Meu trabalho é sentir: uma carreira profissional no poker

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Meu trabalho é sentir: uma carreira profissional no poker. 1 Clark Mangabeira UFMT Tarde da noite, após uma partida entre amigos, perguntei a Paulo sobre o jogo, por que ele gostava tanto do pôquer e por que, desde 2011, passou a viver financeiramente quase que exclusivamente dos ganhos em mesas online e ao vivo: “Putz... tanta coisa, cara! Primeiro por que é um jogo de inteligência... A habilidade não consiste exatamente em técnica... O segredo é conhecer as pessoas, trejeitos, tells... não é óbvio... E também pela emoção! Essa é a dinâmica legal do pôquer... A gente ‘tá’ jogando agora, nessa conversa, se você parar para pensar...”. *** Em 05 de maio de 2008, numa entrevista à revista Época, Charles Nesson, professor de Direito da Universidade de Harvard, lançou-se em defesa do ensino jogo de pôquer para crianças como uma forma de pensar. Segundo o professor, “o pôquer ensina as pessoas a pensar por si próprias e lidar com os recursos disponíveis. Os jogadores também aprendem a ser pacientes, a manter sua postura e a respeitar seus inimigos. O Pôquer é um jogo social. Jogando na presença do adversário, é possível analisar a personalidade real dele” (Revista ÉPOCA, n° 520, 2008, p. 74). A opinião de Nesson é reveladora da complexidade dos discursos acerca do pôquer. Visto por muitos como um “jogo de bandidos”, por ser associado ao episódio histórico da Expansão para o Oeste dos Estados Unidos, o jogo tem ganhado não só

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Apresentado no GT-28 (Emoções, Política e Trabalho) da 28ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo; no Encontro de Estudantes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da UFRJ, realizado entre os dias 05 e 07 de dezembro de 2012, no Rio de Janeiro; e no GT-54 (Antropología del Deporte) da X Reunião de Antropologia do Mercosul, realizada entre os dias 10 e 13 de Julho de 2013, em Córdoba, Argentina. Agradeço os comentários, sugestões e debates.

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popularidade no mundo, graças a campeonatos e livros técnicos sobre o assunto, como também está tendendo a perder seu estigma de jogo de azar, enfatizando, a maior parte das opiniões, ser ele um esporte de habilidade. O objetivo desse trabalho é lançar um olhar antropológico sobre o jogo a partir da perspectiva dos seus jogadores. Interessa o pôquer enquanto uma possibilidade de circulação dinâmica das tensões entre expressão performática e controle emocional basicamente no discurso de um jogador profissional, Paulo, coletado em diversas entrevistas ao longo de 2011. Busca-se evidenciar a emoção que o jogo desperta e o controle a que é impelida a partir da performance teatral dos jogadores que tentam disfarçar suas mãos e, assim, levar o oponente a erro e chegar à vitória. O desvendamento analítico do jogo dar-se-á em quatro níveis que, embora na prática sejam indissociáveis, aqui são apresentados divididos para clareamento das ideias e discursos circulantes sobre o pôquer. O primeiro nível é o sintático, o conjunto de regras, usos e costumes cristalizados como basilares para fazer o jogo acontecer. Envolve não apenas as características primárias do jogo, suas regras fundamentais, mas também as categorias que, apesar de não serem centrais para que se possa jogar, fazem parte do léxico corrente dos jogadores profissionais e amadores mais familiarizados com a prática (categorias como tells, blefe, jogadores looses ou tights, dentre outras). O segundo nível é o semântico, que tenta responder fundamentalmente à pergunta por que jogar?. Parte-se do discurso corrente de Paulo sobre a categoria emoção e os conceitos de risco e sorte. Liga-se ao primeiro nível pela via da consideração do pôquer como esporte ou jogo, e como tal consideração influencia não apenas no momento do jogar, mas assume uma dimensão mais ampla, que recai sobre a própria identidade daquele que joga vinculando-se à ideia de profissão. A continuidade em relação a primeira

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parte é direta: o por que jogar? define-se enquanto uma resposta a uma forma de jogo, explícita no primeiro momento. O terceiro nível é o pragmático. Busca responder a pergunta como jogar? focando na dinâmica que se estabelece em termos de performance entre os jogadores no ato do jogo. Aqui se investiga como esta está ligada àquela pergunta e aos limites impostos pela forma do jogo. Um exemplo de como outra jogadora, Annie Duke, jogou uma mão, ao lado dos comentários de Paulo sobre ética e mentira, demonstrará a maneira como se relaciona a forma do jogo com a exploração das emoções enquanto ferramenta e finalidade do pôquer. Por último, acrescenta-se uma dimensão metadiscursiva que incide menos sobre o discurso de Paulo e mais sobre a construção deste trabalho. Trata-se de indagações a respeito de como lido com a categoria emoção proposta por Paulo sem cair em dicotomias excludentes. Evidencia-se a tensão entre os diversos saberes e as crenças que perpassam o conceito de emoção, polissêmico por natureza. Por fim, se o pôquer é fundamentalmente um jogo, comecemos por sua sintática. *** O pôquer é um jogo de combinação de cartas. Esse jogo, enquanto gênero, apresenta um sem número de variações que, apesar das diferenças, partilham de características básicas semelhantes, como a hierarquia das cartas e as suas combinações básicas. A variável mais famosa, e objeto desta análise, é o Texas Hold´em no limit, no qual cada jogador recebe duas cartas fechadas – que apenas ele vê – e, na mesa, são dispostas em três etapas cinco cartas diferentes, comunitárias. As apostas se dão em possíveis quatro momentos e a melhor combinação de cinco cartas dentre as sete disponíveis (duas fechadas e cinco comunitárias), quando se chega ao último nível de

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aposta e há a colocação da última carta comunitária na mesa, ganha a mão e leva as fichas apostadas. Todas as rodadas se iniciam com duas posições marcadas de antemão: um jogador será o small blind e outro o big blind. A ação acontece sempre em sentido horário, e as posições de blinds, que serão ocupadas por todos os jogadores na medida em que as rodadas vão passando, definem apostas obrigatórias cuja função é garantir que nenhuma rodada fique sem apostas. A cada rodada/mão, os blinds serão os jogadores que estavam à esquerda dos blinds da mão anterior e, na medida em que o jogo avança, os valores dessas apostas obrigatórias vão aumentando, incitando os jogadores a entrarem na ação, ou seja, a apostarem, para não apenas perderem fichas sem participar de nenhuma rodada. Cada rodada possui, então, uma aposta básica, inicial, obrigatória, que é a do big blind, e termina quando um jogador ganha o conjunto de fichas apostado durante aquela mão. O jogador a esquerda do big blind é o primeiro a agir após a distribuição das duas cartas fechadas. Ele pode pagar a aposta obrigatória do big blind, aumentar o valor da aposta (raise) ou desistir, jogar fora suas cartas, se as considerar fracas, optando por não perder fichas nessa rodada (fold). O penúltimo jogador a agir é o small blind cuja aposta obrigatória, em geral, é metade do valor apostado pelo jogador na posição de big blind: da mesma forma, ele pode aumentar as apostas, ou completar o valor para totalizar o máximo apostado até aquele momento, ou desistir dessa mão, se a julgar fraca. Vale ressaltar que as apostas obrigatórias acontecem apenas uma vez, no começo de cada rodada, antes de se distribuírem as cartas fechadas. Os blinds são posições, como o nome diz, cegas: a aposta é feita independentemente das duas cartas fechadas que se receberá. Assim, os jogadores nos blinds apostaram no escuro enquanto os demais apostarão já tendo recebido suas cartas fechadas.

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Um exemplo clareará a dinâmica: imaginemos uma mesa com quatro jogadores. O jogador um é o small blind e o jogador dois, a sua esquerda, é o big blind. Digamos que a aposta inicial seja de 10 fichas para o jogador no small blind e de 20 fichas para o jogador no big blind. O jogador três, a esquerda do jogador big blind, é o primeiro a agir: se quiser sair do jogo sem apostar, bastar desistir de sua mão, dando fold. Para continuar no jogo, contudo, ele pode ou pagar a aposta obrigatória já feita pelo big blind, neste caso hipotético, 20 fichas, ou aumentar – raise – essa aposta, digamos, colocando 40 fichas. Imaginemos que ele apenas pagou as 20 fichas. O jogador quatro, a esquerda do jogador três, tem as mesmas opções: ou apenas paga, ou aumenta a aposta, ou desiste da mão. Digamos que ele também paga apenas 20 fichas. Volta-se então ao jogador um, o small blind, que tem, novamente, as mesmas opções: ou completa sua aposta obrigatória em 10 fichas, totalizando as 20 apostadas por todos, ou desiste da mão, ou aumenta o valor das apostas. Este também apenas pagou. É a vez do big blind dar sua palavra. Digamos que ele também optou por não aumentar a aposta obrigatória. Logo, os quatro jogadores apostaram, cada um, 20 fichas. O total de 80 fichas ficará sendo o pot inicial, ou seja, o valor que está sendo disputado naquela mão/rodada. Continuando nosso jogo hipotético, o dealer (o crupiê) colocará no centro da mesa as primeiras três cartas comunitárias, de uma só vez: o chamado flop. Até aqui, cada jogador tem duas cartas em mãos, distribuídas antes da ação inicial, que só ele conhece. Agora, já começam a imaginar e potencializar suas combinações com as três cartas abertas na mesa. Para a próxima rodada de apostas, a segunda, eles levarão em conta a combinação que já possuem ou não. Assim, sempre o primeiro a falar em toda mão pósflop é o small blind: como não há mais apostas obrigatórias (estas só são colocadas no pré-flop), ele pode ou apostar qualquer valor (por isso a modalidade é no limit, ou seja,

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sem limites de apostas, já que qualquer jogador pode apostar o quanto quiser, inclusive todas as suas fichas – all-in), ou desistir da mão, ou ainda, já que não há apostas na mesa, dar um check, uma espécie de passar a vez para o oponente a sua esquerda sem apostar nada. Digamos que o small blind deu um check para o oponente a sua esquerda, o big blind. Da mesma forma, esse pode ou dar raise (apostar), ou dar fold (desistir da mão) ou dar check (passar a vez já que não há apostas ainda). Agora, o big blind resolveu apostar 40 fichas. O jogador três, a sua esquerda, não poderá dar check, já que há aposta na mesa. Resta-lhe ou dar fold (desistir), ou dar raise (aumentar), ou apenas pagar o valor apostado até então. Ele paga. Na mesma linha, o jogador quatro tem as mesmas opções do três. Digamos que ele dobra o valor da aposta até então colocada, 40 fichas, apostando 80. Volta a ação ao jogador um, o small blind. Ele deve, novamente, ou pagar a aposta, ou desistir da mão, ou aumentá-la. Ele paga. O jogador dois – big blind – faz o mesmo e os jogadores três e quatro também. Como todos apostaram as mesmas 80 fichas, essas 360 fichas somar-se-ão às 80 do pot inicial, totalizando agora 400 fichas em jogo. Percebam que a rodada de apostas só acaba quando todos tiverem apostado a mesma quantidade de fichas. Passa-se para a terceira fase: o dealer abre uma nova carta comunitária, o turn. Ao lado do flop, esta quarta carta comunitária faz com que o jogo penda para novas possibilidades de combinações. Cada jogador, assim, deve estar atento à combinação que possui em mãos, ao histórico de comportamento dos seus oponentes ao longo das rodadas, às possibilidades de melhores combinações de cartas que podem ter surgido e que derrotariam sua mão, à quantidade de fichas que ainda possui e à quantidade que está disposto a apostar para defender sua mão. Começando pelo small blind, as apostas correm conforme descrito acima. Por fim, quando todos tiverem apostado a mesma quantidade e

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o pot tiver aumentado, o dealer abre a última carta, a quinta, chamada river. É a vez da quarta e última rodada de apostas (lembrando: há uma pré-flop – na qual há as apostas cegas dos blinds –, uma pós-flop, uma pós-turn e a pós-river). Ao final, quem ainda estiver jogando revela sua mão e a melhor combinação de cinco cartas dentre as sete disponíveis para cada jogador – as duas fechadas e as cinco abertas – ganha o valor do pot, aumentando seu stack (quantidade pessoal) de fichas Começa-se outra rodada, com as posições dos blinds passando para a esquerda. O jogo só acaba quando um participante tiver ganhado todas as fichas. Perdoe-me o leitor pela quantidade de dados técnicos e regras estruturais do jogo, mas elas são fundamentais para que possamos entender como funciona a categoria emoção no discurso dos jogadores, em especial no de Paulo. A cada aposta, averiguandose a possibilidade de perdas ou ganhos e torcendo para que sua combinação de cartas mantenha-se como a melhor do jogo, a tensão aumenta, elevando tanto o gosto pelo jogar, quanto a necessidade de controle sobre suas emoções e expressões – categoria nativa – para evitar que os adversários percebam quando se está blefando. Cada aposta, a princípio, baseia-se na força da sua mão: se a mão for forte, aposta-se muito; se fraca, pouco. O blefe entra enquanto uma mentira sobre a força da sua mão. Através da quantidade apostada, dribla-se a possível visão e leitura do adversário sobre o seu jogo: aposta-se muito alto, por exemplo, dando-se um all-in quando não se fez nenhuma combinação possível, na tentativa de ganhar a rodada na base do medo que se coloca contra o adversário. Um risco calculado, mas ainda assim um risco: pode-se sair do jogo com um blefe, ou ganhá-lo na base da mentira sobre o próprio jogo e da leitura sobre o que o outro oponente tem e do seu estilo de jogo, se ele pagaria ou não.

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Nessa breve exposição geral e introdutória às regras do jogo, cabem ainda duas considerações fundamentais. Primeiro, ainda no registro das regras, a ordem das combinações que são valorizadas hierarquicamente, definindo as melhores e as piores mãos. Segundo, no registro dos costumes do jogo, a classificação dos jogadores em duas dicotomias relacionadas: jogadores passivos / jogadores agressivos e jogadores tights / jogadores looses, padronizações que influenciam o como jogar. Sendo um jogo de combinação de cartas, há, primeiro, uma valoração das cartas individualmente, sendo a mais alta o Ás, seguida do Rei, Dama, Valete, 10, até a mais baixa, o 2; e, segundo, oito tipos de combinações diferentes entre elas que valem a cada rodada. Primeiro, a combinação mais baixa, é um par de cartas iguais. Obviamente, começar o jogo com um par de ases na mão é o melhor cenário possível. Um par perde para dois pares: por exemplo, começo com um 5 e um valete e, no flop, saem outro 5 e outro valete; possuo como jogo dois pares (5/5 e valete/valete) que vencem, hipoteticamente, um par de ases de outro jogador. Isso influenciará nas minhas apostas. Mais alto do que dois pares é uma trinca, ou seja, três cartas iguais. Depois uma sequência ou straight – cinco cartas numericamente em sequência –, como, por exemplo, Ás-2-3-45. Em seguida, vem o flush, combinação de cinco cartas do mesmo naipe, mas não em sequência. É a combinação na qual vale o naipe, ao passo que em todas as outras até aqui descritas era o valor numérico que importava. Não há hierarquia entre os naipes, mas, voltando, um flush (por exemplo, quaisquer cinco cartas de espadas) vence uma sequência, uma trinca, dois pares e um par. Em seguida, o famoso full house, combinação de uma trinca com um par – exemplo, Rei-Rei-4-4-4. A penúltima combinação mais alta é uma quadra, quatro cartas iguais: combinando-se as cartas fechadas e as comunitárias,

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as quatro cartas dos quatro naipes saem na rodada. Por fim, a jogada mais alta no pôquer é o straight flush, cinco cartas em sequência e do mesmo naipe. Diversos livros, artigos e sites especializados apresentam as possibilidades estatísticas de cada uma dessas combinações saírem a cada rodada, influenciando no modo de jogar. Assim, há 1.302.540 combinações possíveis de um par, ao passo que apenas 36 possibilidades de straight flush. É com base nessas informações técnicas, que os profissionais avaliam cada mão e, inclusive, defendem o pôquer como esporte de habilidade e não apenas jogo: Em outras palavras, o jogador mais habilidoso sabe a porcentagem de vezes que um par de mão (AA, por exemplo), ganha de um par mais baixo; ou conhece o conceito de race (corrida), que é quando um par enfrenta duas cartas mais altas com ambos jogando all-in pré-flop (todas as fichas de ambos os jogadores são apostadas antes mesmo de se abrirem as cartas na mesa) – situação em que o par tem uma pequena margem de favoritismo. Se tiver, por exemplo, J J , e seu adversário, A K chance de ganhar a mão. (Bello 2008: 65)

, você tem cerca de 53,6% de

Essas nuances técnicas definem, em parte, no imaginário dos jogadores, o curso de uma mão e os diferenciam entre amadores e profissionais. Discursivamente, o aspecto matemático e estatístico começa a se impor sobre o conceito de sorte e acaso permitindo melhor visão de jogo e margem de manobra para aqueles que o dominam. A dicotomia sorte/técnica se mantém, mas, com estas categorias matemáticas, a segunda prevalece sobre a primeira, diferenciando, por exemplo, o pôquer de um jogo de loteria. Ao lado deste domínio objetivo, estatístico, outro surge como basilar da ideia de técnica e habilidade no pôquer. Não mais em um registro objetivo, é a classificação do ponto de vista subjetivo das atitudes dos jogadores, em um eixo, como agressivos ou passivos e, em outro correlato, como tights ou looses que complementam a ideia de técnica e habilidade no discurso corrente. Segundo Leo Bello (2008), o eixo agressividade/passividade qualifica o jogador depois que ele já está jogando a mão, no

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curso da rodada. É agressivo o jogador que aposta muito, aumenta e reaumenta os valores apostados na tentativa focada de ganhar o pot. Já o jogador passivo é aquele que pouco aposta, dá muitos checks e reaumenta apostas em um montante quantitativamente pequeno: em resumo, poucas apostas e poucos raises. A habilidade define-se, nesse paradigma, na medida em que ir contra a tendência predominante durante o jogo eleva as suas chances de ganhos: ser agressivo em uma mesa passiva pode dar o comando sobre o curso das apostas e vice-versa. Por outro lado, no eixo tight/loose, a classificação se dá com relação ao jogador antes que ele comece as apostas, sobre a quantidade de mãos que está disposto a jogar. Jogadores que apenas entram no jogo com mãos fechadas boas, que abandonam muitas mãos antes mesmo do flop e que sempre que resolvem jogar possuem cartas acima da média, são considerados tights. Já aqueles que pagam mais vezes e, por conseguinte, entram em mais pots, apostando mais mãos e jogando maior número de vezes contando com as cartas do flop, são considerados looses. Também nesse eixo, a habilidade se mede em saber dosar os dois polos, construindo uma imagem e manipulando-a ao longo das rodadas: fingir ser loose quando se está sendo tight ou vice-versa é elemento central para blefes, por exemplo. Dessa forma, os lados objetivos – matemática, probabilidade e estatística – e os subjetivos – eixos agressividade/passividade e tight/loose – determinam os elementos centrais do discurso do pôquer não como um jogo de azar, mas como um esporte de habilidade: Já houve muita discussão sobre o percentual da relação sorte/habilidade em um jogo de poker. Em minha opinião, a sorte compreende de 20 a 25% contra os 75 a 80% determinados pela habilidade do jogador. Alguns profissionais aumentam esse numero em relação à sorte. É indiscutível [...] o fato de a sorte ter um papel no poker. Por exemplo, há uma situação em que a sorte é determinante: é quando dois jogadores praticam all-in pré-flop (apostam todas as suas fichas antes de abrirem as cartas na mesa). Neste caso, você retirou as opções de escolha e ação, dependendo exclusivamente de quais cartas serão abertas (Bello 2008: 67).

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Nesse panorama estrutural, sintático, de regras sem jogadores, uma tricotomia é essencial para entender o discurso de Paulo sobre as emoções e o jogo em si: a relação entre habilidade/ação, sorte e possibilidades. A observação da posição do jogador na mesa, a construção do jogo cujo epicentro são as apostas, o equilíbrio entre atitudes diversas sobre as mãos que se está jogando e sobre a quantidade daquelas que se jogará, avaliação do comportamento de padrões de aposta dos adversários, conhecimento matemático-estatístico sobre as porcentagens e possibilidades de cada mão, tudo contribui para a formação do background diante do qual a atividade dos jogadores desenvolver-seão. No registro e léxico de Georg Simmel (2006), as formas descritas tornaram-se valores definitivos, autônomos, que determinam suas matérias. A competição, a ideia de submeter-se ao acaso e de medir-se em um terreno de habilidade, antes acopladas à vida, agora permanece como finalidade e matéria de sua própria existência, definindo aquilo que ficará sob sua força – um mundo criado artificialmente, movido apenas por sua própria atração, como sociabilidade. O universo do pôquer é criado, construído, ou melhor, ficcionalmente montado, no sentido de que se coloca autonomamente ao lado do mundo “real” – trata-se uma forma de sociabilidade. É efetivamente um outro mundo, nascido e estabelecido em relação de contiguidade e semelhança ao mundo “real” em uma dinâmica metonímica: parte daquele mundo corriqueiro, “real”, é tomado e transformado em um todo ficcional que envolve os jogadores. A parte de um mundo transformou-se no todo de um outro mundo fim em si mesmo, inteiro, completo, criado, ficcional: a mesa de pôquer. É exatamente tal configuração do jogo, enquanto, no registro sintático, composto de regras, costumes e ordens que o estruturam, que permite a experiência de ser outro alguém, uma personagem no jogo, de adquirir e manipular outras identidades e de discursar sobre o jogo em si. Saio

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do aqui presente para um outro aqui ficcional no qual experiências diferentes encadeiamse. Eis, portanto, nesse primeiro registro, sintático, a essência do pôquer: ele é uma forma de sociabilidade, uma forma lúdica de interação ou sociação que se retroalimenta como valor autônomo e, por isso, fundamental conhecer suas regras para poder entender os discursos. Apenas permitindo-se mergulhar nessa sociabilidade ficcional é que a avaliação dos conteúdos trazidos para dentro dela passa a ter valor semântico: perguntar por que jogar? só faz sentido, primeiro, se fizermos a pergunta a quem joga, a quem gosta e quer jogar, àqueles que jogam para vencer e que penetraram na sociabilidade; e, segundo, a partir do momento em que quem pergunta também conhece o mundo sobre o qual indaga, partilhando o mesmo código ficcional. Possível agora, portanto, passar ao segundo nível, o semântico, com a introdução do discurso do jogador.

*** “Poker is a game of people” (Doyle Brunson)

Paulo é um jovem de 26 anos, formado em Física. Abandonou o mestrado após não “se encontrar” na vida acadêmica, “por que física é coisa de maluco” e por “total frustração e raiva”. Depois de um período em que ficou muito doente devido a uma artrite precoce, pensou em pedir aposentadoria por invalidez e viver exclusivamente dos lucros do jogo. Por pressão familiar e “por que ter um emprego fixo com salário ‘certo’ todo mês é mais seguro”, hoje, além do jogo, ele também trabalha em uma corretora como operador de ações e joga, em geral, em um clube de pôquer na Zona Sul do Rio de Janeiro. A ideia de que o pôquer é uma/sua profissão é viva na medida em que a maior parte dos seus rendimentos provém das mesas de jogo. Aqui, a categoria profissão aparece atrelada a ideia de viver financeiramente de, ao passo que emprego é correlato de 12

segurança, horas diárias de trabalho. Ademais, seu conceito de profissão é corroborado pela visão de fundo do pôquer como um jogo de habilidade, inteligência e técnica, refratário a sorte enquanto uma instância absoluta que o controla. Complementarmente, no seu discurso, de uma maneira mais ampla, se o jogar é considerado uma profissão na medida em que permite ganhos financeiros relevantes, essa característica se retroalimenta na sua visão do pôquer como esporte, diferente de jogos de azar: “eu considero esporte da mesma forma que xadrez ou sinuca, mas certamente não é um esporte que envolva atividades físicas. O cansaço é em geral mental”. O par lucrohabilidade mental funda a concepção, cada vez mais generalizada, embora ainda não única, nem hegemônica, do pôquer como esporte mental cujo centro é uma concepção de emoção como categoria em si: Paulo usa o termo emoção como chave de entendimento do por que jogar, como instrumento de jogo e como atrativo do pôquer, mas não delimita em termos nominados o que sente – se raiva, angústia ou alegria, por exemplo. Emoção, aqui, é um termo genérico e absoluto, uma espécie de estado de sentir que deve ser instrumentalizado como meio de jogo e perseguido como finalidade. Se, para nosso jogador, pôquer é um esporte mental, como a sinuca e o xadrez, ele possui peculiaridades exatamente no uso da emoção: “por exemplo, eu jogo sinuca. Às vezes você tem a emoção de dar aquela bela tacada e fica feliz com isso... Você fica feliz por que executou bem a técnica. No pôquer, você fica feliz quando lê bem uma jogada e toma a decisão certa... Mas, além disso, você fica feliz quando vem com boas cartas, quando acerta o flop, quando vê que alguém ‘tá’ caindo direitinho na sua armadilha e o mais legal: você tem que conter isso tudo como se nada tivesse acontecendo”. Emoção e controlar a emoção são dois valores complementares e autônomos, ao mesmo tempo, que fundam o Texas Hold´em: as sensações no espaço lúdico são objeto/fim do jogo, mas,

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também, controlar aquela emoção é algo que a desperta, em um paradoxo no qual controle leva a emoção que deve ser, novamente, controlada: “esse controle, cara, torna o jogo ‘não óbvio’ e é o jogo ser ‘não óbvio’ que me empolga. Na sinuca, a jogada ‘tá’ ali, definida... Com as bolas espalhadas na mesa existe um certo consenso de qual é a melhor jogada para você ou o seu adversário. No pôquer, você não tem uma receita de como jogar... Cada caso é um caso e envolve muitas variáveis. Para mim, sempre vai depender do contexto”. Voltando um pouco, vale lembrar que o pôquer é um jogo. Apesar da aparente obviedade desta afirmação, é a partir dela que aparece a problemática em si. O discurso de Paulo e de muitos outros jogadores de que o pôquer não seria um jogo de azar no qual haveria apenas a sorte como impulso para a vitória, mas um esporte, pois envolve habilidade, administração do corpo e da mente, domínio sobre o curso de cada mão, observação dos adversários para conseguir uma “leitura” das mãos contra as quais se está jogando, preparo técnico e estudo do assunto, além de muito treino, funda-se na premissa básica de que “você joga os jogadores, e não somente as cartas” (Bello, 2008, p. 49), característica instauradora da busca pela emoção. Na temática esporte/jogo, segundo Johan Huizinga (2008), o jogo é um intervalo lúdico na seriedade do cotidiano. Todo jogo encerra a presença de um elemento imaterial no seu cerne, o espírito do jogo, cuja essência lúdica é o ousar, o correr risco, o suportar a incerteza, tensões e emoções, transcendendo, desse modo, as necessidades imediatas da vida. A alta dose de imprevisibilidade é a responsável por gerar as emoções e a sensação de liberdade, sendo o jogo uma evasão da vida real, um constructo simbólico e temporário que absorve inteiramente o jogador. A tensão gerada pela imprevisibilidade é também

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importante para o jogo, pois coloca à prova as qualidades do jogador, sua habilidade e competitividade, conferindo certo valor ético à dinâmica. Para Norbert Elias (1992), tais aspectos relacionados ao correr riscos, tensão, desafio e prazer que Huizinga destaca na sua obra, também estariam presentes nos esportes modernos. Alocando o esporte no curso de sua análise sobre o processo civilizador – cujo enfoque são os processos de controle social e o autocontrole dele decorrente levando a um redimensionamento da sensibilidade com relação à violência e vivência de emoções –, Elias afirma que no curso da vida diária existiriam poucos espaços para a expressão das emoções, gerando tensões na estrutura psíquica do indivíduo ocidental moderno. Paralelamente, ao lado do cotidiano, haveria várias atividades de lazer cuja função seria liberar as tensões produzidas pelo processo civilizador, destacando-se como uma delas o esporte. Dessa forma, uma das características mais claras do processo de contenção das emoções foi a demarcação de outros espaços para seu extravasamento, embora esse espaço também tenha em si uma limitação quanto ao uso de violência. Se, por um lado, no cotidiano, é exigido do indivíduo a contenção de suas emoções, por outro, há a criação de um espaço imaginário no qual estas podem fluir com mais liberdade. Para o autor, as emoções despertadas pelas atividades esportivas imitam, de certo modo, as produzidas pela vida cotidiana, mas sem os perigos que estas contêm, proporcionando um relaxamento do autocontrole, de modo que a atividade passa a configurar um campo de expressões miméticas. Consequentemente, tanto jogos quanto esportes, atividades socialmente aceitas, equilibram as tensões entre a busca de excitação e o controle das emoções.

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É no seio dessa discussão que o tema paradoxo da emoção no pôquer descrito por Paulo ganha relevo e complexifica as teorias propostas. Considerado um esporte, o jogo traduziria, a princípio, um espaço lúdico construído onde se poderia extravasar emoções. A cada aposta, a cada rodada, os jogadores liberam uma carga de adrenalina compatível com a intensidade da jogada em questão, com a possibilidade de ganhar mais fichas ou de sair do jogo: “a emoção que eu digo é que sempre se cria a expectativa com as cartas que aparecem, os jogos que vão entrar”, como nos diz Paulo e complementa Leo Bello: “No pôquer, você mantém toda a emoção das jogadas – desde antes de abrir as castas comunitárias até a aposta final. É impossível a adrenalina não subir quando se enfrenta uma aposta all-in de um adversário ou até mesmo quando você é quem faz essa aposta” (Bello 2008: 48). Por outro lado, o fascínio que o jogo desperta parece estar não apenas nas sensações que ele permite liberar, mas, principalmente, no valor autônomo correlato que aparece como mola propulsora das emoções, instrumento de jogo e, por si só, também uma fonte de emoção: o autocontrole, a habilidade de disfarçar as mãos para não entregar seu jogo ao adversário. Não apenas sentir emoção, mas disfarçá-las, controlar um possível descontrole, é também uma forma emotiva apropriada simbolicamente pelos jogadores. A emoção entra como uma categoria de jogo, tanto pelo viés da sensação de cada jogada (no contexto explicitado por Elias e Huizinga), quanto seu controle como técnica do jogar que, autonomamente, também leva a mais emoção. Assim, Paulo afirma que “conseguir controlar as suas emoções quando você fecha um bom jogo, isso é legal também”. É nas situações de blefe descritas por Paulo que esse paradoxo – controle da emoção como instrumento de jogo e meio de se conseguir mais emoção – adquire sua explicitação máxima: “eu não blefo dando all-in justamente por que, pra mim, é muito

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difícil esconder a emoção nessa hora. Você fica muito tenso, como e tivesse medo de alguém te pegar de ‘calça arriada’. Dá um certo medo de ser pego de ‘calça arriada’... Eu fico parado duro, tentando esconder que ‘tô’ mentindo, mas é muito difícil”. A possibilidade de ser desmascarado enquanto se controla as emoções, de “ser pego de calça arriada”, mostra claramente a dimensão produtora de sensações/emoções do autocontrole. Não é apenas um controlar de emoções que está em e no jogo, mas emoções que surgem neste ato de autocontrole. Roberto DaMatta (1982), dialogando na mesma sintonia que Elias e Huizinga (embora criticando o primeiro por faltar em seu estudo a comparação dos esportes em diversas culturas, e contrariando-o ao entender que as emoções que o jogo e o esporte despertam não são miméticas, mas sim concretas, intrínsecas à própria atividade esportiva), afirma que o esporte promove um efeito de pausa e relaxamento enquanto uma atividade antirrotineira. Além do mais, poder-se-ia compreendê-lo como um drama social, uma maneira mais enfática de situar um conjunto de problemas significativos socialmente. O ponto no qual o discurso de Paulo complexifica os três autores citados – Elias, DaMatta e Huizinga – é que, se considerarmos o pôquer apenas como um espaço antirrotineiro, uma evasão do mundo real, um espaço para expressão de emoções, um relaxamento do autocontrole, há a criação de uma dicotomia que privilegia uma emoção controlada no dia a dia e um relaxamento desse controle e extravasamento emotivo no jogo. O ponto é que, no discurso sobre o pôquer, embora haja a dimensão de sentir/buscar emoção, o controle é um dos traços de sociação que ganhou prestígio e autonomia nesse mundo metonímico e ficcional de sociabilidade. Tal controle não é deixado de lado para permitir extravasamento de emoções, mas eleito como o centro a partir do qual a emoção

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pode ser sentida. Pôquer é um jogo, mas um jogo no qual não prevalece um momento de descanso para o autocontrole do dia a dia: o autocontrole é, ao contrário, o motivo, o impulso, a fonte de prazer e o instrumento do bom jogar. Esse foco no autocontrole, paralelo ao impulso lúdico básico de busca por excitações dos jogos, é um traço do caráter metonímico do mundo ficcional do pôquer. Criado ao redor do controle de emoções, o mundo do jogo testa as habilidades do jogador neste ponto, criando o movimento de tensão: “sempre rola uma adrenalina, mas por que ela rola eu não sei dizer. Quando a gente tenta esconder as emoções, em geral a gente consegue pra quem não ‘tá’ atento. Vai ver é difícil esconder no pôquer por que tem muita atenção voltada a você e às vezes sua emoção é revelada pelo fato de você tentar esconder enquanto tem muita gente prestando atenção em você... Eu não sei dizer se é difícil controlar o tempo inteiro, e as pessoas só prestam atenção nisso em momentos como num jogo de pôquer, ou se é essa atenção que faz você não conseguir esconder as emoções”. Assim, o controle das emoções que, no cotidiano, classificado como “sério” por todos os autores citados, aparece como regra social imposta, é perseguido no espaço lúdico do pôquer como um valor em si, um meio lúdico e uma habilidade para se chegar à vitória, sendo tão estimado quanto às próprias sensações e também as despertando. Mais profundamente, a fala de Paulo demonstra o caráter metonímico de continuidade em relação ao mundo “real” que estabelecemos como paradigma do pôquer. Em ambos os “mundos”, o autocontrole existe. Mas, por que o autocontrole é colocado no centro das atenções quando sentamo-nos à mesa de pôquer – uma parte do mundo de “lá” que vira um todo no mundo “daqui” –, ele tem a paradoxal capacidade de fazer as emoções emergirem, tornando-o a si mesmo mais difícil. Sempre há dificuldades de autocontrole, mas, neste mundo ficcional, é uma dificuldade aumentada pela atenção

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constante dos adversários. Mesmo difícil, ele continua necessário como instrumento, sua manipulação aclamada como uma grande habilidade e uma parte fundamental do jogo, sendo, inclusive, a falta de atenção, os deslizes no autocontrole, as pistas para o adversário de que se está mentindo, uma categoria nativa: os tells – “os tells às vezes são mínimos e as pessoas só percebem por que estão prestando a maior atenção no mínimo trejeito que você deixa escapar”. Nesse sentido, o pôquer parece elucidar de maneira peculiar a dicotomia da atitude social para com a emoção: enquanto espaço para extravasá-la, no teor do que os três autores supracitados afirmaram, o pôquer promove a emoção cotidianamente reprimida, liberando sensações. Contudo, paralelamente, o autocontrole surge como elemento valorado autonomamente, técnica, instrumento do jogo, de maneira que faz parte da performance dos jogadores enquanto habilidade e é, em si, um fim e uma fonte de sensações/emoções. Se sentir a emoção pode ser entendido como um dos motivos para a prática do jogo, por outro lado, o autocontrole valorado como habilidade e fonte de mais emoções resolve paradoxalmente, nos termos de DaMatta, um conjunto de problemas socialmente significativos, visto que o jogo premia quem melhor controla a sensação das emoções, evitando trejeitos e pistas – tells – que indiquem para seu oponente que se está blefando, e, ao mesmo tempo, consegue senti-las e aproveitá-las, em um movimento intercruzado: entre a busca da excitação e o controle emocional, a peculiaridade do jogo de pôquer parece ser sua construção enquanto um espaço metonímico, ficcional, onde a sensação que se busca é tão importante quanto a forma de senti-la, a maneira de administrá-la, de disfarçá-la, sob pena de não ser vitorioso. O pôquer como drama social, novamente com base na opinião de DaMatta, reproduz no seu microcosmos, sem aparente

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atrito, a relação de tensão mais absoluta visível entre autocontrole e emoção do macrocosmos cultural. Se emoção e autocontrole são meio de sensações e fins em si mesmos, objetos e instrumentos de jogo na dinâmica da mesa, devemos considerar o como jogar? como parte fundamental para entendermos a dinâmica emotiva apresentada e valorizada metonimicamente neste mundo ficcional. Passemos, portanto, ao nível pragmático. *** “That´s what Poker´s all about. People… and the strategy you use against them”. (Doyle Brunson)

A habilidade dos jogadores é avaliada na dinâmica do sem número de variáveis que devem ser controladas dentro dos parâmetros das regras previamente estabelecidas. A busca do reconhecimento oficial do jogo como esporte mental tem como o motor as técnicas que, no discurso mais amplo, não deixam a sorte comandar inteiramente o jogo. Em 2006, o Instituto de Criminalística da Superintendência da Política Técnico-Científica da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo avaliou e “oficializou” o pôquer na categoria jogo de habilidade, permitindo os campeonatos. Segundo o laudo, [...] inferem os peritos que trata-se de um jogo de habilidade, pois ficou constatado que a habilidade do jogador que participa desta modalidade de jogo depende da memorização, das características (número e cor) das figuras apresentadas no decorrer do jogo, e do conhecimento das regras e estratégia de atuação em função destes fatores, sendo, porém, o resultado final desta modalidade de jogo aleatório (Laudo N°: 01/020/0058872/2006 – disponível no site da Federação de Texas Hold´em do Rio de Janeiro – http://www.fthrj.com.br/jurisdicidade).

Como visto, no centro da dinâmica de habilidade está o autocontrole emotivo. Em termos instrumentais, controlar-se, impedir que os oponentes vejam suas emoções, camuflar suas jogadas para induzi-los a erros, perceber as tells que indicam os blefes alheios, além das avaliações matemáticas e estatísticas, são parte de um corpus conceitual e instrumental que o bom jogador, seja profissional ou não, deve possuir para manipular

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e ganhar a mesa. Essa “ação”, que leva em conta aquelas regras e o significado de cada conceito no jogo, aparece no jogar as mãos em si, na pragmática do pôquer. Em 1992, Annie Duke, uma famosa jogadora profissional norte-americana, então com 26 anos, então doutoranda em psicolinguística na Universidade da Pensilvânia, largou a promissora carreira acadêmica após um surto de síndrome do pânico e voltou-se totalmente para o jogo. Nas suas palavras, Então eu fugi. Fugi para Montana, para me casar com um homem que eu nunca tinha namorado. E depois, quando o dinheiro começou a minguar e eu sentia que era um farrapo morando numa casinha humilde, cheia de goteiras, iluminada com lâmpadas fracas e com um mínimo de água quente, entrei no meu Honda e dirigi 75 quilômetros até chegar ao Crystal Lounge, em Billings. Sentei-me numa mesa de pôquer, entre caubóis de dedos calejados e trabalhadores braçais cheirando a álcool, tirei os sapatos e enfiei os pés nus embaixo do meu traseiro – e quando o carteador me lançou um ás-dama, eu sabia que finalmente havia chegado em casa. É aqui que minha vida começa. (Duke 2007: 11).

A guinada na vida profissional levou Duke a ganhar milhões de dólares e a ser uma das primeiras mulheres campeãs no World Series of Poker, o campeonato mundial. Em um jogo predominantemente masculino, Duke ganhou respeito e fama jogando principalmente na modalidade Omaha, com regras um pouco diferentes das do Texas Hold´em. Mesmo jogando outra modalidade, a descrição de uma das suas mãos demonstra claramente o caráter performático do pôquer, nosso interessa ao tratar da pragmática do jogo: Erik e eu estamos no mesmo bolo, e eu estou fazendo o que se costuma fazer no pôquer: tentando fazê-lo fugir. Um flush e um straight se formam com o turn. Por causa da mesa, que mostra duas copas, é bem provável que Erik esteja acreditando que tenho a melhor mão. Creio que ele imagina que tenho um flush. Quero assustá-lo para fora do bolo de modo que eu repico (raise): Funciona. Ele corre. – Achei que você ia blefar – resmunga Erik. – Não, não. Eu tinha mesmo – minto. Esse sujeito é um dos meus mais queridos amigos, mas, no pôquer, trato todos da mesma maneira. Minto para todos. Agora temos novos blinds – 2.000-4.000 dólares – e novos limites: 4.000-8.000 dólares. Estou um pouco acima da média em fichas e consigo dois reis. Don McNamara repica e todos fogem até mim. Eu contra-repico. Ele

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paga. Vemos o flop. É 9-10-K (rei). Tenho um par de reis e creio que vou segurar. No turn, Don dá mesa. Eu aposto. Ele paga. [...] Como há duas cartas de ouros, eu o coloco num flush draw2. O river traz uma carta de ouros. Don bate mesa (check), olhando para mim. Eu vou de mesa também, imaginando que ele tem um flush, e depois mostro minhas cartas. – Eu só tenho uma trinca de reis. – Ele faz uma careta para as suas cartas. Eu avanço para 100.000 dólares em fichas. Há uma ironia em ganhar essa importante mão. Algumas mãos depois, Don diz: – Você teve sorte. Não li direito a mão vencedora. – Em seguida começa a explicar que tem uma dislexia leve e leu a mesa muito devagar para perceber que fizera um flush no river, que venceria meus reis se não tivesse jogado fora as suas cartas. – Eu tive uma paralisia mental – conclui ele. (Duke 2007: 119/120).

Dois pontos centrais nas jogadas de Duke: primeiro, sua postura de mentir para todos no jogo, independente do grau de carinho e amizade, é indicativo da construção do outro mundo que o jogo permite, um mundo diferente que exige diferentes atitudes. De acordo com Paulo, “você vive num meio que te cobra ética e honestidade o tempo inteiro... E quando você vai jogar pôquer esses valores tornam-se muito relativos. Existe mais uma etiqueta, umas regras de conduta e bom convívio, mas na hora do quebra pau com cartas e fichas, vale tudo”. Esse mundo ficcional traz em si a competição como outro valor fundante: o vencer a qualquer custo é o mote de qualquer esporte, mas, no pôquer, ele adquire outra aura devido aos instrumentos que se usa. Os blefes, as camuflagens, levar o outro ao erro são os fundamentos apreciados pelo bom jogador. A habilidade que se “treina” não possui como foco desenvolver qualidades consideradas boas pelo senso comum, mas, ao contrário, negativas. Ser um bom jogador é ser um bom mentiroso, como informa Duke, e, no mundo ficcional, esse é um valor extremamente positivo e valorado. Outro mundo, outros princípios.

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Flush-draw significa um cenário no qual o jogador ainda não tem um flush (cinco cartas do mesmo naipe), mas está em um draw, ou seja, falta sair apenas uma carta na mesa para se fechar as cinco necessárias. A ideia de draw – desenho – é a construção de uma mão poderosa à medida que as cartas saem. O indicado, quando se está em um flush-draw, é defender a mão, tendo em vista que a alta probabilidade de vir a outra carta do naipe que interessa ao jogador.

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Segundo, a explicação de Don para seu “erro” sinaliza a sensação desconfortável de se perder após o investimento de fichas e controle emocional em uma mão. Toda a jogada é salpicada de tensão, que aumenta a cada carta comunitária que aparece. Como visto, é o controle de si que deve ser jogado o tempo todo. Don, perdendo a mão, foi pego de “calça arriada”, para usar o termo de Paulo, e uma explicação mesmo não convincente foi necessária, na sua lógica, como justificativa, ao invés do silêncio. Se ele errou, o erro no seu controle e atenção se deu por um fator externo – dislexia – e não por que ele errou simplesmente. A ironia a que Duke se refere está aqui: controlar a si deve ser algo necessário, dado no pôquer, e o não controle, seja das emoções, seja da atenção, é sempre desvalorizado; Don estava se justificando como bom jogador apesar do descontrole, da desatenção, embora, ironicamente, tenha feito essa análise apenas após perder a jogada. Para Paulo e Duke, no jogo vale tudo. Contudo, as regras de etiqueta, como em qualquer outro esporte, são necessárias: o fair play é valorizado, mas com a nuance de se evitar a sensação de ser melhor do que o outro – “Quando ganho, evito o salto alto. Deu certo agora... A gente fica feliz e tal... Dá realmente aquela sensação de ‘fodão’, mas eu tento cair na real o mais rápido possível. ‘To’ sempre com o pé atrás com o troco. O castigo vem a cavalo”. Novo paradoxo apresenta-se: em um jogo no qual “você está mentindo para tirar vantagem de outra pessoa”, nas palavras de Paulo, há uma etiqueta de como se fazer isso. Jogo enquanto jogar é uma realidade ficcional que permite a mentira, mas ser perverso e antiesportivo toca na tensão das barreiras entre os dois mundos e corrompe a fronteira ficcional do jogo, destruindo o mundo criado. O sentir-se melhor do que o outro jogador só é possível no jogo enquanto jogo, mas deve ser guardado para si, de modo que controlar o impulso de qualquer provocação é fundamental. Mentir de acordo com regras, valorizar a mentira como meio de ganhar dinheiro, mas não se sentir

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melhor do que o outro jogador, nem provocá-lo, são os pontos que permitem a pragmática do jogo e balizam todas as mãos. A mentira está vinculada ao controle da emoção como instrumento de jogo para evitar riscos desnecessários. O enganar o próximo é dissimular as próprias emoções e calcular a própria performance para não permitir a detecção do blefe pelo adversário, como quando Duke mentiu para Erik. Se, como dito, o sentir e o controlar emoções caminham lado a lado, há um teatro, no qual cada gesto, cada atitude para com as cartas e o adversário é calculado visando-se evitar a possibilidade de leitura do seu jogo pelo oponente. De acordo com Richard Schechner (1985; 1988), não há diferença semântica entre ritual e teatro, de maneira que ambos são eventos da mesma natureza: performances. Nesses atos, há o processo de transportation, de acordo com o qual participar de um deles implica em deslocar-se para espaços simbólicos criados temporariamente: “the performer goes from the ‘ordinary world’ to the ‘performative world’, from one time/space reference to another, from one personality to one or more others” (Schechner 1985: 126). Continua o autor afirmando que toda performance é uma atividade cultural dinâmica, reelaborada e reproduzida continuamente ao longo do tempo, que instrui o performer a partir de um modelo cultural, o “comportamento restaurado”, com a evocação de memórias, gestos, movimentos corporais e experiências internalizadas através de um longo processo de socialização que, no performative world, embasam e dão veracidade à atuação. No mundo performático, todos os gestos e palavras são controlados. O risco de que esse controle apareça como controle e, assim, faça o jogador perder a mão, é o centro de origem das emoções e tensões do jogo. Controlar-se é tão fundamental quanto fingir não estar se controlando – a famosa poker face. A nova referência espaço-temporal – o

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mundo da mesa –, a construção de outra personalidade, a caracterização de uma personagem é o que fez Duke quando mentiu e ganhou, na base do blefe, Erik e Don. Ser verossímil, mantendo uma postura coerente com os blefes e as jogadas, sentindo e ao mesmo tempo dissimulando as sensações, são o foco do jogador neste performative world. As nuances de cada jogada, o efetivo sentir, são quase refratários a uma descrição que alcance todas as suas qualidades e características. Nos limites deste trabalho, a seleção do eixo da emoção foi paralela ao escurecimento de outras variáveis que lhe dão base, suporte e impulso. A construção do texto está sempre no eixo de combinação e seleção de variáveis de modo que não esgotamos, nem de longe, todos os detalhes e elementos do pôquer. Assim, o quarto nível, metadiscursivo, levanta questões fundamentais sobre essa construção textual, elemento que não é pré-analítico, mas faz parte dos dados em si. *** A categoria emoção aqui descrita pelos jogadores tem como fundamento a visão de mundo ocidental que a considera na dicotomia expressão de sentimentos/sensação em si. Ao longo dos discursos, aparece a ideia da emoção como uma dimensão internalizada, de sensação, ao lado da qual a expressão dessas sensações é controlada corporal, racional e mentalmente. No nível de construção do texto antropológico, de discurso sobre um discurso, o ponto é interrogar tais premissas, mas, também, todas outras teorias sobre emoções que avocam para si uma defesa de verdade em um meio essencialmente polissêmico. O acesso ao mundo emocional pode se dar em várias chaves analíticas. Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod, em um artigo introdutório a uma coletânea de 1990, e a mesma

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Lutz e Geoffrey White, em outro artigo sobre antropologia das emoções de 1986, já destacaram, delimitados ao campo das Ciências Sociais, alguns desses acessos, como o essencialismo da etnopsicologia ocidental moderna; o interpretativismo com ênfase na linguagem da emoção e na negociação de significados emocionais; o relativismo que define emoção como um julgamento validado socialmente; o naturalismo do senso comum (commonsense naturalism), também essencialista, no qual a dimensão emotiva é pré-social; o contextualismo, proposta das duas autoras, em 1990, que foca na micropolítica e na fala sobre as emoções, em uma chave foucaultiana, com o discurso construindo a realidade; o historicismo que, ao lado do relativismo, propõe a construção sociocultural das emoções, além de muitas outras vertentes, que poderiam ser incluídas, mas que, basicamente, compartilham com as citadas o fato de se movimentarem na dicotomia clássica indivíduo/sociedade ou biologia/cultura. Qualquer entrada ao mundo da categoria emoção é sempre válida. Diversas vertentes são possíveis sobre este tema por se tratar de um universo multifacetado e polissêmico, um palco com espaço para todas as teorias. O ponto que busco desenhar com o discurso dos jogadores é menos o de desvalorização de qualquer uma destas entradas e mais a aceitação da concepção mais geral que se mantém como base primária e ontológica do pensamento que as permitem: como as dimensões individual ou cultural das emoções não podem ser definidas, nem uma, nem outra, em termos integrais e absolutos, a prevalência de um ou outro lado da moeda se dá, precisamente, na e pela experiência dos entrevistados, na e pela interpretação dos pesquisadores, e na e pela construção do objeto a partir da tomada de posição do analista e da área de onde provém. Uma questão de foco, não de verdade.

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Talvez seja óbvio, mas o dito acima é fundamental: emoções são um assunto controverso. Se há diversas entradas, deve haver um denominador comum que, antes de excluir as entradas, conjuguem-nas no plano da possibilidade de existência. Partindo da noção de “acreditar em”, Charles Sanders Peirce nos mostra a efetividade de outro conceito para delimitar as convenções sobre as quais escrevemos outras: “a ação do pensamento é excitada pela incitação da dúvida e cessa com o atingir a crença; e, assim, o chegar à crença é a única função do pensamento” (Peirce 1972 : 53). Tomando crença como uma categoria ontológica, podemos supor que quaisquer análises são sempre repuxadas em torno do seu centro. Ligia Sigaud (2007), ao analisar a preponderância de uma interpretação determinada no caso de textos considerados clássicos de Marcel Mauss e Malinowski, buscou evidenciar os processos de crença coletiva no meio acadêmico, bem como a estruturação e difusão de uma doxa com base em prestígio pessoal do intérprete e popularidade das instituições ditas de ponta. Em suas palavras, Nos dois casos em exame, não houve por parte dos difusores das interpretações a preocupação de ir nem ao ED nem ao Diário para verificar a pertinência das interpretações. As palavras de Lévi-Strauss e de Geertz foram tratadas como palavras autorizadas, como se o prestígio dos dois eminentes antropólogos constituísse por si uma garantia do fundamento de suas afirmações. Afinal, como alertava Max Weber no trecho citado no início deste artigo, seria difícil “pensar que um professor universitário pudesse se enganar completamente sobre a questão em debate”. A mesma observação vale para os antropólogos que, em diferentes tradições nacionais, não se indagam sobre a pertinência das interpretações a respeito de Mauss e Malinowski. Também eles acreditam na palavra emitida pelos “grandes nomes”; eles creem (Sigaud 2007: 151).

A crença surge como um catalisador poderoso de tensões para quaisquer campos científicos. Entendida simplesmente como “acreditar em”, se a possibilidade de dúvida se mantivesse indefinidamente, não haveria construção de consensos. De qualquer maneira, no caso específico das emoções, a dinâmica é peculiar: por se tratar de um tema sempre vinculado à psicologia e biologia, a antropologia o adotou enfrentando-o, quase sempre, na chave cultura/biologia, pendendo para a primeira. Um choque irresolúvel se

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instaurou: se, por um lado, desde Darwin, efetuaram-se pesquisas para delimitar o centro “biológico” da emoção, de outro, cientistas sociais definem acentuadamente o ponto de vista do cultural, por vezes, em exemplos radicais, eliminando qualquer interferência do biológico. Os dois lados perpetuam-se e asseveram verdades que, longe de se complementarem, permanecem, quase sempre, solitários gravitando em seus polos. A solução de eliminar a dicotomia, ou com a desconstrução do seu divisor, ou com um processo correlato de construção de uma igualdade dos polos (não existiria a dicotomia biologia/indivíduo versus cultura, ou por que estes conceitos não existem em si mesmos, ou por que um é preponderante sobre o outro, ou ainda por que ambos seriam uma mesma coisa, apenas discursivamente diferenciados), apenas consolida a oposição inicial. Identificar cultura e biologia, colocar os dois polos do mesmo lado, ou não enfrentar a questão, não destrói a dicotomia pelo simples fato de ela ser atravessada pela crença em quaisquer níveis de análise que pressupormos. Por exemplo, mesmo que Malinowski (1986) tenha descrito a crença dos trobriandeses de que o papel biológico masculino na concepção humana não é relevante ou importante, isso não nos autoriza a enviar casais com problemas de gravidez para aquelas Ilhas, na esperança de que possam ter filhos. O mesmo vale para as emoções: biológicas ou culturais, é uma crença que define o ponto de vista, permanecendo o “real” indecifrável. Eis que o conceito de crença parece se conjugar com outro, mais elástico, que o contém e por ele é definido. O ponto investigativo e pressuposto teórico-epistemológico são mais amplos: como tratar as emoções sem cair num risco de autoridade? Como enfrentar epistemologicamente a relação da emoção com o pôquer sem parecer uma desconstituição do lado biológico-individual e/ou cultural das emoções? Seja pela falta de autoridade ou pelo medo de abruptos teóricos, o epicentro de qualquer análise deve

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levar em conta a ideia de crença, mas sempre dentro de um contexto de ficção e, aqui, no caso específico que venho escrevendo, o de uma ficção antropológica. Voltando a Peirce (1972), a crença envolve o surgimento de uma regra de ação, o surgimento de um hábito, um ponto de partida para o pensamento. A crença não significa estabilidade ou finitude, mas influência sobre reflexões futuras, de maneira que diferentes crenças se distinguem por diferentes ações: “nossa ideia a respeito de algo é nossa ideia acerca de seus efeitos sensíveis” (Peirce 1972 : 59). Conjuga-se, portanto, ao conceito de ficção pela via do limite contextual no qual as crenças estabelecem-se levando a diferentes ações. Não se trata de dizer que o “real” é menos importante. A chave analítica é o oposto: se qualquer interpretação de quaisquer dados é necessariamente clivada pela crença, se a construção de um corpus de conhecimento é sempre tributário de elementos outros que não apenas os dados em questão – argumento que pode ser remontado a Weber –, a escrita de um texto também é sempre ficcional e nosso acesso a realidade, seja este conceito o que for, se dá por discursos também ficcionais baseados também em crenças. Em outras palavras, Não digo, entretanto, que “tudo é ficção” nem que tudo seja relativo. Assim como é necessária uma referência absoluta para se estabelecer uma relação, o real continua necessário para que a ficção se construa a partir dele ou contra ele. Que o real exista não é minha questão; logo, não posso dizer que tudo seja ficção. Meu argumento é: temos acesso ao real apenas através da mediação dos discursos; todo discurso funda-se pela ficção; logo, todo discurso é ficcional. Ou, nos termos de Alain Badiou (2005, p. 89): “Nada pode atestar que o real é real, nada senão o sistema de ficção no qual ele virá a desempenhar o papel de real”. (Bernardo 2010: 15).

Voltamos, assim, ao começo. No cerne da ficção antropológica está a interpretação e a compreensão de uma lógica que se sustenta sobre outras interpretações – as dos jogadores – também ficcionais. As categorias – emoção, jogador, razão, risco, etc. – aparecem não como fins em si mesmos, nem passíveis de uma explicação única,

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mas como conceitos negociados, metáforas compartilhadas em uma rede semântica escolhida como primária para a análise – neste caso, a de um jogador de pôquer –, de maneira que interpretações ficcionais do pesquisador não solidificam nem uma verdade, nem o “real”, mas apenas uma possibilidade que deve ser verificada como plausível dentro de si mesma e na relação de verossimilhança com o material etnográfico apresentado. Como no caso citado, retratado por Malinowski, saber se a crença/ficção dos trobriandeses “funciona” fora do seu contexto, ou em termos de “real”, é outra questão, embora igualmente importante, mas que foge da proposta analítica inicial. Delimitei-me, aqui, a discorrer sobre a ficção discursiva dos jogadores de pôquer e a criar uma ficção antropológica sobre e a partir dela. Se e como suas concepções funcionam ou não, se emoções são biológicas – como eles defendem – ou não, continuo não sabendo. Nem eles, os jogadores. Nem os trobriandeses. *** Indaguei, por fim, durante um jogo, se Paulo se incomodava com minhas constantes perguntas e se eu o estava atrapalhando: “Não, de forma alguma!”, replicou. “Aliás, eu ‘tô’ me sentindo um expert no jogo, mas, na verdade eu sou um ‘bunda mole’”, finalizou, apostando todas as suas fichas contra mim quando eu possuía, em mãos, um par de 7 e, na mesa, havia no flop um ás, uma dama e um 2, além de um rei que tinha acabado de sair no turn. Com um sorriso de satisfação, ele gostou de recolher todas as fichas após eu desistir da minha mão. Em breve, eu perderia o jogo.

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