Mergulho nos usos de \"Dispositivo\" no Campo brasileiro do Cinema
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL DEPARTAMENTO DE CINEMA E VÍDEO LICENCIATURA EM CINEMA E AUDIOVISUAL POR UMA EPISTEME BRASILEIRA DOS DISPOSITIVOS CINEMATOGRÁFICOS I Antes de tudo, gostaria de propor que as frases subsequentes não fossem lidas com os preconceitos da objetividade que ignoram tudo o que não é razão. Peço encarecidamente que, ao se deparar com palavras que lidam com a subjetividade, o leitor se esforce ao máximo por compreender a importância, por exemplo, do devaneio. Aqui vai: Os Campos teóricos das Artes, e do Cinema em particular, expressamme certa esquizofrenia. Valendose de um subjetivismo que permite apropriações conceituais e de certa liberdade poética, os textos se embasam na produção de outras ciências humanas para na primeira curva ignorar o escrito em favor de devaneios. Não que eu veja negatividade nisto, Vejo problemas, que são a possibilidade do movimento. A mim essa esquizofrenia vive no respaldo teórico, no altar construído para a Referência, mas no abandono sistemático da noção original em prol de afirmações outras que apenas apostam no conceito: não estabelecem um diálogo, apenas se propõem a apresentar possíveis novas camadas em torno da ideia; acabam por introduzir discussões pela metade e por não comunicar os limites já delineados do que é proposto. Os autores usam as citações para atingir um “nível de cientificidade”, mas partem da licença poética para tornarem a referência um próximo de nada: há uma simples negação, onde não se explicita nada em diferença ao que foi dito, uma indiferença. Obviamente eu já caí nesta armadilha e inclusive é no próprio feitio deste mesmo texto que me dei conta destas palavras. Espero não cair nessa armadilha. Tal questão está imersa na própria responsabilidade em ser escritor ou educador. Acredito que cabe certo cuidado com o trato das informações aos que, ainda ávidos por mudanças e transformações, são agentes que buscam no diálogo transdisciplinar explicitar a
importância da imagem, do cinema, da educação, da poesia, da subjetividade, das artes, do dispositivo… II Durante boa parte de minha graduação tenho perseguido formas de expressar a pluralidade que me é inerente ao próprio Cinema. Boa parte de meus trabalhos feitos dentro das disciplinas buscaram proposições calcadas na diversidade. Tal trajetória me pareceu urgente por certa tendência à uniformização que perpassa a cultura capitalista e, sem dúvidas, a cinematográfica e a da educação cinematográfica. Assim busquei filmes em janela de retrato, vídeoinstalações que propunham uma relação de “montagem interativa” entre diferentes telas ou telas que se moviam: já que as proposições eram levar o cinema à escola, ao menos me perguntei sobre “qual cinema” levar. Muito apostei em noções como Cinemas, no plural, conceito proposto por André Parente e foi em seus textos que a noção de dispositivo me surgiu com importância. Diz Parente: “Segundo Michel Foucault, um dispositivo possui três níveis ou três camadas. Em primeiro lugar, o dispositivo é um conjunto heterogêneo de discursos, formas arquitetônicas, proposições e estratégias de saber e de poder, disposições subjetivas e inclinações culturais. Em segundo lugar está a natureza da conexão entre esses elementos heterogêneos. E, finalmente, em terceiro lugar está a formação discursiva, ou a episteme, resultante das conexões entre tais elementos. Sob essa perspectiva, podemos dizer que o cinema institucionalizado uma sala escura que conta uma história e nos faz crer que estamos diante dos próprios fatos faz convergir três dimensões em seu dispositivo: arquitetônica, tecnológica e discursiva”. (PARENTE, 2013, p. 21)
Cabe pontuar que Parente defende o termo Cinemas, no plural, o que evidencia
variações dentro e fora da caixa preta. Como percebido, as principais referências sobre o dispositivo estão em Michel Foucault. Alguns teóricos o posicionam no que chamam de estruturalismo enquanto outros distinguem fases pósestruturalistas em sua obra enquanto outros comentadores dizem tudo
isto se tratar de bobagens, construção que seria desmistificada em ‘As Verdades e as Formas Jurídicas’ do próprio autor. “De qualquer forma, o pano de fundo contextual do estruturalismo pode ser caracterizado como composto por um pensamento de desconfiança tanto em relação à idéia de que o discurso mascara a realidade quanto em relação a um profundo pessimismo e uma atitude de crítica da modernidade ocidental. Como destaca Paula (2008), o estruturalismo rivaliza com a tradição de pensamento existencialista, rejeita a noção sartreana de liberdade e concentrase no modo pelo qual o comportamento humano é determinado pelas estruturas culturais, sociais e psicológicas. (...) Para Dosse (2007a), as novas orientações emergentes chamadas de pósestruturalistas, podem ser entendidas como traço de uma geração fortemente marcada pelos acontecimentos de maio de 1968, que propunham a reavaliação do lugar social do sujeito e da prática social por meio de um pensamento que valorizava a ação. Esta reorientação intelectual pode ser entendida como uma nova mudança paradigmática, marcada pela incorporação do tema da historicidade que passa a ocupar o lugar o qual antes era da estrutura. Não se trata, portanto, de um retorno do sujeito, simplesmente. Tratase, como Dosse (2007a) destaca, de uma reorientação da pesquisa para o estudo da consciência problematizada. A identidade histórica, então, é colocada no centro das interrogações. Essa primeira diferença significativa diz respeito à tentativa dos pósestruturalistas em resgatar a história. Este movimento de trazer para o nível de análise os contextos históricos não quer dizer que ocorre, de fato, um questionamento profundo da própria noção de estrutura. Sob um outro aspecto, identificase a atribuição de certa importância aos processos de transformação, descontinuidade e repetição das estruturas” (COSTA, VERGARA, 2012, p. 75).
A mim o conceito de dispositivo é o puro emblema do conflito entre a noção estruturalista e sua “pós”, na medida em que ele se encaixa tanto como um agrupamento de estruturas quanto permite diluições em linhas sendo este último o que contém uma abertura característica da superação delimitadora da estrutura.Agamben busca um resgate do conceito de dispositivo que acaba por afirmar a primeira noção: “O dispositivo tem natureza essencialmente estratégica, que se trata, como consequência, de uma certa manipulação de relações de força, de uma intervenção racional e combinada das relações de força, seja para
orientálas em certa direção, seja para bloqueálas ou para fixálas. O dispositivo está sempre inscrito num jogo de poder e, ao mesmo tempo, sempre ligado aos limites do saber, que derivam desse e, na mesma medida, condicionamno. Assim, o dispositivo é: um conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos tipos de saber e por ele são condicionados.” (FOUCAULT p. 300 apud AGAMBEN, 2009, p. 28)
Dentro do pensamento de Michel Foucault o conceito de Dispositivo surge para designar como o Poder se manifesta pela Sociedade: “(...) o filósofo insiste sobre a importância de se ocupar ‘não do edifício jurídico da soberania, dos aparelhos do Estado, das ideologias que o acompanham’, mas dos mecanismos de dominação”. (REVEL, 2005, p. 39) Deleuze adiciona o conceito de Subjetividade a uma tríade formada pelo Saber e o Poder, trímero que seria emblema da obra do autor francês: “[as linhas] não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras” (DELEUZE, 1990, p. 155) e assim permite que o dispositivo perca o peso da delimitação. Segundo Deleuze, o que talvez reforce esta última acepção, Foucault propõe duas camadas iniciais ao dispositivo: as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação. “Cada dispositivo tem seu regime de luz, a maneira em que esta cai, se esvai (sic), se difunde (sic) ao distribuir o visível e o invisível, ao fazer nascer ou desaparecer o objeto que não existe sem ela (...) As enunciações, por sua vez, remetem para linhas de enunciação nas quais se distribuem as posições diferenciais dos seus elementos; e, se as curvas são elas mesmas enunciações, o são porque as enunciações são curvas que distribuem as variáveis e, porque, uma ciência, em um determinado momento, ou um gênero literário, ou um estado de direito, ou um movimento social definemse precisamente pelos regimes de enunciações. Não são nem sujeitos nem objetos, mas regimes que é necessário definir em função do visível e do enunciável, com suas derivações, suas transformações, suas mutações. E em cada dispositivo as linhas atravessam limiares em função dos quais são estéticas, científicas, políticas, etc..” (DELEUZE, 1990, p. 156).
A Deleuze os dispositivos são máquinas de fazer ver e fazer falar (Parente, p. 22). A Foucault o Saber e o Poder são extremamente articulados, sendo o dispositivo o emblema de
suas conjunções. Com a adição da Subjetividade a estas “grandes instâncias” (DELEUZE, 1990, p. 155), Foucault “transpôs a linha” do dispositivo que delimita através de formas de se chegar ao outro lado. Talvez seja isso o pulo ao pósestruturalismo: “Esta dimensão do simesmo não é de maneira nenhuma uma determinação preexistente que já estivesse acabada. Também aqui uma linha de subjetivação é um processo, uma produção de subjetividade num dispositivo: ela está para se fazer, na medida em que o dispositivo o deixe ou o faça possível. É uma linha de fuga. Escapa às linhas anteriores, escapalhes. O simesmo não é nem um saber nem um poder. É um processo de individuação que diz respeito a grupos ou pessoas, que escapa tanto às forças estabelecidas como os saberes constituídos: uma espécie de maisvalia” (DELEUZE, 1990, p. 157).
Deleuze ainda aponta que
“as diferentes linhas de um dispositivo repartemse em
dois grupos: linhas de estratificação ou de sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade” (DELEUZE, 1990, p. 161) o que me lembra muito a dicotomia instaurada por Rancière entre política e polícia em “A Partilha do Sensível”. Sinto que Rancière faz um uso moral de uma linha de pensamento a qual Deleuze aponta que Foucault delineou em quase que uma “fisiologia”. Talvez seja possível pensar em dispositivos políticos e policiais mas deixo esta tarefa para outro texto. Agamben resume o conceito: “a. [o dispositivo] é um conjunto heterogêneo, linguístico e nãolinguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. o dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c. Como tal, resulta no cruzamento de relações de poder e de relações de saber.” (AGAMBEN, 2009, p. 29)
Observo dois campos que se consolidaram em torno da noção de dispositivo cinematográfico. Um primeiro está mais próximo da acepção exibidora, próximo da discussão da Arte Contemporânea sobre os suportes. Um segundo está dentro do Documentário e busca discutir estratégias de roteiro e produção em um gênero que se propõe
a captar o Real. Tratamse de usos completamente distintos do termo: eu arrisco até a dizer que são dispositivos diferentes. O primeiro busca aproximar os subcampos do audiovisual, mesmo que por relações de diferença; o segundo busca refletir sobre uma estruturação em torno da captação de imagens. Enquanto o último fica predominantemente sobre a Produção, o outro fica pela Distribuição e Exibição. Este segundo campo se apropria do conceito de forma muito específica. Ele de alguma forma é aplicado “microfisicamente”, o que ao mesmo tempo “embanana” tudo, como minha avó diria, mas abre espaço para reflexões outras. Tentarei destrinchar minimamente estas duas linhas, que em muitos momentos se cruzam e se dão nós. O dispositivo exibidor será representado por Felipe Muanis e seu artigo “Cinema: entre o texto e o dispositivo”, enquanto o dispositivo de captação foi abordado por Consuelo Lins e Cezar Migliorin. Outras estratégias moram André Parente, próxima da de Muanis, porém pluralista, enquanto JeanClaude Bernadet já ataca o filme, estrutural, pelo dispositivo mas sem restringilo ao documental.
Heranças de Barthes e Baudry Felipe Muanis busca aproximar a discussão dos escritos sobre arte, onde abarca a discussão de Foucault a partir de René Magritte e seu “Ceci n’est pas une pipe” embora curiosamente a transponha para o campo da Comunicação Social “Podese dizer, portanto, que se evidencia, em tais desenhos, a relação entre seus textos e suas materialidades (...) O desenho de Magritte é apenas mais um exemplo de como meios de comunicação podem transcender o que seria seu conteúdo mais evidente e suas materialidades, ampliando a noção de texto e conseguindo um diálogo diferente com eu leitor” (MUANIS, 2010, p. 83). Muanis está interessado em uma discussão sobre o suporte da obra de arte e da veiculação da informação para conseguir diferenciar os dispositivos Cinema e Televisão a partir da discussão de Roger Chartier sobre a Experiência literária. Esta seria calcada pela liberdade do leitor em detrimento do texto: “[o] texto estar necessariamente suscetível às transformações físicas trazidas pela materialidade do livro (...) é o conjunto “livro” que é absorvido e não apenas o texto em si” (MUANIS, 2010, p. 84), embora também evoque Barthes para incluir esse ato de recepção como constituinte do próprio texto. “O texto, portanto, não se limitaria a si próprio mas se encontraria em seu dispositivo e em todo o espaço de uma vida
social seja do autor, do leitor e da própria edição. (...) Se cada leitor é, em si, um conjunto de textos, o ato de interpretar ganha ainda mais importância pelas inúmeras possibilidades visadas, leituras e variados sentidos que o leitor pode trazer para o texto. ”
(MUANIS, 2010, p.85)
Para discutir o dispositivo cinematográfico Muanis cita as propriedades do texto como sugeridas por Robert Stam, que estariam “no conteúdo do texto, ou seja, na própria narrativa que o filme apresenta; nas marcas de produção do filme que envolvem o fazer cinematográfico, desde a préprodução até as estratégias de distribuição e marketing e, por fim, nos modos de recepção a partir da distinção dos dispositivos de exibição fílmica (MUANIS, 2010, p 87)”. Muanis ao abordar o texto e o dispositivo indica uma proximidade entre estas duas discussões, o quê, ao mesmo tempo em que evidencia uma inflação do texto e exibe uma atrofiação do dispositivo, fortalece uma proposição onde os textos constituem um dispositivo e viceversa embora este não pareça ser o caso em seu artigo. “Sabemos agora que o texto não é uma sequência de palavras liberando um único sentido ‘teleológico’ (a ‘mensagem’ de um autordeus), mas um espaço multidimensional em que uma diversidade de escrituras, nenhuma delas original, fundese e entra em conflito. (BARTHES apud MUANIS, 2010, p. 90 ).
Barthes busca apresentar o texto enquanto um espaço aberto, de construção, enquanto Foucault parece mostrar que mesmo esta abertura está atravessada por linhas, de acordo a Deleuze, que ainda assim condicionariam as experiências. É quase um paradoxo, onde Barthes busca desmistificar o suporte enquanto Foucault busca desmistificar a Experiência. Muanis escreve nesta divisão, que só seria superada em um estudo da obra dos dois primeiros franceses. Muanis opera três divisões em sua discussão sobre o texto e o dispositivo, embora separe uma esfera da outra. Uma primeira divisão trata do que ele evoca como intertextual: desde as efetivamente narrativas como personagens cristalizados na misoginia, estruturas morais calcados em um maniqueismo narrativo em relação à história social ele exclui isso do dispositivo, ao afirmar que “Outro caminho de permeabilidade textual se dá através do dispositivo, que se divide em dois caminhos: o primeiro pela técnica e mecânica do fazer
cinema e a segunda pelas suas possibilidades de exibição” (MUANIS, 2010, p. 87). O autor sublinha os dispositivos de distribuição e exibição e de sustentação midiática dos projetos. O que me salta curioso é não abarcar a própria forma e o conteúdo do filme. Muanis estabelece uma ótima aproximação ao circundar o texto e o dispositivo mas acaba por não perceber o quanto um permeia o outro. Sem contar que ele permanece no circuito do filme comercial, ignorando que este por si só constitui dispositivos específicos nãototalitários. Ao colocar o Cinema entre o texto e o dispositivo, Muanis parece não explorar o último conceito. O professor parece limitado pelo discutido pela crítica francesa de 70, principalmente por Baudry e sua construção sobre A Caverna de Platão.
PósComolli Consuelo Lins inicia seu texto com forte posicionamento.. A ela cabe pontuar o que não é válido discutir como dispositivo e quais seriam seus legítimos representantes, de certo no campo da Realização e, ainda a restringir, documental. No começo de seu artigo ela chega a listar outros tratamentos dado ao conceito e é muito curiosa a sua postura de negação. Sinto que ao restringir quais seriam os documentários que possuem dispositivo em sua base, ela melhor faria se indicasse alguns onde não acredita haver esta relação dispositiva. Curiosamente ela aborda um filme que possui como suporte originário a instalação mas ignora isto dentro da discussão. Importa para Consuelo as estratégias utilizadas na captação de imagens, principalmente as que prescindam da utilização do que ela diz ser o roteiro. A ela um roteiro dita toda a realização e seu uso no documental acaba por ser ditatorial. Tais concepções também buscam um assento em Comolli, principalmente em seus textos preocupados com a questão do Real dentro dos filmes. “Eles [os diretores] fazem filmes que prescindem da feitura de um roteiro em favor de certas estratégias de filmagem que não tem mais por função refletir uma realidade préexistente, nem obedecer a um argumento construído antes da filmagem. (...) É também de modo específico que os dispositivos documentais funcionam. Não é, em absoluto, algo que se dá em todo filme de forma semelhante, estrutural ao cinema como um todo, mas criado a cada obra, imanente, contingente às circunstâncias de filmagem, e submetido às pressões do real (LINS, 2013)”.
Reconheço que a questão do roteiro dentro do Filme Documentário é algo ainda complexo, ainda mais se levarmos em conta posicionamentos como o de Bill Nichols. Percebo que a autora desiste por trabalhar com a noção de Roteiro; as causas deste abandono só posso supor: talvez tenha a ver com a carga que esta função possua dentro das discussões massificadas sobre Cinema, principalmente dentro de estruturas hollywoodianas clássicas de estúdio o Roteiro como aporte e não como uma partida. Dizer que um filme não possui Roteiro mas Dispositivo é sem dúvidas uma forma de chamar atenções para certas questões. Porém, tal ato opera um duplo enfraquecimento por simplificações em torno de cada conceito. Ainda a me demorar nesta questão, penso em equívoco quando me deparo a esta negação do roteiro em “filmes dispositivos”. Seria afirmar que, mesmo em documentários onde exista um roteiro, este documento seja seguido à risca o que é impossível, pois mesmo um olhar do entrevistado pode contradizer imprevisivelmente todo o presumido: sempre há uma abertura. Ela parece confundir o documento roteiro com o procedimento roteiro e busca dar um outro nome, talvez mais vendável e repaginado para o mercado autoral. Ignora a discussão feita por Goddard, com seus roteiros em imagem. Ignora também que o que ela está a chamar por dispositivo, nada mais é que um argumento uma etapa do processo de roteirização , e que os filmes que cita apostam no argumento ao invés de desenvolver um roteiro clássico prévio. Sem contar que muitas vezes Consuelo parece chamar de dispositivo esses filmes dito participativos. Cézar Migliorin é um outro autor que muito tem dado sustento a esta noção de documentáriodispositivo. Sua principal questão gira em torno de que “o que está sendo narrado, documentado, não existe fora do momento da ação do dispositivo. Não tem futuro nem passado. Dissolvese quando o dispositivo é desarmado. Neste sentido, a narração via dispositivo coloca em prática um ao vivo do fato; o que vemos é passado, já aconteceu, mas o que vemos é também um presente não reproduzível, que não se entrega a uma ordem previamente estabelecida, nem se desdobra para depois do que vemos. O acontecimento produzido via dispositivo não explica o passado nem das pessoas, nem dos personagens, nem dos lugares nem dá pistas para o futuro.” (MIGLIORIN, 2005)
Cézar e Consuelo seguem um uso do termo dispositivo utilizado por Eduardo Coutinho, um documentarista brasileiro. Coutinho utiliza o termo ao buscar formas de atingir o acaso. “No caso, a criação passa pela invenção de formas para que o acaso se crie, brote da realidade, apareça porque a obra permite seu aparecimento e não porque é chamado por ela”. Migliorin e Lins seguem as linhas deleuzianas e associam estes projetos como Rua de Mão Dupla e Big Brother Brasil ao dispositivo. Por terem estruturas frouxas, seriam audiovisuais que se encaixam na definição deleuzianas de dispositivo. Curiosamente, um outro termo que Coutinho usou como análogo à dispositivo é o de Prisão o que evidencia influências foucaultianas. Meu problema com a obra de Migliorin envolve a exclusividade da aplicação do termo a certos filmes, criando algo próximo de uma butique às custas do conceito. Não tenho dúvidas de que o dispositivo tenha uma relação íntima com a ativação de um real efêmero, como Cézar afirma. Porém, isto não é exclusivo a determinado tipo de audiovisual, mas sim a todos. Ficção ou não, todos os filmes se enquadram nas próprias afirmações do autor: “O dispositivo se apresenta como um conjunto de regras que organizam o filme impondolhe limites espaçotemporais, controles e descontroles (...)” (MIGLIORIN, 2008, p. 2). Quanto ao acaso, cineastas como Maurice Pialat são casos que evidenciam o quanto ele está presente em cada filme. Os métodos de improvisação deste francês trazem muitos planos que não haviam sido roteirizamos fielmente ao material gravado. O ponto é que, mesmo em filmes como os citados por Migliorin, o acaso perpassa toda a obra, já que a simples escolha do quê e como gravar já delimita possibilidades. Enxergo
redundância
em
termos
como
“filmedispositivo”
e
“documentáriodispositivo”. Todo filme e todo documentário são dispositivos. Todos os filmes são máquinas de ver e saber, estruturas discursivas que jogam luz e escuridão sobre o mundo. JeanClaude Bernadet também utiliza o termo Agradeço a Consuelo e Cézar a aplicação do conceito ao material fílmico e a sua estrutura de produção. Porém, o que eles dizem cabe mais a uma discussão sobre “roteiro aberto”. Uma estrutura produtiva que difere da hegemônica não constitui o dispositivo, mas apenas um dispositivo. Cézar apresenta também outras explorações , principalmente as operações dadas no campo das Artes Visuais e inspiradas pelo Teatro, como uma participação do espectador não
restrita à apreciação, por exemplo. Migliorin já evidencia que o Cinema rumar às escolas implica outras relações de produção, distribuição e exibição, outras que se diferenciam das aplicadas hegemonicamente no mercado. “Quando o cinema sai da sala, do escuro e do ingresso pago, ele se multiplica em formas e dispositivos que as artes visuais estão constantemente renovando: múltiplas telas, projetores móveis, intervenções dos espectadores nas imagens e nos sons, reorganização do espaço e do tempo dos espectadores. Na escola, temos mais um exemplo desse cinema expandido, mas, que se expande naquilo que o cinema inventou de mais forte em sua história: formas de ver e inventar o mundo”. (MIGLIORIN, p. 185)
Migliorin parece ampliar as acepções de Dispositivo quando passa a pensar a Escola e a Educação. Ao seguir a proposição de Alain Bergala em torno de pedagogia da criatividade, Cézar passa a reconhecer pequenos exercícios a serem aplicados em espaços educativos, aos quais também chama por dispositivo.
Tudo são dispositivos. Seguir Agamben com sua proposição de dispositivo enquanto camadas discursivas limitadoras envolve reconhecer que tudo é dispositivo. Corro o risco de generalizar, mas enxergo em tudo a potência de máquina subjetivadora. Não uma banalização do conceito, mas sim uma explicitação da diversidade que existe no campo das Artes, o que sem dúvida contribui para que o campo do Cinema abandone suas relações de uniformidade, como as que são reproduzidas em instâncias formativas enquanto uma única forma de fazer Cinema (e Televisão e Audiovisual e Teatro e Pintura…). Os dispositivos então estão envoltos nas diferentes camadas que constituem não só a Obra, como também o Artista e o próprio Campo. Dispositivo é esta interconexão entre todas as variáveis que constituem uma função específica e, em minha opinião, é um conceito que pode ser operado em diferentes escalas buscando tanto macro quanto microfísicas. Discutir os dispositivos cinematográficos envolvem suas três macroáreas: produção, distribuição e exibição. Na produção atravessase todos os departamentos envolvidos na realização fílmica: o estado da tecnologia, do ambiente, das condições de trabalho e
financiamento da obra; são múltiplos os aspectos que tornam extremamente plurais os dispositivos cinematográficos. O sistema de estúdios permitia linhas por seu próprio funcionamento: as producters units consolidavam trabalhos de formas específicas, na medida em que em muitos momentos os produtores de estúdio tinham mais controle sobre os filmes que os diretores, em detrimento das directors units . Quando Rossellini opta por utilizar nãoatores em um filme sobre Luís XIV para a televisão, como é o caso de “La prise du pouvoir pour Louis XIV ou quando Pialat solta de surpresa uma galinha e um cachorro durante a cena ou amarra os atores a uma mesa para atuarem também há a consolidação de dispositivos distintos. A encenação por pantomima e logorreia também. A divisão de trabalho em um set influencia o dispositivo. O financiamento público, os castelos europeus, a existência ou não de um production designer influenciam o dispositivo. O filme de curtametragem “ Hidden Agenda ” tratase de uma produção universitária realizada em um estúdio público do que arrisco dizer ser um filme sem apelo comercial. Nesta produção, todos os profissionais presentes no platô vestiam fones de ouvido ligados em altíssimo volume. Tal aparato constituía a premissa que se enfatizava no dispositivo: nenhum técnico ou diretor poderiam dialogar entre si. Cada um deveria executar minimamente o seu trabalho, de acordo com os seus desejos e disso sairia o filme. O curta ter sido feito dentro de uma graduação, que pode elogiar ou não o sistema de divisão de trabalho, o circuito restrito de curtametragens e o corporativismo que permeia os festivais e o acesso gratuito a bens público são fatores que compõem o dispositivo dentre outros. Para além do quanto o cinegrafista detinha de conhecimento para operar os equipamentos, para além do roteiro que existia ou não, os fatores que atravessam um dispositivo são quase infinitos na medida em que abarcam todas as esferas sociais e ambientais. A exibição é um outro fator que pluraliza o cinema, na medida em que as salas de exibição nunca foram as mesmas. Exemplo é a constante “shoppinização” das salas de cinema e suas concentrações sob grandes empresas que constroem complexos cinematográficos. Podem haver semelhanças, mas cada sala de cinema concretiza um aspecto específico de um dispositivo: a localização, a programação, a concorrência com outros bens culturais e até a alimentação atravessam muitos outros dispositivos em uma estrutura tão complexa que até perde este nome.
Para além da existência ou não de roteiros ou as vídeoinstalações e o cinema nos museus, o termo dispositivo possui uma complexidade potente, que permite interligar muitas esferas em torno de um objeto: a pluralidade das discussões
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