Migrações em minha vida: histórias que se pensam também em livros
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Migrações em minha vida: histórias que se pensam também em livros
Pediram-‐me que falasse de alguns livros de minha autoria sob o ponto de vista das
Susana Ventura
migrações.
Começo por dizer da vida antes de dizer dos livros, que vieram muito depois e são
também tributários de um cruzamento de referências pessoais das mais diferentes.
Nasci numa família brasileira pobre no final da década de 1960. Família formada por
muitos imigrantes portugueses, por alguns brasileiros de origens incertas e por uma interessante costela ítalo-‐africana.
Uma bisavó italiana, vinda do Vêneto para trabalhar nas lavouras de café e fugida aos
14 anos com um filho de escrava com senhor de fazenda, deu um toque de falta de juízo e maluquice a uma família formada em sua maior parte por portugueses um tanto fatalistas.
O casal ítalo-‐africano formado por Dona Gigia e Seo Herculano era em tudo
apaixonado, controverso e explosivo. Para dizer algo significativo em poucas linhas, basta contar que meu avô lusitano, lusitaníssimo – que foi toda a vida marcado pela certeza de que a vida é simultaneamente um fado e um fardo -‐ chegou um dia para ‘noivar’ e, ao entrar na sala, visualizou a futura sogra correndo com uma tesoura aberta atrás do futuro sogro, ela furiosa e falando uma língua arrevesada, ele correndo a valer, sabedor do risco real que corria.
D. Gigia nunca aprendeu a ler nem a escrever e muito menos a falar português. Já o Seo
Herculano era o mais jovem dos 4 filhos de seu inflexível pai espanhol, que teve outras 3 filhas, Aurora, Lídia e Clara, com 3 diferentes escravas, tendo se casado com a única mulher, escrava também, que lhe dera o desejado filho homem.
No entanto, embora tivesse estudado até o Ensino Médio, meu bisavô foi deserdado e
abandonado pelo pai ao fugir com minha bisavó e tentar voltar para a casa paterna casado tempos depois.
Ela contava 14 anos, ele 17, quando sucumbiram à paixão que parece ter durado
longos anos. A eles devo uma boa dose de ótimo humor e à sua família, formada por seis filhos e filhas de todas as tonalidades, devo a certeza de que somos todos misturados e que a cor da nossa pele é apenas obra do acaso e não tem nenhuma importância.
Aquele avô do noivado, casou-‐se analfabeto e seria depois alfabetizado pela esposa,
minha avó, Dinah, que teve artes de didática aprendidas sei lá como, uma vez que só frequentou a escola por três anos, mesmo destino de minha outra avó, Alice, mãe de meu pai.
A escolarização em três anos, no sistema de classe multisseriada era o que tinham direito as crianças daquela cidade de Poá, hoje periferia de São Paulo, naqueles longínquos anos de 1920. Meu avô, alfabetizado tão tardiamente, tornou-‐se um leitor voraz e incansável. Bom leitor, como comprovava a pequena estante de livros da casa dele, uma das minhas primeiras fontes de leitura.
Já meus pais puderam avançar um pouco mais em termos de escolarização. Na mesma
cidade, na década de 1950, era possível seguir até o 5o. ano. Eles foram mais além, viajando de trem até Mogi das Cruzes e, posteriormente, depois de casados e já pais, conseguiram chegar ao curso superior.
Chegou a minha vez de estudar. Impulsionada pelo desejo de sair da pobreza, meu
pequeno núcleo familiar ficou sujeito a um certo nomadismo decorrente do emprego que meu pai arranjara e que me fez mudar de casa, de cidade e de escola uma dezena de vezes até a chegada da idade adulta.
Muitos anos depois, jovem no início da casa dos 20 anos, recém-‐formada, fui por obra
do acaso viver no Peru e dali mudei-‐me para o Noroeste da Argentina, fixando-‐me numa região desértica fronteiriça com o Chile (50 Km) e com a Bolívia (40 Km). Os anos passados nestes países me trouxeram várias coisas: o espanhol, minha língua segunda, em que sonho e penso por longos períodos, o aprofundamento de questionamentos de natureza política e uma quantidade considerável de livros e de pessoas que conheci e que moldaram meu modo de ver a vida.
Foi nos anos vividos na Argentina, em que os passeios de final de semana eram subir as
montanhas andinas e cruzar as fronteiras dos três países, errando em carros velhíssimos por paisagens magníficas e indo ao Deserto de Atacama espairecer porque era o lugar mais perto do lugar remoto em que eu estava, que descobri o que era o racismo das populações brancas com relação aos indígenas e aos mestiços do interior do meu enclave de três países.
Num atendimento médico ao qual acompanhei um familiar, prestado no ambulatório
de San Pedro de Atacama, ouvi pela primeira vez, da enfermeira que dava pontos num ferimento, que estava farta de gente racista e mal educada. Ela me contou que os ricos da Argentina e do Chile, quando precisavam de ajuda médica ali eram geralmente desrespeitosos ao extremo e chamavam-‐na de ‘boliviana’. Foi a primeira vez que ouvi isso e não foi a última.
Data daqueles anos um primeiro livro, de crônicas de viagem, chamado ‘Sozinha no
deserto’. Ficou inédito e acho nele alguma graça e relembro ótimas histórias que não pretendo contar novamente porque se esgotaram ali. O livro teve o destino de ser lido por familiares e amigos e hoje vive numa gaveta qualquer junto com os diários que escrevi naqueles anos e
com as centenas de fotografias que salvam o conjunto porque a fotógrafa não era boa mas as paisagens eram milagrosas.
De volta ao Brasil em 1996 acabei indo fazer Mestrado Faculdade de Letras da
Universidade de São Paulo. Eu desejava fazer um trabalho em Literatura Comparada em que pudesse pensar sobre o Brasil em contraponto com um dos países onde eu vivera. No entanto, não havia ainda uma Linha de Pesquisa que abrigasse minhas intenções e escolhi entre o que havia por motivos familiares: Literatura Comparada dos Países de Língua Portuguesa, para poder estudar Portugal e Brasil em contraponto.
Escolhi estudar Silviano Santiago e um autor ainda não muito conhecido do grande
público então: José Saramago. Nem é preciso dizer sobre a felicidade da escolha. Conforme José Saramago tornou-‐se conhecido do grande público também meu trabalho recebeu alguma atenção.
Durante o Mestrado tomei contato com as Literaturas Africanas de Língua Portuguesa,
que passei a estudar com afinco e a amar. Para elas se estenderia minha pesquisa a partir do Doutorado.
Angola foi a paixão primeira. Talvez pela informação -‐ possivelmente equivocada -‐ de
que minha antepassada escrava teria vindo de lá. Descobri mais tarde que muitos afrodescendentes têm a mesma ‘impressão’, fundada na oralidade e prova dos laços afetivos que unem Brasil e Angola.
Mas o Brasil, desde a década de 1980, contava com vários estudiosos em Angola e,
àquela altura, poucos especialistas em Cabo Verde e nenhum dos demais países. Ser mais uma especialista em Angola não faria muito sentido, portanto. Coincidentemente eu descobrira um jovem autor, praticamente desconhecido e apaixonada por um romance magnífico, decidi-‐me por ele e por Moçambique. Assim, Mia Couto entrou na minha vida e eu me tornei, depois de alguns anos, uma poucas especialistas em Literatura Moçambicana no Brasil. Passados quinze anos, Terra sonâmbula continua no meu panteão de romances magníficos e estou à espera do Prêmio Nobel para Mia Couto.
Finalizado o Doutorado publiquei em edição de autora meu primeiro livro, Cirandas de
escritas (2010), em coautoria com a outra estudiosa de Mia Couto que tínhamos na época na Universidade de São Paulo Ana Claudia da Silva, hoje professora da Universidade de Brasília. O objetivo do livro -‐ que tem conteúdo aberto na internet e está em vários sites, inclusive o ‘Memória de África’ da Universidade de Aveiro -‐ era partilhar ensaios do período do Mestrado e Doutorado de ambas e que haviam ficado espalhados por várias publicações acadêmicas.
O Doutorado me levou a morar em Portugal, onde vive ainda hoje parte da minha
família. Fui beneficiada por uma bolsa de doutorado-‐sanduíche da CAPES. Ali vivi entre 2004 e 2005.
Terminado o Doutorado, em 2007 fui dar aulas e trabalhar na área cultural. Trabalhei
na Casa das Rosas, no Museu da Língua Portuguesa e para o SESC SP, dando cursos, palestras, fazendo curadorias e pensando projetos em equipes multidisciplinares.
A formação ampla recebida na Universidade de São Paulo, em que a área de pós-‐
graduação englobava Literatura Portuguesa, Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira e Literatura Infanto-‐Juvenil resultou em convites para atuar em projetos dos mais diversos.
A partir de 2008, a Literatura para Crianças e Jovens começou a entrar mais
fortemente em minha vida. Neste ano, quando trabalhava na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP-‐Guarulhos), fui convidada para ser a selecionadora de acervo de Literatura para Crianças em Jovens para o projeto Mais Cultura do MEC/MinC em 2008. Fui também chamada para projetos na área pelo SESC SP. Após uma participação na Bienal de 2010 recebi um convite da Editora Peirópolis para ajudar na construção de uma coleção de Literatura Portuguesa.
O
Catálogo
de
Literatura
Portuguesa
disponível
em
www.editorapeiropolis.com.br tem textos de minha autoria e uma parcela de títulos escolhidos por mim para sua composição.
Em 2012, após 4 anos como pesquisadora beneficiada por bolsa da FAPESP e que
passei entre a UNIFESP Guarulhos e as Universidades de Lisboa e Sorbonne -‐ Paris IV voltei para a área cultural e editorial e dei início à publicação de minha produção de literatura voltada para crianças e jovens.
Meu primeiro livro para jovens foi Convite à navegação, uma conversa sobre literatura
portuguesa (São Paulo: Peirópolis, 2012). Como professora de Literaturas de Língua Portuguesa me incomodava a abordagem pouco inventiva dos primeiros séculos dessa literatura para jovens que começavam o 1o. ano do Ensino Médio. Por isso, após lecionar alguns anos resolvi ‘conversar’ livremente, a partir dos interesses que sentia muito vivos em meus alunos, através dessa obra. A parceria com a ilustradora Silvia Amstalden resultou num livro que muito me agrada. Recebeu o Selo Altamente Recomendável para o Jovem da Fundação Nacional para o Livro Infantil – FNLIJ.
Na época da finalização da obra, Renata Borges da Peirópolis fez-‐me uma proposta:
fazer um segundo livro a partir das ilustrações elaboradas para o Convite à navegação que visasse público infantil. O texto de De onde vem o português? seria fruto de longa elaboração e
o livro em passaria por diversas modificações até sua fixação definitiva. Foi publicado pela Peirópolis e chega às livrarias em junho de 2015.
Ainda na área da Literatura Portuguesa tenho pela Peirópolis uma parceria com
Guazzelli – um ilustrador que eu admirava muito -‐ Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos (São Paulo: Peirópolis, 2013), um álbum em HQ que propõe um percurso de conhecimento pela obra pessoana. Recebeu também o Selo Altamente Recomendável para o Jovem da Fundação Nacional para o Livro Infantil – FNLIJ.
Foi um grande desafio, uma vez que Fernando Pessoa é mais do que um poeta. É um
criador genial que representa em si a confluência de grandes poetas, capaz, em sua obra múltipla de se constituir numa das mais importantes vozes da língua e da literatura portuguesa depois de Camões. Minha questão primordial nesta obra era me decidir pelo caminho tomar para a construção de uma obra que fosse capaz de incendiar a cabeça de um jovem leitor, instigando-‐o a buscar seu próprio Fernando Pessoa. Depois de algumas tentativas escolhi trabalhar a partir da carta que passou à História como “Carta da gênese dos heterônimos”. Dirigida a Adolfo Casais Monteiro, escrita meses antes de morrer, Fernando Pessoa nela se define, se explica e, provavelmente, se inventa. Na carta, o poeta troca em miúdos alguns aspectos de si e de sua obra genial. Este foi o ponto de partida do roteiro que fiz para o álbum e plataforma para que aparecessem e fossem apresentados poemas de Fernando Pessoa, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e um trecho da prosa de Bernardo Soares. Também texto de época, como os obituários que foram publicados nos jornais portugueses imediatamente após a morte de Fernando Pessoa em dezembro de 1935 foram utilizados na elaboração da minha obra. A parceria foi das mais felizes: Guazzelli apresentou em seu trabalho uma concepção rica e profunda da obra pessoana pelos olhos do excelente artista gráfico que é.
Em 2013, recebi uma encomenda, vinda de uma outra editora que iniciava um selo
infantil: a construção de dois livros de recontos a partir de narrativas populares portuguesas e africanas. Embora tivesse passado quinze anos trabalhando com essas literaturas, o meu contato com os contos populares era restrito. Foi boa oportunidade para pesquisar e para me dar conta da importância daquele acervo.
Como resultado, cerca de um ano depois, surgiram pela Volta e Meia O Príncipe das
Palmas Verdes e outros contos portugueses (São Paulo: Volta e Meia, 2013), composto por dez contos originalmente recolhidos em diversas regiões de Portugal por Adolfo Coelho, Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso e O tambor africano e outros contos dos países africanos de língua portuguesa (São Paulo: Volta e Meia, 2013). Naturalmente, ao abordar a África eu fui para o
terreno que realmente conhecia bem: o dos cinco países de língua portuguesa, Angola, Cabo Verde, Guiné-‐Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. As fontes também foram diversas e bem mais difíceis de localizar do que as dos contos portugueses, mas consegui. São quinze contos, três de cada um dos países, ressalvando aqui que a divisão artificial do Continente Africano operada pela Conferência de Berlim (1884/1885) tornam essa divisão mais lógica para os mundo do que para a África. Mas optei por checar com amigos locais se os contos pesquisados eram realmente representativos de seus países e assim cheguei ao acervo final.
Com esses dois livros senti que complementei de certa maneira o percurso iniciado no
Mestrado (2001) e concluído no Doutorado (2006) em que estudei Literatura Comparada dos países de Língua Portuguesa sem, no entanto, ter conseguido realizar, durante os anos de estudo, reflexões em torno da contribuição da cultura popular à literatura. Só percebi que a lacuna existia ao realizar a pesquisa para os livros. Neste momento, maio de 2015, estou em meio a uma pesquisa que ampliará bastante meu conhecimento sobre contos populares africanos.
Quando eu fazia a pesquisa para O Príncipe das Palmas Verdes e outros contos populares
portugueses apareceram na pesquisa muitos contos do embate entre muçulmanos e cristãos. Dois dos contos do livro têm essa marca: ‘Antônia’, em que uma princesa raptada pelos ‘mouros’ era resgatada e ‘O cavalinho das sete cores’, em que um cristão cativo é ajudado pela filha do captor, que foge com ele da ‘moirama’. Mas havia muitos outros, muito variados. Comentei a circunstância com uma amiga escritora, Helena Gomes, que vinha da realização de um livro para jovens sobre a trágica história de Inês de Castro e que preparava um mestrado sobre contos populares portugueses. Ela também havia encontrado em seu acervo vários contos sobre o tema. Pensamos juntas que seria muito bom se os jovens leitores pudessem pensar sobre a intolerância religiosa e sua total falta de sentido nesses novos tempos de tantos problemas tão antigos que aparecem disfarçados com roupas novas.
O sonho de um livro conjunto de recontos para jovens a partir de histórias portuguesas
dos encontros/embates entre ‘mouros’ e cristãos na Península Ibérica dos séculos VIII a XIII tornou-‐se Contos mouriscos: a magia do Oriente nas histórias portuguesas, feito pela Callis Editora para concorrer ao PNBE 2015 e alguns outros programas, ainda sem edição comercial.
No início de 2014, fui chamada por Bruno Berlendis da Berlendis & Vertecchia Editores
para conversar sobre uma possível encomenda de livro para Fundamental I e que partisse de narrativas coletadas por antropólogos. Eu estava com viagem de trabalho e pesquisa agendada para março e já fui trabalhando para me encontrar em Buenos Aires com a parceira do projeto, a ilustradora argentina Vanina Starkoff.
Foi muito bom construir este livro que se chama Vou lá buscar a noite e já volto e que é
composto por recontos elaborados a partir de contos kayapó fixados em diversos idiomas. Está destinado a crianças a partir dos 7 anos.
A parceria com a Vanina foi ótima, discutimos juntas as ilustrações e as histórias. O
livro me aproximou também de um interesse pessoal que já me mobilizava desde 2008, quando da escolha de livros para bibliotecas: a questão indígena brasileira, também trabalhada por mim em Portugal em 2010 e em projetos do SESC SP. Foi lançada edição comercial em junho de 2014 (São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2014).
A viagem de trabalho me levou a Montevidéu depois da parada em Buenos Aires e teve
como finalidade de pesquisar bibliotecas e comprar em livrarias materiais sobre contos populares latino-‐americanos, para um livro que eu havia proposto para a Volta e Meia quando terminei O tambor africano.
Ao começar a pensar nesse projeto de contos populares latino-‐americanos, o
‘aniversário’ de 20 anos da minha volta definitiva da Argentina teve um papel importante. Era momento para dar um balanço em diversas questões da minha própria deambulação pessoal.
Repensei aqueles anos da minha vida fora do Brasil e, em conversas com o meu pai,
chegamos à conclusão de que os Andes davam uma configuração cultural específica à parte do continente sobre a qual eu gostaria de falar. Ao mesmo tempo a cordilheira fornecia o recorte que eu esperava encontrar para o livro. Enchi a mesa com as fotografias da cordilheira e até o livro de crônicas saiu da gaveta para tomar sol. No início de 2014 eu já sabia o próximo livro que queria fazer: Contos andinos.
No entanto, pouco antes da partida, em 21 de fevereiro de 2014, fiz uma palestra num
evento da Secretaria Municipal de Educação e ali estava quando casualmente Fátima Bonifácio me contou sobre a existência de 4.000 crianças bolivianas na rede pública de São Paulo.
Fiquei pensando, viajei, coletei o material para os Contos andinos, voltei, trabalhei nos
contos. Comecei a me aproximar das comunidades bolivianas de São Paulo, a prestar mais atenção aos bolivianos no metrô, a frequentar a Feira da Kantuta aos domingos. Uma amiga da área do Direito fazia uma pesquisa sobre trabalho equiparado à escravidão e com ela conheci mais sobre a situação de grande parte dos bolivianos que vivem na cidade de São Paulo e trabalham na área das confecções. Descobri na rua da minha casa um salão de cabeleireiro de propriedade de um boliviano e passei a conversar com ele, que já conhecia de vista.
Coincidentemente, em maio de 2014, me chamaram para algumas palestras nas
Oficinas Culturais do Estado e, nas viagens para o interior, dividi o transporte com João
Batista de Andrade, cineasta e parceiro de mesa redonda. Falando com ele contei sobre meu trabalho com contos andinos e bolivianos e ele me disse que estava no Memorial da América Latina. Batemos uns papos e eu fui trabalhando no livro, contando com mais uma ligação à comunidade boliviana, facilitada por ele. Vi que teria que dividir o projeto em pelo menos dois livros: um somente de contos bolivianos e outro de contos andinos. Em julho de 2014 ficou pronta a primeira versão de A kantuta tricolor e outras histórias da Bolívia, mas antes de soltá-‐ lo submeti o texto a alguns leitores bolivianos para saber se eles se viam representados ali. Não há dúvida de que eu não publicaria um livro que não tivesse a chancela humana que eu almejava. Chancela obtida, o livro seguiu para produção de edição limitada pela Volta e Meia, voltada à inscrição em programas de governo.
Sobre este livro escrevi o que será um texto de abertura:
Os brasileiros se acostumaram a se pensar como um povo à parte na América Latina.
Um pensamento limitador que não permite um conhecimento e reconhecimento mais profundos de nossos países em contraponto e harmonia, que possibilitariam propostas de encontros identitários.
Nosso desconhecimento em relação aos países vizinhos nos rouba ainda a
oportunidade de conhecermos histórias fantásticas, como as que compõem A kantuta tricolor e outras histórias da Bolívia. País tão próximo do Brasil, mas ao mesmo tempo tão distante, a Bolívia se revela neste livro em doze diferentes faces, para serem vistas e interpretadas. São fábulas brilhantes, contos de pura magia, histórias de amor, mostrando um modo de ver o mundo e a vida que desafia e faz pensar.
Paisagens desconhecidas mas adivinhadas, como a das cordilheiras; o simbolismo de
seus protagonistas animais, como o condor, senhor dos Ares, o coelho, a raposa; as doçuras e asperezas da vida no campo, plenas de desafios; as camadas de tempo: do passado pré-‐ colombiano aos tempos de dominação colonial, encerrados pela desejada e sofrida independência, estão presentes neste livro.
A kantuta tricolor e outras histórias da Bolívia apresenta a riqueza de um imaginário
que se revela especial, de origens tão antigas e ao mesmo tempo tão próximas, em detalhes que comprovam que somos muito mais próximos do que inicialmente pensamos.
Voltei novamente para o trabalho nos ‘Contos andinos’ ao qual me encontro dedicada
neste momento e que deve levar mais um ano até sua conclusão.
Gostaria de lembrar aqui Angela Carter, a estudiosa e autora inglesa que, no prefácio
ao seu 103 Contos de fadas (São Paulo: Companhia das Letras, 2007), escreveu de maneira
muito feliz: ‘os contos de fadas, os contos populares, as histórias da tradição oral constituem a mais vital ligação que temos com o universo da imaginação de homens e mulheres comuns, cujo trabalho criou o mundo’.
Creio ser este o motivo do trabalho com contos populares me mobilizar tanto nos
últimos tempos: por serem eles a ligação com o passado e com os lugares de onde partiram os meus antepassados, levando quase nada além de suas próprias esperanças. E talvez seja também por isso que as questões de migração perpassam boa parte dos meus títulos já publicados.
Termino este relato lembrando um daqueles enunciados tão bem pensados de Angela
Carter, que parecem tão naturais porque a felicidade de expressão era a terra daquela escritora e pesquisadora que morreu em 1992, no auge de sua vida e produção:
‘As histórias se difundiram por todo o mundo, não porque todos partilhamos o mesmo
imaginário e experiência, mas porque as histórias podem ser levadas de um lugar para outro, parte que são da bagagem que as pessoas carregam consigo quando se vão de sua terra.’
É isso: migração de gente, migração de vida, de histórias e, quem sabe, de
imaginários... São Paulo, 6 de maio de 2015 (Texto escrito para a reunião de junho de 2015 tutores do Programa Quem Lê Sabe Por Quê, da SME da Prefeitura Municipal de São Paulo, a pedido de Fátima Bonifácio e Cristina Reis Figueira).
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