Midiatização, Disneylândia e Dessequestração: espetáculo e crítica na série Black Mirror1

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Transmitido originalmente em 18 de fevereiro de 2013, no Channel 4. Black Mirror teve até o presente três temporadas transmitidas, além de uma produção especial de Natal, exibida em dezembro de 2014.
Pós-graduando do Programa de Pós-graduação em Gestão da Comunicação e Marketing Digital da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP.
Midiatização, Disneylândia e Dessequestração: espetáculo e crítica na série Black Mirror
Roberto Cesar TRUFELLI
Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP, São Paulo, SP
"The show must go on
The show must go on, yeah
Inside my heart is breaking
My make up may be flaking
But my smile
Still stays on"
(Queen)

Resumo

A relação íntima entre a mídia, a cultura e a sociedade, representadas de maneira crítica em uma narrativa de ficção, que pinta uma caricatura/exageração dos tempos atuais. O presente ensaio tem a intenção de analisar a representação da dinâmica entre a sociedade do espetáculo e a midiatização da vida contemporânea, que é a essência na narrativa da série de TV britânica Black Mirror, a partir das teorias sobre a Disneylândia de Baudrillard e a Dessequestração e a de Thompson, que identificam a mídia como forma de interação dentro de um campo temporal, no terreno da ação humana, dando a devida importância às dimensões social e simbólica destes processos.
Palavras-chave: televisão; midiatização; Disneylândia; dessequestração; sociedade.

Introdução – TV: onde a realidade encontra a ficção
Este ensaio foi proposto como resultado de diversas análises em grupo, realizadas durante as aulas da disciplina Comunicação, Cultura e Contemporaneidade, ministradas pela Profª. Mª. Tatiana Amendola Sanches, como parte do Programa de Pós-Graduação em Gestão da Comunicação e Marketing Digital da Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP. Nele, o objetivo principal é focar nossa atenção no estudo da dinâmica das relações estabelecidas entre o processo de midiatização do nosso dia a dia e a sociedade do espetáculo, a partir do retrato seco e crítico da relação entre a mídia e sociedade, encontrada no episódio de nome White Bear, essência desta análise, dentro das perspectivas de Baudrillard (1991) e Thompson (2011).
White Bear é o segundo episódio da segunda temporada da série Black Mirror (Reino Unido, 2011 - presente), concebida pelo jornalista Charlie Brooker, cujo enredo apresenta um questionamento crítico da midiatização das sociedades contemporâneas e das relações humanas criadas a partir deste fenômeno, transformadas pelo desenvolvimento de diversas tecnologias digitais. Trata-se de um relato ficcional na forma de série de TV, uma narrativa onde mudam-se as situações, até mesmo os próprios personagens, mas que possui uma única temática como peça-chave, que liga todos os episódios. A série Black Mirror usa a representação crítica de diversos fenômenos midiáticos em cadeia, com um discurso menos centrado na representação dos avanços da tecnologia, mas sim nos problemas e nas consequências de seu uso e a alcance gerado dentro do cotidiano das pessoas. Em seu livro A Mídia e a Modernidade, Thompson (2011), afirma que quando a TV tornou possível para todos os indivíduos o acesso às imagens e informações de acontecimentos que ocorreram em lugares muito distantes de seus ambientes sociais diretos, a mídia pode despertar ou intensificar diversas formas de ação coletiva, difíceis de controlar com os outros mecanismos já estabelecidos. Levando estas mesmas imagens e informações para pessoas situadas nos mais distantes contextos sociais e econômicos, a mídia (entenda-se a TV) molda e influencia o rumo dos acontecimentos, consegue até criar acontecimentos que poderiam não ter existido no caso de sua ausência. Com isso, podemos chegar à conclusão que a TV é um meio de comunicação que reflete valores, dificuldades e o rumo de uma sociedade em um determinado espaço de tempo. Paradoxalmente, também exerce sobre esta mesma sociedade o poder de influenciar comportamentos, ideias e criar as mais diversas tendências. Neste contexto, é possível combinar a sua habilidade de inserção reflexiva da vida em sociedade com a proposta da narrativa apresentada pela própria série, que já diz ao que veio em seu próprio nome: "black mirror", ou melhor, o "espelho negro". Capaz de refletir a verdade, a realidade e o presente ou o lado negro que existe em cada um de nós.



Com o desenvolvimento dos meios de comunicação, a interação se dissocia do ambiente físico, de tal maneira que os indivíduos podem interagir uns com os outros ainda que não partilhem do mesmo ambiente espaçotemporal. O uso dos meios de comunicação proporciona assim novas formas de interação que se estendem no espaço (e talvez também no tempo), e que oferecem um leque de características que as diferenciam das interações face a face. O uso dos meios de comunicação proporciona também novas formas de "ação à distância" que permitem que indivíduos dirijam suas ações para outros, dispersos no espaço e no tempo, como também responderem a ações e acontecimentos ocorridos em ambientes distantes. (THOMPSON, 2011, p. 119-120).
Baudrillard (2004), por sua vez, em seu livro Teleformose, conclui que a sociedade está em vias de se elevar ao estágio paródico de uma farsa integral, refletindo desta maneira a sua própria realidade atual. Nesta mesma obra, ele faz uma análise crítica sobre os programas de televisão conhecidos como realitys shows, que deram origem aos nossos já conhecidos Big Brother e Casa dos Artistas. Para Baudrillard, este programa de televisão seria o equivalente a um condensado de parque humano de diversões, muito semelhante com a Disneylândia, onde ambos querem passar a ilusão de um mundo real, um mundo externo, sendo que os dois correspondem exatamente à mesma imagem um do outro. Dentro desta temática, o autor aborda o tema da espetacularização de nossa realidade e o papel da própria televisão, quando a mesma começa a criar programas com a intenção de retratar o nosso dia a dia. O que vemos nos realitys shows é uma pífia noção de realidade que é passada por meio das mídias de massa. É uma cópia da cópia, tentativas contínuas de simular o real, com o objetivo de captar a atenção dos espectadores, um mix do real e irreal. A televisão tem a capacidade de produzir uma cópia do real, mas um real que atenda às demandas específicas dos telespectadores, uma tentativa de unir o nosso mundo real e o mundo de ficção, que vemos diariamente através das câmeras.
Quando tudo é mostrado (como no Big Brother e nos realitys shows), percebe-se que não há nada mais para se ver. É o espelho da superficialidade, do grau zero, por meio do qual se prova, em oposição a todos os objetivos, o desaparecimento do outro e talvez até que o ser humano não é essencialmente um ser social. Tem-se o equivalente de um ready-made - trans posição literal do everyday life, ele próprio manipulado por todos os modelos dominantes. Banalidade sintética, fabricada em circuito fechado e com painel de controle. (BAUDRILLARD, 2002, p.7).
A série de TV criada por Brooker se vale da ficção científica como artifício para trazer à luz diversos problemas contemporâneos da nossa sociedade, resultantes do papel ocupado pelos processos de midiatização dentro de todas as esferas da nossa vida: social, política, econômica e cultural. Ainda que os dispositivos tecnológicos retratados em seu universo de ficção não existam, a série de TV consegue se aproximar bastante da realidade. O autor lançou mão deste recurso para construir a sua representação e a sua crítica.
1- A Dineylândia de Baudrillard e a sociedade do espetáculo
Nisso, o microcosmo artificial do Big Brother parece-se com a Disneyland, que dá a ilusão de um mundo real, de um mundo externo, sendo que os dois correspondem exatamente à imagem um do outro. Os Estados Unidos inteiro são a Disneyland; todos nós estamos no Big Brother. Não é preciso entrar no duplo virtual da realidade, pois já estamos nele – o universal televisivo não passa de um detalhe holográfico da realidade global. Até em nossa existência mais cotidiana já estamos em situação de realidade experimental. É daí que vem o fascínio, por imersão e por interatividade espontânea. (BAUDRILLARD, 2002, p.7-8)
Baudrillard (1991) desenvolve o seu estudo sobre o hiper-realismo e o imaginário em sua obra Simulacros e Simulações. Nele, o filósofo e sociólogo francês explica que a Disneylândia é um modelo perfeito de todos os simulacros confundidos, um jogo de ilusões e de fantasmas, onde se supõe que este mundo de imaginário seja a garantida do sucesso de toda essa estrutura. Mas para o autor, o que atrai as multidões é sem dúvida o microcosmos social, a "experiência religiosa", uma pequena amostra dos prazeres da América real, junto com seus constrangimentos e suas alegrias. Foi a partir destes pensamentos que surgiu a possibilidade de uma análise ideológica da Disneylândia, uma seleção do que há de melhor dentro do american way of life, um discurso público em louvor aos valores americanos e uma transposição idealizada de uma realidade contraditória. Mas isso tudo esconde uma outra coisa e esta mesma "trama ideológica" serve de cobertura para uma "simulação de terceira categoria". A Disneylândia tem como principal vocação esconder o fato de que ela é a verdadeira representação do país onde se encontra, quando na verdade, a própria América não passa de um gigantesco parque de diversões (de certo modo como as prisões existem para esconder o social em sua totalidade, em sua onipresença banal, que é um grande cárcere). A Disneylândia é alçada ao patamar de mundo imaginário, cujo propósito é fazer com que todos acreditem que o resto é o real, quando toda a América que a rodeia já não é mais real, ela está sob o domínio do hiper-real e da simulação. Não se trata mais de uma falsa representação da realidade (ideologia), mas de ocultar o fato de que o real não é mais real e, portanto, de salvar o princípio da realidade. Assim, podemos concluir que o imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão, criada para rejuvenescer a ficção do real no campo oposto. Daí a debilidade desse imaginário, sua degeneração infantil. Este mundo quer ser infantil para nos fazer acreditar que os adultos estão no mundo "real" e para ocultar o fato de que a verdadeira infância está em toda parte - que é a dos adultos que vão lá para fingir que são crianças, a fim de fomentar ilusões quanto à sua infantilidade real.
Desta maneira, podemos pensar sobre o Parque de Justiça Urso Branco, onde Victoria Skillane "vive", sob esta mesma ótica. A personagem principal, Victoria, cúmplice do crime que a colocou naquela situação, confessou ter filmado o assassinato da menina Jemina Sykes de apenas seis anos e sua pena foi decretada levando em conta a violência do crime cometido. O juiz responsável que proferiu a sentença, levando em conta o fato dela ter filmado o sofrimento de Jemina com uma câmera, ao invés de ir ao seu socorro, se certificou de conferir à prisioneira uma pena com os mesmos requintes de crueldade, que será aplicada todos os dias da sua vida. Por isso, o "Parque Temático" de Justiça Urso Branco foi criado, para servir como uma espécie de presídio para Victoria, onde ela é filmada constantemente sob os mais diversos ângulos, não só pelos espectadores que compram ingressos para ver a "performance" do dia, como também por todas as pessoas responsáveis pela produção do programa. Todos podem ter acesso às imagens capturadas de dentro do parque, não só de forma presencial com a compra de ingressos, mas também pela transmissão ao vivo pela internet e televisão. Esse microcosmo no qual o "parque-prisão" está inserido, é de certa maneira muito semelhante à Disneylândia, segundo a visão de Baudrillard, pois passa a ilusão de um mundo real, de um mundo externo, quando na verdade a imagem de um é a mesma do outro. Ele considera este trocadilho um "detalhe holográfico da realidade global", capaz de provocar fascinação diante de uma situação experimental. Todos nós já estamos dentro de um Big Brother, não é preciso entrar no duplo virtual da realidade, pois já estamos dentro dele. O pensador francês também afirma em seu livro que as pessoas possuem um profundo desejo por um espetáculo da banalidade, que é a verdadeira pornografia de hoje, a verdadeira obscenidade - a da mediocridade, da insignificância e da superficialidade. A crueldade é cada vez mais pautada pela mídia, uma espetacularização constante da vida cotidiana. Segundo Baudrillard, neste momento em que a televisão e a mídia são cada vez menos capazes de dar conta dos acontecimentos insuportáveis do mundo, elas descobrem na vida cotidiana e na banalidade existencial o acontecimento mais mortífero, como a atualidade mais violenta, como o próprio local do crime perfeito. As pessoas estão fascinadas e aterrorizadas pela indiferença do nada a dizer, nada a fazer, pelo desdém das suas próprias existências.
No episódio White Bear, toda sociedade faz parte do espetáculo que é encenado todos os dias, uma vez que a mesma foi incumbida das tarefas de juiz e carrasco, no que diz respeito ao crime cometido por Victoria. Dentro do Parque de Justiça Urso Branco, os espectadores consomem a representação, uma mera cópia do real, enquanto contemplam a "justiça" sendo feita. Ainda de acordo com Baudrillard, existe uma aceleração constante da banalização do mundo, intermediada pelas mídias responsáveis pela informação e pela comunicação, capazes de transformar a banalidade em um teatro de crueldade virtual. O Parque de Justiça Urso Branco se transformou em um objeto de desejo e também de lazer. Seja na esfera profissional, familiar, religiosa ou política, percebemos o aumento da presença midiática em nosso cotidiano. O domínio antes exercido por meios dominantes como a TV, o rádio e o jornal, agora são intensificados pelas tecnologias digitais da comunicação e da informação e pelos mecanismos de transmidialidade com suas inúmeras características e possibilidades. As transformações nos processos de midiatização reforçaram ainda mais a sua presença nas mais diversas esferas institucionais, dando origem a novas práticas e desdobramentos dentro das sociedades.
Estamos além do panóptico, da visibilidade como fonte de poder e controle. Não se trata mais de tornar as coisas visíveis a um olho externo, e sim de torna-las transparentes a si mesmas, pela perfusão do controle na massa, e apagando em seguida os traços da operação. Assim os espectadores são implicados numa gigantesca contratransferência negativa com eles mesmos e, uma vez mais, é daí que vem a atração vertiginosa desse gênero de espetáculo. (BAUDRILLARD, 2004, p. 22-23).
O objeto de análise deste ensaio, o episódio White Bear da série Black Mirror, traz em sua narrativa uma representação da relação entre a mídia e a sociedade do espetáculo. A seguir, apresentamos a descrição da história contada no episódio acima citado, na mesma ordem em que ela foi apresentada na TV do Reino Unido.

2- "Pode conter spoilers da história": a descrição do episódio White Bear
No início do episódio, vemos uma mulher acordando de um sono desconfortável, ela está sentada em uma cadeira dentro de um quarto, após despertar, ela começa a sentir fortes dores de cabeça. Ao levar as suas mãos em direção à sua cabeça, ela percebe que ambos os pulsos estão enfaixados. Em seguida, olha para o chão e vê comprimidos espalhados, próximos a um frasco que se encontra aberto. Logo adiante, à frente da cadeira onde está sentada, há uma TV ligada, exibindo uma única imagem estática, um símbolo branco com fundo preto, composto de formas geométricas simples, lembrando a imagem de um garfo/tridente. Ainda bastante confusa, ela se levanta com certa dificuldade e abre as cortinas do quarto. Após abrir as cortinas, vê as casas vizinhas e a uma grande área verde ao redor. Ainda não reconhecendo o lugar em que se encontra, ela sai do quarto em que está e desce para o primeiro andar da casa, olhando o restante dos cômodos com a mesa estranheza de antes. Vai até a cozinha, se serve de um copo com água e bebe o seu conteúdo com dificuldade. Agora, indo em direção da sala, que fica logo ao lado da cozinha, ela vê alguns porta-retratos em cima da lareira, um deles chama a sua atenção em particular, nele, há uma fotografia dela ao lado de um homem. Apoiado na moldura deste mesmo porta-retrato, encostado no vidro que protege a foto do casal, há também uma fotografia menor que está solta, de uma menina. Ao fixar o seu olhar para esta foto, ela começa a ter lampejos de lembranças da criança, seguida de uma dor aguda em sua cabeça. Ela desconfia que as pessoas das duas fotos podem ser o seu marido e a sua filha. Ainda dentro da sala, há uma outra TV ligada, exibindo a mesma imagem da outra TV, que ela viu logo ao acordar. Ela desliga esta TV também e, observa logo adiante, um par de tênis no chão e um casaco sobre o sofá. Depois de calçar os sapatos e vestir o casaco, ela coloca a foto da menina em um de seus bolsos, se dirige em direção da porta e sai da casa onde se encontrava.
Ela percorre o quintal da casa e o parque que segue logo adiante, aproximando-se das janelas das casas que estão próximas. Ela começa a chamar pelos vizinhos destas mesmas casas, perguntando com angústia se alguém sabe quem ela é. Em praticamente todas elas há diversos indivíduos, que estão vendo seu chamado aflito e filmando tudo ao mesmo tempo com celulares, sem responder a ele com um simples aceno de mão sequer. Ela continua a insistir, questionando se alguém pode ajudá-la, já que ela não consegue se lembrar da sua identidade. Logo mais adiante, uma jovem está escondida no portão do quintal da sua casa e a fotografa. Quando a mulher ouve o som da câmera sendo disparada, tenta seguir a adolescente, que aperta o passo para não ser alcançada por ela. Na rua de trás da sua casa, vê que as pessoas ainda estão filmando seu desespero com os celulares. Logo em seguida, um carro azul se aproxima lentamente e estaciona alguns metros à sua frente. Um homem vestindo um casado vermelho e um capuz preto sai deste veículo, abre o seu porta-malas pacientemente, retira uma espingarda de lá e aponta a mesma para a moça, que corre desesperada por uma rua, gritando repetidas vezes por socorro, enquanto as pessoas que a observavam das janelas das casas, agora saem para continuar filmando a perseguição mais de perto. Pela mesma rua em que estava correndo, ela consegue chegar até um posto de gasolina, onde uma mulher está abastecendo seu carro e o jovem que a acompanha na viagem, está fazendo compras dentro da loja de conveniência. Diferente das outras pessoas até então, esta presta atenção ao seu pedido de socorro, enquanto o homem com capuz dispara a espingarda contra elas. As duas entram correndo dentro da loja, a mulher e o homem que a acompanhava, bloqueiam a porta de entrada usando um refrigerador, numa tentativa de retardar a entrada do homem armado. O seu capuz preto tem o mesmo símbolo branco que ela viu nas TVs dentro da casa onde estava. Enquanto ele está tentando quebrar o vidro da porta com o cabo da sua espingarda, o moço e a moça sem memória se escondem no chão atrás das prateleiras. Olhando para o fundo da loja, o rapaz percebe que existe uma outra saída, em seguida, ele pede para sua companheira que vá até ela e veja se a mesma está aberta para eles poderem fugir. Ela logo responde que a porta está fechada, pois existe uma fechadura com teclado nela, podendo ser aberta somente com uma senha. Enquanto isso, a outra mulher grita que o homem encapuzado está tentando matá-la, ela também pergunta desesperada qual é o problema daquelas pessoas que estão assistindo, qual é o motivo delas estarem simplesmente filmando tudo sem nenhum interesse em ajudá-los. A mulher que estava abastecendo o carro, se volta para ela, perguntando por onde ela andou todo este tempo, pedindo também que ela alcance o extintor de incêndio próximo dela, para que ela possa quebrar a tranca da porta dos fundos. O mascarado finalmente rompe o vidro e consegue entrar na loja de conveniência, sempre observado de perto por dezenas de pessoas, que continuam filmando aglomeradas a perseguição com seus celulares. A pedido da moça que estava com ele, o jovem derruba o homem armado segurando-o pelos pés e os dois começam um violento confronto pela posse da espingarda. Vendo esta cena, a mulher com o extintor se volta novamente para a porta, quebrando com sua força a tranca da mesma e saindo rapidamente com a mulher sem memória pelo acesso dos fundos. Logo em seguida, as duas mulheres ouvem um barulho de disparo vindo de dentro da loja. Quando conseguem avançar alguns metros adiante, se escondem atrás de algumas lixeiras. Segundos depois, o homem que estava com elas, sai cambaleando pela mesma porta, tinha sido baleado pelo homem encapuzado, caindo já desacordado no chão. O homem armado, saindo pelo mesmo lugar que os outros, confere se o rapaz está realmente morto, enquanto os espectadores continuam seguindo ele, filmando com entusiasmo o corpo prostrado no chão. Quando a mulher percebe o símbolo em forma de garfo no capuz preto do homem que as percebia, novamente ela começa a ter lampejos de lembranças, seguida de mais dores agudas em sua cabeça. Neste momento, outro carro chega, este na cor preta. Duas pessoas desembarcam dele, um homem e uma mulher usando fantasias e com seus rostos escondidos atrás de máscaras. O homem está com uma máscara de metal, a mesma usada por soldadores, a mulher está com uma máscara de carneiro. Da mesma maneira que o primeiro homem, ambos estão munidos de armas, uma faca elétrica e um bastão de beisebol. Enquanto estes se dirigem ao encontro do homem encapuzado, as duas moças correm e atravessam a cerca de uma casa. Elas entram rapidamente na casa e se escondem na sala, próximas à janela que dá vista para a rua. A outra mulher pede cuidado para que não serem vistas, explicando que os espectadores ficam à espreita o tempo todo. A moça diz, ainda muito confusa, que não entende o motivo da perseguição. Continua explicando que acordou naquela casa, mas sem saber se era mesmo dela e qual era a sua identidade. Ela retira a foto da criança de dentro do bolso e diz que acha que a menina que está nela pode ser sua filha. A mulher que ela encontrou no posto de gasolina pergunta se ela não lembra mesmo de nada que tinha acontecido até então. Ela responde que não se lembra mesmo de nada. Enquanto estava mostrando a foto da criança, a outra moça percebe que seus punhos estão enfaixados. Fala que sua ausência de memória pode o resultado de uma tentativa de suicídio. A moça concorda, dizendo que viu diversos comprimidos espalhados pelo chão. A outra diz que não a culpa caso tenha sido este o caso, porque o estado atual das coisas estava um caos generalizado. Pela expressão de espanto e incompreensão da interlocutora, ela explica que um sinal, como fotos sento tiradas com o uso de um flash, é emitido através de todo e qualquer tipo de tela – TVs, celulares e computadores – enquanto é exibido um símbolo branco que se parece com um garfo. A mulher sem memória tem novos lampejos de lembranças e sente mais dores agudas em sua cabeça. A locutora continua dizendo que o sinal fez algo com as pessoas, transformando elas em meros expectadores, assistindo e filmando compulsivamente tudo o que acontece, como uma plateia completamente alheia aos acontecimentos à sua volta. Ela afirma que nem todos são afetados por esta mudança de comportamento, que nove entre dez pessoas se comportam permanentemente como espectadores hipnotizados. E entre as pessoas que não foram afetadas, há os "caçadores", indivíduos que encontraram na apatia da maioria da população, um meio de satisfazer seus desejos proibidos e cometer diversos crimes, como o roubo de carros e a tortura de pessoas. Por fim, a situação acabou piorando muito para os não afetados, pois agora, eles têm uma audiência que acompanha tudo o que acontece. A mulher sem memória pergunta para a outra se é o sinal que faz com que os "caçadores" se comportem desta maneira. A mulher do posto de gasolina responde que provavelmente eles sempre foram assim e que só precisavam de uma mudança nas regras para mais ninguém intervir. Os espectadores apáticos são pessoas completamente hipnotizadas, desesperadas por um show, um espetáculo de horror qualquer, como se tudo fosse um reality show sem fim. E o mais irônico de tudo isso, foi que os espectadores encontraram nos "caçadores" os parceiros perfeitos para satisfazerem os seus desejos mais sórdidos, não importando se as vidas de outros seres humanos serão ceifadas durante o processo. Ela finaliza, dizendo que a única saída para todos é prosseguir com o plano que tinha com o rapaz que foi baleado, elas precisam ir em direção ao sul e chegar até as torres de transmissão do sinal, chamadas de "Urso Branco" e destruí-las, provocando um incêndio nas cabines de controle responsáveis pela transmissão do símbolo.
Quando elas saem da casa para prosseguirem com a fuga, percebem que o casal do posto de gasolina estão se aproximando. Neste momento, um terceiro carro aparece repentinamente, o mesmo está em alta velocidade e quase as atropela na rua. O veículo para logo adiante de onde elas estão e um homem de meia idade abre a porta, mandando que as duas entrem imediatamente no carro. Não muito atrás, o casal fantasiado corre na direção deles. A mulher sem memória tem um novo lampejo de lembranças e hesita o embarcar no carro daquele homem. A outra mulher sai do carro e força a sua entrada, a tempo de salvá-la dos mascarados que chegam até o carro. Eles seguem em disparada e começam a discutir pelo quase atropelamento. O homem afirma que conhece um esconderijo e que lá eles ficarão seguros. A mulher sem memória olha para o motorista e diz que o conhece. Ele se volta para ela e responde grosseiramente que não. A outra mulher diz que sua acompanhante está confusa e pede mais paciência. Ainda desconfiada e assustada, achando que já tinha passado por toda aquela situação, diz para os outros que sabe onde os três estão indo. Os dois se olham surpreendidos e perguntam onde para ela. Para a floresta, ela responde. Ainda surpresos com a sua resposta, perguntam o que farão lá. Ela responde que eles farão uma pausa em seu trajeto para poderem comer.
Após chegarem ao seu destino, enquanto terminam os seus sanduíches, o homem indaga para a moça quem é a criança da foto que ela observa. Ela responde que acha que a menina na foto é a sua filha. Em tom de sarcasmo, ele pergunta se ela tem algum problema mental. Ela olha para ele, mas fica em silêncio. Agora, ele se dirige à outra mulher e pergunta a mesma coisa, ela responde dizendo que todos têm as suas fraquezas. O homem mantém o seu tom de sarcasmo e pergunta se elas querem ver a sua fraqueza, enquanto caminha na direção do seu carro. De lá, retira uma espingarda, que já sai apontando para as duas, enquanto alerta para que elas não se movam. Em seguida, ordena que a moça com a foto da menina vede o seu rosto com um capuz preto que ele dá para ela, mas complementa dizendo que a mulher o coloque ao contrário, para que não possa enxergar o que está acontecendo. No momento em que ele está entregando o capuz, ela percebe o símbolo em forma de garfo nele, novos lampejos de memória acontecem naquele momento. Depois, manda que ela apoie as suas mãos nos ombros da outra mulher, dizendo que a partir de agora ela vai ser os seus olhos. Ela vai guiá-la pelo caminho, o homem continua em tom autoritário. Chegando em um vale no meio da mata, ele ordena que a moça retire o capuz da sua cabeça. Só então ela pode ver o lugar onde está, no alto de algumas árvores, há cadáveres pendurados com os pés e braços amarrados, como se tivessem sido "crucificados" em uma cruz. Neste momento, o celular do homem começa a tocar. Enquanto ele atende o telefone e pede que a pessoa do outro lado da linha venha ao seu encontro o mais depressa possível, a outra mulher se aproveita da distração do homem e foge em disparada para dentro da mata fechada. O homem começa a praguejar, falando que a outra é louca e que agora ela está duplamente encrencada. A mulher sem memória, agora completamente sozinha, é colocada de bruços em um tronco que está no chão e tem as mãos amarradas logo acima da sua cabeça. Então, o homem pega a mochila que está em suas costas, coloca ela no chão e retira de dentro uma furadeira do tipo profissional, apontando a mesma agora em direção das costas da mulher. Ela chora e grita, tomada pelo desespero. Os espectadores começam a aparecer de diversos lugares do vale, gravando aquela cena com seus celulares, sem se importar com a crueldade do que viam. Ele começa a rir de toda aquela situação, dizendo que vão dar um show para todas aquelas pessoas hoje. O homem liga a ferramenta para feri-la, ela começa a gritar por socorro, perguntando desesperada o motivo para todos não fazerem nada, que eles tinham que detê-lo e que ela era um ser humano também. O homem responde que eles não vão ajudá-la, que eles estão ali só para assistir ao espetáculo. Quando parte finalmente para a ação, dizendo que vai furar as costas da mulher com a broca da furadeira, ele ouve o ruído do gatilho de uma espingarda sendo armado. Era a outra mulher que estava atrás dele, apontando a sua própria espingarda contra ele. Ela dispara a arma contra ele, que cai imóvel no chão. Ainda em choque, a moça agradece pela ajuda, por ela ter voltado. Ela responde secamente que "voltou somente para buscar a sua mochila". Ela a desamarra do tronco em que estava presa e as duas seguem em direção ao carro do falso ajudante. Enquanto isso, os espectadores se aproximam de seu corpo caído para tirar fotos e filmá-lo mais de perto.
Já é noite. De volta à estrada, depois de terem escapado novamente dos indivíduos fantasiados e com máscaras de animais, que tinham conseguido localizá-las ainda na saída da floresta, elas conseguem chegar até a entrada das torres de transmissão do sinal hipnotizante. Com a ajuda de uma ferramenta que estava dentro do carro, elas conseguem romper a corrente que mantinha os portões fechados. De lá, chegam até a sala de controle, que está repleta de equipamentos. Enquanto a mulher começa a execução do seu plano, espalhando combustível em todos os equipamentos, o casal fantasiado surge novamente e entram em confronto com as duas. No meio da confusão, a mulher sem memória consegue roubar a espingarda de um deles, se distancia de todos e dispara em direção de seus agressores. Para o seu espanto, apenas confetes saem da arma. Neste momento, uma espécie de cenário se abre atrás dela e fortes holofotes a iluminam. Ela se vê no meio de um palco, onde na sua frente, um auditório lotado aplaude com euforia a cena que assistem. A mulher sem memória fica mais confusa do que nunca. Existe uma cadeira situada no centro do palco. A outra mulher que a acompanhou durante a fuga, junto com os dois mascarados, a colocam sentada nesta mesma cadeira, onde ela é presa pelos braços e pelas pernas. Em seguida, eles se curvam em direção à plateia, em agradecimento, como atores de teatro após o fim de uma peça. O homem que tinha sido morto na floresta também surge no palco, sem nenhum tipo de ferimento, agora equipado com um microfone e muito bem vestido. A plateia vai à loucura e intensifica os aplausos. Ela se assusta ainda mais com toda aquela confusão. O homem que estava na floresta, agora apresentador do espetáculo encenado, diz apostar que a moça não sabe onde está e anuncia para ela que "é hora de dizer quem você é". Em seguida, posiciona a cadeira de costas para a plateia, deixando ela de frente para o caminho de onde vieram, agora com um telão no lugar do que antes era uma entrada. Junto com outros grandes telões posicionados dos dois lados do palco, começam a projeção de uma foto da moça presa, descontextualizada em um fundo branco. A sua expressão na foto mostrada nos telões, está longe do seu atual estado de desamparo. Naquele único registro, o olhar daquela mulher era de ódio. Sua foto no telão foi substituída por outra de um homem. Ela percebe que é o mesmo rosto da fotografia no porta-retrato que decorava a lareira na sala da casa em que acordou. Ao ser questionada se ela o reconhecia, ela acena a cabeça positivamente, mas ainda com o mesmo ar de confusão e incerteza. O homem diz que aquele é o seu noivo. Ela esboça um sorriso aliviado, mas logo em seguida, o apresentador informa que eles não estão mais juntos. Ela retoma o ar de desespero, enquanto o homem afirma que os dois não eram populares, apesar de terem ficado famosos. Neste momento, os telões começam a exibir a gravação de uma reportagem. A matéria finalmente revela o seu nome, Victoria Skillane, enquanto narra o desfecho de seu julgamento na justiça. Junto com o seu noivo, Iain Rannoch, cujo suicídio na prisão atrasou o julgamento do caso, ela raptou a menina Jemima Sykes de 6 anos, a poucos quilômetros de casa, iniciando uma busca no país e apelos emocionados dos pais. A reportagem continua citando ainda que, por meses a fio, o desaparecimento da criança foi um completo mistério. A única pista encontrada foi o seu urso branco de pelúcia, descoberto em um acostamento a três quilômetros da casa da família. Ainda de acordo com a reportagem, o urso branco se tornou um símbolo de persistência na busca a Jamina, uma caçada que terminou em uma floresta local. O repórter agora aparece no local onde o corpo da menina foi encontrado, enrolado em um saco de dormir e queimado. Era o mesmo vale onde ela havia sido amarrada naquele dia. O casal tinha sido preso depois que as imagens perturbadoras da tortura e assassinato de Jamina foram encontradas em um telefone celular que estava com Skillane. Seu noivo, Ian Rannoch, identificado por sua tatuagem distinta, matou a criança enquanto Victoria Skillane segurava a câmera. A sua tatuagem era a mesma forma geométrica simples, em formato de um garfo, que aparecia na tela de todos os dispositivos eletrônicos. O repórter prossegue dizendo que durante o julgamento, aos prantos, Skillane admitiu ter filmado os momentos finais de Jemina, alegando que o noivo a obrigou a ajuda-la, afirmando ainda que estava "enfeitiçada por ele". No entanto, nem o júri nem o juiz se convenceram com a história de Skillane, que a chamou de "um indivíduo excepcionalmente perverso e pernicioso". Em frente ao tribunal, o repórter continua reproduzindo o diálogo final entre o juiz e a acusada: "Você foi uma espectadora entusiasmada do sofrimento de Jamina. Você ativamente se deliciou com o sofrimento dela", o juiz disse, afirmando ainda que sua punição seria proporcional e adequada. Ao se enforcar em sua cela, muito acreditavam que Iain Rannoch evitou a justiça e, encerra a sua reportagem, afirmando que o sentimento do público agora se concentra em assegurar que a cúmplice não consiga fazer o mesmo também.
Victoria assistiu à gravação chorando compulsivamente, enquanto ela era lembrada da sua identidade e dos acontecimentos descritos na reportagem. Depois de ser confrontada com a sua própria história, ainda em um choro desesperado, ela gritou por desculpas no fim da exibição da matéria, mas falhou na sua tentativa de sensibilizar as pessoas que estavam ali presentes. Os atores, agora sem fantasias e com os rostos descobertos, assistiam ao seu choro sem demonstrar nenhuma piedade. Estes mesmos atores reposicionaram novamente a cadeira de frente para a plateia, que gritava enlouquecida em uma só voz: "Assassina! Assassina! Assassina!" Neste momento, o apresentador se dirige a ela e com a firmeza de um juiz autoritário e diz: "Não comece a chorar agora. Lágrimas de crocodilo me deixam enojado. Não havia lágrimas quando você assistia o que ele fez. Você filmou o que ele fez. Uma pobre garotinha indefesa e apavorada. E você só assistiu? Bem, e agora, está gostando? Está gostando?" A plateia continua com as câmeras de seus celulares apontados para o seu choro descontrolado. Novos gritos, chamando-a novamente de assassina são ouvidos da plateia. Então o apresentador diz à sua equipe: "Tirem-na daqui. Levem-na de volta ao lugar de onde ela veio." Novos ajudantes aparecem no palco, Victoria é retirada de lá e colocada, ainda presa à mesma cadeira, na caçamba de um automóvel de cor preta, revestido por vidro transparente na sua parte traseira. Ironicamente, este veículo tinha grande semelhança com o papamóvel, carro especialmente fabricado para a locomoção do papa durante as suas aparições públicas. O apresentador agradece a presença dos visitantes/espectadores, que do lado de fora estavam em maior número. Alguns deles estão segurando cartazes com ofensas destinadas a ela. O homem então continua o seu discurso: "Certo. Estamos no auge do nosso dia. Tirem quantas fotos quiserem, tirem quantas fotos puderem, mas, o mais importante, precisamos que vocês gritem e façam essa miserável saber que vocês estão aqui. Vamos colocar este show na estrada." Ele é aplaudido novamente e entra no carro. Luzes que contornam o vidro protetor são ligadas para iluminar Victoria. O veículo segue, lentamente entre os espectadores, que agora gritam de todas as partes, mas ainda munidos de seus celulares. Ela ouve os gritos de "Assassina miserável!", "Assassina! Assassina!", "Bruxa maligna!", "Vagabunda suja do papai!", "Queimem a miserável!" e "Queime no inferno!", durante todo o trajeto, percorrido tão lentamente, que homens uniformizados do apresentador seguem à pé, logo depois do carro. Um pouco mais à frente, há uma banca vendendo esponjas, carregadas de tinta vermelha, por duas Libras Esterlinas cada, para serem lançadas contra o vidro do veículo. Muitos dos espectadores compram estas esponjas e as atiram com violência na direção de Victoria, deixando toda a proteção de vidro suja com tinta vermelha. Ela continua chorando, mas sem levantar a cabeça.
Quando o trajeto chega ao fim, os homens uniformizados do apresentador carregam Victoria, ainda presa à cadeira, para dentro da mesma casa de onde saiu. O show do dia tinha sido encerrado. Depois de deixá-la dentro no mesmo quarto onde acordou naquele dia, a equipe desce para o primeiro andar e começa a restaurar a posição de todos os objetos. O casaco e o tênis voltam para a sala, a foto de Jamima é colocada novamente junto ao porta-retrato com a foto do casal, o copo de vidro que foi utilizado por Victoria para beber água é limpo, seco e reposicionado novamente sobre a pia da cozinha e as TVs da sala e do quarto também são ligadas. De volta no quarto, Victoria suplica ao apresentador que a mate, no que ele responde com um sorriso no canto dos lábios, "é o que você sempre diz", enquanto espalha remédios no chão logo à sua frente. Agora, ele coloca um dispositivo, em formato de arco, é colocado sobra a sua cabeça. Os fixadores do dispositivo são posicionados em suas têmporas. Ela reluta, gritando, implorando e sacudindo seu corpo. O homem ignora as suas súplicas e continua, "você teve um dia difícil, mas isso vai apagar tudo, colocar você no clima de novo. Leva cerca de trinta minutos para isso fazer efeito total. Então, enquanto isso, por que não assistimos um filminho de bordo? Você devia gostar disso. Foi você quem filmou." A TV à sua frente começa a exibir vídeos de Jamima, brincando e acenando para a câmera. O choro de Victoria vai diminuindo aos poucos, à medida que ela vai prestando atenção nas imagens. Instantes depois, o dispositivo fixado em sua cabeça começa a funcionar. Choques começam a ser disparados, ela começa a gritar e se contorce de dor, sem conseguir controlar seus movimentos. Vendo que estava tudo em ordem, o apresentador apaga a luz e deixa o quarto, despede-se do homem da sua equipe, responsável por vigiá-la do lado de fora do cômodo e desce as escadas calmamente. Quando chega à sala, vai em direção de um calendário que está na parede, onde com o uso uma caneta retirada de uma gaveta, faz um "X" sobre o dia dezoito do mês de outubro, nos dando a certeza de aquela era a décima oitava vez naquele mês que Victoria passava por aquele martírio. Depois de olhar uma última olhada ao seu redor, o apresentador se em direção ao corredor e vai embora com os demais integrantes do seu grupo.
É um novo dia naquele grande espaço. Seguranças abrem o portão principal, onde uma placa anuncia: BEM-VINDO AO PARQUE DE JUSTIÇA URSO BRANCO. AGENDAMENTO COM ANTECEDÊNCIA SÃO ESSENCIAIS. POR FAVOR, APRESENTE SEUS INGRESSOS PARA OS GUARDAS E SIGAM IMEDIATAMENTE OS SINAIS PARA O CENTRO DE VISITANTES. APROVEITEM O SHOW. Já dentro do centro, os visitantes se acomodam em seus lugares para ouvir as instruções da equipe de atores e do apresentador, que já vestidos com suas fantasias e preparados para a encenação do dia. A mulher que estava no posto de gasolina e passou o dia anterior "ajudando" Victoria em sua fuga, começa a apresentação dizendo que eles já estão prestes a entrar no parque. Em seguida, ela passa a palavra para Baxter, o caçador, o homem no carro e o apresentador, no único momento do episódio em que seu nome é mencionado. Ele agradece os aplausos vindo das pessoas e segue dizendo que todos os papéis são muito importantes, os dos espectadores também. Agora, ele passa para a explicação das principais regras básicas. A primeira regra é não conversar. Nem com ela, nem entre eles. A menos que seja essencial. Ele informa que a intenção é fazê-la acreditar que todos eles estão desmemoriados/hipnotizados. Todos riem do seu último comentário, mas ele afirma que ela acreditou naquela farsa até então. A mulher do posto de gasolina retoma novamente a palavra. A segunda regra é para que todos mantenham distância. Ela segue dizendo que não tem como destacar o suficiente a importância desta regra. Para que todos não se esqueçam que ela é um indivíduo perigoso e que a imaginem como um leão fugitivo. Ontem ela tinha conseguido atirar em um dos atores, então, eles iriam interferir se ela conseguir chegar muito perto, já que todos estão equipados com tasers. O melhor é que todos mantenham uma distância de pelo menos três metros, se quiserem, podem usar o zoom das câmeras e dos celulares. O apresentador volta a falar, finalizando a apresentação com a terceira regra: "E por último, mas não menos importante, divirtam-se. Isso provavelmente é o mais importante, certo? Tirem muitas fotos, corram pela floresta, mas tentem ficar em segurança. Nós asseguraremos que vocês fiquem bem. Agora saiam, divirtam-se, vamos fazer este programa acontecer. Vamos!" A plateia começa a bater palmas animados, excitados com o que está por vir. Os visitantes começam a se espalhar e se posicionarem. O vidro quebrado da loja de conveniência do posto de gasolina também é substituído. Mais carros chegam até a entrada do parque. Uma grande placa de identificação indica que aquele é o Parque de Justiça Urso Branco. Enquanto o dia só está começando, Victoria acorda de seu sono desconfortável na cadeira do quarto, sentindo fortes dores de cabeça...

3- A dessequestração de Thompson e a mediação da experiência
O caráter chocante e desconcertante das imagens televisivas do Sudão, da Bósnia, da Somália, de Ruanda e de outros lugares provém não somente das desesperadas condições de vida daqueles povos veiculadas por estas imagens, mas também do fato de que suas condições de vida se distanciam dramaticamente dos contextos dentro dos quais estas imagens foram reimplantadas. É o contraste de contextos, de mundos divergentes que subitamente se unem numa experiência mediada, que choca e desconcerta. Quem não sentiu a necessidade, de vez em quando, de se afastar das imagens que aparecem na televisão, de fechar temporariamente o espaço de experiência aberta por ela, e de retornar às tranquilizantes realidades da própria vida diária? (THOMPSON, 2011, p. 288).
Thompson (2011) desenvolve o seu estudo sobre a "dessequestração" e a mediação da experiência em sua obra A Mídia e a Modernidade. Nele, o filósofo, sociólogo e antropólogo americano explica que as relações de intimidade não recíprocas com outros que estão distantes não é o único modo de experiência que os indivíduos podem ter através da mídia. Por outro lado, a mídia também torna possível um grande número de experiências, que as pessoas normalmente não conseguiriam obter dentro do seu contexto prático da vida. Todo este movimento se iniciou quando uma complexa reordenação das esferas de experiências tomou forma com o desenvolvimento das sociedades modernas. Com a urgência da criação de sistemas especializados, onde conhecimentos específicos eram fundamentais para sua existência, como a medicina e a psiquiatria ou instituições especializadas, como hospitais, hospícios e asilos, algumas formas de experiências foram, aos poucos, removidas dos locais da vida diária e colocadas em ambientes institucionais particulares. Estas e outras formas de experiências foram tiradas dos contextos práticos da vida e colocadas dentro de instituições especializadas, onde o acesso aos mesmos poderia ser controlado ou até restrito de diversas maneiras. A este fenômeno, o autor deu o nome de "sequestração" da experiência, onde o exemplo mais prático para o nosso entendimento, foi o desenvolvimento de prisões e hospícios a partir do século XIX. Estas mesmas instituições isolavam através da força certos tipos de indivíduos, afastando-os do resto da população e os mantendo indefinidamente atrás de muros e portões trancados. A título de comparação, nos séculos anteriores, os indivíduos condenados eram expostos a diversas formas públicas de humilhação e castigo, podendo ser colocados em praça pública para o deleite de todos. Mas este cenário foi mudando gradativamente a partir do século XIX, já que os criminosos condenados foram gradativamente trancafiados em prisões, ficando longe do convívio com a sociedade. Hoje, tanto a condenação de criminosos como o isolamento de doentes mentais, não são mais situações com que os indivíduos precisam lidar todos os dias. São agora fenômenos destinados somente aos especialistas e muitos indivíduos hoje os enxergam como algo extraordinário.
A mídia, principalmente os meios de comunicação em massa, por vezes, trabalham sob diretrizes baseadas na necessidade de gerarem lucros, lançando mão da prática do sensacionalismo e da espetacularização dos fatos, tanto na prática de matérias jornalísticas quando na produção de entretenimento, a fim de deixa-las mais "palatáveis" para o consumo em massa de suas atrações. É dentro deste ramo de jornalismo/entretenimento que encontramos os paparazzi, os reality shows, as colunas de fofoca e os telejornais policiais. O interesse mórbido das pessoas pela violência e tragédia alheia geram mercado para estas práticas, onde não sobra espaço para a ética e o jornalismo sério andarem juntos. Dentro deste ecossistema, as redes sociais, a popularização da banda larga, os smartphones e tablets equipados com câmeras digitais potentes e também os aplicativos de edição/composição de imagens e vídeos, permitem a qualquer pessoa fazer registros e iniciar um discurso midiático, que pode desencadear diversos acontecimentos e ultrapassar as fronteiras do tempo e espaço. A violência física praticada nos tempos medievais, como os apedrejamentos, espancamentos, assassinatos, fogueiras, o ferro de marcar e o pelourinho, agora, nos tempos modernos aparecem na forma de agressões virtuais, tanto individuais quanto coletivas, mas com consequências no mundo real para todos. É esta esfera de agressão virtual que Charles Brooker retrata brilhantemente na narrativa do episódio White Bear. Dentro do episódio, objeto deste ensaio, a dinâmica entre o bullying virtual, o poder judiciário e a midiatização/espetacularização são representados pela fusão destes mesmos três elementos. Victoria Skillane, após ser julgada e condenada pela justiça pelo crime que cometeu junto com o seu noivo, teve a sua pena transformada em um espetáculo, sendo alçada à condição de protagonista em um reality show, cujos temas principais são a exposição pública e tortura psicológica. Outro elemento midiático muito importante na trama foi o espaço criado para retirá-la do contexto prático da vida e colocá-la dentro de uma "instituição especializada". A justiça criou um parque "temático", que tem o nome do brinquedo da Jemina Sykes, para "sequestrá-la" da sociedade, afastando-a do resto da população e deixando ela sob os cuidados dos "especialistas". Ali, a sua sentença, proporcional ao crime cometido, é aplicada diariamente e transmitida ao vivo pelas câmeras espalhadas dentro deste grande "parque-cenário".
De volta à teoria de Thompson, o mesmo ressalta que junto com a sequestração institucional da experiência, também veio um outro tipo de desenvolvimento, que de alguma maneira o neutraliza, um crescente aumento das formas mediadas de experiência. Depois que as pessoas foram confrontadas com esta explosão de novas formas de experiências mediadas, houve o início de um novo movimento, onde algumas das formas de experiência antes separadas do fluxo da vida cotidiana foram novamente reintroduzidas - até mesmo ampliadas e acentuadas - através da mídia. Como dificilmente nos deparamos com certos tipos de doenças ou mortes violentas dentro do mundo prático da nossa vida diária, agora é possível termos algum tipo de experiência ou conhecimento de como elas acontecem através da mídia. A "dessequestração" da experiência através da mídia, nome dado por Thompson a este novo movimento, foi um importante desenvolvimento, mas ela é somente a uma parte do todo, pois a mídia disponibilizou diversas formas de experiências totalmente inéditas, mesmo que elas tenham sido gradualmente separadas (ou não) do fluxo da nossa vida cotidiana. Por exemplo, qualquer um que assista televisão nos dias de hoje, com uma certa frequência, já deve ter visto inúmeras mortes (sejam elas nos filmes ou nos noticiários), presenciado guerras, conflitos e manifestações públicas, que podem ter acontecido em diversas partes do mundo. Também já devem ter visto assassinatos, doenças, golpes de estado e revoluções, eventos estes que não chegariam ao conhecimento das pessoas sem a criação da TV. A mídia produz um contínuo entrelaçamento de diferentes formas de experiências, tornando o cotidiano de muitas pessoas bastante diferente daquele vivenciado pelas gerações anteriores. Esta é a experiência que o autor chama de "experiência mediada", ou seja, é um tipo de experiência que adquirimos através da "interação" ou "quase-interação mediadas".
Voltando para o episódio White Bear da série de TV Black Mirror, temos a certeza do processo de "dessequestração" que tomou conta do Parque de Justiça Urso Branco e de todos os envolvidos na sua criação. Após "sequestrar" Victoria Skillane e afastá-la do resto da população, deixando-a sob os cuidados dos "especialistas", os criadores do "parque-cenário" começaram um movimento contrário para "devolvê-la" novamente à sociedade, mas através da "experiência mediada". Com base nesta tese, podemos afirmar que as novas mídias possibilitaram que as pessoas tivessem "contato" com Victoria, acompanhando com entusiasmo sua angústia e sofrimento, mas sem a necessariamente ocupar o mesmo espaço físico do Parque de Justiça Urso Branco. Depois de separada do fluxo normal da vida cotidiana, Victoria se vê dentro de "uma redoma de vidro", sem o direito de lutar contra a situação em que se encontra, mas condenada a um espetáculo, um Big Brother sem prazo para acabar e à mercê de uma sociedade do espetáculo, que tem no sofrimento alheio uma válvula de escape para fugirem do vazio de suas próprias vidas. Dentro do papel de protagonista que ela própria desconhece no início, é dia após dia levada a se confrontar violentamente com suas lembranças, que são convenientemente "apagadas" da sua cabeça todos os dias. Neste reality show, que pode ser acompanhado de perto (interação mediada) - com uma visita ao parque e compartilhada pelas câmeras dos celulares; ou à distância (quase-interação mediada) - pela TV ou transmissão via internet, a midiatização descontrolada que estamos vivendo, permite que o encarceramento de Victoria seja visto de todas as formas possíveis. É esse contraste de diversos contextos, de mundos divergentes que subitamente se unem numa "experiência mediada", que choca e desconcerta neste episódio. White Bear usa a ficção para ilustrar a dinâmica e a dependência da mídia com a sociedade do espetáculo. É a justiça se valendo do espetáculo que a mídia pode proporcionar como meio de aplicação de pena.
Contudo, o desenvolvimento da comunicação mediada cria um novo tipo de experiência que corrói estes tipos tradicionais de organização política, pois é um tipo de experiência em que o que há de comum não está mais ligado à partilha de um mesmo local comum. Os indivíduos podem ter experiências similares através da mídia sem compartilhar os mesmos contextos de vida. Isto não quer dizer que os contextos de vida dos indivíduos sejam irrelevantes para a natureza e a importância de experiências mediadas: pelo contrário, como repetidamente já acentuei, os contextos de vida dos indivíduos têm um papel crucial na recepção, na apropriação e na incorporação dos produtos da mídia. (THOMPSON, 2011, p. 287).

4- Considerações finais
Todos nós, em algum momento, já paramos para pensar sobre a habilidade da mídia de criar demandas sociais e também o seu poder de promover mudanças na sociedade. Dentro desta linha de raciocínio, ainda podemos afirmar que as tecnologias digitais, principalmente as mais recentes, possuem o potencial de organizar e promover movimentos sociais e até mesmo a divulgação de campanhas diversas (inclusive, as políticas), um canal alternativo de propagação de conteúdo que a mídia "tradicional" não tem interesse em transmitir. É de conhecimento geral que muitas transformações sociais importantes, algumas até com alcance mundial, nasceram de mobilizações impulsionadas pela internet. Por outro lado, no âmbito da vida privada, as inúmeras redes sociais existentes na internet, tornaram possível a criação e, até mesmo a continuidade, de laços familiares, de amizade e profissionais. Estas e muitas outras transformações oriundas da presença das tecnologias digitais no nosso cotidiano e nas mais diversas esferas que fazem parte da nossa realidade, proporcionaram avanços dos mais variados, que vemos ser aplicadas todos os dias dentro da relação entre as sociedades e as instituições que as regulam. Mas também podem ser usadas para provocar outros tipos de mobilizações, estas voltadas para a violência, física ou verbal, gratuita ou motivada pelos mais diversos interesses. Exemplos reais do nosso dia a dia são o bullying virtual, que levou muitos jovens ao suicídio em diversas parte do mundo; divulgação on-line de fotos íntimas do ex-parceiro(a) sexual com a intenção de humilhar o mesmo publicamente; pessoas que fazem comentários polêmicos nas redes sociais e são atacadas publicamente nestas mesmas redes sociais. Existem casos extremos que tomam proporções alarmantes, fugindo do controle da pessoa que fez a postagem e denegrindo a sua imagem perante a sociedade, que começará a ver este indivíduo como um monstro ou outra coisa do gênero e a incitação à violência com o uso da internet e/ou redes sociais para provocar mobilizações sociais, que tem como premissa espalhar o ódio e o pânico entre as pessoas.
Demos início às nossas considerações finais com algumas reflexões sobre as transformações oriundas da presença das tecnologias digitais nas mais diversas esferas que fazem parte da nossa realidade e que proporcionaram avanços dos mais variados. Mas o que nos interessa neste momento e é o foco principal deste ensaio, são as formas como estas mesmas tecnologias digitais estão sendo aplicadas no nosso cotidiano e como elas mudaram as relações entre as pessoas dentro das sociedades em que estão inseridas. Mais precisamente, o que nos interessou aqui foram as relações entre as mídias e os indivíduos e as demandas geradas pelo segundo grupo por uma realidade mediada, vista através das telas das TVs e por experiências de espetacularização do sofrimento alheio que a "realidade artificial" consegue nos oferecer. Afinal, o espetáculo, o sofrimento e a catástrofe são materiais que amenizam muito a vida das pessoas, desde terremotos e maremotos até crimes em série, principalmente se neles houver agravantes de sadismo e perversões sexuais. Dentre os muitos sentimentos despertados pelas "imagens reais" com que somos confrontados todos os dias, o sofrimento sempre ocupou um lugar de destaque. Por isso, em nossa época, nem a mídia mais responsável pode evitar que suas imagens se tinjam de sangue, cadáveres e pedófilos. Neste cenário, o sofrimento e a realidade se juntam, renegando o conceito de felicidade ou até mesmo a ausência de sofrimento a um campo específico de ficção que nos conforta, propositadamente falso, cuja a maior expressão encontramos dentro da publicidade. Realidade e sofrimento, portanto, ficam de um lado, enquanto o discurso falso de alguma ficção que conforta e a felicidade/ausência de dor, ficam do lado oposto desta equação. Porque esses são alimentos mórbidos exigidos e reivindicados pela fome de espetáculo, que inconscientemente pressiona os meios de comunicação, por parte do público leitor, ouvinte e espectador. Os reality shows, propositalmente indecisos entre a ausência de compromisso com o real e um enredo dramático encontrado normalmente nas ficções, expõem a relação entre realidade e sofrimento, com a promessa de uma trajetória digna de uma novela mexicana, cheia de situações recheadas de crueldade e humilhação. Dentro deste ambiente hostil, onde somente os mais fortes saem vitoriosos, a dor é vista como uma etapa inevitável para aqueles que desejam vencer e ter os seus quinze minutos de fama.
Neste tipo de programa, por mais desenvolvidos que sejam, o alicerce principal dos reality shows continua sendo a televisão. A redoma de realidade controlada, crucial para este tipo de espetáculo, só pode existir se houver uma estrutura rígida por trás da mesma, com profissionais encarregados de manter a sensação de real das imagens ao mesmo tempo em que impedem que a "verdadeira realidade", com sua monotonia e cheia de imprevisibilidade, invada a bolha cuidadosamente mantida pela direção da atração. A série de TV Black Mirror foi lançada dentro de um outro momento, em uma fase de grandes mudanças na direção da história do desenvolvimento tecnológico. Estamos em uma realidade onde a tecnologia (principalmente a digital) e o acesso à internet, tornaram-se onipresentes e passaram a fazer parte das nossas subjetividades, gerando um processo de midiatização total nos diversos aspectos da nossa vida cotidiana. É neste contexto de aumento do alcance da internet, onde a tecnologia conseguiu chegar em "mares nunca antes navegados", que a série de TV Black Mirror desenvolve a sua narrativa. Um cenário com centenas de câmeras e celulares apontados para Victoria por uma multidão de espectadores ávidos por um espetáculo, as dezenas de câmeras de uma atração derivada do Big Brother, controladas por uma equipe de atores e outros profissionais pautados por um questionável código de ética, parecem compor um cenário bucólico de um quadro pintado a óleo. As sensações de espanto, de horror e de sufocamento que sentimos ao assistir o episódio White Bear, não são resultados do controle asfixiante de uma instância com poder centralizado. O fator que mais assusta na via crucis imposta à Victoria é o grande número de pessoas envolvidas, direta ou indiretamente, na sua punição que foi sentenciada por um juiz. Os vínculos criados dentro da rede, vistos de certa maneira como libertadores, mostram também a sua capacidade de transformarem-se em armadilhas, como a que encarcerou Victoria dentro de uma prisão com constante vigilância midiática.
Se tomarmos emprestado de Giddens (1991) o entendimento da midiatização como um processo intrínseco da modernidade, é possível entender a partir da análise feita pela série de TV, a ambiguidade da relação que as pessoas contemporâneas criam com a
dependência tecnológica e/ou midiática, ao mostrar de maneira crítica a onipresença dos diversos dispositivos de comunicação/informação. A "autonomia" dos indivíduos proveniente do desenvolvimento das tecnologias digitais, bate de frente com a dependência criada entre estes mesmos usuários em relação a elas. A popularização de smartphones, de aplicativos e de outros dispositivos, que propagam a exposição da vida íntima alheia, é continuamente alimentada pela curiosidade que as pessoas têm da vida dos outros. Neste cenário, as redes sociais on-line ganham ares de Big Brothers, onde a contínua exposição se torna moeda de troca e também um espaço de construção público da subjetividade e da própria identidade, verdadeira ou não. Ao mostrar um dilema contemporâneo elevado à máxima potência, provocado pela crescente midiatização do campo da vida moderna, a série de TV Black Mirror e, em particular, o seu episódio White Bear, propõem uma atividade de autocrítica e uma profunda reflexão sobre as muitas possibilidades do uso da tecnologia e também das suas respectivas consequências.















Referência audiovisual:
White Bear. Direção: Carl Tibbetts. Produção: Barney Reisz. Intérpretes: Lenora Crichlow, Michael Smiley, Tuppence Middleton. Roteiro: Charlie Brooker. In: Black Mirror: the complete second series. Londres: Zeppotron, 2013. 1 DVD (133 min), color.

Referências bibliográficas:
BAUDRILLARD, Jean. Big Brother: telemorfose e criação de poeira. Revista Famecos, n. 17, Porto Alegre, PUC: abr. 2002, p.7-16.
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D'Água Editora Ltda., 1991.
BAUDRILLARD, Jean. Telemorfose. Rio de Janeiro: Mauad Editora Ltda., 2004.
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991.
THOMPSON, J. A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis: Editora Vozes, 2011.
ZEN, Caique. Rituais de sofrimento em White Bear (Black Mirror S02E02) – 1/2, 2017. Disponível em: https://21sprevista.wordpress.com/2017/01/17/rituais-de-sofrimento-em-white-bear-black-mirror-s02e02-12/. Acesso em: 20 de jan. 2017.

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