Minha primeira experiência teatral – e pedagógica – com crianças

September 20, 2017 | Autor: Rodrigo Contrera | Categoria: Theatre, Pedagogía, Teatro, Pedagogia
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Teatro - Pedagogia
Minha primeira experiência teatral – e pedagógica – com crianças
Rodrigo Contrera
Eu estava refletindo sobre o que devia fazer para conseguir aceitar e aprender a tocar a ideia de um curta-metragem, proposto por um vídeomaker experiente, quando algumas garotas, de 10 a 15 anos, em média, falaram comigo no pátio do conjunto de prédios onde moro, em Taboão da Serra.
Uma delas, a Ives, se não me engano, me abordou e disse: - você é estranho. Eu respeito que tudo bem, e o que mais? Então ela disse, com a colaboração de uma amiga, que elas achavam que eu morava sozinho no meu apartamento. Eu concordei e disse qual seria o problema. Lembro também que antes do pequeno diálogo, que iria se estender, um garoto veio me contar, meio choroso, que elas estavam falando sobre mim. Recordo que na hora lembrei-me que eu era assim, como esse garoto. Tentando falar a verdade e agradar os mais velhos.
Voltando ao diálogo com elas. Começamos, a Ives e outras garotas, umas 3 ou 4, a conversar. Elas reclamaram da nova empresa de segurança do prédio. Expliquei a elas, como conselheiro, o que sabia a respeito. Elas disseram que não gostavam dos novos seguranças. Depois eu contei algo sobre a administração do prédio, sobre o que quiseram saber mais alguma coisa. Eu lhes disse que, como conselheiro, eu devia manter alguma discrição a respeito.
Depois elas começaram a perguntar sobre mim. Diversas coisas. O que eu faço da vida, como trabalho com o teatro, o que faço no teatro, se tenho amigos, amigas, etc. Eu fui explanando de forma calma e suave alguns aspectos de minha vida e o porquê de, eu acho, elas me acharem estranho – algo que sou, porque não sou comum, mas também não sou, porque não sou tão diferente assim. É só questão de aparência, da qual me beneficio de várias formas – por exemplo, no teatro, fazendo personagens patéticos ou considerados fracos.
Assim a conversa ia quando foram aproximando-se mais e mais crianças – algumas conhecidas, como a filha da síndica, ou uma determinada garota que sempre expressou uma desconfiança ou mesmo pavor a meu respeito, tanto que sempre foge de me encontrar ou sequer de passar no mesmo corredor que eu ao mesmo tempo. Esta garota em especial conversou animadamente durante a "entrevista", deixando claro que se sente incomodada comigo de alguma forma. O intervalo de idade das crianças aumentou, aparecendo agora desde crianças mais novas, sequer púberes, a crianças mais altas, mais velhas e mais críticas.
(ressalvas)
Um detalhe, até aqui, que me diz especialmente respeito é que, desde que me conheço por gente, sempre tive dificuldade em lidar com crianças a partir de certa idade, pois embora sempre tenha gostado de chamar a atenção de bebês de colo ou crianças bem pequenas nunca consegui trabalhar muito bem a independência que a partir de certo momento identifica esses seres que não são adultos mas que muitas vezes sabem lidar melhor com a vida do que estes. Um detalhe a ressaltar é que nunca dei aula para ninguém.
Outro detalhe ainda é que sinto que meu estágio em licenciatura em Filosofia, conduzido numa escola do Jabaquara, há alguns anos, a tal ponto me marcou negativamente, em termos de minhas expectativas de ensinar, que até este momento não vislumbrava sequer uma saída a respeito. Vejam, no estágio lidei com garotos e garotas mais velhos, como que dos 16 aos 19 anos. Em outro artigo eu tentarei explicar o que aconteceu naquela ocasião, algo tão forte que me levou às lágrimas diversas vezes, inclusive quando me lembrava ou contava a alguém ao que me acontecera.
Claro, não sou mais o inexperiente estudante de Filosofia de então. Hoje sou um cara bem mais calejado, tendo passado por uma separação, pela necessidade de cuidar da própria vida, isolado numa cidade até então estranha, passando por diversas dificuldades econômicas que mudaram bastante meu foco na vida, assim como meu comportamento prático, e também por relacionamentos mais superficiais que um casamento mas mais envolventes em termos de comprometimento emocional, decepções e alegrias diversas. Virei ator e até mesmo diretor de um grupo de teatro próprio, conduzindo ensaios limitados a poucas pessoas envolvidas mas com uma ênfase profissional cada vez mais definida e compromissada.
(fim das ressalvas)
Enquanto as crianças apareciam cada vez mais à minha frente, e enquanto as dúvidas delas a meu respeito iam sendo dissipadas, eu me sentia cada vez mais angustiado, pois se por um lado parecia corresponder às suas expectativas, chamando a atenção mas também mantendo distância e aparentando normalidade – ou seja, não era mais simplesmente um "cara estranho" –, por outro lado não me sentia bem ao ser rodeado por garotos e garotas que (ainda) pareciam dispostos a me colocarem sob escanteio, enquanto gente. Mas eu tinha controle da situação. As pessoas iam e vinham no lugar em que nos encontrávamos – uma passagem entre os prédios –, e a reunião não chamava tanto a atenção – o que me acalmava, pois não gosto de, em certas situações, estar no centro do palco. Afinal, poderiam pensar todos, o que estaria fazendo esse cara (eu) reunindo tantas crianças na frente de todos?
Aos poucos, fui me dando conta de que essa reunião de crianças de diversos tipos era inédita em minha vida. As perguntas deixaram de assumir o caráter de curiosidade para virarem uma conversa – entre um sujeito de 47 anos e umas 15 crianças de diversos perfis sociais. Elas pareciam curiosas demais na conversa, como se ela não costumasse ocorrer com outros adultos – e de fato não devem ocorrer tais conversas, envolvendo-as, com essa facilidade (o que daria margem para outro artigo, ainda). De vez em quando, uma ou outra criança, menino ou menina, metia-se a falar mais alto, ou a brincar de alguma forma com alguma outra criança, mas, em parte devido a minha necessidade de ser ouvido, em parte porque elas mesmas estavam interessadas, essas crianças mais barulhentas ou eram afastadas ou se afastavam automaticamente. Eu fazia questão de não falar muito alto, primeiro porque não queria, segundo porque o assunto – eu – não era motivo para ficar falando alto, seja lá com quem fosse.
Fato é que, com elas, as crianças, eu usei do mesmo "método" que passara a usar em meu grupo de teatro. Num primeiro instante, eu fazia questão de falar baixo, de abaixar o tom da fala. Faço comumente isso em primeiro lugar porque, quando as pessoas falam muito alto, eu não consigo me concentrar. Outro motivo para isso é que, quando o tom de voz é muito alto, eu deixo de reparar em nuances expressivas que, cada vez mais, são tão ou mais importantes do que aquilo que está sendo dito. Não nego que isso derive um pouco do teatro, em que o subtexto é realmente aquilo que se torna mais importante ao avaliar uma determinada peça ou mesmo apenas um diálogo ou monólogo. Outro motivo para isso – para abaixar o tom de voz – é que sons muito altos me irritam – e muitos sons altos me confundem – não consigo entender o que está sendo dito, seja porque o barulho é excessivo, seja porque não consigo conectar coisa com coisa. Isso deriva também da Filosofia, em que o mais importante é encadear os silogismos e criar as sequências lógicas importantes que servem para delimitar os assuntos e resolver situações específicas.
No caso, das crianças, ao abaixar o tom de voz elas mostraram claramente que conseguiam se concentrar mais facilmente àquilo que estava sendo dito – em relação àquilo que elas poderiam aferir se não prestassem tanta atenção – todo mundo sabe que a atenção, em crianças, é algo muito difícil de obter. Outro ganho foi que as crianças reduziram sua ênfase expressiva – em detrimento delas mesmas, tomando a mim mesmo como referência. Ou seja, ao abaixar o som a atenção estava voltada, muito especificamente, A TUDO que eu estava conseguindo dizer. Ao abaixar o tom, outro ganho era que quem fazia barulho não era tomado como adequado à situação, e, em nome de todos, expulso da roda. As crianças estavam realmente com a atenção focada em mim.
Outra atitude que tomei para aumentar a atenção das crianças em mim foi falar pausadamente, fazendo com que elas me acompanhassem, passo a passo, o raciocínio. Isso fez com que elas não avaliassem o que eu estava falando por meio da sensibilidade, necessariamente, mas mais pelo entendimento do que eu dizia. Isso fez com que as crianças se tornassem mais adultas do que o normal, com que elas parassem, ao menos por um momento, de encarar tudo como crianças. Um aspecto interessante é que eu falo, normalmente, bastante palavrão. Isso não mudou enquanto eu falava com elas, mas, por ser uma coisa inaceitável para crianças, o fato de eu dizer tanto palavrão fez com que eu fosse admoestado por uma ou outra das crianças, o que encarei com naturalidade, pedindo desculpas. Isso – pedir desculpas por coisa desse tipo – ao que parece é algo raro no caso das crianças, e elas – com esse tipo de situação – acabam tomando a dianteira e adquirindo mais autoconfiança, confiando também mais no seu interlocutor. Note-se, porém, que todo e qualquer resultado aferido na situação deveu-se, muito em grande parte, à aceitação que minha fala teve por parte delas – pois se elas não gostassem do que ouviam necessariamente deixariam de prestar atenção e nem ligariam para qualquer outra afirmação que eu dissesse, muito especialmente se eu quisesse bancar o adulto, cagando algum tipo de regra a elas.
Um aspecto também bastante interessante é que, ao falar sobre minhas atividades em teatro, o interesse das crianças aumentou. Talvez por ser inusitado, ou pela própria imagem causada por esse tipo de atividade, o trabalho com teatro fez com que as crianças me entendessem de forma ainda mais compreensiva, até porque eu sempre insisto em que meu caráter, digamos, "estranho" é ótimo para mim enquanto ator, na medida em que faz com que eu consiga desenvolver personagens mais interessantes do que a média. Dizer-lhes que isso me beneficia, ou seja, que o fato de me acharem estranho é muito conveniente para mim é interessantíssimo para as crianças. É como se estivessem falando com uma espécie de Shrek, mas verdadeiro, ou seja, que elas realmente podem ver como tal. E mais, que não se envergonha de ser como é – um ser, um Sherk, que se beneficia de ser tal qual é. Isso soa autêntico – que é algo de que elas especialmente tendem a gostar. Da autenticidade, da verdade.
Com a atenção voltada para mim, na hora entendi que aquela era uma situação ímpar, da qual eu poderia aferir resultados ainda melhores, caso eu conseguisse captar a atenção das crianças ainda mais tempo e caso eu conseguisse ter sucesso em manter a energia do jeito que se encontrava. Foi então que me propus a mostrar-lhes um texto, falado, de teatro, no caso o texto Fugindo, de minha autoria, e tentar ver em que medida elas poderiam entendê-lo, caso realmente gostassem dele e de minha apresentação. Foi então que pedi que elas fizessem um silêncio ainda maior, para o que elas tiveram que convencer alguns membros do grupo que ainda tiravam sarro uns dos outros ou que consideravam a situação meio estranha ou mesmo meio macabra. O resultado foi que, aos poucos, elas foram ficando em silêncio, e que, para minha surpresa, se sentaram no chão, calmamente, as crianças menores mais próximas de mim, as outras mais distantes, tudo acertado como que fruto de uma espécie de milagre. Foi então que eu lhes disse o texto, que transcrevo agora.
Fugindo eu consigo entrar e sair e sair e entrar. Fugindo eu posso ficar. Fugindo eu posso ir embora. Quem foge não precisa ser aceito. Quem foge pode tudo. Os escravos fugiam em direção ao litoral. Quem não podia ficava no caminho e fazia seu quilombo. Quem foge não pede remorsos. Quem foge olha pra frente. Quem teme olha pra trás. Quem foge fala manso. Quem foge bate forte. Eu fujo porque não tenho mais nada a perder. E sempre ganho porque só me resta fugir. O homem é livre e vive preso, diz Rousseau. Estou preso e vivo livre, digo eu. Preso a mim mesmo, de quem não consigo fugir.
Fico no palco para fugir da platéia. Fico no palco sem ser ator. Fico no palco e fico lá fora. Vocês me vêem agora e nunca mais. Pois quando me canso saio fora. E quando vou embora não digo adeus. E quando volto não digo: ói eu aqui, esperando um abraço. Eu vou e volto. E como posso tudo sentem que fico. E como posso tudo sentem que vou. Um dia eu vou, para sempre. Fujo sem parar adiantando esse dia, quem sabe. Fujo sem parar para morrer e ressuscitar, quem sabe. Fujo quando calo, quando falo, quando olho, quando viro o olhar. (pausa longa) Só queria mesmo um amigo.
Mas os amigos aparecem quando eu fujo. Porque eu fujo de mim. E todo mundo foge. Todo mundo aceita quem não consegue fugir de si mesmo.
O comportamento das crianças foi exemplar, quase extraordinário para minhas pretensões. Elas ficaram – mas é bom ressaltar como tudo se deu, como elas aos poucos respeitaram o nível da conversa e a energia baixa da conversa – em completo silêncio, sem interromper um segundo sequer, e minha fala foi muito baixa, apesar de ocorrer numa área externa dos prédios. Ao final – e isso é tão importante quanto – elas não conversaram nada, ficaram em silêncio, eu diria, mais uns 10 segundos, e não teriam falado nada se eu não lhes tivesse perguntado se haviam entendido – e elas disseram, algumas delas disseram, que não. Eu respondi com uma gargalhada, pois eu disse que é disso que eu gosto também nas crianças, a sinceridade. Mas depois eu perguntei, àquelas que diziam haver entendido, sobre o quê era o texto. Elas disseram várias coisas de que me esqueci, mas eu retruquei, calmamente, que não, que o texto era sobre a morte. Houve um muxoxo de medo, mas eu disse então, não, a morte não é isso que vocês imaginam, a morte é hoje estou aqui, amanhã não mais. Elas disseram haver entendido, então. Daí deu um silêncio, e eu aproveitei para ir embora. Eu lhes disse que tudo bem, estavam dispensadas rs. Elas saíram correndo. Foi lindo.
(reflexão)
Quem sabe este seja o artigo mais longo que escrevo há alguns meses – ao menos no que diz respeito a uma experiência bem particular. Mas há diversos motivos para isso. Um é seu ineditismo – eu nunca tinha trabalhado com crianças e tinha uma vontade enorme disso. Outro é seu caráter espontâneo – foram elas que se aproximaram e foram elas que se interessaram em me ouvir, além do que elas próprias foram as que se aglomeraram, e mantiveram certa calma e silêncio. Outro aspecto é o fato de que, de boa vontade, elas se submeteram a um sistema de tratamento que eu próprio venho desenvolvendo com todos os integrantes de meu grupo de teatro e que eu ACHAVA que teria pedida no mundo real – o que se provou verdadeiro. Um outro fato interessante é perceber COMO elas se adequaram às condições e às minhas vontades e como ouviram atentamente, sem interromper e – ainda mais importante – sem estabelecerem juízos posteriores SEM serem pedidas a isso. O resultado foi maravilhoso – por muitos motivos, mas muito especialmente – para mim – por conseguir provar que, do jeito certo, uns certos milagres poderiam ser produzidos. Vocês podem dizer que não houve qualquer milagre ou surpresa no que aconteceu – pois, afinal, só EU MESMO poderia achar que nada de legal poderia ter ocorrido. Ou seja, que eu tinha preconceitos e que, só por não haver ocorrido o que eu imaginava que poderia ocorrer, não posso considerar que acontecera algo sobremaneira interessante. Pode ser.
Estou desenvolvendo um texto – que irá resultar relativamente longo – fundamentando meu trabalho com meu grupo de teatro. Esse trabalho descansa em pilares que foram aqui apresentados, nesta minha primeira experiência pedagógica com crianças. Claro que não todos os pilares estão aqui – lidar com adultos é bem mais difícil –, mas os que aqui apareceram servem para mostrar mais ou menos bem a que meu trabalho veio, no trato com pessoas, e não simplesmente com atrizes/atores. Assim como com Grotowski, eu considero que lido com gente ao invés de com profissionais atrizes/atores, e por isso tudo começa sempre de pontos mais profundos e radicais do que os costumeiros. Interessa-me, sempre me interessa, o que há de mais fulcral nos relacionamentos, e em meu conhecimento de mim mesmo fui percebendo que, no geral do que eu conhecia, havia problemas profundos que me afetavam, primeiro, como pessoa, e depois, como profissional. Esses problemas, eu passei a enfrentar primeiro no grupo, para depois atingir meu relacionamento social com diversas pessoas do meu entorno.
Daqui a algumas horas publicarei outro texto explicando como se deu minha primeira experiência traumática com o âmbito do ensino – por intermédio de meu estágio para a licenciatura de Filosofia. Esse texto complementará algo deste – e de trazer alguma luz a mais no meu trabalho de fundamentação do trabalho pedagógico-psicoterapêutico-dramatúrgico de meu grupo de teatro, o It ou Garotas do Contrera e Cia.

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