Metáfora e acaso

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Metáfora e acaso1 Fábio Ramos Barbosa Filho

Non posseva Teseo dimostrare la sua virtù se non trovava li Ateniesi dispersi. Niccolò Machiavelli2

“Capítulo VI”

De todos os capítulos de “O Príncipe”, o sexto (“Dos principados novos que se conquistam com armas próprias e com virtù”) é o que mais me chama atenção. Sim, o livro é inteiro desconcertante. É nele que vemos a tensão fundadora de uma educação real especular, frente à crise crescente entre o político e o espiritual, entre a moral e a técnica de governo, de uma formação real baseada na virtude para uma ciência do Estado e da conjuntura3 que vai se consolidar mais fortemente a partir da obra de Thomas Hobbes, na aventura do saber político entre a ética e estatística4. É nesse capítulo que a questão de um príncipe novo, tanto no quadro do pensamento político (não mais uma moral universal e categórica, mas os jogos de semblante, onde intervém a figura da raposa) quanto no quadro da conjuntura política italiana, se integra à questão de como pensar, como bem disse Antonio Negri5, o novo diante da ausência (de condições). É justo, então, que uma nova palavra, ocasião, apareça para integrar o quadro de relações entre virtù e fortuna, frente à tensão entre uma antiga

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Este texto é fruto de questões, de pontos de convergência/divergência, dúvidas e inquietações legítimas (porque pulsantes) do meu trajeto de leitura(s), do meu percurso como leitor de Michel Pêcheux e Louis Althusser. Longe do desejo de responder (fechar) uma questão – ou várias – posta por uma relação que nem foi formalmente colocada, busco aqui pensar alto e montar um cenário que, talvez, possa estimular outras questões (mesmo para mim) em torno do encontro entre uma teoria do acaso e uma teoria materialista do sentido e do discurso. 2 Na edição brasileira: “Não poderia Teseu demonstrar sua virtù se não tivesse encontrado os atenienses dispersos” (Maquiavel, 1996, p. 24). A edição em italiano consta em referência como Machiavelli, 2008. A ênfase em negrito nas duas citações é minha. 3 “Não há norma universal da virtù, porque seu domínio é aquele, instável, em perpétua mutação, das coisas submetidas ao movimento do tempo. A dissociação maquiaveliana da ação política em relação à moral, tão frequentemente imputada, por seus censores, a um perverso prazer de dominar, encontra aqui, longe de qualquer hipótese diabolizante, sua verdadeira necessidade. Ela se deve ao fato de o homem estar ligado, em cada uma de suas escolhas, a uma quantidade de fios temporais, que formam como uma rede de variáveis qualitativas. Assim, Maquiavel explica, numa página notável, que “a variação do bem (la variatione dei bene)” depende “do caráter dos tempos (dalla qualita de' tempi)” (Senellart, 2006, p. 241). 4 A esse respeito ver toda a primeira parte de Senellart, 2006. 5 Negri, 2014. 1

e uma nova ordem. Mas, para além da dimensão política e filosófica, esse capítulo é também o cenário no qual podemos ler frases intrigantes como “nada lhe faltava para reinar, exceto um reino” (MAQUIAVEL, 1996, p. 164) e a brilhante passagem que faço questão de trazer na íntegra: Era necessário, portanto, que Moisés encontrasse no Egito o povo de Israel escravizado e que este se dispusesse a segui-lo. Era preciso que Rômulo não se contentasse com Alba e tivesse sido abandonado ao nascer, para que se tornasse rei de Roma e fundador daquela pátria. Era preciso que Ciro encontrasse os persas descontentes com o império dos medas e estes debilitados e afeminados pela longa paz. Não poderia Teseu demonstrar sua virtù se não tivesse encontrado os atenienses dispersos. Essas ocasiões, portanto, fizeram esses homens afortunados, e sua excelente virtù fez com que reconhecessem a ocasião (ibidem, p. 24-25)

Passagem sintomática desse capítulo e, principalmente, anúncio de uma tradição filosófica que vai se desenhar 6 a partir dessa arquitetura do possível evocada e desenvolvida por Maquiavel (não só, evidentemente, nesse capítulo). E é, pois, justamente entre o “era preciso...” e o “para que...”, em um quadro onde “não se raciocina dentro da Necessidade do fato consumado, mas na contingência do fato a ser consumado” (ALTHUSSER, 2005 [1982], p. 14), que se instaura o golpe maquiaveliano tanto contra a tradição teológico-política das artes de governar quanto contra a teleologia filosófica assentada na tradição aristotélica.

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Antes de prosseguir diretamente ao texto, não posso não levar em conta o fato de que essa leitura de Maquiavel é retrospectiva e situada em outra: a leitura que Louis Althusser faz do filósofo7 italiano (especificamente no seu texto “L’unique tradition materialiste”8). Althusser, além de considerar o secretário florentino um filósofo

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Não como ponto de partida, mas como espaço vazio ocupado pelas filosofias do Fim e da Causa, que a intervenção de Maquiavel vai justamente (permitir) colocar em questão. 7 “Qu'on me permette à cette occasion de poursuivre sur Machiavel pour insister sur quelques remarques théoriques: sur cet extraordinaire penseur et philosophe (je dis bien philosophe) qu'est Machiavel” (Althusser, 1993, p. 99), que eu traduzo como “Permitam-me esta oportunidade de continuar sobre Maquiavel para enfatizar algumas observações teóricas: sobre este extraordinário pensador e filósofo (eu disse filósofo) que é Maquiavel”. Em outro texto, Althusser afirma: “Poder-se-á dizer que, neste caso, se trata somente de filosofia política, sem enxergar que há ali, ao mesmo tempo, uma filosofia em funcionamento” (Althusser, 2005a [1982], p. 14). 8 Althusser, 1993. 2

(responsável por introduzir justamente o vazio na filosofia9), busca pensar a sua relação teórica com os conceitos de acaso e conjuntura. Nesse texto, o filósofo francês vai dizer que há em Maquiavel um movimento de rompimento com a causalidade mecanicista platônica/aristotélica. Se em Aristóteles há uma relação de consequência (conséquence), em Maquiavel há uma relação de consecução (consécution), onde não está mais em jogo uma relação entre causa e efeito, mas uma relação entre o se e o logo. Não há, então, mais uma causa inicial (ou uma essência), mas uma consecução de condições que colocam em cena uma conjuntura sem causa originária. Ao mesmo tempo, esse movimento coloca também em questão a distinção fundamental entre o a priori kantiano e a existência material que aparece tanto em Maquiavel quanto em Marx. Não posso, também, deixar de falar algo – mesmo antes de efetivamente começar o texto – a respeito do vazio, devido à estranheza que esse conceito pode causar quando confrontado a uma teoria materialista do discurso. De fato, essa palavra não desempenha nenhuma função teórica no percurso teórico de Michel Pêcheux10, mesmo que o filósofo tenha dado em seus escritos uma importância fundamental à questão do não-dito e, sobretudo, ao primado do não-dito sobre o dito. É justamente na relação entre vazio e materialidade que eu gostaria de antecipar uma possível contradição. A relação entre a língua enquanto base (equívoca) material e a materialidade da história (e do sujeito, da ideologia...) é o sustentáculo da teoria materialista do sentido. E de fato a questão do vazio, se tomada numa perspectiva idealista pode efetivamente significar começo, devolvendo ao trabalho teórico a teleologia da origem e do fim, a negação das estruturas, a negação dos processos históricos, etc. Aqui, ao falar de vazio, não busco deslocar e nem apagar o peso da história11 pois o vazio não é o esquecimento do passado e nem a negação da conjuntura, mas o vazio de causa, de essência e de origem12. É por isso que é necessário ressaltar nesse ponto específico a importância do conceito de totalidade para evitar, justamente, o desvio idealista: ao invés de ser diluída, a conjuntura ganha força. Além disso, é fundamental, como tentarei mostrar mais adiante, que o vazio seja pensado 9

“Cette introduction du vide en philosophie, reprenant la vieille et prodigieusement féconde intuition de Démocrite et Épicure, puis plus tard de Pascal et plus tard encore de Kant, Hegel et Marx, désigne la vraie tradition matérialiste en philosophie”, que traduzo como “Essa introdução do vazio na filosofia, tomando a velha e prodigiosamente fecunda intuição de Demócrito e Epicuro, depois mais tarde de Pascal e depois de Kant, Hegel e Marx, designa a verdadeira tradição materialista em filosofia” (Althusser, 1993, p. 102) 10 Na obra fundamental de Eni Orlandi (Orlandi, 2007) há uma análise a respeito das relações entre silêncio e sentido que muito contribui para o debate em torno do funcionamento da língua face ao primado do nãodito. 11 A esse respeito, ver as interessantes observações críticas de Vittorio Morfino (Morfino, 2005b), especialmente da página 19 à página 21 e também, de forma mais incisiva, em Morfino, 2005a. 12 “[...] le rien de cause, d'essence et d'origine” (Althusser, 1993, p. 104) 3

a partir do encontro e não o contrário13. É desse lugar que desejo começar a reflexão e são esses os pontos que gostaria de precisar (ou ao menos tangenciar) ao longo do texto.

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Quero também marcar o ponto – não de partida, mas de encontro – que me possibilitou pensar essas questões. Foi através da leitura dos textos pioneiros e de Labandeira14 (2008) e Zoppi-Fontana (2009) a respeito da relação entre o materialismo aleatório e a obra de Michel Pêcheux, que comecei a pensar mais incisivamente a produtividade teórica dessa região como um lugar privilegiado para compreender o funcionamento

da

metáfora

na

relação

língua/história,

a

questão

da

reprodução/transformação15 e as minhas inquietações sobre a questão do silêncio16 (que também – e antes – me fez pensar o lugar do acaso, do encontro e da metáfora), servindo para mim como mais um ponto de ancoragem. É frente a esse encontro que eu desejo, em suma, pensar o funcionamento da metáfora na sua relação com o possível, onde a questão do sentido se junta à constituição do sujeito (por um único e mesmo encontro) frente ao funcionamento da reprodução/transformação das relações (sociais) de produção17. Esse é um modo específico de pensar a relação entre os domínios do linguístico e do político tendo como

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Essa ênfase está muito bem desenvolvida em Morfino, 2005b. Marco, de início, um ponto de distinção entre a perspectiva de Labandeira a respeito da relação entre os textos tardios de Althusser e a obra de Michel Pêcheux. Labandeira (2008) parte do pressuposto que Pêcheux não conhecia a produção “tardia” de Althusser, pois esta só foi editada e publicada após a morte de ambos. Procurei, aqui, deslocar o argumento cronológico para um argumento teórico, o da problemática da transformação e do possível, que considero ser um elemento fundamental tanto no projeto filosófico de Althusser (uma filosofia para o marxismo) quanto na construção de uma semântica materialista. Além disso, gostaria de chamar atenção para o fato de que o conceito de “tardio”, que já foi problematizado por Ipola (2012), nos expõe ao fato de que o materialismo aleatório na verdade não é produto de uma reflexão tardia, mas um conjunto de problemáticas laterais que atravessam toda a produção althusseriana até ganharem o estatuto de problemática fundamental. A montagem que busquei fazer mostra que o paradigma cronológico não é suficiente para dar conta das relações entre o empreendimento de Michel Pêcheux e o materialismo do encontro esboçado por Althusser, sendo mais interessante pensar na natureza das problemáticas específicas dos autores em cena. Morfino (2005a) também marca pontos de relação entre a produção dos anos 60 e a produção tardia (anos 80) de Althusser onde não há uma subversão temática ou uma completa reformulação de problemática, mas um aparecimento “ao centro da reflexão filosófica aquilo que estava à margem nos escritos dos anos 1960” (ibidem, p. 136-137). 15 Aproveito esse lugar para agradecer a presença de Mônica Zoppi-Fontana que além de ter escrito o texto citado acima (Zoppi-Fontana, 2009), traduziu o texto de Althusser (Althusser, 2005a [1985]) o que me possibilitou a sua leitura em 2010. 16 Orlandi, 2007. 17 A esse respeito, é notório o peso da terceira parte do “Semântica e Discurso”, intitulada “Discurso e ideologias”. Ver Pêcheux, 1997a a partir da página 142. 14

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espaço fundamental as contribuições teóricas dos textos “tardios”18 de Louis Althusser em relação direta com as proposições de Michel Pêcheux19.

1. Uma filosofia do vazio “-Eu não gosto da dialética”, disse Althusser 20. E é assim que ele, enfaticamente, propõe uma démarche em relação a uma “filosofia marxista” que nunca existiu21, senão sob a montagem precipitada (e necessária) de Engels22, numa conjuntura política que demandava uma resposta teórica. Para demarcar uma distância filosófica da dialética (e da sua necessária forma teleológica), essa “concepção metafísica nefasta da Academia de Ciências da URSS, que colocou a ‘matéria’ no lugar do ‘Espírito’ ou da ‘Ideia Absoluta’ hegeliana” (ALTHUSSER, 1988, p. 21), Althusser traz à tona uma corrente subterrânea “quase completamente ignorada na história da filosofia” (ALTHUSSER, 2005 [1982], p. 9) porque perigosa e, por isso mesmo, recusada mas jamais negligenciada23. Uma 18

Os textos são “Sur la genèse” (carta escrita em 1966), “A corrente subterrânea do materialismo do encontro” (de 1982), “A única tradição materialista” (de 1985). As referências são, respectivamente Althusser 2012; 2005a; 1993) 19 Especificamente em seus textos “Semântica e discurso” (1997a [1975]), “Delimitações, inversões, deslocamentos” ([1990] 1982), “Metáfora e interdiscurso” (2011b [1982]) e “Só há causa daquilo que falha...” (1997b), este último, um texto escrito em 1978, de acordo com Denise Maldidier, e publicado em 1982 como anexo na primeira tradução para o inglês do “Verités de La Palice”. 20 “[...] je n’aime pas la dialectique” (Althusser, 2005b [1986], p. 182). A esse respeito ver também o comentário de Labandeira (2008, p. 41) e a entrevista de Althusser a Fernanda Navarro (Althusser, 1988), especialmente das páginas 25 a 35. 21 Nesse sentido é sintomático o título do texto de Althusser no volume 1 do “Ler O Capital” (“Do Capital à filosofia de Marx”), onde é negado veementemente um suposto percurso de elaboração que em Marx levaria do filosófico ao científico, onde uma maturação do pensamento sobre a história levaria ao conhecimento efetivo das relações sociais (onde, efetivamente, o materialismo dialético teria lugar como o substrato filosófico desse investimento científico). É justamente contra essa leitura que Althusser propõe o materialismo aleatório como uma filosofia subterrânea não de Marx, mas para o marxismo. 22 Althusser vai afirmar, na entrevista a Fernanda Navarro: “Es importante señalar que Marx nunca pronunció el término ‘materialismo dialéctico’, este ‘logaritmo amarillo’ como gustaba llamar a los absurdos teóricos. Fue Engels quien, en determinada circunstancia, bautizó al materialismo marxista de materialismo dialéctico. Marx lamentó no haber escrito uma veintena de páginas sobre la dialéctica. Todo lo que se conoce de él sobre ese punto (además del juego dialéctico de los conceptos de la teoría del valortrabajo) se encierra em esta bella frase: ‘La dialéctica, que con mayor frecuencia ha servido a los poderes establecidos, es también crítica y revolucionaria’” (Althusser, 1988, p. 22) que eu traduzo como: “É importante assinalar que Marx nunca proferiu o termo ‘materialismo dialético’, este ‘logaritmo amarelo’, como ele gostava de chamar os absurdos teóricos. Foi Engels quem, em uma circunstância determinada, batizou de materialismo dialético o materialismo marxista. Marx lamentou não ter escrito algumas páginas sobre a dialética. Tudo o que se sabe dele sobre esse ponto (além do jogo dialético dos conceitos da teoria do valor-trabalho) se encerra nesta bela frase: ‘A dialética, que na maioria das vezes serviu aos poderes estabelecidos, é também crítica e revolucionária’”. Mesmo sendo a Engels tributado o título de criador do materialismo dialético (fato ressaltado na citação anterior pelo próprio Althusser), Balibar (2014) afirma que mesmo em Engels só aparece a expressão dialética materialista. A expressão materialismo dialético é de autoria de Joseph Dietzgen em 1887. A esse respeito, cf. Balibar, 2014, na página 30. 23 “Consequentemente, muito cedo, foi interpretado, recusado e distorcido como um idealismo da liberdade” (Althusser, 2005a [1982], pp. 9-10). 5

filosofia do desvio como “origem” (não a Razão ou a Causa), mas o desvio, e que longe de tentar se impor (ou se propor) como a filosofia do marxismo (ou filosofia marxista) se coloca como uma filosofia para o marxismo. Por meio de alguns nomes (materialismo do desvio, da pega, da chuva), ele vai resumir essa corrente como [...] um materialismo do encontro, portanto, do aleatório e da contingência, que se opõe, como pensamento totalmente outro, aos diferentes materialismos recenseados, inclusive o materialismo correntemente atribuído a Marx, Engels e Lenin, o qual, como todo materialismo da tradição racionalista, é um materialismo da necessidade e da teleologia, isto é, uma forma transformada e disfarçada de idealismo (idem)

O materialismo dialético é aqui categorizado como o marxismo “correntemente atribuído” a Marx. Em um só golpe, Althusser recusa o dogmatismo dos manuais da “filosofia marxista” (que é enfaticamente chamado de idealismo) e anula qualquer possibilidade de pensar o possível no quadro de uma teoria da Causa e do Fim, a não ser por uma “ilusão jurídico-filosófica” que transforma o pensamento teórico em leis e normas dedutíveis da “ciência” e o fato consumado em necessidade. Portanto, a recusa da dialética toma para Althusser a forma de uma rejeição enfática de qualquer filosofia da Causa e do Fim. E ao passar por Maquiavel (“o maior de todos”24), Spinoza, Hobbes, Rousseau e Heidegger, Althusser chega a Marx25 no lugar preciso onde o pensador alemão desenha o “surgimento aleatório” do modo de produção capitalista, justamente num encontro (entre o homem com dinheiro e o trabalhador livre). Encontro que não só pegou, mas durou. São as consequências dessa tomada de posição em filosofia que colocam em xeque a questão das causas (e mesmo a questão da Causa) e coloca o vazio (e o fazer vazio) como fundamento, negando qualquer filosofia da origem, do começo, da gênese e radicalizando o primado do processo. Althusser afirma: À velha pergunta: “Qual é a origem do mundo?”, esta filosofia materialista responde: “o nada” – “coisa alguma” –, “eu começo por nada” – “não há começo, porque não existiu nunca nada, antes de qualquer coisa que seja”; portanto, “não há um começo obrigatório para a filosofia” – “a filosofia não começa por um começo que seja sua origem”; ao contrário, ela “pega o trem andando”, e pela força do braço “sobe no comboio” que passa desde toda a eternidade, como a água de Heráclito, [na] sua [frente]. Portanto, não há fim nem do mundo, nem da história, nem da filosofia, nem da moral, nem da arte ou da política etc. (ALTHUSSER, 2005a [1982], p. 25)

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Althusser, 2005b [1986]. Ao chegar em Marx, Althusser chega quase ao mesmo tempo em Darwin. Essa “cronologia” é sintomática de uma relação fundamental ao materialismo aleatório que é detalhada de maneira instigante em Morfino, 2005b. 25

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O texto, a despeito da sua constituição 26, é de grande peso filosófico e poderíamos, sem dúvida, escolher diversos pontos de ancoragem. No entanto, o que me interessa aqui (para desenvolver as inquietações em torno da metáfora e do acaso na teoria materialista do discurso de Michel Pêcheux) é um ponto bastante específico: o desenvolvimento de uma filosofia que tem como fundamento o “primado do encontro sobre a forma” ou o “primado da relação sobre os elementos”27 e que coincide, ao meu ver, em absoluto com o que Michel Pêcheux havia denominado28 o primado da metáfora sobre o sentido. E partindo dessa escolha, devo fazer uma observação. Já que essa filosofia nega, em primeiro plano, a mecânica causa/efeito (e o seu consequente “necessitarismo”29) é importante frisar que aqui o sentido de primado não significa “primeiro por natureza” (Aristóteles), mas a prioridade da totalidade sobre os elementos30, como tentarei mostrar ao tratar, mais adiante, da questão da gênese em Althusser. Para detalhar esse ponto, gostaria de pensar, rapidamente (e de forma esquemática), sobre a questão da causa (e da causalidade) na filosofia.

1.1 Causa e efeito

Correntemente, a causalidade é definida na filosofia como uma conexão (relação) determinada entre duas coisas sendo a segunda previsível (ou dedutível) diante da primeira31. É Aristóteles que vai afirmar, pela primeira vez na história da filosofia, a descoberta das causas como o próprio fim do conhecimento filosófico. Para o filósofo, a causa é necessária à coisa, há uma substância, uma essência própria (uma causa primeira) a cada objeto. Conforme pontua Abbagnano, a doutrina de Aristóteles demonstra a estreita conexão entre a noção de causa e a de substância. A causa é o princípio de inteligibilidade porque compreender a causa significa compreender a organização interna de uma substância, isto é, a razão pela qual uma substância qualquer (p. ex., o homem, Deus ou a pedra) é o que é e não pode ser ou agir diferentemente. (ABBAGNANO, 2007, p. 125)

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A esse respeito, ver os interessantes comentários de Montag (2013) a respeito da montagem dos manuscritos que deram origem ao texto publicado. 27 Morfino, 2005b. 28 Pêcheux, 1997a. 29 De acordo com Abbagnano (2007), este é o termo utilizado pelo filósofo Charles Sanders Peirce para designar a necessidade (da relação causa/efeito, por exemplo) como pressuposto das relações entre as coisas. 30 Morfino, 2005b. 31Abbagnano, 2007, p. 124 7

Descartes, por sua vez, vai afirmar que “a causa é o que dá a razão do efeito, demonstra ou justifica sua existência ou suas determinações” (ibidem, p. 126). Em suma, “a causa é o que permite deduzir o efeito” (idem). Vale ressaltar que esse é o traço característico das ciências do século XIX e que ele só é abalado posteriormente, devido ao desenvolvimento das matemáticas32 e da física frente à questão da probabilidade33. Mas ainda no domínio filosófico, é Hume quem vai afirmar a “não-dedutibilidade do efeito a partir da causa” (ibidem, p. 128), seguindo as indagações de Ockham, filósofo do século XIV, a respeito da arbitrariedade frente à relação causa/efeito. Já Leibniz, seguindo a tradição aristotélica da causa como “princípio de dedução”, como fundamento, afirma que nada pode acontecer fora de uma causa34, onde podemos deduzir (em Leibniz, mas também em Hegel) o que Morfino chama de “primado da teleologia sobre a relacionalidade” (MORFINO, 2005b, p. 16). Mas é efetivamente no campo científico que as relações de causalidade serão fortemente combatidas. Abbagnano afirma que foi só com o progresso da física subatômica e com a descoberta, devida a Heisenberg, do princípio de indeterminação (1927), que o princípio de causa sofreu um golpe decisivo. A impossibilidade, estabelecida por esse princípio, de medir com precisão uma grandeza, sem prejuízo da precisão na medida de uma outra grandeza coligada, torna impossível predizer com certeza o comportamento futuro de uma partícula subatômica e só autoriza previsões prováveis do comportamento de tais partículas, com base em verificações estatísticas (ABBAGNANO, 2007, p. 130)

A causa que, invariavelmente, encontra a noção de origem35 é diluída enquanto conceito ou premissa soberana, pois não se pode negar que os “progressos da ciência tornaram as inúteis discussões dos filósofos sobre o fundamento, o alcance e os limites do princípio de causa” (idem). Negar uma causa (e a Causa) não significa, no entanto, negar condições, mas negar que as condições tenham qualquer coisa a ver com uma origem.

1.2 Gênese e acaso Vejamos então como vai funcionar a crítica específica de Althusser à noção de causa a partir de duas intervenções pontuais: a sua “teoria” do encontro (destinada 32 “Os

progressos da física, que marcaram a queda da noção de causa exigem a substituição do determinismo causal clássico pelo determinismo condicional” (ibidem, p. 171) 33 “[...] finalmente a mecânica quântica tende a substituir a noção de causa, que parecia indispensável aos cientistas e metodologistas do século passado, pela de probabilidade” (ibidem, p. 128) 34 Ibid, p. 126. 35 Em Hegel, por exemplo, causa como “coisa originária” (ibidem, p. 128) 8

justamente a substituir a noção ideológica/religiosa de gênese36) e a proposição de uma filosofia do resultado37 oriunda, sobretudo, do pensamento maquiaveliano. Althusser vai nos mostrar, ao tratar da relação entre Maquiavel (como um pensador do possível) e as filosofias da Causa e do Fim (em suma, a teleologia), a distinção entre efeito (como fato consumado necessário) e resultado. Nessa intervenção, Althusser dirá que pensar o resultado não significa pensar no efeito enquanto determinado por uma causa (necessária), mas pensar no resultado como um encontro aleatório sem nenhum sentido (ou fim) prévio ao encontro (contingente). É nesse sentido que Althusser propõe fazer o vazio para pensar a necessidade aleatória38 do resultado. Como ele mesmo diz, [...] uma filosofia do resultado não é, de modo algum, uma filosofia do efeito como fato consumado da causa ou da essência anterior mas, ao contrário, uma filosofia do aleatório onde o resultado é a expressão factual, um resultado dado de condições dadas que poderia ter sido outro. Um resultado com restos, margens, com resíduos, etc (ALTHUSSER, 1993, p. 104)39

Ora, vimos que na filosofia de Aristóteles, Descartes, Leibniz, Hegel existe um primado da causa sobre o efeito (se existe efeito é por que existe causa) e o trabalho filosófico deveria se debruçar justamente nesse processo de dedução da causa através e por meio dos efeitos. Althusser vai pensar justamente no contrário. A questão que se coloca é: o resultado existe e não é um epifenômeno de uma causa, mas o efeito de um processo onde elementos que flutuam em um sempre-já-lá40 se encontram, pegam e duram. Dessa forma não devemos remontar (no sentido de deduzir ou reconstruir) o processo de formação de um efeito sobre uma causa, mas compreender o resultado em seu funcionamento específico e os seus elementos em suas próprias (específicas) genealogias. Está posta aqui a contradição entre telos (fim) e alea (sorte, acaso) num cenário filosófico onde “a origem é desvio e não razão” (MORFINO, 2005b, p. 17). É desse modo que se abre quase como pano de fundo do materialismo do encontro, uma teoria do possível não como sucessão de leis, mas como encontro de contingências41. Althusser vai resumir dizendo que 36

Althusser, 2012 [1965]. Althusser, 1993. 38 Termo empregado por Vittorio Morfino (Morfino, 2005b) 39 “[...] une philosophie du résultat n'est en rien une philosophie de l'effet comme fait accompli de la cause ou de l'essence préalables, mais tout au contraire une philosophie de l'aléatoire dont le résultat est l'expression factuelle, un résultat donné de conditions données qui aurait pu être autre. Un résultat avec restes, avec marges, avec résidus, etc.”. 40 “Toujours-déjà-donnée” (Althusser, 2005c [1965]). 41 Essa tomada de posição em filosofia é determinante na conjuntura política: em filosofia, porque abre o espaço teórico para uma teoria do possível e do resultado fora do finalismo e da teleologia. Em política, 37

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a história não é mais do que a revogação permanente do fato consumado por um outro fato indecifrável a consumar-se, sem que se saiba antecipadamente nem onde, nem como o acontecimento de sua revogação se produzirá. Simplesmente chegará um dia em que as cartas serão redistribuídas e os dados serão lançados novamente sobre a mesa vazia (ALTHUSSER, 2005a [1982], p. 14)

É aqui que penso ser importante situar de modo mais preciso a noção de vazio 42 que, de acordo com Morfino (2005b), tem em Althusser uma função retórica e não teórica. Tem a tarefa, justamente, de apontar (e radicalizar) a diferença entre uma concepção teleológica (telos) e outra aleatória (alea). Conforme fiz questão de sublinhar acima, o vazio não pode ser compreendido como o apagamento da materialidade43 (da história, da língua, da ideologia...), mas como uma noção fundamental para marcar um distanciamento, um ponto de ancoragem na rejeição de qualquer problemática centrada na gênese, no começo e no fim. Althusser, sobre isso, vai dizer:

porque abre o espaço do possível e da transição fora da dialética das leis (e das leis dialéticas), e da necessidade do fato consumado. 42 Não vou entrar, aqui, no mérito da questão importante levantada por Warren Montag a respeito da relação entre o conceito de vazio e a teoria dos atributos de Spinoza. Essa questão está detalhada e posta em cena em Montag, 2013. 43 Faço questão de trazer uma longa citação a esse respeito. Althusser vai afirmar: “Sobre eso podemos decir que el materialismo aleatorio plantea el primado de la materialidade sobre todo lo demás, incluyendo lo aleatorio. [...] El primado de la materialidade es universal. Esto no quiere decir que el primado de la infraestructura (falsamente concebida como la suma de las fuerzas productivas materiales y las materias primas) sea lo determinante en última instancia. La universalidad de esta última noción resulta absurda cuando no se la relaciona más que con las fuerzas productivas. “Eso depende”, escribe Marx en un pasaje de la Contribución a la crítica de la economía política, donde se trata de saber si las formas logicamente primeras son también las primeras históricamente. Ça dépend, palabra aleatoria y no dialéctica. Traduzcamos: todo puede ser determinante “en última instancia”, es decir, todo puede dominar. Marx lo decía de la política en Atenas y de la religión en Roma [...]. Pero en la superestructura misma lo que es determinante es también su materialidad. Es por ello que me he interessado tanto en mostrar la materialidad, de hecho, de toda superestructura y de toda ideologia... como lo hice en los aparatos ideológicos del Estado (AIE). Es ahí donde hay que encontrar el concepto de "última instancia", el desplazamiento de la materialidad, siempre determinante “en última instancia” en cada coyuntura concreta” (Althusser, 1988, pp. 34-35), que traduzo como “Sobre isso, podemos dizer que o materialismo aleatório propõe o primado da materialidade sobre todo o resto, incluindo o aleatório. [...] O primado da materialidade é universal. Isso não significa que o primado da infra-estrutura (falsamente concebida como a soma das forças produtivas materiais e as matérias-primas) seja determinante em última instância. A universalidade desta última noção é absurda quando não a relacionamos apenas com as forças produtivas. “Isso depende”, diz Marx em uma passagem da Contribuição à Crítica da Economia Política, onde se trata de saber se as formas logigamente primeiras são também historicamente primeiras. Ça dépend, palavra aleatória, não dialética. Traduzo: tudo pode ser determinante “em última instância”, ou seja, tudo pode dominar. Marx disse isso a respeito da política em Atenas e da religião em Roma [...]. Mas na superestrutura mesma o que é determinante é também a sua materialidade. É por isso que eu me interessei tanto em mostrar a materialidade, de fato, de toda superestrutura e de toda a ideologia... como eu fiz nos Aparelho Ideológicos de Estado (AIE). Este é o lugar onde se deve encontrar o conceito de “última instância”, o deslocamento da materialidade, sempre determinante “em última instância” em cada conjuntura concreta. 10

Observar-se-á, assim, que esta filosofia é em tudo e por tudo uma filosofia do vazio: não só a filosofia que diz que o vazio preexiste aos átomos que caem nele, mas uma filosofia que faz o vazio filosófico para se dar existência: uma filosofia que, em lugar de partir dos famosos “problemas filosóficos” (“por que há alguma coisa e não o nada?”), começa por evacuar todo problema filosófico, rejeitando, portanto, se dar qualquer “objeto” (“a filosofia não tem objeto”), para partir só do nada e desta variação infinitesimal e aleatória do nada, que é o desvio da queda. (ALTHUSSER, 2005a [1982], p. 15)

Ou seja, além de partir do nada (ou seja, do sempre-já-lá, do desvio e do possível ao mesmo tempo, mas jamais da origem), nega qualquer problema filosófico que subsuma o processo nos seus efeitos e que, além disso, considere o resultado como necessidade. É importante sublinhar também que o vazio deve ser pensado na conjuntura teórica do aleatório e do encontro, pois antes de um encontro não existe nada formado, apenas flutuação aleatória de elementos abstratos, isolados, sem nenhuma significação em si. Permanecer no primado do vazio sobre o encontro é, justamente, cair nas interpretações idealistas que a corrente subterrânea sofreu ao longo da sua história, significada sobretudo como uma filosofia da liberdade. O vazio só faz sentido se pensado em função do encontro (primado do encontro sobre o vazio), pois é onde há forma, onde há pega e sentido e o vazio pode ser pensado como o espaço do possível, como condição. Morfino vai afirmar a esse respeito que

o vazio não é nada mais que a condição de possibilidade da flutuação, é o conceito necessário para pensar a flutuação, a ausência do plano que precede o encontro dos elementos, mas não tem nenhum significado por si (MORFINO, 2005b, p. 21)

Nesse ponto é fundamental trazer um outro personagem (ou elemento): Charles Darwin. Ao tratar da corrente subterrânea, Althusser joga Darwin contra Hegel e a favor de Marx, não só para afirmar que haveria uma teoria da causalidade em “O Capital” (muito próxima do evolucionismo darwiniano), mas para pontuar que a teoria da seleção natural, que por muito tempo foi (e é) lida como “uma teoria do progresso, da evolução das formas” (MORFINO, 2005b, p. 26), em suma, como uma teoria das formas, deve ser lida, ao contrário, a partir, do que Morfino chama “erosão do conceito de forma” (ibidem p. 27), ou seja, a partir de uma posição radicalmente oposta, a da contingência da forma. É fundamental frisar que a contingência, nesse caso, não pode ser pensada como exceção

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da necessidade. A necessidade é o devir (necessário) do encontro (de contingências) 44. É nesse sentido que Morfino define a forma como

[...] resultado de um completo entrelaçamento de encontros, cada um dos quais necessários – embora se trate de uma necessidade, se me é concedido o oximoro – totalmente aleatória, isto é, privada de um projeto ou de um telos. Nesse sentido, os elementos que “pegam” [fanno presa] não estão ali porque a forma exista, mas possuem, cada um, uma história própria, resultado, por sua vez, de um entrelaçamento de encontros que se realizaram, mas que obviamente, também, falharam (ibidem, p. 31)

Aqui vemos novamente que o vazio (faço questão de utilizar essa fórmula novamente: o sempre-já-lá) remonta ao primado da “necessidade aleatória” sobre qualquer forma, sendo o conceito de forma completamente remodelado pelo domínio do acaso e do encontro 45. Para pensar essa questão, Althusser vai usar um exemplo (um fato) notável. Voltemos à questão pontuada mais acima, a respeito da emergência do modo de produção capitalista por um encontro entre elementos que flutuavam isolados antes mesmo da emergência desse modo de produção. Aqui podemos retomar a questão da crítica à gênese por meio de uma teoria do encontro que vai ser melhor desenvolvida no capítulo de Althusser no segundo volume do “Ler O Capital” (especialmente a partir dos conceitos de “totalidade” e “temporalidade diferencial”), mas que encontra as suas bases justamente numa observação sucinta sobre a questão da emergência do modo de produção capitalista e que é sintomática para a compreensão de que no sempre-já-lá encontramos um ponto de ancoragem para pensar nas relações entre o vazio e o encontro. Ora, afinal é mesmo no sempre-já-la que elementos que flutuam isolados podem pegar e durar (ou não), no movimento aleatório da necessidade contingente. No vazio dos elementos isolados (o trabalhador livre, o homem com dinheiro e as inovações técnicas) foi preciso que houvesse encontro, pega e duração para que o modo de produção capitalista tivesse condições de emergir. E uma estrutura (sendo o modo de produção uma estrutura), “não pode ser pensada, na sua emergência, como o efeito de uma filiação, mas como o efeito de uma conjunção” 46 (ALTHUSSER, 2012 [1965], p. 1). Afinal, como Althusser precisa, “os elementos definidos por Marx se ‘combinam’, eu prefiro dizer (para traduzir o termo Verbindung) ‘se juntam’ [se unem] como ‘pegando’ em uma nova

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Althusser, 2005 [1982]. A esse respeito ver a parte final de Morfino, 2005b. 46 Tradução minha. No original: “Cette structure ne peut être pensée, dans son surgissement comme l’effet d’une filiation mais comme l’effet d'une conjunction” (Althusser, 2012 [1965], p. 1) 45

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estrutura”47 (ALTHUSSER, 2012 [1965], p. 1). Essa caracterização do modo de produção a partir de uma pega, é explicitada por Althusser nos termos seguintes:

Pois, o que é um modo de produção? Dissemos, seguindo Marx: uma “combinação” particular entre elementos. Estes elementos são a acumulação financeira (aquela do “homem com dinheiro”), a acumulação dos meios técnicos de produção (ferramentas, máquinas, experiência de produção dos operários), a acumulação da matéria-prima da produção (a natureza) e a acumulação dos produtores (os proletariados desprovidos de qualquer meio de produção). Esses elementos não existem na história para que exista um modo de produção, eles existem em estado “flutuante” antes de sua “acumulação” e “combinação”, sendo cada um o produto de sua própria história e não o produto teleológico dos outros ou da história deles (ALTHUSSER, 2005a [1982], p. 32)

Ou seja, não era a causa (a natureza, a essência) desses elementos se juntarem. Em outras palavras, eles não existiam para que pudessem, um dia, pegar (prendre), sendo essa a sua natureza intrínseca. Esse encontro é completamente aleatório e a necessidade da conjunção não é imanente aos elementos isolados que possuem, cada qual, uma genealogia independente, uma história diferencial no sempre-já-lá. É isso que Althusser vai afirmar ao dizer que um modo de produção é constituído por “elementos independentes uns em relação aos outros, sendo cada um resultado de sua própria história, sem que exista qualquer relação orgânica ou teleológica entre essas diversas histórias” (ALTHUSSER, 2005a [1982], p. 33). É no quadro de uma causalidade estrutural que esses processos ocorrem, dando condição a um efeito estrutural, que aparece, no entanto, sob a forma linear48 (causa/efeito ou “causalidade mecânica linear”), entretanto é preciso pontuar que “a causalidade estrutural é determinante da causalidade linear”49 (ALTHUSSER, 2012 [1965], p. 3). A questão é: pensando os três elementos (o capital, a força de trabalho “livre” e as inovações técnicas) a questão da origem é descartada de saída, visto que todos os elementos determinantes são eles mesmos resultados, efeitos com temporalidades próprias50, não contemporâneos51 entre si, portadores de genealogias distintas e é justamente essa independência das genealogias de

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Tradução minha. No original: “[...] les éléments définis par Marx se “combinent”, je préfère dire (pour traduire le terme de Verbindung) se “conjoignent” en “prenant” dans une structure nouvelle” 48 “Pour enfoncer un clou, on tape avec un marteau sur le clou, pour labourer un champ, on fait agir des forces sur un soc qui agit sur la terre etc.” (Althusser, 2012 [1965], p. 3) 49 “[...] la causalité structurale est déterminante de la causalité linéaire” 50 “Chacun de ces éléments a sa propre “histoire”, ou sa propre généalogie (pour reprendre un concept de Nietzsche, que Balibar a utilisé avec bonheur à ce propos): les trois généalogies sont relativement indépendantes” (idem). 51 A esse respeito atentar à crítica incisiva que Althusser faz à noção de “contemporaneidade” no segundo volume de Ler O Capital. 13

cada elemento (nas suas respectivas existências, mas também nas existências dos seus resultados respectivos) que impede o retorno do mito da gênese (nesse caso específico o mito da gênese do capitalismo no modo de produção feudal, como se a emergência do modo de produção capitalista fosse uma expressão – ou produto – do modo de produção feudal). Como afirma o próprio Althusser, ao explicar essas relações no quadro da causalidade estrutural: [...] para compreender a produção do efeito B, não é suficiente considerar a causa A (imediatamente precedente, ou visivelmente relacionada ao efeito B) isoladamente, mas a causa A enquanto elemento de uma estrutura onde ela toma lugar, portanto submissa às relações, às relações estruturais específicas que definem a estrutura em questão52 (ALTHUSER, 2012 [1965], p. 2).

Vemos, mais uma vez, que pensar as relações de conjunção a partir do conceito causalidade estrutural é se colocar numa posição radicalmente diferente das filosofias da Causa e do Fim, visto que o próprio conceito de relação é ressignificado pelo primado do campo onde estão situados os elementos53, o que ilustra a importância da totalidade para que se pense a questão do vazio (de novo, do sempre-já-lá), o “primado da relação sobre os elementos”54 e a contingência de qualquer forma. É, então, desse panorama, desse ponto de ancoragem, que gostaria de começar a pensar as implicações de um materialismo do encontro, do acaso, em uma teoria materialista do discurso e do sentido.

2. Metáfora e sentido

O sentido é um problema constitutivo da linguística e a natureza indisciplinar da semântica é sintomática dessa relação tensa e contraditória na história do saber sobre a língua55. É nesse sentido que Michel Pêcheux vai atribuir à semântica o “ponto nodal”, o 52

Tradução minha. No original: “[…] pour comprendre la production de l’effet B, il ne suffit pas de considérer la cause A (immédiatement précédente, ou visiblement en rapport avec l’effet B) isolément, mais la cause A en tant que élément d'une structure où elle prend place, en tant donc que soumise aux relations, aux rapports structuraux spécifiques qui définissent la structure en question” 53 Althusser nos dá um exemplo bastante sintomático: “Uma forma bastante resumida da causalidade estrutural aparece por exemplo na física moderna, quando ela faz intervir o conceito de campo e reproduz [fait jouer] o que podemos chamar de causalidade de um campo. No caso da ciência da sociedade, se seguirmos o pensamento de Marx, não se pode compreender um efeito econômico colocando-o em relação a uma causa isolada, mas por colocá-lo em relação com a estrutura do econômico (definida pela articulação das forças produtivas e das relações de produção). Podemos presumir que na análise [psicanálise] tal efeito (tal sintoma) somente é inteligível como o efeito da estrutura do inconsciente. Não é este acontecimento ou aquele elemento A que produz tal efeito B, mas a estrutura definida do inconsciente do sujeito que produz o efeito B” (Althusser, 2012 [1965], p. 3). 54 Morfino, 2005b. 55 Pêcheux, 1997a, especialmente a segunda parte. 14

ponto para onde convergem todas as contradições da linguística, onde o linguístico se encontra com o domínio da filosofia e com a sua exterioridade. E, justamente por isso, é no domínio da semântica que se pode enfrentar o ponto cego do logicismo (os problemas de sentido não são apenas problemas lógicos) para pensar uma teoria materialista do discurso (a questão do sentido demanda algo mais que a pura reflexão sobre o funcionamento da estrutura em si mesma), questão que abordarei mais incisivamente ao tratar da relação entre as noções de pré-construído e efeito de sustentação: noções que se desenvolvem, curiosamente, a partir das investigações lógico-linguísticas de Frege a respeito das orações relativas e que muito embora tenham grande valor (graças ao antipsicologismo constitutivo do empreendimento fregeano) apontam justamente o seu limite face a uma semântica que leve em consideração o atravessamento língua/história. Para desenvolver, então, uma “semântica materialista”, ou seja, uma teoria do sentido que considere que as questões relativas à significação estão desde sempre investidas pela materialidade do linguístico, do histórico e do ideológico, Pêcheux vai apontar que ao invés de negar a estrutura da língua, deve-se reconhecer a importância do corte saussuriano (a tomada de posição epistemológica que funda a língua [langue] como objeto da linguística). Essa observação é fundamental para que, de saída, se marque uma distinção entre uma teoria materialista do discurso e as teorias que pensam a linguagem na sua relação com o “social”56. Pois “se o sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reácionário” (PÊCHEUX, 1997a, p. 91), não se trata de construir uma teoria que dilua o social no linguístico, mas de reconhecer que há uma relação entre língua e história que não é da ordem da plasticidade, do recobrimento ou da semelhança, mas ordens distintas que se tocam pelo funcionamento da língua no social e na história, já que “[...] a língua se apresenta assim como base comum de processos discursivos diferenciados, que estão compreendidos nela” (idem) e são justamente esses processos discursivos que vão se delinear como o objeto de uma semântica materialista. Dizer que os processos discursivos se apoiam sobre uma base linguística quer dizer, em suma, que o funcionamento do discurso está submetido ao funcionamento da língua (na sua autonomia relativa), não sendo um produto do “pensamento” ou uma atividade cognitiva pura.

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Michel Pêcheux (juntamente com Paul Henry e Claudine Haroche), vai fazer uma crítica pontual à semiologia por uma observação fundamental, que diz respeito à indistinção entre teoria e método no domínio da “aplicação” de um campo conceitual a um conjunto de objetos. A esse respeito ver Haroche; Henry; Pêcheux, 1971. 15

No entanto, vale fazer uma ressalva. Quando Pêcheux afirma a importância do corte saussuriano, ele nos coloca mais uma questão do que uma solução, pois afirmar a importância de Ferdinand de Saussure implica pensar de que modo (a partir de quais lugares e conceitos) ele foi lido e, sobretudo, como circula essa discursividade nas correntes hegemônicas da linguística. Ressalva importante, afinal, como nos alertam Gadet e Pêcheux, “Saussure não é assim tão simples!” 57. Se a conjuntura teórica e histórica da linguística diz que há “dois Saussure”, um do dia (o cientista do “Curso de linguística geral”) e um noturno (o pobre homem perdido nos delírios dos anagramas), um centrado na natureza do signo linguístico e outro da teoria do valor, o próprio significante “Saussure” é colocado em uma rede de sentidos que demanda uma tomada de posição. E é justamente no Saussure da teoria do valor que Françoise Gadet e Michel Pêcheux vão encontrar um modo de pensar uma língua que não é “costurada pelas bordas como uma língua lógica: ela é atravessada por falhas”58 (GADET; PÊCHEUX, 1981, p. 51). Ou seja, pensar a língua a partir desse Saussure não significa pensar a langue como uma máquina perfeita, mas como uma estrutura constitutivamente equívoca, sempre já atravessada pelo inconsciente59, pois é nesse espaço que Saussure, através da teoria do valor, possibilita considerar a língua como uma rede de diferenças sem termo positivo (e o signo como opositivo e diferencial). É nesse espaço que podemos dizer, conforme antecipei logo no início do texto, que o não-dito (o vazio, o sempre-já-lá) precede o dito e que há um primado da ausência sobre a presença, um primado da relação sobre os elementos60. É por isso, então, que o pensamento de Saussure resiste às interpretações idealistas: por causa “do papel constitutivo da ausência”61 (GADET; PÊCHEUX, 1981, p. 57). Portanto, dizer “mesma língua” não significa dizer que a produção do sentido é homogênea, pois a semântica não vai obedecer a ordem de uma suposta estrutura autônoma que funcionaria como uma máquina perfeita. Nessa perspectiva, o sentido é o lugar em que a estrutura da língua (essa base equívoca) é exposta ao funcionamento (contingencial) da história no encontro com o sujeito, ou, para melhor dizer, no encontro

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“Saussure, ce n’est pas si simple!” (Gadet; Pêcheux, 1981, p. 57) “[...] suturé sur ses bords comme une langue logique: il est traversé de failles” (Gadet; Pêcheux, 1981, p. 51) 59 Gadet; Pêcheux, 1981. 60 “Dire que les valeurs sont ‘relatives’ signifie qu’elles sont relatives les unes aux autres” (Gadet; Pêcheux, 1981, p. 56), que eu traduzo como: “Dizer que os valores são relativos significa que eles são relativos uns aos outros” 61 “[...] ce role constitutif de l’absence” (Gadet; Pêcheux, 1981, p. 57) 58

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que produz ao mesmo tempo o sujeito e o sentido. Essa é uma tomada de posição que não permite uma diluição do linguístico na exterioridade, que não faz concessões nem às “aporias de uma semântica puramente intralinguística” e tampouco a “uma pragmática insensível às particularidades da língua” (PÊCHEUX, 1994, p. 55). Em suma, compreender a língua como constitutivamente equívoca não significa compreendê-la, tal como Frege, como “imperfeita”62. É aqui que Pêcheux encontra o problema da lógica com a questão da pressuposição (e do referente) e, longe de tentar dar uma solução logicista para o problema, desloca completamente os seus termos. Frege reclama da necessidade de, no pensamento (uma proposição “em seu todo”), ter que introduzir algo (e aqui entra a questão do referente) um objeto de pensamento que se refere a uma instância exterior e que pode existir (mas, e aí está o problema, pode não existir de fato). Essa “imperfeição” – por meio da qual a língua pode criar coisas falsas – que Frege, chama de ilusão, vai receber uma atenção especial de Pêcheux, que por meio dos conceitos de pré-construído e efeito de sustentação vai colocar esse problema em outro lugar.

2.1 Kepler e Napoleão Ao considerar o homem como um animal metafórico63, Michel Pêcheux dá visibilidade a uma não-separação fundamental entre os processos que constituem, ao mesmo tempo, sujeito e sentido, ou seja, propõe pensar o processo de constituição da forma-sujeito do discurso como imbricação entre a constituição do sujeito pelo sentido e do sentido na relação com o sujeito. A forma-sujeito é, então, produzida no interdiscurso, “‘o todo complexo com dominante’ das formações discursivas” (ibidem, p. 162) pelo processo da interpelação ideológica onde o indivíduo (que é sempre-já sujeito) é subordinado sob a forma da autonomia por uma formação discursiva. É a partir dessas considerações que Pêcheux vai propor pensar no pré-construído e no efeito de sustentação como modalidades que fundamentam qualquer processo discursivo 64 ou, de modo mais enfático, como as regiões a partir de onde se produz o pensável (o sempre-jálá), funcionando como “pontos de estabilização que produzem o sujeito, com, 62

A esse respeito ver a obra incontornável de Paul Henry (Henry, 1992). Herbert, 1995 [1967]. 64 Pêcheux define o processo discursivo como “o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc., que funcionam entre elementos linguísticos – ‘significantes’ – em uma formação discursiva dada” (Pêcheux, 1997a, p. 161) 63

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simultaneamente, aquilo que lhe é dado ver, temer, fazer, esperar, etc.” (PÊCHEUX, 1997a, p. 161). A partir dessa consideração, a metáfora, que não é um acidente da linguagem poética65, vai ser compreendida como o modo mesmo pelo qual a língua funciona, através do primado do não-dito sobre o dito, como um processo sócio-histórico que serve como fundamento da “apresentação” (donation) de objetos para sujeitos, e não como uma simples forma de falar que viria secundariamente a se desenvolver com base em um sentido primeiro, nãometafórico, para o qual o objeto seria “natural”, literalmente pré-social e préhistórico (PECHEUX, 1997a, p. 132)

Na sutileza dessa formulação, podemos pensar a natureza da metáfora na intervenção de Pêcheux não como uma figura de estilo, deslocando a problemática do literal (sentido primeiro) e do não-literal (sentido derivado) para se tornar o cerne da produção do sentido. Isso permite ao mesmo tempo deslocar a questão do “referente” do paradigma lógico para o funcionamento da língua no interdiscurso e a ilusão subjetiva que considera o sujeito como origem do sentido. Pêcheux é, inclusive, categórico ao afirmar que “a questão primordial cessa de ser a da subjetividade produtora do discurso e torna-se a das formas de existência histórica da discursividade” (PÊCHEUX, 2011b, p. 156). Essa é uma intervenção que coloca o primado do processo sobre qualquer forma66 (o sentido, a evidência, o “todo mundo sabe que...”), em uma crítica direta a qualquer teoria do sentido que proponha o primado do sentido sobre as relações (a esse respeito é notória a questão do paradoxo lógico em Pêcheux67, que talvez seja um dos pontos mais produtivos para pensar as relações entre o linguístico e o político), sendo o jogo significante sempre determinado pelas relações entre/nas formações discursivas. Pois os significantes não são “como as peças de um jogo simbólico eterno que os determinaria”, mas “aquilo que foi ‘sempre-já’ desprendido de um sentido: não há naturalidade do significante” (ibidem, p. 176). Para além da crítica a uma semântica universal, é aqui que se encontra o liame entre formação social, ideologia e língua, uma vez que o sentido é sempre resultado de 65

“Da nossa perspectiva não há ‘desvio’ – e, portanto, não há linguagem ‘poética’” (Gadet; Pêcheux 2011, p. 104) 66 Althusser vai afirmar a esse respeito: “Para que o desvio dê lugar a um encontro do qual nasça um mundo, é necessário que ele dure, que não seja um ‘breve encontro’, mas um encontro durável, que se torna, então, a base de qualquer realidade, de qualquer necessidade, de qualquer Sentido e de qualquer razão”. Creio que essa problematização é interessante para pensar o lugar da literalidade a partir da relação entre encontro, pega e duração. 67 Pêcheux, 2011a. 18

relações (de força próprias ao interdiscurso) e não uma propriedade inerente ao significante, em espaços semânticos que se sustentam em posições para onde convergem o político, o histórico e a base material da língua. É nesse jogo de substituições contínuas no espaço contraditório do político que o processo de constituição de sentido se dá, e não numa relação entre palavra e referente. É por isso que Pêcheux vai enfatizar, numa passagem que acentua fortemente o liame entre o político e o linguístico, que a luta ideológica não tem nada a ver com os chamados mal entendidos semânticos que provocam problemas que desapareceriam à luz da formulação de uma semântica universal. No terreno da linguagem, a luta de classes ideológica é uma luta pelo sentido das palavras, expressões e enunciados, uma luta vital por cada uma das duas classes sociais opostas que tem se confrontado ao longo da história (PÊCHEUX, 2011c, p. 273)

Tendo apresentado essas considerações mais gerais gostaria de precisar, conforme antecipei, os conceitos de pré-construído e efeito de sustentação utilizando alguns exemplos trazidos à tona pelo próprio Pêcheux. No primeiro exemplo, Pêcheux recorre à formulação “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”. Aqui, onde Frege veria um absurdo (pois “nunca existiu” nega a existência de “aquele que salvou o mundo morreu na cruz”), Pêcheux propõe pensar numa distância entre “o que é pensado antes, em outro lugar e independentemente e o que está contido na afirmação global da frase” (PÊCHEUX, 1997a, p. 99), afirmando que a causa material dessa “ilusão” se assenta uma relação dissimétrica entre dois “domínios de pensamento”, onde o “elemento de um domínio irrompe num elemento do outro [...] como se esse elemento já se encontrasse aí” (idem). O pré-construído – que Pêcheux vai chamar de um dos principais pontos de articulação entre a linguística e a teoria dos processos discursivos – é aquilo “que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado” (idem), ou seja uma anterioridade exterior que vai emergir como relação transparente entre o sujeito e as coisas a saber (os “objetos”). É por isso que Pêcheux afirma que o pré-construído é o “‘sempre-já-aí’ da interpelação ideológica que fornece-impõe a ‘realidade’ e seu ‘sentido’ sob a forma da universalidade (‘o mundo das coisas’)” (ibidem, p. 164), funcionando como a modalidade discursiva onde “o indivíduo é interpelado em sujeito ao mesmo tempo em que é ‘sempre-já sujeito’” (ibidem, p. 156). Para questionar o funcionamento meramente lógico-linguístico das orações relativas explicativas, Pêcheux vai lançar mão do conceito de “efeito de sustentação” (ou “articulação”). Esse funcionamento possui a propriedade de síntese (de saturar os 19

“pensamentos” que constituem uma oração) e, de maneira oposta ao funcionamento do pré-construído, pode ser acompanhada de um “porque”, como no exemplo dado por Pêcheux: “O gelo flutua sobre a água”, que permite o “porque tem um peso específico inferior ao da água”. Tal transformação seria impossível no caso do exemplo envolvendo Kepler (“Aquele que descobriu a forma elíptica das órbitas planetárias morreu na miséria”), a menos que trouxesse em si um juízo: “Kepler morreu na miséria porque descobriu...”. É curioso notar que a supressão da explicativa não prejudica o sentido da oração. No caso de “O gelo, que tem um peso específico inferior ao da água, flutua sobre a água” em relação a “O gelo flutua sobre a água” não há uma subtração de sentido por meio da subtração da explicativa. É por isso que o nome desse efeito é sustentação, porque ele produz um efeito de articulação entre as proposições que constituem um pensamento ou, como enfatiza Pêcheux, “constitui o sujeito na sua relação com o sentido, de modo que ela representa, no interdiscurso, aquilo que determina a dominação da forma-sujeito” (ibidem, p. 164) ou ainda “a evocação lateral daquilo que se sabe a partir de um outro lugar” (ibidem, p. 111). Pêcheux resume a distinção e as particularidades fundamentais dos dois efeitos da seguinte maneira: Por oposição ao funcionamento do pré-construído – que dá seu objeto ao pensamento sob a modalidade da exterioridade e da pré-existência – a articulação de asserções, que se apóia sobre o que chamamos o “processo de sustentação”, constitui uma espécie de retorno do saber no pensamento (idem)

É aqui que as coisas começam a ganhar corpo. Quando Pêcheux coloca em cena a proposição “Napoleão, que reconheceu o perigo para seu flanco direito, comandou pessoalmente sua guarda contra a posição inimiga” que funciona articulando as asserções “Napoleão reconheceu o perigo para seu flanco direito” e “Napoleão comandou pessoalmente sua guarda contra a posição inimiga”, será que podemos colocar uma proposição como “Kepler, que descobriu a forma elíptica das órbitas planetárias, morreu na miséria” que funciona articulando as asserções “Kepler descobriu a forma elíptica das órbitas planetárias” e “Kepler morreu na miséria” como proposições equivalentes, sendo que ambas contém os mesmos valores de verdade? Ou, ainda pensando na substituição de “que reconheceu o perigo para o seu flanco direito” fosse substituída por “que tem 45 anos”? É aqui, entre uma interpretação contingente e uma interpretação necessária, que se pode começar a tocar na contradição entre a descrição e a interpretação no discurso histórico, ou seja, de admitir que há na materialidade da língua

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a imbricação pela materialidade da história. Os problemas de sentido, afinal, não são apenas problemas lógicos68.

Vazio e non-sens: reprodução/transformação e resistência O primado do encontro sobre a forma69 me interessa em relação ao primado da metáfora sobre o sentido e é sobre essa articulação que eu gostaria de me deter um pouco mais nesta seção. Parto da relação fundamental entre a anterioridade dos elementos sobre qualquer forma70 (“primado da relação sobre os elementos”71) e o primado do encontro sobre o vazio frente à reflexão de Michel Pêcheux a respeito da relação entre língua, política e transformação. Pêcheux, ao afirmar que “a metáfora se localiza no ponto preciso em que o sentido se produz no non-sens” (PÊCHEUX, 1997a, p. 262) nos diz que o sentido se produz a partir de relações de metáfora (uma palavra por outra, segundo a leitura que o filósofo faz das proposições de Lacan) sendo essa a origem não detectável do sentido ou o vazio específico onde se produz sentido. Essa proposição nos coloca, ao mesmo tempo, diante de uma não necessidade do sentido, à medida em que o seu processo de constituição é concebido como o resultado de um encontro (aleatório) de elementos à deriva que desestrutura/reestrutura as redes e os processos aos quais está vinculado. Nesse

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A esse respeito, há um interessante estudo das relações entre pressuposição e referência no conflito entre uma posição logicista e discursiva em Baldini, 2011 e o incontornável ensaio de Paul Henry (Henry, 1990). 69 Aproveito essa retomada para enfatizar uma afirmação de Morfino: “[...] os conceitos de encontro e vazio pensados em estreita interdependência, conduzem, segundo Althusser, a determinar o primado do nada sobre a forma e do materialismo aleatório sobre todo formalismo, isto é, sobre toda forma de combinatória estruturalista entre dados elementos” (Morfino, 2005a, p. 139) 70 Althusser, a esse respeito, vai pontuar: “[...] observa-se que o encontro não cria nada da realidade do mundo, a não ser átomos aglomerados; pelo contrário, ele outorga sua realidade aos átomos mesmos, que, sem o desvio e o encontro, não seriam mais do que elementos abstratos, sem consistência nem existência; de maneira tal que se pode afirmar que a existência mesma dos átomos só lhes advém do desvio e do encontro, antes dos quais eles só levavam uma existência fantasmática” (Althusser, 2005 [1982], p. 11) 71 Althusser (1988) assinala que “[...] antes, de la formación del mundo, una infinidad de átomos caía en el vacío, en forma paralela. Las implicaciones de esta afirmación son fuertes: 1) que antes de que hubiera mundo, no existía absolutamente nada formado, y, al mismo tiempo, 2) que todos los elementos del mundo existían ya aislados, desde siempre, desde toda la eternidad, antes de que hubiera mundo. Lo anterior implica que antes de la formación del mundo no existía ningún Origen, Sentido, Causa, Razón ni Fin. Niega toda teleología: sea racional, moral, política o estética. Añadiré que este materialismo no es el de un sujeto (sea Dios o el proletariado) sino el de un processo – sin sujeto – que domina el orden de su desarrollo, sin un fin asignable” (Althusser, 1988, pp. 30-31), que eu traduzo como “[...] antes da formação do mundo, uma miríade de átomos caíam no vazio, paralelamente. As implicações desta afirmação são fortes: 1) que antes que houvesse um mundo, não havia absolutamente nada formado, e, ao mesmo tempo, 2) que todos os elementos do mundo já existiam, isolados, desde sempre, desde toda a eternidade, antes que houvesse mundo. Isto implica que, antes da formação do mundo não havia nenhuma origem, significado, causa, razão nem fim. Nega qualquer teleologia: seja racional, moral, política ou estética. Gostaria de acrescentar que este materialismo não é de um sujeito (seja Deus ou o proletariado), mas o de um processo – sem sujeito – que domina a ordem do seu desenvolvimento, sem um fim atribuível”. 21

sentido, é fundamental pensar o interdiscurso como o sempre-já-lá, como o vazio específico e como a condição de produção dos processos semânticos na relação constitutiva de qualquer sentido com as formações discursivas, na medida em que “um efeito de sentido não preexiste à formação discursiva na qual ele se constitui” (ibidem, p. 261). Pêcheux resume afirmando que não há, de início, uma estrutura sêmica do objeto e, em seguida, aplicações variadas dessa estrutura nesta ou naquela situação, mas que a referência discursiva do objeto já é construída em formações discursivas (técnicas, morais, políticas...) que combinam seus efeitos em efeitos de interdiscurso. Não haveria assim naturalidade “técnica” do balão livre ou da estrada de ferro, ou naturalidade “zoológica” da toupeira, que seria em seguida objeto de metáforas literárias ou políticas; a produção discursiva desses objetos “circularia” entre diferentes regiões discursivas, das quais nenhuma pode ser considerada originária (PÊCHEUX, 2011b, p. 158)72

Também a esse respeito, Althusser caracteriza a não anterioridade do sentido como um dos fundamentos do materialismo aleatório, o que não significa dizer que não existia nada antes de um encontro (onde teríamos um primado do vazio), mas que não existia nada formado (existiam apenas elementos isolados), pois “os elementos que produziram o encontro não continham o ser a que deram lugar, mas apenas partindo do resultado do encontro, em direção aos elementos, estes podem ser considerados afins” (MORFINO, 2005b, p. 10). É por isso, como bem alertou Morfino, que devemos compreender o vazio pelo encontro e não o encontro pelo vazio e, ao mesmo tempo, a anterioridade dos elementos sobre qualquer forma. Sem o encontro (e um encontro que dure) os elementos não são nada, são apenas elementos isolados (sem nenhum sentido e existência). É somente após um desvio, após um encontro que os elementos ganham sentido73. 72

Ao ler essa passagem de Pêcheux, não consigo não me direcionar imediatamente a essa passagem de Althusser: “O que se torna a filosofia nestas circunstâncias? Ela não é mais o enunciado da Razão e da origem das coisas, mas a teoria de sua contingência e o reconhecimento do fato, do fato da contingência, do fato da submissão da necessidade à contingência e do fato das formas que “dão forma” aos efeitos do encontro. Ela só é constatação: houve encontro e “pega” de elementos uns sobre outros (no sentido em que se diz que o cimento “pega”). Qualquer questão de Origem é rejeitada, como todas as grandes questões da filosofia: “Por que há alguma coisa e não o nada? Qual é a origem do mundo? Qual é a razão de ser do mundo? Qual é o lugar do homem nos fins do mundo? etc.”. Repito: Qual filosofia, na história, teve a audácia de retomar essas teses?” (Althusser, 2005 [1982], p. 11) 73 Vale a pena, nessa direção, pensar nesse fragmento de Althusser: “Epicuro nos explica que, antes da formação do mundo, uma infinidade de átomos caíam, paralelamente, no vazio. Eles caem sempre. O que implica que antes do mundo não havia nada e, ao mesmo tempo, que todos os elementos do mundo existiam desde toda a eternidade antes da existência de algum mundo. O que implica também que, antes da formação do mundo, não existia nenhum Sentido, nem Causa, nem Fim, nem Razão, nem desrazão. A nãoanterioridade do Sentido é uma das teses fundamentais de Epicuro, pela qual ele se opõe tanto a Platão quanto a Aristóteles” (Althusser, 2005 [1982], p. 10) 22

Mas antes de ir ao ponto fundamental, gostaria de fazer uma observação de conjuntura teórica a respeito da relação entre reprodução, transformação e ideologia: a questão do aleatório (e do encontro) é posta por Althusser no quadro de uma reflexão sobre o possível, sobre a transformação e embora não tenha uma preponderância conceitual expressa nos textos referentes ao materialismo do encontro, o conceito de ideologia é o lugar específico onde a questão da reprodução/transformação ganha corpo. Não é fortuito lembrar que Althusser vai desenvolver a sua teoria da interpelação ideológica no quadro mais geral da discussão em torno das condições de (re)produção das relações de produção74. O próprio Pêcheux se encarrega de ressaltar que é na relação entre a interpelação e o significante75 (de modo mais panorâmico, na relação/produção do sujeito e sentido na história) que tem lugar o “processo pelo qual se realiza o que chamamos as condições ideológicas da reprodução/transformação das relações de produção” (PÊCHEUX, 1997a, p. 133-134), o que nos permite arriscar o liame entre as proposições mais genéricas de Althusser em relação aos aparelhos ideológicos de Estado e a relação entre sujeito e sentido enquanto espaço pertinente para que se pense tanto a língua quanto os processos de reprodução/transformação na constante intervenção de Michel Pêcheux entre o teórico e o político e, de modo mais radical, face à construção de um dispositivo teórico capaz de produzir efeitos no político. Nesse sentido, se partimos da premissa de que “é necessário partir do ponto de vista da reprodução para compreender a existência e o funcionamento da superestrutura”76 (ALTHUSSER, 1995, p. 179) é fundamental problematizar o conceito de reprodução e, ao mesmo tempo, evitar as simplificações que consideram a reprodução como repetição do mesmo ou como um obstáculo à qualquer transformação. Pêcheux é categórico ao afirmar que “‘reprodução’ nunca significou ‘repetição do mesmo’” (PÊCHEUX, 2011a, p. 115), pois compreende que em Althusser 77 os

processos de reprodução ideológicos também eram abordados como local de resistência múltipla. Um local no qual surge o imprevisível contínuo, porque cada ritual ideológico continuamente se depara com rejeições e atos falhos de todos os tipos, que interrompem a perpetuação das reproduções (idem)

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A esse respeito, cf. Karczmarczyk, 2010. Relação que Pêcheux define como o “processo do significante na interpelação e na identificação” (Pêcheux, 1997a, p. 133) 76 Tradução minha. No original: “nous avons compris qu'il fallait nous élever au point de vue de la reproduction pour comprendre l'existence et le fonctionnement de la superstructure” (Althusser, 1995, p. 179) 77 Althusser, 1977. 75

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E o próprio Althusser, a partir de uma reflexão sobre a duração, vai resumir a relação entre reprodução e transformação afirmando que

[...] a duração de uma formação social dominada por um modo de produção dado (no caso examinado: o modo de produção capitalista) depende da “duração” da superestrutura que assegura as condições dessa reprodução e a própria reprodução78 (ALTHUSSER, 1995, p. 180)

Ou seja, para pensar o possível (e mesmo uma possível outra formação social) é necessário investir no conhecimento dos processos de reprodução (que determinam a duração de uma formação social) fora de um quadro que a compreenda como um problema lógico, situado numa história concebida como “passagem do tempo”, mas no quadro geral da contradição sobredeterminada, em relações de força, no político, onde objetos com temporalidades distintas se relacionam na mesma conjuntura ou totalidade produzindo efeitos específicos no interdiscurso. Ora, uma das grandes investidas de Pêcheux face à questão da historicidade da língua foi justamente colocar em relação não presente e passado, mas presente e ausente num deslocamento que radicaliza a crítica a qualquer concepção linear de história. E essa relação entre o presente e a ausência, entre o visível e o invisível, entre o possível e o impossível, “onde o real vem se afrontar com o imaginário” é fundamentalmente o que “especifica a existência do simbólico para o animal humano” (idem) a partir de inscrições da história na língua. Ele diz que através das estruturas que lhe são próprias, toda língua está necessariamente em relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca estará” da percepção imediata: nela se inscreve assim a eficácia omni-histórica da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além e o invisível (PÊCHEUX, 1990, p. 8)

É a partir desse ponto de vista que podemos pensar a reprodução e a transformação não como coisa distintas, situadas em pontos diferentes, mas como o efeito contraditório específico do modo de produção capitalista que se fundamenta e funciona pela divisão e luta de classes: ou seja, faz parte das relações sociais capitalistas essa contradição específica que indistingue reprodução e transformação. Essa posição requer uma outra face à questão da ideologia, pois a partir dessa compreensão da reprodução o funcionamento da ideologia não pode ser concebido fora do conceito de aparelhos

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Tradução minha. No original temos: “[...] la “durée” d' une formation sociale dominée par un mode de production donné (dans le cas examiné: le mode de production capitaliste) dépend de la “durée” de la Superstructure qui assure les conditions de cette reproduction et cette reproduction elle-même” 24

ideológicos, graças a sua radicalidade no rompimento com qualquer concepção de ideologia como visão de mundo, ponto fundamental da tese althusseriana acerca da materialidade da ideologia79. Nessa direção Gadet e Pêcheux vão ressaltar que conceber a ideologia do ponto de vista das “relações de produção” necessariamente implica, para um marxista, em também considera-la do ponto de vista da resistência à reprodução, ou seja, da perspectiva de uma multiplicidade de resistências e revoltas heterogêneas que se entocam na ideologia dominante, ameaçando-a constantemente” (GADET; PÊCHEUX, 2011, p. 96)

A questão da resistência está diretamente ligada ao processo de produção do sentido. Pois se “o sentido existe exclusivamente nas relações de metáfora” (PÊCHEUX, 1997a, p. 263) é o apelo ao possível como propriedade inalienável do simbólico que Pêcheux ressalta para dissolver a falsa dicotomia entre voluntarismo e quietismo face ao problema da resistência e da mudança e, mais enfaticamente, por uma recusa absoluta do sujeito como origem da resistência, ponto fundamental do voluntarismo idealista. É por isso que Pêcheux vai definir as resistências como não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras... (PÊCHEUX, 1990, p. 17).

Esses desvios, que podem produzir encontros, estão inscritos no jogo das filiações entre os elementos que flutuam no sempre-já-la do interdiscurso. Ironicamente, Pêcheux vai afirmar que “o lapso e o ato falho (falhas do ritual, bloqueio da ordem ideológica) bem que poderiam ter alguma coisa a ver com esse ponto sempre-já-aí, essa origem não detectável da resistência e da revolta” (PÊCHEUX, 1997b, p. 301) para dizer, afinal que pensar a língua funcionando dessa maneira desloca a resistência do lugar do voluntarismo uma necessidade cujo fundamento residiria na vontade do sujeito) e do quietismo (o “eternitarismo apolítico” mencionado por Pêcheux80) que dilui a transformação com o

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Pêcheux, faz questão de ressaltar que pensar a questão da ideologia a partir dos aparelhos ideológicos é interessante para afastar a noção de “mentalidade” (que suporia um processo homogêneo de construção de “costumes” comuns numa “sociedade” dada) e frisa o fato de que o importante, para pensar a questão do sentido no quadro de uma teoria materialista, é compreender a materialidade da ideologia, ou seja, não como ideias, mas como práticas. Interessante o modo como Althusser relaciona essa tese aos trabalhos de Pascal a respeito do discurso religioso, do “ajoelha-te e reza” (Althusser, 1993) e às importantes observações de Paul Hirst (Hirst, 1979) e Warren Montag (Montag, 2009). 80 Pêcheux, 1997b, p. 298. 25

futuro a partir de um conceito de mudança que não se relaciona com a política, que é apenas a concepção idealista de história como “passagem do tempo”. É por isso que ao colocar a causa e a falha em relação a partir dos “traços inconscientes do significante” (PÊCHEUX, 1997b, p. 300) a partir do aforismo lacaniano “só há causa daquilo que falha”, ele focaliza a falta da causa, pois o que se vê, o que se manifesta é o ato falho, o lapso, o desvio – o processo – e não a causa. Retomo, então, para finalizar, a questão do vazio apontada no início da seção na relação com a produção do sentido no non-sens “pelo deslizamento sem origem do significante” (ibidem, p. 300), o que significa que ele não pode ser compreendido como se as expressões e palavras possuíssem um sentido imanente ou próprio, porque “o sentido é sempre uma palavra, uma expressão ou uma proposição por uma outra palavra, uma outra expressão ou proposição” (idem), ou seja, um processo. Sem os efeitos de interdição políticos na semântica – e mesmo em face do controle sobre o sentido, escorregando e jogando com as interdições – “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 1990, p. 53), colocando os rituais frente à história, ao equívoco e à contradição, expondo a opacidade do sentido frente à ilusão da transparência pois a metáfora não é apenas uma palavra por outra, “mas é também o ponto em que o ritual se estilhaça no lapso” (ibidem, p. 301). Michel Pêcheux sabia bem disso. Ele, como um materialista aleatório, nos coloca diante de uma teoria que faz vazio. Desloca as perguntas, as questões. Fez vazio das questões postas pela linguística face à questão do sentido, fez vazio do marxismo face à questão da língua e da psicanálise frente à questão da história. E mesmo que esse encontro entre Pêcheux e o materialismo do encontro não esteja formalmente colocado e registrado na história da filosofia, nos cabe também – por que não? – investir nos encontros que não se deram, não pegaram ou não duraram. Como seria, por exemplo, se Marx tivesse lido Darwin a partir do primado do encontro sobre a forma? Como seria se Freud tivesse lido Saussure ao invés de Karl Abel? Qual seria o resultado? Compreender o primado da metáfora sobre o sentido como o primado do possível: eis a grande questão que Michel Pêcheux nos deixa para que a análise de discurso se reconheça diante do político e, sobretudo, que reclame o seu lugar no espaço do político pela radicalidade de uma teoria que inscreve a crítica do sentido no processo de reprodução das relações sociais e na constituição do sujeito. E eu arrisco dizer que os poetas, talvez mais que os teóricos, compreenderam muito bem essa potência da língua 26

em desestruturar e reestruturar as redes de sentido. Como nos disse Manoel de Barros, é preciso “repetir, repetir até ficar diferente”. O possível merece que se lute por ele.

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