Meu Coração é uma Máquina de Escrever

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Aquela senhora me chegou com depressão, sempre indisposta às pequenas tarefas da casa. Vivia com um irmão. A família morava próximo de ambos. Mas as coisas sempre são menos simples [ou menos "insípidas"] do que parecem. Seu irmão tinha esquizofrenia paranoide, aquela clássica, onde a mania de perseguição está atrelada à de grandeza. Seu irmão chegou a subir no telhado de sua casa para pregar um sermão religioso. Quando os obreiros da igreja que ele frequentava chegaram para orar por ele, ele se saiu com essa paráfrase do texto bíblico: "Antes de Jesus, Eu Sou!" Esses mesmos obreiros e seu pastor haviam insistido que "se o rapaz tivesse fé, poderia parar com os remédios psiquiátricos, porque a psicologia e psiquiatria são para os de pouca fé". Pois bem, acabaram se dando com esta "blasfêmia" difícil de engolir e "dando de ombros" diante daquela circunstância "inesperada".

Mas as coisas sempre são menos simples do que parecem. Aquela senhora usava marca-passo, o que restringia o espectro dos antidepressivos que lhe poderiam ser dados; na verdade, reduzia o espectro a um único antidepressivo adequado ao seu caso, oferecido pela rede pública, à época. Escrevi um encaminhamento para a psiquiatra do posto, discutindo a especificidade do seu caso. De qualquer maneira, o antidepressivo disponível era bastante adequado a "depressões com prostração", bem diversas daquelas onde se verifica uma corrente subterrânea de extrema agitação, dando a esses deprimidos a postura de "enjaulados em si mesmos e no ambiente em que se encontram". Aquela era uma deprimida "cansada da vida, desolada", para usarmos termos bem cotidianos.

Mas as coisas são sempre menos simples do que parecem. Os medos subjacentes ao uso do marca-passo se deslindavam na conversa clínica, e eu pude entrever seu medo de que o marca-passo parasse. Não, para ser mais específico, eu entrevi seu medo de que "seu estado pudesse fazer parar o marca-passo". Pensamento mágico, como nas crianças que temem que o que pensem possa acontecer? Não exatamente. As coisas são sempre menos simples do que parecem.

Nos estados depressivos e ou ansiosos, não é infrequente que os sujeitos "auscultem" sua propriocepção, o "estado interno de seus órgãos". É claro que tal estado é objetivo-subjetivo, simultaneamente; ou, mais propriamente, "é subjetivado, uma vez flagrado": isso em relação a "dores móveis" que migram nos músculos, a pressão na cabeça que vem e vai ao longo do dia, distúrbios do aparelho digestivo [gases e diarreias nervosas, por exemplo].. No caso dela, "a escuta dos próprios batimentos cardíacos" era o ponto em questão. Essa "ausculta tensa" poderia fazê-la suar de medo, com consequente aumento da taquicardia. E ela sabia que a função do marca-passo era "ajustar os batimentos do seu coração". Estaria ela, então, "sabotando o marca-passo", ou "sobrecarregando-o, até fazê-lo parar/colapsar"?

Mas as coisas são sempre menos simples do que parecem. Para pacientes ansiosos ou fóbicos, já percebi que uma descrição minuciosa de suas fobias, até antecipando nuances que elas temem nomear, causa um duplo alívio: 1) eu passo a ser o responsável pela conjuração ("é ele, o psicólogo, que está falando: se o meu demônio surgir, ele que lide com ele!"; ou, no caso específico, "se o marca-passo falhar aqui, ele terá de me socorrer; e eu não serei suicida, mas ele será assassino, se falhar"!);
2) esse tipo de "alívio" libera, em parte, o sujeito "do medo de fazer mal a si mesmo", o que está presente em todos os obsessivos e fóbicos, sem exceção; em termos analíticos, esses sujeitos temem seus objetos internos maus, sua paisagem subjetiva tóxica e carregada de perseguidores, medos e culpas.

Nomeando para aquela senhora seus medos em relação "á sua atuação sobre o marca-passo", eu despotencializo a fantasia onipotente dela poder agir decisivamente sobre ele, através de seus medos e "conjurações internas", porque a minha conjuração ali substitui a dela, a exata nomeação dos seus medos em suas filigranas; instada a comparecer ali diante de minha conjuração minuciosa, sua própria conjuração ou "medo da catástrofe" se mostra incapaz de produzir o resultado-catástrofe esperado, e ela "tem licença para relaxar". O seu medo de atuação psíquica sobre o "aparelho que controla seu órgão ferido/doente" é relativizado e suavizado. No aprofundamento do vínculo clínico isso fica ainda mais reforçado, num ciclo virtuoso que, somado à atividade da medicação acertada, atenuam essas possibilidades de "fantasias de auto-colapso". Na verdade, isso é o medo do suicídio, deslocado para uma sofisticada engrenagem do "medo do suicídio psiquicamente monitorado": o medo de um "suicídio psíquico", simultaneamente mental-emocional. Com toda a ambivalência implicada nisso: "quero morrer, não quero morrer"; que, frequentemente, caminha para explicitar sua concomitância, em vez de alternância: "quero morrer e não quero morrer". O conectivo e surge para mostrar que as coisas são sempre menos simples do que parecem. Observando essas progressões de percepção de seus estados íntimos, despotencializados da "autoauscultação apreensiva de poder-querer sabotar seu aparelho de ajuda", ela se estabiliza no vínculo terapêutico que funciona como "outro aparelho de ajuda, externo a ela". Aos poucos, ela internaliza minha voz, tendo, além do "marca-passo", outro objeto regulador dentro de si: a nossa relação. Aos poucos, recupera o que de bom possa ter havido nos vínculos de até então, despotencializando ainda mais os "inimigos internos": a intrusão dos pensamentos de "auto-sabotagem rumo à morte". Na prática, os vínculos familiares e parentais são relidos, alçados a uma clave onde se podem peneirar grãos de ouro e meio ao cascalho bruto: sempre há algo para ser grato, sempre se pode "fazer melhor memória" das razões para se ter vivido o próprio percurso.

Quanto ao seu irmão, eu lhe sugeri: peça para pessoas mais sensatas lhe dizerem, durante eventuais surtos: "rapaz, sabemos que tens muito a dizer, sabemos que és um homem com palavras santas, se aproxime mais de nós: queremos ouvi-lo". Esses obreiros estão fazendo um mau trabalho. Quando ele aceitar aproximações, por pessoas que se inscrevam "dentro do delírio dele", fica mais fácil você e ou alguém lhe dar o antipsicótico prescrito pelo psiquiatra dele. Relatei o caso do irmão dela ao relatório que encaminhei à psiquiatra do meu posto de saúde, com a qual tinha um relacionamento muito bom, de "troca de figurinhas". Escrevi outro ao psiquiatra do irmão dela.
Ela, no início, colocou o remédio dele "macerado" na comida. Depois, pós-surtos, ele mesmo identificou a necessidade de continuar a tomá-los.

Gratificada ainda mais por exercer um papel de "guardiã da saúde do irmão", adveio maior senso de pertença, validação de seu papel na teia familiar mais ampla e relaxamento em relação à antiga e milimétrica "auto-auscultação e preocupação consigo mesma".

Eu lhe perguntei, brincando: "o pastor da igreja vai deixar seu irmão dar um testemunho no púlpito, do tipo: 'olha, estive aqui, tomando remédios psiquiátricos, o pastor e obreiros me incentivaram a parar com eles; cheguei a fazer 'o sermão do telhado', me achando maior do que Cristo; eles tentarão me curar e acabaram desistindo; agora, tomo novamente os remédios, e saí daquela loucura de me imaginar maior do que Cristo. Aleluia!"


Ela riu e me disse: "provavelmente, não!"

As coisas são sempre menos simples do que parecem.





Marcelo Novaes

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