Memórias prévias de um intelectual

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Ensaio Inspirado em Machado, autor de sua especialidade, Roberto Schwarz realiza em novo livro uma síntese de seu percurso – e se aproxima do que critica em Caetano Veloso, no mais controverso texto da obra

MARTINHA VERSUS LUCRÉCIA Autor: Roberto Schwarz Editora: Companhia das Letras (320 págs., R$ 44)

REPRODUÇÃO

MEMÓRIAS PRÉVIAS DE UM INTELECTUAL ticula uma exposição corrosiva das desigualdades definidoras da sociedade brasileira. Assim, o caráter sempre arbitrário e por novo livro de Roberto vezes violento da narrativa em primeira pesSchwarz, Martinha Ver- soadodefuntoautordenunciaaarbitrariedasus Lucrécia, reúne 17 de e a violência dominantes no Brasil escratextos,enfeixandogran- vocrata. E isso em meio à defesa dos princíde diversidade de gêne- pios do liberalismo. ros: ensaios de fôlego, A viravolta machadiana é a mais completa outros curtos, escritos tradução da dissonância cognitiva aprendideocasião,palestras,en- da no corpo a corpo com Karl Marx. trevistas e mesmo uma Chegamos,portanto,ànoção-chavedapriarguição de trabalho acadêmico. meira fase da obra de Roberto Schwarz. O O leitor talvez se sinta desorientado fren- livro traz um ensaio esclarecedor sobre o tete à natureza heteróclita do livro. Contudo, ma, Por que ‘Ideias Fora do Lugar’? para esclarecer a coerência da organização, De um lado, Schwarz sistematizou uma recordem-se dois títulos machadianos. longa tradição que defendia a inadequação Principie-se pela advertência de Machado entre princípios estrangeiros e cotidiano nade Assis a Papéis Avulsos (1882): “Este título cional. Ou seja, ele produziu um mapeamen(...) parece negar ao livro uma certa unidade; to específico dessa ideologia no caso da adofaz crer que o autor coligiu vários escritos de ção oitocentista do liberalismo numa socieordens diversas para o fim de não os perder. dade escravocrata. Não se trata, assim, de A verdade é essa, sem ser bem essa”. advogar um lugar platônico para as ideias, OmesmopodeserditoarespeitodeMarti- porémde identificar atópica articuladora do nha Versus Lucrécia. discurso hegemônico no Brasil. O primeiro ensaio, Leituras em CompetiDe outro lado, Schwarz identificou uma ção, cujo eixo fornece o título da coletânea, deliberadavolubilidadeideológica.Istoé,paapresenta os pressupostos da pesquisa cor- ra consumo externo, nossa elite lança mão rentedeRobertoSchwarz,assimcomoanun- do discurso liberal, reivindicando sua igualcia desdobramentos futuros. Trata-se, as- dade frente aos pares europeus e norte-amesim, de trabalho em curso, que busca am- ricanos. No entanto, para uso doméstico, a pliar seu bem-sucedido modelo de interpre- mesmaeliteassegurasua diferençadefendetação da obra machadiana. do a “necessidade” de preservar o trabalho O último texto, Na Periferia do Capitalismo, escravo.Ora,como ospúblicos-alvo sãodifeumalongaentrevista,permiteaSchwarzreca- rentes, por que exigir coerência discursiva? pitular os primeiros passos de sua carreira, Jano é o símbolo dessa estratégia marota, desde o ingresso no curso de ciências sociais que ainda hoje possui partidários. na USP, em 1957, até a Aqui, as “ideias fora formação de seminário do lugar” e a volubilida** dedicadoaoestudodeO de estrutural se dão as Seu trabalho levou Capital,noanoseguinte. mãos, esclarecendo a adiante as consequências No fundo, os dois exforça do pensamento da dissonância entre tremos se tocam. Em de Roberto Schwarz. Dom Casmurro (1899), Paraconcluir,aponte“construção teórica” Bento Santiago almemos dois reparos para e “vivência histórica” jou semelhante unidaum possível diálogo. de para a escrita de Valeria a pena incor** suas memórias: “O porar certo aspecto da meu fim evidente era atar as duas pontas da crítica de Alfredo Bosi. Schwarz está certo ao vida, e restaurar na velhice a adolescência. sublinhar o sentido específico que atribui à Pois, senhor, não consegui recompor o que noção de “ideias fora do lugar”. Daí, a ressalfoi nem o que fui”. va de Bosi sobre as incoerências do liberalisSe não vejo mal, Martinha Versus Lucrécia motambémnaEuropaapenasreforçaaintuicompõe uma autobiografia intelectual oblí- çãodeSchwarz,poisaaltavoltagem dadissoqua. E, ao contrário do narrador casmurro, nâncianocenáriobrasileiroestimulaoremaSchwarz articula com êxito os momentos de te decisivo: “O dado de observação tem horiseu percurso. zonte local, mas o horizonte último da análiVoltemos ao princípio, escutando as lem- se é globalizador e ironiza o primeiro, que branças do autor acerca dos estudos dedica- pode ironizá-lo por sua vez”. Touché! dos ao livro de Karl Marx: “Começou a se Porém, a observação de Bosi sobre a exisconfigurar no seminário a distância entre a tência de correntes opostas do liberalismo construção marxista e a experiência históri- no Brasil oitocentista poderia tornar o racioca do país. O seminário teve a força de não cínio de Schwarz mais complexo. Estudar a desconhecer a discrepância (...)”. presençade um grupo que,antes da viravolta A obra de Roberto Schwarz foi a que le- machadiana, tocou o dedo na ferida, assinavou mais longe as consequências dessa dis- lando a discrepância entre discurso liberal e sonância entre construção teórica e vivên- escravidão, poderia fornecer uma fonte aincia histórica. da não explorada de diálogo para o entendiO exame de O Capital, a partir da circuns- mento do Machado das Memórias Póstumas. tância brasileira, demandou a atualização do Tratemos,por fim, do ensaio mais polêmiclássico no confronto com um contexto di- codo livro, o atéagora inédito Verdade Tropiverso do de sua produção. Ao mesmo tempo, cal: Um Percurso do Nosso Tempo. porém, foi preciso compreender a realidade A fascinação de Roberto Schwarz com o local com as lentes novas fornecidas pelo livro de Caetano Veloso relaciona-se tanto exame. O vaivém epistemológico é propria- ao gênero da autobiografia, quanto à possímente dialético e deu a régua e o compasso vel associação do narrador de Verdade Tropido método de Schwarz: “Dentro de minhas cal com a volubilidade de Brás Cubas. O paralelo, contudo, é problemático, empossibilidades, quando chegou a hora de fazer tese e de analisar os romances de Machado de Assis, eu me havia impregnado muito desse modo de ver”. Esse modo de ver adquire direito de cidadania na viravolta machadiana; noção que fornece o fio condutor de seu livro. De uma forma ou de outra, os 17 textos lidam com aspectos variados da noção. Consultemos o ensaio precisamente intitulado A Viravolta Machadiana, e que sintetiza dois de seus livros - Ao Vencedor As batatas (1977) e Um Mestre na Periferia do Capitalismo (1990). No ensaio, encontra-se a definição:“Até asMemórias Póstumas deBrásCubas – a obra da viravolta machadiana –, o romance brasileiro era narrado por um compatriota digno de aplauso (...). Já o narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas é (...) acintoso,parcial,intrometido,deumainconstância absurda (...)”. Portanto,a viravolta ocorreapartir daadoção de um ponto de vista com ramificações inéditas. Nos primeiros quatro romances, por meio do tradicional narrador onisciente, Machadoassumiuoponto devistadoagregado, cujo desejo mais atrevido se limitava à cooptação por parte de um protetor rico. Já nasMemóriasPóstumas,adesfaçatezdonarrador, típico representante da elite pátria, elaboraumaformaliteráriadominadapelavolubilidade da voz narrativa que, pelo avesso, arJOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA

O

bora não deixe de ser estimulante. No caso das Memórias Póstumas, a notável análise do críticoacerca donarrador e de suas cabriolas ideológicas nunca é interrompida para que se indague severamente acerca do engajamento de Machado nas transformações da sociedade brasileira. A hipótese é absurda, pois supõe uma justaposição ingênua entre autor empírico e narrador do romance. Já na leitura de Verdade Tropical, Schwarz parece oscilar entre o estudo do texto – que julga notável – e a avaliação do comportamento político do autor, que ele considera autoindulgente e condenável. Há, portanto, um desequilíbrio estrutural no ensaio. O olhar do crítico é, por assim dizer, estrábico: nem sempre trata do mesmo objeto, embora escreva sobre o “mesmo”livro. O estrabismo crítico podeser produtivo, mas somente se o analista problematizar a dualidade de sua perspectiva. Assim, a divisão observada na escrita de Caetano também contamina o discurso do analista. Por vezes, trata-se do crítico estudando o texto com a inteligência costumeira; por vezes, trata-se do cidadão Roberto Schwarz, avaliando as posições do compositorapartirdeumcontrapontonuncaexplicitado – o de suas convicções políticas.

É como se a complacência identificada na narrativa do músico ironicamente se voltassecontra ocrítico.Entende-se,então, aabertura incomum do ensaio: “De início devo dizer que não sou a pessoa mais indicada para comentar a autobiografia de Caetano Veloso,poisnãotenhobomconhecimentodamúsica nem das composições do autor. Entretanto gosto muito do livro como literatura”. O artifício é sagaz, um drible desconcertante. Ou não. Schwarzdesejasugerirque sualeituraapenas leva em consideração o texto, uma vez que se declara pouco familiarizado com a obradocompositor. Contudo,ele revelapleno conhecimento da carreira artística de Caetano, mediado por um viés determinado da circunstância política. Ora, por que não imaginar a escrita de um novo ensaio, no qual o crítico reconheceria que sua análise da autobiografia de Caetano também é um exercício autobiográfico? Paraumdosmaisdestacadoscríticosdialéticosdaatualidade–eissoemqualquerlatitude –, talvez a sugestão não seja impertinente. l ✽ JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ

Duo. O autor e o compositor: “oscilações”

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