontos o software é capaz de gerar uma superfície e definir curvas de nível. Embora essa operação esteja sendo testada no pequeno trecho representado pelo Triângulo VI, a ideia é de que com essa reconstituição possamos gerar uma maquete virtual de toda a área coberta pelos levantamentos registrados nas cadernetas. A Figura7 traz em primeiro plano o perfil topográfico da linha que parte do Morro do Cruzeiro, correspondente ao trecho onde hoje se encontra a Praça Milton Campos e o Morro Redondo, onde hoje supostamente estão situados reservatórios da COPASA, entre as Avenidas Nossa Senhora do Carmo e Presidente Eurico Dutra. 4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

FIGURA 7: PERFIL DA LINHA QUE PARTE DO MORRO DO CRUZEIRO AO MORRO REDONDO E SIMULAÇÃO DA TOPOGRAFIA DO TRIÂNGULO VI Fonte: Elaborado pelos autores a partir da transposição dos dados das cadernetas CCDT02220 e de fragmento da Planta Geodésica, Topográfica e Cadastral.

Ainda que esta abordagem tenha caráter preliminar e apresente resultados parciais e incompletos, é possível dela inferir o potencial das cadernetas como material historiográfico primário.

Referências Bibliográficas AGUIAR, Tito F. R. Conhecer o arraial de Belo Horizonte para projetar a cidade de Minas: a Planta Topográfica e Cadastral da área destinada à Cidade de Minas e o trabalho da Comissão Construtora da Nova Capital. XVIII Encontro Regional da ANPUH, Mariana, 24 a 27 de julho de 2012. ARRAIS, Cristiano A. A Construção de Belo Horizonte e Projeto de Memória de Aarão Reis. Diálogos – Revista do Departamento de História do Programa de PósGraduação em História, Vol. 14, n. 3, 2010, pp. 597-603. BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva; história antiga e história média. 2a. ed. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996. Publicado originalmente em 1928 (v.1) e 1936 (v. 2). CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Recomendações para Digitalização de Documentos Arquivísticos Permanentes. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2010. GOMES, Maria do Carmo A. Aventura cartográfica na cidade nascente. Revista do Arquivo Público Mineiro. Vol. n. pp.89-104. GOMES, Maria do Carmo A. O Mapeamento do Curral del-Rei: arqueologia de um assentamento urbano de origem colonial. III Simpósio Luso-Brasileiro de Cartografia Histórica, Ouro Preto, 10-13 Novembro de 2009. PANORAMA de Belo Horizonte: atlas histórico. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997. REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, v. 1. Commissão Construtora da Nova Capital, 1895. REVISTA GERAL DOS TRABALHOS, v. 2. Commissão Construtora da Nova Capital, 1895. SALGUEIRO, Heliana Angotti. Engenheiro Aarão Reis: o progresso como missão. Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 1997.

Agradecimentos Este trabalho não teria sido possível sem o apoio do Museu Histórico Abílio Barreto, nas pessoas da historiadora Célia Regina Araújo Alves; dos bibliotecários Christiano Marcos Ribeiro Quadros, Danielle Bacelete de Souza e Maria Célia Pessoa Ayres Dias; e da restauradora Ivete Ferreira Dutra. Contamos também com as preciosas colaborações do arquiteto e fotógrafo Rodrigo Santos Marcandier Gonçalves e do estudante de arquitetura Vinicius Fortes de Morais Carvalho.

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