Misérias do primitivismo

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Eduardo Viveiros de Castro, Marxismo, Antropoceno, Primitivismo, Crítica Do Valor, Antropologia
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 1, 2015

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[-] Sumário # 11 vol. 1 EDITORIAL

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OS MOVIMENTOS INDIGNADOS E AS LUTAS DE CLASSES

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Entrevista de Charles Reeve a Stephane Julien e Marie Xaintrailles

ARTIGOS ANTICAPITALISMO PARA O SÉCULO XXI Um breve panorama da nova crítica do valor Joelton Nascimento

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ESTAMOS PERDENDO! Do altermundialismo à indignação multitudinária: balanço da resistência global quinze anos após Seattle Raphael F. Alvarenga

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A CATÁSTROFE COMO MODELO Agronegócio, crise ambiental e movimentos sociais durante o decênio 2003-2013 André Villar Gomez Marcos Barreira

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SOCIALISMO OU BARBÁRIE? Daniel Cunha

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A ESPUMA, A ONDA E O MAR DA REAÇÃO Cruzando o fantasma autoritário brasileiro Bob Klausen

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O OTIMISMO E O PÊNDULO O duro aprendizado de caminhar em terreno movediço Douglas Anfra

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DESTINOS DO ÓDIO SOCIAL E A ENCRUZILHADA DA ESQUERDA Bruno Klein

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“FOGO AMIGO” A incubadora petista da avalanche conservadora Paulo Marques

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PASSEIO PELAS GREVES PARANAENSES DA EDUCAÇÃO EM ALGUMAS NOTAS G. Émeutes

163

SOBRE A MAIORIDADE PENAL Uma ação preventiva do capital Atanásio Mykonios

171

GERAÇÃO SARRAZIN Breve esboço da gênese da nova direita alemã Tomasz Konicz

191

ESTADO DE PESTE / ESTADO DE SÍTIO Para reler A peste, de Camus Cláudio R. Duarte

202

O QUE É UM COLABORADOR? Jean-Paul Sartre

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MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO Resenha de Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins Daniel Cunha

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COMUNIZAÇÃO NO PRESENTE Théorie Communiste

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MISÉRIAS DO PRIMITIVISMO DANOWSKI, Débora e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2014, 176 p. Os terráqueos primam pela estupidez. Transformaram o seu belo planeta num deserto contaminado... Embora a civilização dos terráqueos não seja tão atrasada, eles insistem em dilapidar a natureza. Tamanha estupidez não pode ser tolerada... Avante Hidrax! Destrua tudo o que tiver pela frente! (Dr. Gori em Spectreman, ordenando o seu monstro criado a partir da poluição para que destrua as forças produtivas)1

Daniel Cunha

O fim do mundo, não sem motivos, está atraindo as atenções. É o tema que Danowski e Viveiros de Castro se propõe a investigar. O livro comenta um mosaico de dados e interpretações filosóficas, antropológicas e histórico-culturais que o tornam uma leitura instigante, oferecendo um bom panorama ideológico do espírito do (fim do) tempo. Interessa-nos mais aqui, porém, o seu movimento do todo, que é este: a partir de um mosaico dos discursos, imagens e mitologias atuais sobre o fim do mundo (ciência, literatura, cinema, filosofia), passa-se à antropologia dos povos ameríndios (com a sua cosmologia própria e relação diversa com a natureza) e chega-se, finalmente, à conclusão política apologética do ―devir-índio‖, do ―incessante redevir-índio‖. É claro que no livro as passagens não são tão abruptas, mas com esse exagero inicial pretendemos expor de início a essência do movimento do livro, que é a do curto-circuito entre antropologia e política. Ainda que as duas primeiras etapas do movimento do livro sejam as mais interessantes, nos concentraremos aqui na terceira, que é onde se concentram os problemas. Esses problemas não são poucos, e fazem o livro, apesar de 1

No primeiro episódio da série, ―Dr. Gori, o criador de monstros‖: https://www.youtube.com/watch?v=HqlukRAANFw

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toda a sua aparência ―alternativa‖ e ―verde‖, escorregar inapelavelmente para um reacionarismo brutal, talvez de maneira total ou parcialmente inconsciente. Trata-se de uma boa plataforma para a crítica do aqui chamaremos de ―primitivismo‖ – a crítica ideológica reacionária, malthusiana e misantrópica das forças produtivas, decorrente de um marcado déficit dialético, recaindo em uma espécie de ―síndrome do Dr. Gori‖ –, ainda que se apresente de forma mais erudita que o habitual. Decorre daquele curto-circuito mencionado que o livro, apesar de tratar de um problema essencialmente material – a ultrapassagem dos limites de ―sustentabilidade‖ da influência humana nos ciclos materiais do planeta –, o livro é recheado de metafísica: Gaia, Pachamama e um conflito entre ―Terranos‖ ou ―Povo de Gaia‖ e ―Humanos‖ (os ―modernos‖) sobre bases puramente idealistas são conceitos centrais na tese desenvolvida. São os ―Terranos‖ que, em seu ―devir-índio‖, sobreviverão à catástrofe ecológica global. Nota-se uma total ausência da crítica da economia política, que é o elo perdido pelos autores no seu imprudente salto mortal. No caminho, dispensam (com acerto) o marxismo tradicional em roupagem high-tech – o ―aceleracionismo‖, que parece crer na teleologia histórica da Segunda Internacional, com a nuance de que se propõe a ―acelerar‖ o hiperdesenvolvimento das forças produtivas, no que lançam mão inclusive do vanguardismo bolchevique, para que, afinal, o Comunismo desde sempre prometido chegue mais cedo, deixando a crise para trás. Mas os autores param por aí, talvez acreditando que essa roupagem baste para caracterizar uma leitura crítica e atualizada de Marx. Disso resulta uma série de fraquezas teóricas que acabam minando inapelavelmente a sua capacidade de apreender o movimento real e, portanto, a efetividade do seu sentido político. Por exemplo, ao invés de problematizar o sujeito burguês, os autores tomam ao pé da letra o discurso iluminista do ―antropocentrismo‖ da modernidade. Bons leitores de Marx sabem que a forma do sujeito moderno deve ser problematizada, e que a inversão capitalista de sujeito e objeto tende a fazer do capital o ―sujeito automático‖ ao qual se subordinam as ―máscaras de caráter‖, que são ―sujeitossujeitados‖ enquanto meros agentes da valorização do valor (tanto ―trabalhadores‖ quanto ―burgueses‖). Da mesma forma, na seção intitulada ―a espécie impossível‖, deixam de mencionar que essa espécie torna-se socialmente impossível (no capitalismo) porque a sua atividade vital é convertida em trabalho alienado (ou, mais tarde na obra

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marxiana, trabalho abstrato, produtor de valor) pelo capitalismo, e é isso o que impede a sua realização como espécie ou ser genérico (Gattunswesen).2 Ao perder esse horizonte crítico, recusam a universalidade e recaem no pós-modernismo identitário: ―Se não existe um interesse universal humano positivo, é porque existe uma diversidade de alinhamentos políticos dos diversos povos ou ‗culturas‘ mundiais‖ (p. 121) – e a expectativa pelo ―positivo‖ universal (que de fato não existe, o universal só pode ser o negativo) apenas revela um déficit de pensamento dialético. Impressiona que os autores conhecem esses dois momentos-chave da obra marxiana – o trabalho alienado da juventude e o fetichismo da mercadoria da maturidade – mas as tenham relegado a duas notas de rodapé.3 Dessa forma, ao longo de toda a obra o ―capitalismo‖ é mencionado sem nenhum rigor conceitual, à moda moralista, como quando nomeia uma série de multinacionais como os inimigos dos ―Terranos‖ (como se pudesse existir empresa capitalista ou lógica empresarial ―boa‖) ou quando se refere ao colonialismo como o choque do ―Planeta Mercadoria‖ contra a América. A essa fraqueza conceitual na determinação do capitalismo se une uma visão mística da realidade material. Parece que o déficit de compreensão da metafísica real do capitalismo corresponde a uma inflação de motivos metafísicos para a sua superação – ―intrusão de Gaia‖, ―Povo de Pachamama‖, etc. O ápice ocorre quando os autores parecem levar ao pé da letra as cosmologias antropomórficas ameríndias: ―a guerra de Gaia opõe dois campos ou partidos povoados de humanos e não-humanos – bichos, plantas, máquinas, rios, glaciares, oceanos, elementos químicos‖ (p. 133). E eis que voltamos a uma visão animista do mundo, onde tudo tem ―alma‖ e é capaz de constituirse como ―inimigo político‖ (p. 134) (!), dos elementos químicos aos oceanos! O que se propõe não é que o homem torne-se sujeito ao organizar-se politicamente para superar o capital, mas a aderência a um conjunto de fantásticas superstições. Daí também a desatenção dos autores para com os requisitos materiais. De fato, o ―devir-índio‖ é levado a sério no que se refere ao plano da técnica, na forma da apologia Ironicamente, os autores criticam Chakrabarty por não utilizar o conceito marxiano de Gattunswesen para descartar a ―espécie‖ como ―impossível‖ (p. 111, n. 131), mas a sua própria crítica fica truncada, ao não mencionar que, para Marx, o que nega o Gattungswesen é a alienação do trabalho. Para uma exposição detalhada desse argumento, além dos Manuscritos marxianos de 1844, ver HOLLOWAY, John (2013), Fissurar o capitalismo, trad. D. Cunha, Publisher, especialmente a parte IV. 3 Talvez por não compreender bem nenhum dos dois, como discutido na nota anterior no primeiro caso e mais adiante para o segundo. 2

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à ―gambiarra‖ (p. 133) e da ―bricolagem tecnoprimitivista‖ (p. 159) – nisso contrariando o ceticismo de Latour, um dos inspiradores do livro. Ao invés de criticar a forma da técnica moderna, configurada que é pela valorização do valor, pela lógica empresarial da transformação de dinheiro em mais dinheiro, e assim libertar o potencial liberador da técnica avançada de sua forma fetichista para que possa ser configurada e utilizada para a satisfação das necessidades humanas sensíveis, os autores parecem rejeitar a técnica avançada e a grande escala em bloco. Cientes, no entanto, de que 7 bilhões de pessoas (10 bilhões em algumas décadas) não podem viver como caçadores-coletores ―tecnoprimitivistas‖, os autores, ao invés de tentar provar a viabilidade disso, perguntam: ―o que sabemos nós das transições demográficas que aguardam a humanidade até o final deste século ... se considerarmos que podemos chegar a 4oC de aumento de temperatura média global ...?‖ (p. 129, grifo meu). Aqui o primitivismo revela a sua veia malthusiana, ou seja, indireta e um tanto envergonhadamente admitese que a humanidade só pode viver à base da romantizada ―gambiarra‖ se bilhões de pessoas pereceram, o que é referido tecnocraticamente (!) como ―transições demográficas‖. Não falta nem mesmo o clássico ―há gente demais no mundo‖ (p. 129).4 Para ilustrar essa tese neomalthusiana, os autores usam (em uma nota de rodapé) o argumento do consumo energético – a civilização já consome entre 12 e 15 terawatts, e necessitaria de 100 TW se todos os países se desenvolvessem ao nível de consumo de energia dos Estados Unidos (p. 127, n. 154). Caso tivessem apreço pelos dados materiais, os autores poderiam constatar que a energia renovável (solar, eólica e hidráulica) disponível somente em áreas facilmente acessíveis do planeta é de mais de 600 TW – 40 vezes mais do que o consumo energético global atual.5 Também utilizam mal o conceito de ―pegada ecológica‖ (sem citá-la) para validar a sua tese malthusiana: ―se todas as sete bilhões de pessoas do mundo adotassem o American way of life (...) seriam necessárias cinco Terras‖ (p. 129). Não há rigor científico nessa informação. Hoje, a análise da ―pegada ecológica‖ global indica que se consome o equivalente à capacidade Aqui há uma aproximação com o ecologista neoliberal Garrett Hardin e sua ―ética do bote salva-vidas‖, onde não há espaço para todos, ao contrário de uma (bem operada) ―espaçonave Terra‖. Garrett vai às últimas consequências, colocando-se contrariamente à assistência aos pobres. Ver HARDIN (1974), Garrett Lifeboat Ethics: The Case Against Helping the Poor, http://www.garretthardinsociety.org/articles/art_lifeboat_ethics_case_against_helping_poor.html 5 Cf. JACOBSON, Mark e DELUCCHI, Mark (2009). ―A path to sustainable energy‖, Scientific American (November 2009), pp. 58-65. 4

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regenerativa de 1,5 planetas. Caso as tendências demográficas e de consumo permaneçam inalteradas, esse valor é projetado para 3 planetas, em 2050.6 Imprescindível, ainda, é notar que mais da metade dessa ―pegada‖ é devida às emissões de carbono.7 Ou seja, uma transição energética permitiria o nível de consumo global atual sem exceder a capacidade regenerativa da biosfera. Portanto, os cinco planetas são possivelmente um ato falho de quem toma o desenvolvimento histórico futuro como favas contadas, para daí fazer tabula rasa reacionária da luta política e das forças produtivas. O problema, portanto, não é o consumo energético em si, mas o consumo de energia fóssil, devido às emissões de carbono. O problema não é de escassez energética em termos físicos, mas em termos político-econômicos, o buraco de agulha da valorização do valor. O que é necessário no plano da técnica é uma transição energética, que deve ser feita com certa velocidade para evitar as consequências mais graves do aquecimento global (aqui o momento de verdade do ―aceleracionismo‖). Dados empíricos mostram que a energia necessária para um alto índice de desenvolvimento humano (IDH) é de 3,5 kW por habitante.8 Em um mundo com, em breve, 10 bilhões de habitantes, seriam necessários 35 TW – mesmo que os países ricos diminuam o seu ―excesso energético‖ que não contribui para o nível de vida, isso corresponde a um aumento do consumo energético global para que toda a população mundial tenha acesso a um bom padrão de vida. Pode-se argumentar que com a abolição da ―anarquia do mercado‖ (obsolescência programada, cadeias produtivas irracionais, máquina de publicidade, desperdício, etc.) esse valor seria muito menor, para o mesmo resultado em termos de nível de vida. Mas ainda que fosse possível reduzir esse consumo pela metade, ainda seriam 18 TW. O discurso malthusiano-primitivista aproxima-se aqui, com a sua apologia do decrescimento energético, do discurso da austeridade – abrir mão do

Cf. GLOBAL FOOTPRINT NETWORK, http://www.footprintnetwork.org/ar/index.php/GFN/page/world_footprint/(acesso em fevereiro/2015). 7 Cf. BORUCKE, Michael el al (2013) ―Accounting for demand and supply of the biosphere‘s regenerative capacity: The National Footprint Account‘s underlying methodology and framework‖ Ecological Indicators 24: 518-533, Fig. 5. 8 Sobre a correlação entre consumo energético e variáveis como mortalidade infantil, expectativa de vida e analfabetismo, ver GOLDEMBERG, José (2001). Energia, meio ambiente e desenvolvimento, EDUSP, pp. 42-52. 6

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conforto e sacrificar-se não é justamente o que se pede em ―ajustes‖ de governos neoliberais? Mesmo quando tentam suavizar o primitivismo tecnológico com o que chamam de ―agenciamentos sincréticos de alta intensidade‖ (p. 150), na qual algumas tecnologias ―modernas‖ estão incluídas, como a internet (p. 131) – juntamente com coisas como a ―psicopolítica do tecnoxamanismo‖ (sic) –, falta uma análise material. Fiquemos no tema mais terreno da internet. Para a construção de computadores, circuitos eletrônicos ou mesmo cabos de rede é necessária a mineração em locais muito específicos do planeta. Grande parte da produção de cobre, por exemplo, concentra-se em cinco países, um terço apenas no Chile. Ou seja, uma tecnologia como a internet pressupõe fluxos materiais intercontinentais que são incompatíveis com o que os autores chamam de ―mundo humano permanentemente diminuído‖ (p. 127). O mesmo para a construção de painéis solares, por exemplo. Mesmo que pensemos em termos de reciclagem (que nunca é 100% eficiente), são necessários sistemas industriais complexos e sistemas avançados de transporte e infraestrutura. Com essas críticas, não estamos desprezando o papel da antropologia no entendimento da crise civilizacional pela qual passamos. Pelo contrário, a antropologia é uma ferramenta preciosa para relativizar o capitalismo, para demonstrar que a forma de produção e sociabilização do capitalismo, e a correspondente forma de sujeito e formas de consciência derivadas, são historicamente específicas, e não ontológicas – e que, portanto, as coisas podem ser diferentes não apenas no passado, mas também no futuro. É surpreendente, porém, que o conceito marxiano do ―fetichismo‖ tenha sido tão subestimado na obra aqui discutida – relegado a uma nota de rodapé. A prova de que os autores não entenderam a teoria do fetichismo de Marx, no entanto, é que nessa nota eles dizem que ele reabriu, ―talvez inadvertidamente, um rico filão analítico sobre as relações profundas entre economia e teologia na metafísica ocidental‖ (p. 100, n. 115, grifo meu). Ora, essas relações foram apontadas por Marx de forma absolutamente consciente, como uma leitura atenta d‘O capital o demonstra inequivocamente, desde o primeiro capítulo sobre o fetiche da mercadoria, perpassando toda a obra até os juros como forma mais desenvolvida de fetiche, já no terceiro livro. É justamente o fetichismo que nos faz ainda não-sujeitos, ou, como diria Marx, ainda estejamos na ―pré-história da humanidade‖, sob o domínio de uma economia autonomizada, onde se tem ―relações

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sociais entre coisas e relações coisificadas entre pessoas‖, na vívida alusão de sua obra principal. ―O ‗totem‘ da sociedade moderna é o valor, e o poder social que é projetado sobre este totem é o trabalho, enquanto atividade fundamental do homem na sociedade produtora de mercadorias‖, como diz Anselm Jappe.9 Tudo isso posto, é evidente que os direitos dos povos indígenas não estão aqui em discussão. De fato, a superação do capitalismo pode ser considerada, como dizem os zapatistas, como a emergência de um ―mundo onde caibam muitos mundos‖. Zapatistas, aliás, que sabem bem que são indígenas e mais que isso, não se restringindo a essa identidade: ―detrás de nosotros estamos ustedes‖.10 Certamente aí cabem os mundos indígenas, ou mesmo de ―modernos‖ que queiram realizar o seu ―devir-índio‖, tal como nunca caberão no capitalismo. Porém, a transposição imediata dos valores e cosmologias indígenas para a sociedade ocidental é um evidente equívoco. A sociedade capitalista precisa ser superada a partir da sua imanência, de suas próprias contradições, para libertar o seu potencial emancipatório que é truncado pela formamercadoria e pelos seus agentes de classe. É certo que o nosso capitalismo periférico possui especificidades, mas isso não se resolve com anacronismos do tipo ―o Brasil é uma gigantesca Aldeia Maracanã‖ (p. 158). O Brasil nasceu como um empreendimento capitalista, e esta já foi a nossa primeira catástrofe ecológica (a devastação do pau-brasil de nossa costa), e essas marcas profundas no sujeito não se apagam com simplesmente dizendo que ―somos todos índios‖. É preciso negação determinada, não a tabula rasa da crítica reacionária. Se é verdade que a noção teleológica de ―missão civilizatória do capital‖ nunca teve sentido para além do seu próprio desenvolvimento intrassistêmico (que nunca foi para todos), o capitalismo foi a única forma social que permitiu que a sua própria forma social viesse à consciência. Anselm JAPPE (2006) As aventuras da mercadoria: para uma nova crítica do valor, Antígona, p. 217. Sobre as consequências disso para o assim chamado ―Antropoceno‖, ver meus textos: CUNHA, Daniel (2015) ―The Anthropocene as Fetishism‖, Mediations 28 (2): 65-77 (http://www.mediationsjournal.org/files/Mediations28_2_06.pdf) e (2012) ―O Antropoceno como alienação‖ em Sinal de Menos no. 8. 10 ―Detrás de nosotros estamos ustedes. Detrás de nuestros pasamontañas está el rostro de todas las mujeres excluidas. De todos los indígenas olvidados. De todos los homosexuales perseguidos. De todos los jóvenes despreciados. De todos los migrantes golpeados. De todos los presos por su palabra y pensamiento. De todos los trabajadores humillados. De todos los muertos de olvido. De todos los hombres y mujeres simples y ordinarios que no cuentan, que no son vistos, que no son nombrados, que no tienen mañana.‖ Do discurso de abertura do I Encontro Intercontinental pela Humanidade e contra o Neoliberalismo. (http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/1996/1996_07_27.htm) 9

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O livro de Danowski e Viveiros de Castro, assim, se é interessante como apresentação de um mosaico pitoresco sobre o ―apocalipse‖, acaba ele mesmo caindo nas redes desse ―mosaico de curiosidades‖ com a virada primitivista do seu final – um chamado à ―incivilização‖ (p. 130) que recorre a motivos supersticiosos e malthusianos para justificar e tornar artificialmente inexorável um ―futuro pós-catastrófico‖ em ―um mundo humano permanentemente diminuído‖ (p. 127) – poucas vezes a regressão social foi tão bem descrita. Talvez por isso mesmo a teoria da crise desenvolvida pela crítica do valor11, que os autores provavelmente não conhecem, pois que ainda marginal nos debates atuais, possivelmente seria um incômodo nesse livro. Ela é demasiado real, historicamente determinada, não-teleológica e crítica. A crise é a contradição em processo – entre uma forma de sociabilização baseada no trabalho abstrato e suas forças produtivas hiperdesenvolvidas que eliminam a necessidade desse trabalho abstrato, e o aumento irracional do processamento material que causa a crise ecológica é consequência disso.12 O que precisamos não é de fatalismos malthusianos aliados a pósmodernismos identitários e superstições fantásticas (metafísica é a lógica do capital!), mas, como diz J.-P. Dupuy, de ―catastrofismo esclarecido‖13: a projeção de que a inércia nos levará à catástrofe deve inspirar nossos projetos políticos para mudar de futuro. Ou como diz Günther Anders, citado no próprio livro, no que talvez seja o seu melhor momento: ―Se nos distinguimos dos apocalípticos judaico-cristãos clássicos, não é apenas por temermos o fim (que eles, de sua parte, esperavam), mas sobretudo porque nossa paixão apocalíptica não tem outro objetivo senão o de impedir o apocalipse. Só somos apocalípticos para podermos estar errados‖ (p. 114)

Os autores do livro, porém, desperdiçam a força da invectiva de Anders (que é bastante citado ao longo do livro, mas sempre parece fora de lugar). Eles antes pressupõem um apocalipse inevitável para a imensa maioria dos habitantes do planeta – o que, além de politicamente desmobilizante, é cientificamente equivocado, posto que ainda é fisicamente (e politicamente) possível evitar o pior – para o triunfo final de um

Por exemplo, por Robert KURZ (1991) em O colapso da modernização, Paz e Terra. Como demonstrado por ORTLIEB, C. P., ―Uma contradição entre forma e conteúdo‖, disponível em http://o-beco-pt.blogspot.com.br/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html Original: Exit! 6 (2009) 13 DUPUY, Jean-Pierre (2009), Pour un catastrophisme éclairé: quand l‟impossible est certain, Seuil. 11

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―novo povo‖ – a pequena vanguarda da gambiarra: ―seria ridículo imaginá-los como a semente de uma nova Maioria‖ (p. 159). Trata-se de uma visão bastante diversa daqueles projetos generosos e universais de libertação plena da alienação, da carência, da exploração, do sofrimento e da superstição e de realização plena do potencial humano que, em sua diversidade, costumamos chamar de ―esquerda‖.

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