Menos Muros e mais pontes: a antropologia como espaço privilegiado de transdisciplinaridade

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Esse termo reaparece muitas vezes ao longo da Introdução da coletânea de ensaios "The Traffic in Culture: Refiguring Art and Anthropology", reforçando o objetivo da publicação, explicitado na mesma: "One significance of this volume and its historical location, therefore, is to challenge such certainties of distinctive, bounded communities - the boundary between observers and observed - that academic practices have tended to produce. A concurrent development to keep in mind is the current blurring of traditional boundaries" (Marcus, G; Myers, F., 1995: 3)

Stuart Hall, também uma estudioso da pós-modernidade, diz que "as nações modernas são, todas, híbridos culturais" (HALL, 2006: 62).

Marcus e Myers (1995, p. 9) designaram de "práticas de marcação de fronteiras" ("boundary-marking practices") essas separações que criaram áreas interesse distintas e abstratas – inclusive as disciplinas acadêmicas - que nasceram na era moderna. Sobre o contexto geral de separação institucional ver em Marcus, G; Myers, F., 1995, p.6.
Segundo a tradução do site Google, "figura em que se combinam palavras de sentido oposto que parecem excluir-se mutuamente, mas que, no contexto, reforçam a expressão (p.ex.: obscura claridade, música silenciosa); paradoxismo"
Este tema, "o ponto de vista desmarcado da Antropologia" é exaustivamente discutido em: "Antropologia e Dessubjetivação. De volta ao ponto de partida" (Mesomo, J., 2016)

Terence Turner, em "Imagens desafiantes: a apropriação kaipó do vídeo, faz uma crítica a pretensa polifonia da "nova etnografia" ao mencionar as "nuances de sutil cooptação das vozes dos 'outros' que servem implicitamente para legitimizar a voz do etnógrafo dentro do mesmo texto" (TURNER, T., 1993: 105). Ele aponta o uso do vídeo por povos indígenas como uma alternativa à essa "polifonia cooptativa".
Os autores também fazem referência, em nota, (Idem, p. 40, nota 42) à antropologia americana e suas tentativas teóricas de conceder agência aos atores sociais dentro de seus respectivos contextos.
Em nota de "Traffic in culture" os autores apontam que "O reconhecimento/identificação da cultura como disputada tem múltiplas origens na antropologia, incluindo-se a Escola de Manchester" (Marcus; Myers, 1995: 37/nota 16), na qual autores como Max Gluckman e VictorTurner introduzem a tensão e a contradição como inerentes ao sistema social, focando suas análises nas transformações sociais, contrapondo-se às correntes antropológicas clássicas que preocupavam-se em evidenciar a estrutura, a estabilidade e a ordem sociais. Há também, abordagens mais contemporâneas como a de Edward Said, que adere ao tema geral da "descolonização" do pensamento, e defendem a tese de que "as próprias nações são narrativas. O poder de narrar, ou de impedir que se formem e surjam outras narrativas, é muito importante para a cultura e o imperialismo, e constitui uma das principais conexões entre ambos" (SAID, E. 2011: 11).
Sobre esse assunto, ver o relato da "instrumentalização da cultura" pelos Kaiapó em "Da cosmologia à história: resistência, adaptação e consciência social entre os Kayapó" (TURNER, T., 1993a)
Este é o tema de "A pulsão romântica e as ciências humanas no ocidente" (DUARTE, Luiz Fernando D., 2004)
O Historiador italiano Carlo Ginzburg explica como o advento da escrita e da imprensa provocaram uma drástica redução dos elementos pertinentes ao texto em favor dos elementos reprodutíveis mecanicamente (ou seja, quantidade em detrimento da qualidade), resultando numa "progressiva desmaterialização do texto, continuamente depurado de todas as referências sensíveis: mesmo que seja necessária uma relação sensível para que o texto sobreviva, o texto não se identifica com o seu suporte" (GINZBURG, 1989: 157)
Uma crítica ainda mais ousada aparece em "Antropologia e Dessubjetivação: de volta ao ponto de partida" (Mesomo, J., 2016), onde a autora denuncia uma contradição persistente no bojo da prática antropológica: "Em tese, a vivência e a experiência localizadas são o essencial da teoria antropológica, mas elas só podem ser mediadas – ou comunizadas – pelo texto e a partir do diálogo — quase nunca conflito ou ruptura — com os cânones disciplinares. O ponto de vista localizado transformado em teoria antropológica é raramente tolerado (...) sempre será deslocada ao lugar da vivência, do dado ou do conteúdo a ser analisado. (...) [A enunciação de um problema geral] com pretensões de universalidade, deverá ser formulado na linguagem antropológica – não feminista, nem militante, nem muito apaixonada, nem demasiadamente banal. Tudo se passa como se apenas a universalidade antropológica e suas mornas paixões existissem."

Como na coletânea "A vida social das coisas" (Appadurai, A., 2008) que observa os percursos que as coisas traçam no interior da sociedade através das esferas de circulação nela existentes.
Menos Muros e mais pontes: a antropologia como espaço privilegiado de transdisciplinaridade


devo dizer, como já o terão notado ao falar do trabalho de campo antropológico e das qualidades e condições necessárias para o realizar, que segui a opinião (...) de que a Antropologia Social deve considerar-se mais como uma arte que como uma Ciência Natural. Os meus colegas, que sustentam uma opinião contrária, teriam tratado de maneira bastante diferente os temas a que me referi nesta conferência. (EVANS-PRITCHARD, 1972: 136-7)

Já nos anos 50, época da conferência da qual o trecho citado é proveniente, tentava-se aproximar Antropologia e Arte, em detrimento de uma rotulação de Ciência rígida que desde lá parecia não se encaixar nessa disciplina, por causa de seus métodos. Ressonâncias dessa visão pairam hoje sobre a chamada antropologia pós-moderna que defende o embassamento ("blurring") das fronteiras tradicionais entre disciplinas. O movimento pós-moderno, que, segundo Cardoso de Oliveira (1996, p.25), começa a se tornar evidente dentro da antropologia a partir dos anos 60, tem proporcionando novos e imprevisíveis espaços de intercâmbio entre artistas e intelectuais, acadêmicos e jornalistas (Marcus, G; Myers, F., 1995: 3).
Esse movimento responde à necessidade emergente na época (e hoje, urgente) da disciplina reconfigurar sua relação com seus objetos de conhecimento, uma vez que ela começava se confrontar com todas as transformações, misturas e deslocamentos que acompanham os processos de globalização. As totalidades culturais homogêneas anteriormente estudadas pela disciplina foram transformando-se através de fluxos interétnicos - a interpenetração de culturas - exacerbados a partir da modernidade até a atualidade. Diante disso surge a demanda de lidar com a diferença cada vez mais complexa e heterogênea: uma "proliferação de híbridos" (Latour, 1994) por toda parte, tanto "lá" (os tradicionais "campos" antropológicos) como aqui (o contexto cultural do pesquisador).
A insurgência da antropologia pós-moderna também representa uma reação às "grandes divisões" características da modernidade, especialmente aos dualismos engendrados e reproduzidos acriticamente no seio da disciplina: "nós- eles","primitivo-civilizado", "pesquisador-nativo". O interesse do pós-modernismo (em seu sentido mais amplo, como uma corrente de pensamento que influenciou diversas áreas do conhecimento) em dissolver barreiras estabelecidas (ou, ao menos, desconfiar delas) também implica em superar essas dicotomias modernas - que não deixam de ser separações arbitrárias. Marcus e Myers alerta seus leitores ao fato de que, apesar de Antropologia ter policiado as fronteiras estabelecidas (1995, p. 36, nota3) – principalmente entre artistas e antropólogos - e reproduzido dualismos – que são ainda presentes – ela insistiu (como ainda insiste) em um holismo onde nenhuma dimensão da vida cultural é naturalmente considerada isolada das outras (Idem, p.6). Bruno Latour ilustra muito bem essa benesse provinda da etnografia em seu ensaio "Jamais fomos modernos" (Latour, 1994: 12):

Este dilema [de dividir os objetos de natureza híbrida entre essências purificadoras] permaneceria sem solução caso a antropologia não nos houvesse acostumado, há muito tempo, a tratar sem crises e sem crítica o tecido inteiriço das naturezas-culturas. Mesmo o mais racionalista dos etnógrafos, uma vez mandado para longe, é perfeitamente capaz de juntar em uma mesma monografia os mitos, etnociências, genealogias, formas políticas, técnicas, religiões, epopéias e ritos dos povos que estuda. Basta enviá-Io aos arapesh ou achuar, aos coreanos ou chineses, e será possível obter uma mesma narrativa relacionando o céu, os ancestrais, a forma das casas, as culturas de inhame, de mandioca ou de arroz, os ritos e iniciação, as formas de governo e as cosmologias. Nem um só elemento que não seja ao mesmo tempo real, social e narrado.

Nesse ensaio – que desde o subtítulo se assume como "ensaio de antropologia simétrica", Latour denuncia a distinção – ou assimetria – praticada entre estudos aplicados em sociedades que representam alteridades radicais e estudos no âmbito cultura ocidental, sugerindo que essa diferença se baseia em uma ilusão: a de que somos modernos. E assim, com esse engodo, justifica-se a abordagem não-holista sobre a nossa cultura (somente utilizada em contextos "pré-modernos") o que, acredito eu, também nos faz retornar às velhas demarcações - que acreditamos ter superado – entre sociedades simples e complexas. Mas Latour revela que esse argumento não passa de uma falácia. Como já adianta o título do ensaio, ele demonstra que "jamais fomos modernos" utilizando o exemplo da distribuição dos conteúdos no jornal:
Multiplicam- se os artigos híbridos que delineiam tramas de ciência, política, economia, direito, religião, técnica, ficção. Se a leitura do jornal diário é a reza do homem moderno, quão estranho é o homem que hoje reza lendo estes assuntos confusos. Toda a cultura e toda a natureza são diariamente reviradas aí.
Contudo, ninguém parece estar preocupado. As paginas de Economia, Política, Ciências, Livros, Cultura, Religião e Generalidades dividem o layout como se nada acontecesse. (Idem, p. 8).

Os híbridos estão instalados por toda parte – aliás, sempre estiveram. Até mesmo no interior da antropologia há um método muito recomendado que pode ser visto como paradoxal e ninguém parece se incomodar com isso. A "observação-paticipante", que hoje é um método bastante naturalizado dentro e fora da disciplina seria um "oximoro" aos olhos da etnóloga Jeanne Favret-Saada : "Em retórica, isso se chama oxímoro: observar participando, ou participar observando, é quase tão evidente como tomar um sorvete fervente." (FAVRET-SAADA, 2005:156). Pois bem, se lidamos tão bem com a "observação participante" (nosso paradoxo de estimação) porque estranhamos tanto outras fusões, justaposições de coisas que aparentam ser de universos distintos?
A Observação-participante, traço distintivo da Antropologia em relação às demais ciências sociais é talvez o que a disciplina tem de mais precioso e como tal precisa ser valorizado até mesmo como uma vantagem:
Tentando penetrar nas formas de vida que lhe são estranhas, a vivência que [o pesquisador] delas passa a ter cumpre uma função estratégica no ato de elaboração do texto, uma vez que essa vivência - só assegurada pela observação participante "estando lá" - passa a ser evocada durante toda a interpretação do material etnográfico no processo de sua inscrição no discurso da disciplina. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996, p. 31)

No entanto, há uma dimensão central da pesquisa empírica - que envolve a observação-participante - que, quando negligenciada, impede que todo o potencial e diferencial desse método se efetive: "a modalidade de ser afetado" (FAVRET-SAADA, 2005). Em "Ser afetado" a autora manifesta essa problemática e expõe a necessidade de pôr em questão o tratamento paradoxal do afeto na antropologia:
em geral, os autores ignoram ou negam seu lugar na experiência humana. Quando o reconhecem, ou é para demonstrar que os afetos são o mero produto de uma construção cultural, e que não têm nenhuma consistência fora dessa construção, como manifesta uma abundante literatura anglo-saxã; ou é para votar o afeto ao desaparecimento, atribuindo-lhe como único destino possível o de passar para o registro da representação, como manifesta a etnologia francesa e também a psicanálise (FAVRET-SAADA, 2005).

Esse tipo de discussão sobre dilemas e impasses que envolvem o fazer antropológico tem um vasto rendimento no interior da antropologia. Roy Wagner diria que esses debates "sobre si mesma" são próprios da antropologia (WAGNER, 2010: 24) e que com eles, poderíamos pensar sobre a "possibilidade de alcançar um equilíbrio autenticamente dialético na sociedade ocidental" (Idem). Wagner talvez seja mais um dos que, assim como eu, acreditam que "A antropologia é nada à vida, mas pode ser o sonho" (MORAES, 2015). Explorar esse potencial dialético e dialógico da disciplina, sua dinâmica singular que idealmente desafia a ortodoxia científica – incluindo-se aí sua afinidade com a arte - parece ser o caminho que leva à emancipação de uma disciplina acadêmica a dispositivo de transformação da realidade social. Para isso, devemos começar a buscar no interior da "eclética soma de tudo e mais um pouco dentro dos manuais" (WAGNER, 2010: 13) – o que, por si só já denota a sua transdisciplinaridade e natureza híbrida - aquilo que resgata a potência de uma antropologia viva, ou seja, tudo o que contribui para o avanço de um projeto de antropologia crítica (e, principalmente autocrítica) que encontra espaço na atual antropologia pós-moderna.
Como bem diagnosticou Cardoso de Oliveira, "no elevar a produção do texto ao nível de reflexão sobre o Escrever, a disciplina está orientando sua caminhada para aquelas instâncias metateóricas que poucos alcançaram realizar" (Cardoso de O., 1996, p 28). Essa habilidade de (auto) reflexividade sistemática (ou "prática metateórica") que hoje se configura como um padrão da disciplina está estampada na quantidade cada vez mais crescente no interior da disciplina de produções sobre o próprio trabalho. "O trabalho do antropólogo" (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996) "A experiência etnográfica" (CLIFFORD, J, 1998); "Ser afetado" (FAVRET-SAADA, 2005); "Trabalho de campo e tradição empírica" (EVANS-PRITCHARD, 1972) ; "Writing Culture" (CLIFFORD, J.;Marcus, G., 1986); "Obras e Vidas - Antropólogo como autor" (GEERTZ, C., 2002) são alguns dos muitos exemplares dessa tendência particular da antropologia que reafirmam o quanto é indispensável a reflexão sobre nossas práticas, i.e. o exercício de revisão pois é por meio dele que se atualizam as teorias, os métodos, os conceitos. É através desse exercício – que precisa ser contínuo - que aperfeiçoamos o que fazemos. Não existe aperfeiçoamento sem crítica e autocrítica.
Roy Wagner explana elogiosamente, já na introdução de seu livro "A invenção da cultura", a dialética intrínseca que distingue a antropologia das demais ciências. Ele ressalta que
O que é notável nisso [na unanimidade ou ordem de que goza a disciplina] não é tanto a persistência de fósseis teóricos (uma persistência que é o recurso básico da tradição acadêmica), mas a incapacidade da antropologia para institucionalizar essa persistência, ou mesmo para institucionalizar qualquer tipo de consenso. (WAGNER, 2010: 13).

Essa "incapacidade" se configura como uma riqueza singular dentro da Academia, fazendo da disciplina um espaço onde a univocidade dá lugar à polifonia – um recurso das etnografias contemporâneas. Tal polifonia também gera debates em torno dela, debates que intencionam problematizar/desmistificar a voz do antropólogo, o lugar neutro, impessoal e onisciente que a objetividade científica nos reserva:
com o crescente reconhecimento da pluralidade de vozes que compõem a cena de investigação etnográfica, essas vozes têm de ser distinguidas e jamais caladas pelo tom imperial e muitas vezes autoritário de um autor esquivo, escondido no interior dessa primeira pessoa do plural. A chamada antropologia polifônica, na qual teoricamente se daria espaço para as vozes de todos os atores do cenário etnográfico, remete sobretudo, no meu entendimento, para a responsabilidade específica da voz do antropólogo, autor do discurso próprio da disciplina, que não pode ficar obscurecido ( ou seja, substituído) pelas transcrições das falas dos entrevistados. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1996: 27)
Assim, (re)lembramos que o texto etnográfico não pode ser tomado tacitamente. Eles nos fazem pensar sobre a questão da "autonomia" – muitas vezes escamoteada - do pesquisador em todo o processo de seu ofício e que, mesmo em textos que se propõem dialógicos, o autor- pesquisador- ocidental na maioria dos casos representa a "última palavra". Dentro disso também se encontra a questão da relação de poder entre pesquisador e nativo, a qual jamais devemos ignorar, posto que paira sobre o pesquisador, o peso da "autoridade etnográfica", que certamente interfere em sua entrada no campo. Jeanne Favret-Saada relata os efeitos desse poder em seus primeiros contatos com nativos:
Os camponeses do Bocage recusaram-se obstinadamente a jogar a Grande
Divisão [entre "eles" e "nós"] comigo, sabendo bem onde isso deveria terminar: eu ficaria com o melhor lugar (aquele do saber, da ciência, da verdade, do real, quiçá algo ainda mais alto), e eles, com o pior.

Esse bloqueio – advindo da invisível porém sólida barreira da "Grande Divisão" - no estabelecimento de relações no campo é o que Cardoso de Oliveira entende por uma ausência de real interação entre pesquisador e pesquisado:
A rigor, não há verdadeira interação entre nativo e pesquisador, porquanto na utilização daquele como informante o etnólogo não cria condições de efetivo 'diálogo'. A relação não é dialógica. Ao passo que, transformando esse informante em 'interlocutor', uma nova modalidade de relacionamento pode (e deve) ter lugar.(CARDOSO DE OLIVEIRA, R., 1996, p.20).

Enquanto que, através de uma perspectiva dialógica sugerida por Cardoso de oliveira, na qual deixamos de ser pesquisador/pesquisado para passarmos a ser somente "interlocutores",
Trocando idéias e informações entre si, etnólogo e nativo (...) abrem-se a um diálogo em tudo e por tudo superior, metodologicamente falando, à antiga relação pesquisador/informante. O Ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única, numa outra, de mão dupla, portanto uma verdadeira interação"(Idem, p.21).

Uma perspectiva que assemelha-se à essa, é encontrada na introdução de "The traffic em in culture", na qual há a defesa de uma "consciência crítica" nativa que compreende os nativos/interlocutores como atores sociais conscientes de sua cultura, imediatamente retirando-os de uma posição passiva em relação ao etnólogo e, logo, expulsando esses últimos de um lugar superior de detentores da verdade sobre a cultura estudada:
Our conception of critical ethnography draws from the notion that social actors have a critical consciousness of their own and broader conditions of life, but one that is imperfect-partial, potential, or minimal (Willis, 1977:119) Beyond the question of "structure" and "agency," critical consciousness, and the potential for political engagement are problems central to recent ethnographic treatments of the knowledge social actors have of their worlds" (Marcus; Myers, 1995: 31-2)

Este posicionamento está inscrito no espectro das preocupações pós-modernas que entendem a prática etnográfica não só como a experiência e a interpretação de outra realidade circunscrita, mas sim como uma negociação construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos. Ou seja, é do confronto entre diferentes "horizontes semânticos" (CARDOSO DE OLIVEIRA, R., 1996: 21) que surge o verdadeiro encontro etnográfico que, por sua vez, desembocará em um texto final, posto que "a confrontação não termina antes da etnografia, mas, se se pode dizer ao fim de tudo, é que ela termina com a etnografia (Vincent Crapanzano, l 977: 10 apud Idem, p. 34).
Em "Writing culture" (Clifford; Marcus, 1986) o tema da escrita etnográfica é discutido exaustivamente, onde se levanta inclusive a hipótese de que as etnografias não passam de obras de ficção opondo-se ao ideal sustentado a partir do exemplo canônico de Mallinowski de que elas deveriam ser representações fidedignas da realidade, como um retrato que consegue abarcar toda a totalidade cultural. Abandonamos essa concepção quando finalmente entendemos que além de ser uma pretensiosa ilusão megalomaníaca de apreender o todo de uma realidade social, ela nos orienta para uma perspectiva reificadora e essencialista de cultura que ignora o caráter dinâmico e disputado da mesma. A crítica à noção estática de cultura - que busca uma suposta "autenticidade" e realiza uma abordagem de traços culturais que não dá conta dos fluxos de conhecimento e dinâmicas que operam mudanças nas configurações de todos os grupos – trouxe também o reconhecimento das narrativas que lutam para definir, essencialmente, o que é cultura tanto dentro da Academia como pelos próprios atores sociais que há algum tempo se utilizam desse conceito como instrumento de resistência política.
Esta atenção dada à textualização e aos conceitos utilizados, nunca será excessiva, dado que "Numa ciência como a nossa, as palavras são os instrumentos de análise e devemos sempre estar preparados para nos desfazer de instrumentos inferiores sempre que haja oportunidade de dispor de melhores" (Radcliffe-Brown, 1973: 169). Ela nos traz a assunção da tensão inerente entre objetividade e subjetividade ou a tensão permanente entre a crítica romântica e o ideal universalista. Bastante acentuada na investigação antropológica, essa tensão está presente nos embates contra o ideal de pureza das ciências positivistas que força o extermínio dos dados sensíveis do texto.
Estamos agora presenciando um momento em que a reintegração dos dados sensíveis à explicação científica toma força dentro das ciências humanas, como observa Lévi-Strauss:
houve um divórcio – um divórcio necessário entre o pensamento científico e aquilo que eu chamei a lógica do concreto, ou seja o respeito pelos dados dos sentidos e a sua utilização como opostos às imagens, aos símbolos e coisas do mesmo gênero. Estamos agora num momento em que podemos, quiçá, testemunhar a superação ou a inversão deste divórcio, porque a ciência moderna parece ser capaz de progredir não só segundo a sua linha tradicional – pressionando continuamente para frente, ma sempre no mesmo canal limitado – mas também, ao mesmo tempo, alargando o canal e reincorporando uma grande quantidade de problemas anteriormente postos de parte (LÉVI-STRAUSS, 1987: 22)

Textos que defendem um maior experimentalismo e a reabilitação da "velha sensibilidade" (FAVRET-SAADA, 2005: 155) no trabalho de campo ganham cada vez mais espaço e repercussão. A vivência do pesquisador no campo passa a ser mais valorizada, inclusive como um fator estratégico na interpretação dos dados, a partir das memórias – antes tratadas com indulgência - evocadas no ato de elaboração do texto (CARDOSO DE OLIVEIRA, R., 1996: 31). Emerge com força a crítica à teoria desencarnada ou a preponderância desta sobre as vivências, menosprezadas como geradoras de hipóteses:
No meu entender, há um certo equívoco nessa redução da observação participante e a empatia que nela tem lugar, a um mero processo de construção de hipóteses. Entendo que tal modalidade de observação realiza um inegável ato cognitivo, desde que a compreensão (Verstchen) que lhe é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de "excedente de sentido", i.e., aquelas significações (por conseguinte, dados) que escapam a quaisquer metodologias de pretensão nomológica. (Idem, p. 21-2)
Surgem os empréstimos entre arte e antropologia, como por exemplo a influência da colagem surrealista sobre "o pensamento selvagem" de Lévi-Strauss (1966) e da teoria estética sobre os padrões de cultura de Ruth Benedict (1934), explanados em "The traffic in culture" (Marcus; Myers, 1995:12-13). E as influências estéticas também despontam em "uma viragem da antropologia visual em direção a uma antropologia mais sensorial (Pink, 2006), mais atenta à complexidade do corpo multissensorial" (Campos, R. e Zoettl,P., 2012). Sem falar dos estudos de processos, trajetórias e redes - que tecem nosso mundo e perpassam todos os compartimentos criados para segmentá-las – que devolvem a integridade ao que foi mutilado pelas Grandes Separações institucionais. Todos estes atributos – dádivas - da antropologia que fazem dela um lugar propício ao florescimento de novas alternativas metodológicas e abordagens epistemológicas que busquem sensorizar a teoria - de forma que teoria e experiência sensorial não se reduzam uma à outra, mas se agreguem – e transgredir às formas tradicionais de escrita, não como forma de destruir um rigor mas de buscar esse rigor - se a antropologia é uma disciplina eminentemente qualitativa, logo, seu texto deve afinar-se àquilo que ele trata: os detalhes imponderáveis da vida.
Buscar o ideal do fazer antropológico para que sejamos menos rígidos e mais densos e intensos (e ainda rigorosos) parece ser o caminho para encontrar uma resposta às perguntas enunciadas em "Cultura: um conceito reacionário?" (GUATTARI, F., ROLNIK, S., 1986: 22):
Como fazer com que a musica, a dança, a criação, todas as formas de sensibilidade, pertençam de pleno direito ao conjunto dos componentes sociais? (...) Como abrir - e até quebrar – essas antigas esferas culturais fechadas sobre si mesmas?

Contra a "cultura capitalística" "sempre etnocêntrica e intelectocêntrica (ou logocêntrica), pois separa os universos semióticos das produções subjetivas" (idem, p.23) a antropologia surge como articulação entre esses universos, optando por "por descrever as tramas onde quer que estas nos levem" (LATOUR, 1994: 9), constituindo-se no alcance da micropolítico dos conflitos sociais. Os recursos de que dispõe esta disciplina delineam os critérios que necessitamos para propor que as coisas podem efetivamente ser diferentes do que são e essas tendências insurgentes de multissensorialidade e reconhecimento dos afetos (nosso e dos outros) e de nossa natureza híbrida constituem por si só dinâmicas singulares que desafiam objetivamente a razão atual do poder – insensível aos afetos, às singularidades e às subjetividades. Por tudo isso, a Antropologia pode ser o sonho, se acreditarmos nele.


Bibliografia:
Appadurai, A. (org.). A Vida Social das Coisas: As Mercadorias sob uma Perspectiva Cultural. Niterói: Eduff, 2008
Clifford, James e Marcus, George (orgs.). Writing culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986
CLIFFORD, James. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. 320p.
DUARTE, Luiz Fernando D. (2004), "A Pulsão Romântica e as Ciências Humanas no Ocidente". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 19,
EVANS-PRITCHARD, E.E. "Trabalho de campo e tradição empírica". In: Antropologia social. Lisboa, Edições 70, 1972. Cap. IV.
FAVRET-SAADA, J. "Ser afetado" (tradução de Paula de Siqueira Lopes). Cadernos de Campo, n. 13, p. 155-161, 2005. 
GEERTZ, CLIFLORD. OBRAS E VIDAS: O ANTROPÓLOGO COMO AUTOR. RIO DE JANEIRO: EDITORA -UFRJ, 2002. 204 P.
GINZBURG, Carlo. "Sinais: Raízes de um paradigma indicíario". In: GINZBURG, C. Mitos, Emblemas e Sinais. São Paulo, Companhia das letras, 1986. p.143-180.
GUATTARI, Felix & ROLNIK, Sueli. "Cultura: um conceito reacionário?" In: Cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986. Pp. 15-24

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guarareira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP & A Editora. 2006
LATOUR, Bruno. 1994. Jamais fomos modernos: ensaio de Antropologia simétrica. (Trad. Carlos Irineu da Costa) Rio de Janeiro: Ed.34. [1991]
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e significado. Lisboa: Edições 70, 1987. 81 p.
Marcus, g; mYERS, F., eds, 1995,The traffic in culture: refiguring art and anthropology. Berkeley and london: university of california press
MESOMO, Juliana. Antropologia e Dessubjetivação: De volta ao ponto de partida. Disponível em: . Acesso em: 03 jan. 2017.
MORAES, Alex. A antropologia é nada à vida, mas pode ser o sonho. Disponível em: . Acesso em: 03 jan. 2017.
Radcliffe-Brown, Alfred Reginald. "Tabu". In Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973. Pp. 167-190
Turner, Terence. 1993a. Da cosmologia à história: resistência, adaptação e consciência social entre os Kayapó. In: E. Viveiros de Castro & M. Carneiro da Cunha (org.). Amazônia. Etnologia e história indígena. São Paulo: NHII, USP, Facesp: 43-66.
Turner, Terence. 1993b. "Imagens desafiantes: a apropriação Kaiapó do vídeo". In Revista de Antropologia. Publicação do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, volume 36. São Paulo. pp. 81-122.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo,. Cosac Naify, 2010. 256 p.


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