MILITAR, CAMARÁRIO E “BOM CRISTÃO”: O CRONISTA CADORNEGA E SUAS ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO SOCIAL NAS POSSESSÕES PORTUGUESAS NA ÁFRICA DO SÉCULO XVII

September 16, 2017 | Autor: I. Do João Henrique | Categoria: Angola, Elites, Cadornega, Massangano
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Jovem Pesquisador:

MILITAR, CAMARÁRIO E “BOM CRISTÃO”: O CRONISTA CADORNEGA E SUAS ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO SOCIAL NAS POSSESSÕES PORTUGUESAS NA ÁFRICA DO SÉCULO XVII1 Ingrid Silva de Oliveira Mestranda em História pela UFRRJ / Bolsista do CNPq [email protected]

Resumo: A sociedade do império português, tanto no continente quanto no ultramar, organizava-se numa hierarquia de posições que dependiam das honras recebidas. Esse artigo pretende analisar as várias estratégias utilizadas pelo cronista Antonio de Oliveira Cadornega por meio de suas atividades militares, administrativas e de "bom cristão" no continente africano para ascender socialmente na hierarquia daquelas possessões ultramarinas. Palavras-chaves: Elites ultramarinas no império português; Cadornega; Século XVII Abstract: The society of the Portuguese Empire, in the continent and in the overseas, was organized in a hierarchy of positions that depended on the honors that one could receive. This article intends to analyze the many strategies used by the chronicler Antonio de Oliveira Cadornega through his military and administrative activities, beyond his “good Christian” ways of life, in the African continent to rise socially in the hierarchy of that overseas possessions. Keywords: Elites in the Portuguese overseas Empire; Antonio Cadornega; 17th century No século XVII, o império português proporcionava algumas formas de ascensão social para aqueles que não eram fidalgos, principalmente em seus territórios no ultramar. Apesar de normas que regulavam a ascensão social de cristãos-novos e portadores de defeitos mecânicos, através da exigência da limpeza de sangue, os critérios que regulavam essas possibilidades das pessoas que viviam nessas possessões longínquas tinham certas diferenças daquelas do continente. A fim de assegurar a dominação de territórios ameaçados por outras nações, o rei de Portugal concedia títulos de nobreza a indivíduos que escapavam às grandes exigências de pureza de sangue. O reconhecimento real de feitos militares e religiosos pelos seus súditos localizados em terras remotas fortalecia e permitia o governo do império. Os homens que se estabeleciam nas colônias portuguesas, e que almejavam títulos e rendas, sabiam como proceder para alcançar seus objetivos. Uma das formas de conseguir mercês, além dos

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serviços militares, era a compilação de conhecimentos e de ações militares portuguesas nesses territórios. Estudos como os de Ronald Raminelli mostram como a história dos feitos portugueses estreitavam as relações entre o monarca e essas possessões distantes do continente. Segundo Raminelli, a história dos feitos era um meio legítimo de tentar obter mercês, uma vez que as crônicas “atuavam como testemunho da valentia e da fidelidade ao rei, realizações que (...) seriam lembradas pelos próprios protagonistas ou por seus descendentes nas petições dirigidas aos soberanos”2. Portanto, ao produzir memórias, esses vassalos serviam ao rei e aumentavam suas chances de obter uma futura mercê. Entendendo que essas “teias informativas” se forjavam nos moldes do Antigo Regime, tal como Ronald Raminelli, acreditamos que as trajetórias individuais nos possibilitam perceber a dinâmica entre serviços e recompensas, aspecto fundamental para pensar as relações entre centro e periferias no mundo ibérico3. Os vínculos de lealdade nos auxiliam a compreender a inserção do continente africano nas redes imperiais e fornece elementos para observar as estratégias utilizadas pelos habitantes do ultramar ao “inventariar os povos, a natureza e a história da presença portuguesa”4. O caso que analisaremos, brevemente, nesse artigo é o do português Antonio de Oliveira Cadornega. Podemos dizer que ele é um grande exemplo de homem que se utilizou de diversas estratégias para tentar obter mercês do monarca português e marcar seu lugar como membro de uma elite ultramarina, durante a segunda metade do século XVII. Cadornega é bastante conhecido pelos estudiosos da história do continente africano, mais propriamente, das regiões de Angola e arredores, pois seu texto História geral das guerras angolanas5 é uma das principais fontes de conhecimento sobre o passado daquelas sociedades. Essa fonte é quase exclusivamente utilizada por esses historiadores, buscando informações sobre as sociedades africanas que o autor relata. No entanto, o que propomos nesse artigo, é um uso diferente dessa fonte. A utilizaremos para saber um pouco mais sobre Cadornega e sua trajetória dentro do império português, considerando os modos como procedeu para solicitar o reconhecimento de seus serviços. Antonio de Oliveira Cadornega nasceu em Vila Viçosa, Portugal, por volta de 1610. Sua família sofreu um grande abalo: sua mãe e irmã foram processadas pela inquisição, acusadas de praticar ritos religiosos judaicos. Antes desse processo, e devido a essa provável ascendência judaica, Cadornega e seu irmão, Manuel, partiram para a África na esperança de não serem perseguidos pela inquisição. Partiram para lá contra a vontade de seu pai, que tentara a vida em Buenos Aires, mas voltara empobrecido para Portugal. Cadornega e seu irmão partiram para Angola com o novo governador Pedro César de Meneses. Lá, assumiu a função de soldado raso, e seu irmão a de alferes. Chegou em Luanda no ano Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10 n. 1 e 2, Jan.-Dez., 2008

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de 1639 e seguiu na carreira militar até ocupar o posto de capitão – provavelmente nomeado em 1649 – e, posteriormente, assumiu funções na administração pública. Após um período sediado em Massangano, no ano de 1671 transferiu-se para Luanda, onde foi nomeado vereador da câmara inúmeras vezes e onde teria dado início à escrita de seu texto principal, História Geral das Guerras Angolanas. Apesar do título, o texto de Cadornega não se detém na descrição das guerras que assolavam a região de Angola, mas também traz relatos de particularidades do território, e de seus habitantes, além de abordar outros acontecimentos relativos à presença da administração portuguesa e a atuação missionária de religiosos, como jesuítas e capuchinhos. Essa obra foi publicada em três volumes: os dois primeiros descrevem as campanhas portuguesas naquela região até 1680 e o terceiro trata mais de aspectos geográficos e etnográficos da Angola portuguesa. O próprio Cadornega, no início do primeiro volume da obra, afirma que seu texto tem a intenção de não deixar “cair no esquecimento a história da conquista portuguesa em Angola”. Nesse sentido, podemos dizer que Cadornega escreve com o propósito de criar uma memória da expansão portuguesa naquele território, prestando um grande serviço ao rei, ao divulgar os grandes feitos portugueses. No entanto, o texto de Cadornega só veio a ser publicado no século XX. Não sabemos ao certo o que fez sua obra não ser publicada ainda no século XVII ou no XVIII. Tendemos a acreditar, tal como propõe Ronald Raminelli, que “O tempo das incertezas – restauração, guerras contra Castela e crescente dependência lusitana ao poder econômico e militar britânico – talvez, explique a perda de vigor da monarquia em presentear os vassalos-escritores com honras e mercês”6. Nesse sentido, a publicação de um texto como o que Cadornega escreveu, poderia representar uma grande fonte de informações que poderiam ser utilizadas “contra” os interesses portugueses, caso nações inimigas tivessem acesso aquele texto. Desconhecemos a existência de algum registro de pedido para que Cadornega compilasse aquelas informações. Ele o teria feito por sua própria vontade e no final de sua vida. Isso nos faz acreditar que ele queria deixar registrado, não só os feitos portugueses, mas também os seus préstimos à Coroa portuguesa naquele território, uma vez que seu texto narra, em grande parte, experiências pessoais e relatos de pessoas que também estavam naqueles lugares, como homens envolvidos administração portuguesa e missionários. Provavelmente, Cadornega gostaria de deixar registrado seu papel de súdito leal para que seus descendentes pudessem angariar mercês da monarquia lusa. Nesse sentido, podemos destacar a grande ênfase dada pelo autor nas descrições referentes a tomada de Luanda pelos holandeses, em 1641.

A invasão holandesa em Luanda e a restauração portuguesa de 1648

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Quando os holandeses invadiram e tomaram Luanda em 1641, os portugueses se refugiaram no interior, mais propriamente na região de Massangano, até o momento da Restauração, em 1648. A princípio, a fuga portuguesa para o interior tinha a intenção de isolar os holandeses de qualquer apoio africano. No entanto, não alcançaram esse objetivo, já que os holandeses contavam com o apoio do Mani Congo Garcia II, antigo aliado dos portugueses, que chegou a escrever ao príncipe Maurício de Nassau para disponibilizar fortalezas e outras facilidades comerciais7. Além do apoio do rei do Congo, a rainha Jinga, na região de Matamba, observou as vantagens da presença holandesa em Luanda e iniciou uma aliança com eles, com o objetivo de ter um acesso mais fácil a Luanda e resolver pendências políticas com o “usurpador” do Ndongo, Ngola Ari e seus aliados portugueses8, que detinham sua irmã, no presídio de Massangano. Isolados em Massangano, os portugueses começaram a sofrer com a escassez de alimentos e vestuário e perceberam que a melhor estratégia seria um armistício com os holandeses, fato que ocorreu no final de 1641, quando Massangano e Luanda restabeleceram relações comerciais. No entanto, em 1643, os holandeses quebraram o armistício e chegaram a capturar o governador Pedro César de Menezes. Alguns sobreviventes portugueses voltaram para Massangano e, tempos depois, o governador conseguiu fugir do domínio dos holandeses, também retornando para o interior. Seguiram-se uma série de batalhas envolvendo portugueses e holandeses, cada qual com aliados africanos, nas quais Portugal estava em desvantagem. No entanto, esses conseguiram, em 1646, realizar uma aliança com o reino de Kasanje, que os ajudaram a não perecer aos constantes ataques da aliança Congo-Matamba-holandeses9. Apesar de continuar em desvantagem, os portugueses receberam uma ajuda externa em 1648, quando Salvador Correia de Sá e Benevides chegou a Luanda com um grupo de homens para ajudar a retomada dos portugueses daqueles territórios. Com esse forte auxílio, Portugal conseguiu derrotar os holandeses. Após a recuperação de Luanda, os portugueses tiveram de consolidar seu domínio e resolver seus conflitos com as regiões vizinhas, aquelas que haviam apoiado a invasão batava. Com o reino do Congo, por exemplo, os portugueses impuseram duras condições para a manutenção da paz:

“(...) participação (...) nos custos da reconquista portuguesa, consistindo em 900 cestos de tecido de palmeira, valendo cerca de 1000 escravos; um pacto de defesa mútua; um tratado de paz (...); o reconhecimento da soberania portuguesa a sul do [rio] Dande; a concessão a Portugal de quaisquer minas de ouro no Kongo e a transferência temporária da Ilha de Luanda e a actividade de recolha de nzimbu para os portugueses, como garantia das supostas minas.” (BIRMINGHAN, 2004: p. 127)

Nessa citação de David Birminghan, podemos observar o grande prejuízo que o Reino do Congo teve para restabelecer sua aliança com os portugueses. Além de 900 cestos de tecido de palmeira, que eram utilizados pelos pombeiros para a captação de escravos no interior, os Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10 n. 1 e 2, Jan.-Dez., 2008

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congoleses ainda tiveram de ceder o monopólio da captação de nzimbu, espécie de “moeda” de alto valor, utilizado por alguns reinos africanos. Com a região de Matamba e a rainha Jinga, as negociações buscando a paz e a aliança deuse apenas em 1655, quando essa prometeu ajuda militar para que os portugueses conseguissem submeter regiões que continuavam hostis a sua presença, como Kisama, em troca da libertação de sua irmã. Jinga permitiu que fosse estabelecida em Matamba uma missão religiosa da Ordem dos Capuchinhos e o livre fluxo de comércio em Matamba. Contudo, essas negociações de paz, principalmente com o reino do Congo, se apresentaram muito frágeis e, em 1665, ocorreu a batalha de Ambuíla, na qual os portugueses derrotaram o rei do Congo, que foi ferido, capturado e decapitado. Além dele, grande parte da nobreza principal do Congo foi morta na batalha. Apesar de breve, optamos por fazer a explicação da complicada situação vivida pelos portugueses e aliados naquela região, pois ela é fundamental para entendermos como Cadornega fez uso desses acontecimentos para pedir favores ao rei de Portugal. Ele viveu no continente africano quando esse era muito cobiçado por outras nações, além das disputas de poder dos diversos reinos africanos. O controle português daquele território, portanto, além das condições difíceis de sobrevivência, como clima e doenças tropicais, era também bastante hostil e palco de inúmeras guerras. Tamanhos esforços de portugueses e colonos não poderiam ser esquecidos e, para isso, Cadornega foi bastante enfático ao descrever os feitos militares desses homens – e os seus - no texto da História geral das guerras angolanas. Mas, tais fatos não seriam lembrados por Cadornega apenas em seu livro. Ele os lembrou também ao solicitar ao rei uma permissão para criar uma Misericórdia para aqueles homens que fizeram “tão grandes e assinalados serviços e estendendo a fé em tão remotas partes”.

Cadornega e a Misericórdia de Massangano

Além de se estabelecer longe de Portugal (e da Inquisição), tornar-se militar e alcançar posições de prestígio na administração portuguesa colonial existe outro aspecto importante da vida de Cadornega que nos interessa: sua relação com a caridade e como essa marcou, definitivamente, seu lugar como membro da elite de Massangano. Segundo Beatrix Heintze10, Cadornega viveu nessa Vila – próxima a Luanda - durante 28 anos, aonde chegou a exercer o cargo de juiz ordinário em 1660. No fim desse ano, ele teria fundado a Irmandade da Misericórdia daquela cidade, assumindo a função de provedor da mesma. Antes de continuarmos a tratar da relação de Cadornega

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com a Misericórdia de Massangano, tratemos do que a Misericórdia representava para aqueles homens e para a expansão do império português. As Misericórdias foram instituições que surgiram em Portugal no final do século XV, imbuídas do ideal de devoção e caridade. A fé na salvação do homem após a morte era norteadora das ações daqueles indivíduos. A crença numa profecia salvadora, segundo Max Weber, leva os homens a “dirigir o modo de vida para a busca de um valor sagrado. (...) a profecia ou mandamento significa, pelo menos relativamente, a sistematização e racionalização do modo de vida, seja em pontos particulares ou no todo”11. Nesse sentido, a profecia teria criado uma comunidade social inserida numa ética religiosa de caritas, o amor ao sofredor, o amor ao próximo. O fiel deveria se aproximar cada vez mais de seu confessor e de seus “irmãos de fé”, do que dos parentes naturais. Segundo Isabel Sá, as Misericórdias “significavam (...) a persistência do vocabulário medieval da caridade, expresso na formulação das catorze obras de misericórdia, sete espirituais e as outras corporais”12. Praticamente qualquer serviço de assistência podia ser enquadrado nas obras da Misericórdia, porém essas quatorze eram as fundamentais. As obras espirituais asseguravam que os membros da Misericórdia se comportariam como bons cristãos13 e as corporais abrangiam os deveres para com os necessitados14. Pertencer à Misericórdia e auxiliar em suas atividades era, portanto, uma atividade do “bom cristão”. Apesar disso, obviamente, essas atividades não estavam isentas de interesses políticos, afinal a essência teológica e história política são aspectos que não se dissociavam naquele momento. Nesse sentido, as Misericórdias logo se transformaram em espaços que demarcavam o lugar que cada um ocupava naquela sociedade. Tratando do recrutamento de confrades para as misericórdias, Isabel Sá diz que apenas homens poderiam ocupar cargos nessas instituições e que várias leis ajudaram a reforçar a proibição do ingresso de cristão-novos, através da exigência da limpeza de sangue, pelo menos até o período pombalino no século XVIII. Esses homens tinham de saber ler e escrever, além de ter tempo disponível para se dedicarem aos afazeres da confraria. Tais requisitos reduziam muito o número de possíveis eleitos, assegurando a especificidade e a participação de apenas homens pertencentes à nobreza. Estamos nos baseando nas características da Misericórdia de Lisboa porque, apesar de cada Misericórdia atuar com certa autonomia, todas se propunham a seguir os moldes da instituição lusa. Segundo Isabel Sá15, a documentação existente referente à criação e funcionamento da Misericórdia de Goa nos faz admitir uma declarada intenção de cópia da Misericórdia de Lisboa, assim como a grande maioria das demais Misericórdias do ultramar português. Nesse sentido, a falta de documentação para tratar do caso da Misericórdia de Massangano nos obriga também a acreditar nessa hipótese e a incorrer nesse tipo de aproximação.

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O fato dessas Misericórdias terem se espelhado na instituição lisboeta, nos faz acreditar, à princípio, na forte centralização da administração portuguesa. Segundo Russell-Wood16 à primeira vista, a administração do Império português aparenta ser bastante centralizada e hegemônica. Um exemplo disso é que, durante muito tempo, as decisões finais sobre nomeações, dentre elas militares e eclesiásticas, eram tomadas em Lisboa e submetidas à confirmação real. Mas isso não passava de aparência. O próprio Russell-Wood trata da “difusão da autoridade em rivalidades e tensões entre indivíduos e entre agências de governo” que acabavam por “enfraquecer a efetividade da ação do governo”, abrindo espaços para que “colonos participassem da estrutura administrativa e da formulação ou implementação das políticas da Coroa”17. Embora Russell-Wood trate dessas questões tendo como objetivo as relações entre Portugal e a América Portuguesa, tais reflexões podem ser estendidas para as áreas de influência portuguesa na África Centro-Ocidental, durante o século XVII. Principalmente no que tange a um certo “reconhecimento do centro” pela periferia, indicado pelas correspondências e petições enviadas à Coroa portuguesa pelos seus agentes da colonização desses territórios africanos, solicitando mercês e autorizações para atividades militares e religiosas, mostrando uma tendência muito parecida com a que parece ocorrer na América portuguesa do mesmo período. Ou seja, ao mesmo tempo em que podemos identificar um reconhecimento do “centro”, podemos apontar também para uma certa autonomia de atuação dessas “periferias”. O que observaremos mais adiante, no caso da fundação da Misericórdia de Massangano, é um exemplo dessa “tensão” entre os indivíduos, da qual RussellWood trata, além de mostrar a participação desses homens do ultramar na implementação das políticas da monarquia administrativa portuguesa. Segundo Isabel Sá, dominação não significa hegemonia, e nenhum sistema colonial estável sobreviveria apenas baseado no emprego da violência nessas populações. Seria necessário também uma “ficção de generosidade” para criar um maior laço entre “governantes e governados”18. Nesse sentido, as Misericórdias representaram a doação de alguns benefícios para aqueles povos de áreas de colonização portuguesa e testemunhavam a generosidade daqueles que praticavam a caridade. Ao pensar na Misericórdia de Goa, Isabel Sá salienta que a fundação dessa instituição foi um esforço português em converter aquelas populações ao cristianismo, auxiliado por algumas ordens religiosas, como os jesuítas. Uma vez convertidos, essas populações estariam integradas à sociedade colonial e aptas a receber os benefícios da Misericórdia. Do continente europeu, as Misericórdias se espalharam para o ultramar português. Algumas surgiram concomitantemente com a fundação de várias naquele continente, outras posteriormente, após um maior amadurecimento administrativo português e uma maior importância econômica, ou militar, de determinados territórios ultramarinos. No caso da Misericórdia de Massangano, veremos que sua fundação foi uma espécie de recompensa aos moradores daquela Vila, que teriam auxiliado Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10 n. 1 e 2, Jan.-Dez., 2008

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de forma fundamental para a vitória dos portugueses contra os holandeses durante a década de 1640. Sobre as Misericórdias nas regiões do ultramar português, Laurinda Abreu19 salienta que elas foram instituições de importância fundamental para garantir o sistema de assistência pública, além de servir como elemento moralizante das populações as quais atendiam e se configurar como “núcleos de poder local e, portanto, estruturas homogeneizadoras de um império espacialmente descontínuo e com especificidades tão diversas como as que se refletem nos modelos institucionais e administrativos adotados”20. Desde a bula Inter Coetera, de 1493, o papa havia concedido ao prior do Convento da Ordem de Cristo, o padroado sobre os territórios que, em seu nome, fossem descobertas. A partir de Dom Manoel, o grão-mestrado da Ordem passou a ser privilégio do rei português, criando uma relação entre os poderes eclesiástico e temporal. Dessa forma, o Padroado português era o grande responsável pelas missões no ultramar durante os séculos XVI e parte do XVII. Cabia ao rei de Portugal a responsabilidade pela organização religiosa desses territórios, o que incluía a construção de dioceses, conventos e o financiamento dessas estruturas eclesiásticas, através do pagamento de côngruas ao clero secular daqueles lugares e esmolas aos frades e missionários. Ainda de acordo com Laurinda Abreu, a disseminação das Misericórdias no ultramar indica o grande interesse da monarquia portuguesa na expansão dessas instituições, caso contrário não as teria financiado, e que “só o apoio régio ajuda a explicar a rápida disseminação dessas instituições pelos diferentes espaços do império”21 No entanto, como bem lembra Isabel Sá, “essas [as Misericórdias] se desenvolveram segundo lógicas de afirmação local autónomas e dentro de um espírito que era fortemente devedor da tradição medieval”22. Sobre as Misericórdias africanas, Laurinda Abreu defende que, diferente das Misericórdias do Brasil e do Oriente, surgiram apenas após o território receber algum valor, através de um maior retorno econômico e após a instalação de uma estrutura administrativa e institucional, é que surgiu a preocupação portuguesa em fundar esses espaços. As Misericórdias eram leigas, mas, em sua retaguarda estava a Coroa. Eram espaços que estreitavam as relações entre os órgãos dos poderes locais com a monarquia, que, segundo Laurinda Abreu, “apesar de nem sempre estar presente, não se escusava a acudir às suas confrarias quando ‘outros’ poderes as ameaçavam, pondo em causa o poder régio.”23. O texto de maior referência para o estudo das Misericórdias no continente africano, mais propriamente para as angolanas, é o do padre Antonio Brásio, intitulado As Misericórdias de Angola24. Nesse texto, Brásio aborda a fundação e funcionamento das Misericórdias de Luanda e de Massangano. O esforço de Brásio é notável, uma vez que, apesar da escassez de fontes, consegue reunir informações muito importantes. Seu texto abrange em maior parte a Misericórdia de Luanda, Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10 n. 1 e 2, Jan.-Dez., 2008

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obviamente por ter se constituído na mais importante daquele território. Para o caso de Massangano, teve que recorrer a correspondências oficiais de governadores daquele território para o procuradorreal. Brásio também faz uso de alguns trechos da obra de Cadornega, que foi o fundador e primeiro provedor da Misericórdia de Massangano. Algumas observações sobre a história da Misericórdia de Massangano estão disponíveis nas observações de José Matias Delgado, na edição da obra de Cadornega, de 1972. Segundo Delgado, a obra da casa e hospital da Misericórdia em Massangano foi iniciada em fins de 1660 com licença do Cabido – clérigos pertencentes à diocese - do Congo, tendo sido criada na mesma data também a Irmandade com provedor e mais ofícios. A misericórdia de Luanda não viu isto com bons olhos e opôs-se, tentando dissuadir o povo de Massangano do seu intento. Antes de tratarmos da oposição da Misericórdia de Luanda à fundação da de Massangano, é importante pensarmos na importância da sua criação para aquele que tinha intenção em ser seu provedor, Cadornega. É nesse sentido que podemos traçar um paralelo entre a vida desse homem e a história da Misericórdia de Massangano. Segundo João Fragoso, Maria de Fátima Gouvêa e Maria Fernanda Bicalho25, a dinâmica da governamentabilidade do império português, assegurando a conquista, o povoamento e a defesa das suas colônias, se dava através de uma “economia política de privilégios”. Essa economia se constituía de cadeias de negociação e redes pessoais de poder que, interligadas, viabilizavam o acesso de homens das colônias a cargos de prestígio, hierarquizando esses indivíduos e serviços em espirais de poder que garantiam a coesão e tornava possível o governo desse império. A distribuição dessas mercês – cargos e títulos em troca de serviços à monarquia -, portanto, possibilitou a formação de uma verdadeira “elite ultramarina”. Nesse sentido, analisando a trajetória individual de Cadornega, podemos pensá-lo como um homem membro de uma “elite”, que precisava se afirmar cada vez mais como súdito fiel do rei português. Cadornega utilizou-se de vários meios para provar essa fidelidade, afinal de contas, lembremos que caso permanecesse em Portugal, a sua ascendência judaica, comprovada pela condenação de sua mãe e irmã nos tribunais da Inquisição, faria com que ele tivesse grande possibilidade ser também denunciado, caso conseguisse se destacar socialmente. Logo, partindo como militar para o continente africano, Cadornega conseguiu ascender na hierarquia militar portuguesa e, posteriormente, chegou a ser nomeado juiz ordinário de Massangano, maior cargo da administração daquela localidade. Dessa forma, podemos dizer que o ultramar foi a grande oportunidade vista por Cadornega de ascender socialmente, sem chamar a atenção de alguém que pudesse denunciá-lo à Inquisição. Como bom cristão, fiel aos preceitos da igreja católica, Cadornega criou a Irmandade e a Misericórdia de Massangano por volta da década de 1660, tornando-se seu provedor. Ora, como já Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10 n. 1 e 2, Jan.-Dez., 2008

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dissemos, lembremos que o pertencimento e prestação de serviços a uma Misericórdia marcavam o status daquele indivíduo na sociedade. Podemos imaginar o tamanho do prestígio social conferido ao provedor de uma Misericórdia e o quanto isso significava como empenho cristão em satisfazer as necessidades de culto.

A querela envolvendo a Misericórdia de Luanda e a de Massangano

A vila de São Paulo de Assunção de Luanda foi fundada em 1576 e elevada a categoria de cidade no ano de 1605. Seu estabelecimento foi estratégico para os objetivos da coroa portuguesa, uma vez que sua localização geográfica favorecia a segurança para o futuro centro político, administrativo e militar portuguesa na região. O porto e a posição privilegiada para o movimento de penetração pelo interior, pelo rio Kwanza, asseguravam o fornecimento e o tráfico atlântico de escravos. Em 1648, após a restauração portuguesa e em decorrência da intensificação do tráfico de escravos para a América, Luanda cresceu ainda mais, tornando-se “o maior porto negreiro do Atlântico”26. No entanto, a Vila de Massangano, após abrigar durante tanto tempo os portugueses nos anos de luta contra os holandeses, também apresentou certo crescimento de uma estrutura administrativa, ainda que localizada mais para o interior. Buscando contemplar os habitantes dessa Vila, é que foi pensada a fundação da Misericórdia. Contudo, a Misericórdia de Luanda se opôs à criação dessa instituição em Massangano. O provedor da de Luanda pediu ao governador de Angola para que ele se opusesse e conseguiu o seu apoio e o da câmara, que aconselharam que a Misericórdia concorrente fosse fechada. Em 09 de abril de 1661, escreveram para a rainha regente, alegando que não convinha haver misericórdia em Massangano. Essa preocupação se dava no fato de que, ter uma outra Misericórdia tão perto – vide o mapa27 – acarretaria numa diminuição de esmolas e proventos da Coroa. Segundo a consulta de correspondências oficiais da época, realizada por Brásio, a Misericórdia de Massangano teria sido criada no antigo presídio daquela Vila sem a autorização régia. Segundo Brásio, a petição solicitando autorização régia para a fundação da Misericórdia foi escrita após o início das obras do hospital, fato que foi o grande argumento utilizado pelos que eram contra sua fundação, que acusaram os habitantes da Vila de Massangano de não respeitarem a jurisdição da Misericórdia de Luanda – que sempre teve uma administração precária, já que contava com poucas fazendas -, e de não reconhecerem a autoridade do rei de Portugal. Essas críticas eram muito graves, principalmente se considerarmos que os holandeses tinham sido derrotados em Massangano apenas vinte anos antes. Ao acusar os habitantes de

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Massangano de fazerem “conluio” contra o rei de Portugal, os luandenses levantavam suspeitas sobre uma possível lealdade daqueles a outros interesses, que não os da Coroa.28

Região do Reino do Congo no século XVII. Em destaque as áreas de Massangano e Luanda, mostrando a provável localidade das respectivas Misericórdias

Em carta datada de 12 de junho de 166129, provavelmente escrita por Cadornega, é solicitada à Rainha a autorização para a criação da Misericórdia de Massangano. No documento Cadornega alega que Luanda ficava distante cerca de 40 léguas e que Massangano tinha um grande número de pobres enfermos, além de viúvas pobres e necessitadas que não estavam sendo atendidas pela Misericórdia de Luanda. Na carta, ele reitera a lealdade dos habitantes de Massangano à Coroa portuguesa e o seu exclusivo interesse em prover caridade aqueles indivíduos. A defesa das Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10 n. 1 e 2, Jan.-Dez., 2008

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acusações dos luandenses é feita através da alegação de que o governador de Luanda (João Fernandes Vieira) se opunha à fundação da instituição de Massangano porque alguns dos seus desafetos políticos seriam membros daquela Misericórdia. O Conselho Ultramarino indeferiu esse pedido, através da resposta negativa dada pelo procurador da Coroa. Segundo Brásio, a Misericórdia de Luanda escreveu em agradecimento no ano de 1663. A querela se estendeu até julho de 1675, quando os membros de Massangano escreveram à Rainha solicitando novamente autorização para o funcionamento da Misericórdia. Dessa vez, foi alegado o papel daquela população durante o domínio holandês na região e reafirmada a obediência de seus habitantes à Coroa portuguesa: “Sendo nós, moradores desta Vila da Vitória de Massangano deste Reino de Angola, e já netos e bisnetos daqueles primeiros Conquistadores que tanto fizeram pelo serviço de V. Majestade e dos Reis portugueses e sendo esta Vila de seu princípio povoada e regada com o sangue daqueles portugueses que tanto ampliaram e estenderam o crédito das armas e de seus Reis, fazendo-lhes tão grandes e assinalados serviços e estendendo a fé em tão remotas partes (...). porque suposto que esta Casa que se trata de fazer assim para serviço de deus como de V. Majestade para que nos faça mercê dar licença para que uma obra tão caritativa e que será muito aceita a Deus, tenha o fim que estes vassalos obedientes a V. Majestade desejarem, e mais quando a queremos fazer e sustentar com nossas próprias fazendas (...)”

Acreditamos que Cadornega foi o autor dessa carta, pois nesse ano, ele ainda se encontrava em Massangano e parecia estar muito interessado na criação daquela Misericórdia. Como autores como José Mathias Delgado e Beatrix Heintze tratam Cadornega como o “primeiro provedor” dessa Misericórdia, acreditamos que ele o tenha sido também após 1675. Dessa forma, é impressionante a forma como ele escreve a petição, criando uma relação longínqua da presença de portugueses naquela Vila, ao se referir aos seus habitantes como “netos e bisnetos daqueles primeiros conquistadores”. Além disso, fica claro o domínio de uma retórica própria desse tipo de petição, provavelmente fruto de suas experiências como juiz ordinário em Massangano. Segundo Matias Delgado, nas notas da obra de Cadornega da edição de 1972, essa petição foi indeferida por despacho do Príncipe de 03 de setembro de 1675. No entanto, em 15 de março de 1676 Massangano teve, finalmente, aprovada uma provisão concedendo-lhe Misericórdia com os mesmos privilégios da de Luanda. Pela escassez de fontes referentes à Misericórdia de Massangano, podemos fazer uso dos “privilégios” concedidos à instituição luandense. Em privilégio, datado de 16 de setembro de 161630, o rei Filipe II concede ao provedor e irmãos dessa instituição os mesmos “privilégios e liberdades” da Misericórdia Lisboeta. Apesar de não sabermos da existência de privilégios posteriores concedidos à Misericórdia de Luanda – visto que a concessão real à Massangano ocorreu 60 anos depois -, e de admitir que existissem pequenas mudanças nos privilégios de uma Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 10 n. 1 e 2, Jan.-Dez., 2008

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Misericórdia para outra, essa análise nos indica a significativa importância que a criação dessa instituição em Massangano representava para seu provedor e demais membros. Sobre seu funcionamento, temos informação na obra de Cadornega que, realizando uma descrição de Massangano, fez menção àquela Misericórdia. “Há nesta nobre villa caza e irmandade de Santa Mizericórdia, agora novamente fabricada com mais apparato e perfeição e confirmada por provizão real do Príncipe nosso Senhor, como protector e Provedor mor das Santas Cazas da Misericórdia, herdade esta grandeza do Sereníssimo e felecissimo Rey Dom Manoel, seu fundador, como consta de sua vida escrita por seu Chornista Damião de Goes, em que fazem ditos moradores em aquella benta caza muitas caridades com os pobres e enfermos desemparados, que a esta villa vão, assim infantaria, como passageiros e estravagantes, mandandoos curar da doença da terra e de suas enfermidades, assistindolhe com os medicamentos e sustento necessário, mandando visitar muitas mulheres pobres, filhas de homens conquistadores, com o sustento e o para vestir, mandando ter conta algumas, pondoas em cazas de pessoas honradas, para que se não percão, até as cazarem com ajuda de suas esmolas; o que he para louvar a Deos em terras tão remotas e de conquista haver tanta caridade e dispêndio com os pobres dezemparados: tendo seu capellão pago pella irmandade com bastante partido celebrandose os officios divinos como todo o aparato necessario, com sepulcro nas Endoenças apparatozo; enfermaria com bastantes camas e sua caza de despacho, sendo a invocação da caza do Senhor da Piedade.” (CADORNEGA, 1972, vol. III:121-122)

Nessa citação, observamos que o autor faz um relato sobre o bom funcionamento da Misericórdia tratando da importância de sua atuação para o amparo de “filhas de homens conquistadores”, com os “enfermos desamparados da infantaria” e na celebração dos “ofícios divinos”. Segundo ele, essa Misericórdia cumpria com todas as funções prescritas e que eram realizadas em Portugal. No entanto, Laurinda Abreu, ao se referir às Misericórdias de Luanda e de Massangano, diz que:

“Em Luanda, a concorrência da Misericórdia de Massangano apenas piorara o que era uma situação calamitosa. Os moradores recusavam-se a servir a instituição, e o bispo da diocese aproveitava o momento para estender até ela o seu poder. Os soldados queixavamse dos maus-tratos e da fome que passavam no hospital, que se refletiam nos elevados índices de mortalidade. Só a ameaça de perderem o controle a favor dos jesuítas travou, ainda que apenas por uns tempos, a ruína da confraria. Por seu turno, a própria Misericórdia de Massangano, também ela reduzida a hospital militar, sentia os mesmos problemas, agravados pelo isolamento da povoação, que fazia com que não houvesse médicos ou cirurgiões dispostos a servi-la.” (ABREU, 2001:604)

Concordamos com a hipótese do funcionamento precário da Misericórdia de Massangano defendida por Laurinda Abreu e Antonio Brásio. Os poucos documentos referentes a essa instituição não nos faz acreditar que possa ter sido diferente. O relato que Cadornega faz tem de ser observado muito criticamente, uma vez que, como provedor daquela Misericórdia, dificilmente relataria seus aspectos negativos e dificuldades de funcionamento.

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Considerações finais

Além de escrever um texto fundamental para a memória das ações portuguesas na região de Angola, Cadornega viveu nesses territórios no momento mais complicado no que se refere aos impedimentos à implantação do domínio português. As disputas de poder entre reinos africanos, a presença holandesa e a ameaça de outras nações nas áreas de influência portuguesa foram fatores que colocaram à prova as disposições dos colonos em serem leais e prestarem seus serviços à favor do rei português. Tais esforços não poderiam ser esquecidos e Cadornega os relatou ao rei não apenas em seu texto, no final do século XVII, mas também anteriormente, durante o processo de criação da Misericórdia de Massangano. Tal região foi fundamental na luta contra os holandeses, afinal de contas, foi o grande refúgio dos portugueses durante a década 1640. O grande reconhecimento que o rei poderia conceder aos habitantes daquela Vila era a autorização para o funcionamento de sua Misericórdia. Podemos dizer que a fundação da Misericórdia de Massangano foi uma, das várias, estratégias utilizadas por Cadornega para galgar uma posição de prestígio naquela sociedade, além de provar e demonstrar publicamente ser um cristão exemplar e súdito fiel da Coroa portuguesa. Por ser um cristão-novo, Cadornega não estaria apto a integrar nenhuma Misericórdia em Portugal. O fato de ser justamente um cristão-novo o provedor de uma Misericórdia, demonstra a autonomia dessas instituições no ultramar. Dessa forma, nossa análise sobre a relação de Cadornega com a Misericórdia de Massangano é um exemplo de como, para manter a unidade de seu império, a monarquia estabelecia controles menos institucionalizados. Apesar de se referir à América Portuguesa, Ronald Raminelli salienta que os entraves financeiros e populacionais deram origem a um conjunto heterogêneo, descentralizado, formado por núcleos políticos relativamente autônomos, nos quais os “portugueses do além-mar não se firmavam apenas nas áreas com estrutura militar e administrativa formal”31. Tal reflexão pode ser estendida para as possessões portuguesas no continente africano, as quais “reunia[m] comunidades lusitanas amplamente autônomas, apesar de adotar as instituições civis [e religiosas] do reino”32 Entendendo que religião e política não se dissociavam naquele momento, ressaltamos que não queremos desprover essa atitude de um cunho religioso, apenas enfatizar a necessidade do uso crítico desse texto de Cadornega como fonte e tentar estabelecer uma hipótese de como a Misericórdia e o prestígio social também eram considerados importantes nas regiões do ultramar do império português. Dessa forma, corroboramos a idéia de que, nas colônias portuguesas, alguns

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homens conseguiam cargos de prestígio, garantindo a coesão e tornando possível o governo desse império pela monarquia lusitana. Tal hipótese se comprova não apenas no interesse de Cadornega em se tornar provedor de uma Misericórdia, mas também na preocupação que o governador de Angola, João Fernandes Vieira, tinha em dificultar que seus desafetos fossem membros fundadores daquela instituição. Considerando que “o grupo que integra as Misericórdias coincide regra geral com os indivíduos que detêm o poder no espaço político considerado”33, pertencer às Misericórdias africanas era marcar sua importância política e compor a “elite ultramarina”. Mostrar seus serviços ao rei de Portugal era fundamental para dar continuidade às possibilidades de conseguir mais benefícios nessa “economia de privilégios” existente entre o monarca lusitano e seus súditos. Em resumo, podemos dizer que se a sociedade do império português, tanto no continente quanto no ultramar, organizava-se numa hierarquia de posições que dependiam das honras recebidas, Cadornega soube alcançar privilégios sociais por meio de suas atividades militares, administrativas e de "bom cristão". No entanto, não podemos dizer o mesmo sobre a ampla compilação dos feitos portugueses em Angola, realizada no fim de sua vida.

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Gostaria de deixar registrado meu agradecimento pela leitura e crítica de Roberto Guedes Ferreira e pelos documentos gentilmente cedidos por Isabel dos Guimarães Sá. Esse texto é um resumo das idéias que pretendo tratar no último capítulo de minha dissertação de mestrado e é de minha inteira responsabilidade. Críticas e sugestões podem ser enviadas para meu e-mail: [email protected] 2 RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008. p. 26 3 Idem, p. 20 4 Idem, p. 32 5 CADORNEGA, Antonio de Oliveira de. História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência-geral do Ultramar, 1972. 3 vols. 6 RAMINELLI, Ronald. Op. cit.. p. 26 7 BIRMINGHAN, David. Alianças e conflitos: os primórdios da ocupação estrangeira em Angola (1483-1790). Luanda: Arquivo Histórico de Angola. Ministério da Cultura, 2004, p. 120 8 Idem. p. 121 9 Idem. p. 125 10 HEINTZE, Beatrix. Angola nos séculos XVI e XVII: estudos sobre fontes, métodos e história. Luanda: Kilombelombe, 2007, p. 136 11 WEBER, Max. “Rejeições religiosas do mundo suas direções”. In: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1946. pp. 371-410. p. 375 12 SÁ, Isabel dos Guimarães. Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 15001800. Lisboa: CNCDP, 1997, p. 51 13 Sete espirituais: ensinar os simples (no sentido de doutrinar), dar bom conselho a quem o pede, castigar com caridade os que erram, consolar os tristes, perdoar a quem o ofendeu, sofrer as injúrias com paciência, rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos. Cf. Compromisso da Confraria da Misericórdia, Lisboa, Valentim Fernandes e Hermão de Campos, 1516. 14 Sete corporais: visitar os presos, curar os enfermos, cobrir os nus, dar de comer aos famintos, dar de beber aos que tem sede, dar abrigo aos peregrinos e pobres, enterrar os finados. Cf. Compromisso da Confraria da Misericórdia, Lisboa, Valentim Fernandes e Hermão de Campos, 1516. 15 SÁ, Isabel dos Guimarães. “Charity and Discrimination. The Misericórdia of Goa”. In: Itinerario. Vol. XXXI, nº 2, 2007. pp. 51-70

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RUSSELL-WOOD, J. “Centro e periferia no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”. In: Revista Brasileira de História, vol. 18, n° 36, 1998, pp. 187-249. Disponível no site: www.scielo.br 17 Idem. p. 192 18 SÁ, Isabel dos Guimarães. Op. cit., 2007, p. 51 19 ABREU, Laurinda. “O papel das Misericórdias dos ‘lugares de além-mar’ na formação do Império português”. In: História, Ciências, Saúde — Manguinhos, vol. VIII(3), 2001. pp. 591-611. Disponível no site: www.scielo.br 20 Idem, p. 591 21 Idem, p. 595. 22 SÁ, Isabel dos Guimarães. Op. cit., 1997, p. 51 23 ABREU, Laurinda. Op. cit., p. 599 24 BRÁSIO, António. “As Misericórdias de Angola”. In: Studia, no4, Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1959, pp. 106-49 25 FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima S.; BICALHO, Maria Fernanda. "Uma leitura do Brasil colonial: bases da materialidade e da governabilidade no Império". In: Penélope. Revista de História e Ciências Sociais, n° 23, 2000, pp. 67-88. Disponível no site: www.penelope.ics.ul.pt 26 ALENCASTRO, Luis Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 288. 27 Esse é um mapa que adaptamos para melhor localizar o leitor sobre o território de Massangano e Luanda no século XVII. Foi retirado do livro: VANSINA, Jan. Kingdoms of the Savanna. Madison, Milwaukee and London: The University of Wisconsin Press, 1996. 28 Luiz Felipe de Alencastro trata da “paranóia lusitana”, se referindo à desconfiança com a qual a monarquia portuguesa observava a presença de espanhóis e holandeses nas regiões africanas durante esse período. Cf. ALENCASTRO, Luis Felipe de. Op. cit.,. p. 261 29 Segundo Brásio (1959), a referência dessa carta é: Arquivo Histórico Ultramarino – Angola, cx. 5. 30 Lisboa, A.N.T.T., Chancelaria Filipe II, Privilégios, Livro 4, fl. 181. 31 RAMINELLI, Ronald. Op. cit., p. 17 32 Idem, Ibidem. 33 SÁ, Isabel dos Guimarães. Op. cit., 1997. p. 100

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