Mito e Linguagem: introdução à hermenêutica simbólica da comunicação

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MITO E LINGUAGEM: INTRODUÇÃO À HERMENÊUTICA SIMBÓLICA DA COMUNICAÇÃO José Abílio Perez Junior1

RESUMO O objetivo central deste artigo é realizar uma discussão filosófica sobre a hermenêutica simbólica, ou hermenêutica dos símbolos e imagens míticas. Este tema vem mostrando-se cada vez mais relevante para o campo da comunicação, de modo que um tratamento teórico aprofundado possibilita situar bases seguras para futuras análises e aplicações pontuais. Nossa reflexão se situará no esteio do chamado Círculo de Eranos, encontro de estudos ocorrido em Ascona-Suíça entre 1933 e 1988. Dentre os autores herdeiros de Eranos podemos citar: Michel Maffesoli, Joseph Campbell, Mircea Eliade, Carl Gustav Jung, Gilbert Durand, Gershon Scholem, Andrés Ortiz-Osés, dentre outros. PALAVRAS-CHAVE:

hermenêutica

simbólica;

mitologia;

mitologia

comparada;

comunicação; hermenêutica.

A PERTINÊNCIA DO REFERENCIAL MÍTICO PARA A LEITURA DA COMUNICAÇÃO

As relações entre a comunicação e mitologia foram apontadas por teóricos de diferentes correntes de análise, bem como por profissionais da comunicação. Estas relações cobrem, ao menos, dois campos: quer seja pela análise das mensagens dos meios de comunicação, comparadas com as narrativas míticas quanto à sua estruturação interna; quer seja pela função que o

mito desempenha no âmbito

social e cultural das sociedades pré-modernas, enquanto organizador do imaginário coletivo, papel que, na contemporaneidade (ou pós-modernidade), teria sido assumido pela comunicação, incluindo a publicidade, o jornalismo e o cinema. Ao cunhar o conceito de “aldeia global”, Marshall McLuhan (MCLUHAN, 2005) referia-se especificamente a este fenômeno, no qual a recepção se faz por contato direto com a imagem, processo que prescinde até mesmo da palavra falada ou escrita. Esta espécie de “fusão” da consciência na imagem é exatamente o mesmo

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Publicitário. Mestre em Cultura, Organização e Educação. Pesquisador junto ao CICE – Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Organização da Universidade de São Paulo. Email: [email protected]

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fenômeno que caracterizaria a vida mítica na aldeia, no entanto, agora em escala global. Walter Benjamin (BENJAMIN, 1987), ao frisar a importância da abordagem alegórica para a compreensão da comunicação, também referia-se à mesma associação entre os fundamentos dos meios de comunicação e o campo do símbolo. Sua abordagem alegórica e utilização da “teologia” para o estudo da comunicação é tributária do historiador Gershon Scholem (SCHOLEM, 1972), especialista em simbólica judaica, autor presente aos encontros em Eranos. Para antropólogos como Everardo Rocha (ROCHA, 1990) e Marshall Sahlins (SAHLINS, 1979), a função da publicidade no mundo contemporâneo é precisamente

a

mesma

desempenhada

pelos

“operadores

totêmicos”

das

comunidades tradicionais, ou seja, realizar a sutura entre natureza e cultura, fornecendo uma rede explicativa com a qual uma comunidade organiza e confere coerência ao caos de informações advindas da experiência sensória. Sal Randazzo (RANDAZZO, 1997), publicitário atuante no campo do planejamento e pesquisa de mercado, considera que cada anúncio deve ser pensado como uma “mitologia de marca”. Seu trabalho teórico visa, precisamente, expor o modo como se utiliza de referências míticas para embasar o processo de pesquisa e planejamento de imagem para importantes marcas, como a Budweiser e o Marlboro, bem como para o planejamento de campanha em propaganda política. No processo criativo, a utilização do referencial mítico foi abordada pelo redator publicitário João Anzanello Carrascoza (CARRASCOZA, 2003a; 2003b). Para o autor, as peças publicitárias podem ser classificadas em duas grandes categorias, “apolínea” e “dionisíaca”, narrativas míticas que, desde o filósofo Friedrich Niezstche (NIETZSCHE, 1996), são utilizadas como espécie de “categorias” ou vertentes do imaginário, uma representada pelo herói portador do raio e vencedor da serpente (Apolo); outra caracterizada principalmente pelas imagens vegetais, do ciclo e do renascimento, como no mito de Dionísio, deus do vinho, chamado “ditirambo”, ou “duas vezes nascido”. Apesar das grandes disparidades entre as obras de Benjamin e McLuhan, ambos autores demonstram existir aproximações e diferenciações entre os campos da mitologia e comunicação. Segundo Benjamin, esta diferenciação ocorre pela substituição do “valor de culto” pelo “valor de exposição”, característico da

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expressão estética nos tempos da “reprodutibilidade técnica”. Expressando-se conceitualmente, Benjamim refere-se à retirada das narrativas míticas de seu contexto tradicional (perda do valor de culto). Na comunicação, a referência à tradição é substituída pelo “valor de exposição”, mecanismo no qual a imagem prevalece unicamente por auto-referência, prescindindo de qualquer referencialidade ao momento histórico. McLuhan, por sua vez, sublinha a permanência do processo racionalizador na experiência contemporânea do pensamento mítico: “(...) Vivemos miticamente, mas continuamos a pensar fragmentariamente e em planos separados” (MCLUHAN, 2005, p.41) A experiência mítica, no caso da comunicação, não ocorre por uma “abertura” espontânea ao chamado das musas, como entre os poetas e xamãs das culturas tradicionais, mas possui um direcionamento, fruto de um planejamento racional da mensagem a ser veiculada. Estas diferenciações são de primeira ordem na análise comparativa entre os dois campos e suas implicações não podem ser desprezadas. Elas apontam para um processo no qual a dicotomia entre mito

e razão, tão cara ao pensamento

modernista, predominante entre os séculos XVI e XIX, tende a ser superada. Na contemporaneidade, a consciência mítica é re-habilitada, não obstante, o racionalismo industrial permanece plenamente operante. Na interação entre as duas forças, é o mito que se torna peça da indústria, e não o inverso. De qualquer modo, o campo da mitologia comparada mostra-se pertinente para

a

análise

da

comunicação.

Muitos

fenômenos

contemporâneos

da

comunicação encontram seus ecos na herança mítica das culturas. A recorrência ao mito do herói no cinema hollywoodiano, em diferenciação à predominância da temática trágica da industria cultural latino-americana, repleta de casos extraconjugais, filhos trocados e amores impossíveis, caracterizam precisamente os dois regimes do imaginário – apolineo e dionisíaco – ou, para utilizarmos a nomenclatura da arquetipologia geral de Gilbert Durand (DURAND, 1989), o Regime Diurno e Regime Noturno do imaginário. Dada esta pertinência, apontada por autores diversos, me dedicarei a expor alguns fundamentos de uma importante linha de trabalho de mitologia comparada, o chamado Círculo de Eranos, cuja influência indireta no campo específico dos

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estudos da comunicação pode ser notada, a partir de autores como Michel Maffesoli, Joseph Campbell, Mircea Eliade, Carl Gustav Jung e Gilbert Durand.

Os trabalhos de mitologia comparada de Ascona-Suíça – o legado de Eranos

Entre 1933 e 1988, ocorreram em Ascona, na Suíça, encontros anuais sobre o estudo da hermenêutica dos símbolos e mitologia comparada. Coube ao teólogo Rudolf Otto batizar estes encontros de “Eranos”, termo em grego que significa “comida da fraternidade”. (PAULA-CARVALHO, 1998) Sob o impulso inicial da filosofia das formas simbólicas do neo-kantiano Ernst Cassirer (1953; 1992), para cada encontro anual era realizada, sob convite, a exposição do trabalho de um eminente especialista em diversas mitologias ao redor do mundo. Dentre alguns nomes presentes em Eranos, pode-se citar: mitólogos como Mircea Eliade, Gilbert Durand, Joseph Campbell, Carl Kérényi, W. Otto, E. Przyluski, psicólogos como C. G. Jung, Marie-Louiz Von Franz, James Hillman e Neumman; estudiosos das tradições orientais e simbólica cristã, como Zimmer, Wilhelm, Scholem, Tucci, Corbin, Suzuki, Pettazzoni, Danièlou, etc; Dentre outros estudiosos da antropologia, ciências naturais, estética e filosofia. (PAULACARVALHO, 1998) Os trabalhos foram publicados nos Eranos Jarbuch, em cinquenta e seis volumes. Eranos é referido como “círculo” pois não funda uma escola, ou sequer é possível realizar uma “síntese” dos trabalhos de modo enciclopedista. Sentam-se à mesma mesa psicólogos e sociólogos, judeus e muçulmanos, antropólogos e historiadores, cristãos e budistas. O valor do material de Eranos consiste em, por um lado, interligar um rol de especialistas que trabalham com leitura em nível simbólico, e, por outro, constituir um debate – que permeia diversas disciplinas acadêmicas – sobre a função simbólica e sua pregnância nas formas simbólicas (CASSIRER, 1953). O fundamento da filosofia das formas simbólicas de Cassirer consiste em uma generalização da Crítica da Razão kantiana em direção a uma “Crítica da Cultura”, ou seja: frente à multiplicidade da criação humana, que não se restringe à diversidade do emprego da razão, busca-se uma “unidade de causa”, senão de

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efeito. Segundo Cassirer “Devemos retroceder ao simbolismo “natural”, para a representação da consciência como um todo que está necessariamente contido ou, ao menos, projetado, em cada momento e fragmento de consciência, se nós desejamos compreender os símbolos artificiais, os signos “arbitrários” que a consciência cria na linguagem, arte e mito. A força e o efeito destes signos mediadores permaneceria um mistério se não fossem, em última análise, enraizados em um processo originário do espírito que pertence à essência mesma da consciência. (...) Esta função simbólica “possui diversas direções “naturais” – e as formas simbólicas são precisamente estas direções nas quais o sentido se realiza na consciência humana.” (CASSIRER,1953:52) Cada forma simbólica, como arte, mito, ciência, religião, é um todo orgânico no qual podemos reencontrar as operações básicas de um mesmo e único espírito humano. É esta premissa fundamental da obra de Cassirer que se retoma nos diálogos de Eranos. A “quintessência” deste trabalho comparativo, segundo um dos últimos eranosianos, o filósofo basco Andrés Ortiz-Osés (1989a; 1989b), encontrase nas Estruturas Antropológicas do Imaginário, do sociólogo francês Gilbert Durand.

Hermenêuticas simbólicas

O termo grego “hermenêutica” é utilizado por Aristóteles (ARISTOTELES, 1985) no texto Peri Hermeneias, significando “a arte de interpretar”. São diversos os sentidos co-implicados na expressão “hermenêutica simbólica”, conforme designe todo

trabalho

de

interpretação

(hermenêutica)

de

símbolos

ou

designe,

especificamente, a filosofia hermêutica simbólica, herdeira simultamentamente de H.G. Gadamer e do Círculo de Eranos. Aqui, trabalharei com três sentidos sucessivos, enumerados do mais específico ao mais amplo, a saber: Hermenêutica simbólica (I) O método empregado por Andrés Ortiz-Ozés e Marcos Ferreira Santos, herdeiro da filosofia hermenêutica (Gadamer, Heidegger) e do círculo de Eranos.

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Hermenêutica simbólica (II): As diversas hermenêuticas que privilegiam o nível simbólico ou profundo, que partem do literal à constelação de imagens simbólicas em determinado emprego da linguagem; e Hermenêutica simbólica (III): Toda e qualquer expressão humana, desde que esta se constitui através da linguagem, e toda linguagem se institui sobre o universo simbólico, que permanece como raiz de toda significação. Os sucessivos sentidos da expressão não são excludentes, ao contrário, são co-implicativos.

Hermenêutica simbólica (I)

A “hermenêutica simbólica”, conforme a utilização do termo por Andrés OrtizOsés (ORTIZ-OSÉS, 1989a; 1989b) e Marcos Ferreira Santos (FERREIRASANTOS, 1998), designa um trabalho de cunho filosófico, herdeiro diretamente da filosofia hermenêutica de H. G. Gadamer, bem como do existencialismo (Martin Heidegger, Nicolai Berdiaev, Paul Riccoeur) e da fenomenologia (Gaston Bachelard, Maurice Merleau-Ponty). A característica central da filosofia destes autores consiste em considerar o simbólico enquanto “proto-interpretação de homem e mundo ao encontro”, nos termos de Ortiz-Osés (ORTIZ-OSÉS, 1989, p.24), ou seja, a relação da consciência com o mundo, anterior a qualquer linguagem. É esta “proto-interpretação” que possibilita as linguagens, de modo que toda expressão ou obra humana pode ser reconduzida à sua raiz simbólica. Ortiz-Osés chama a seu método interpretativo “método dialógico”, que consiste em reconduzir as diversas hermenêuticas (filosofias, técnicas, linguagens) de volta à sua base simbólica de significação. A linguagem simbólica é o veículo e lugar da interpretação, medium e substrato das interpretações divergentes e convergentes. Assim sendo, o método

atenta à própria estrutura da linguagem

simbólica que está implicada nas diversas definições do homem: A nova interpretação do homem como homo hermeneuticus não se acrescenta de um modo justaposto às anteriores, nem intenta uma nova visão radical e espetacular do homem. Consiste numa revisão deste homem interpretado na história de mil modos diversos, convergentes, no entanto, como interpretações, todas do homem pelo homem. O homem será, pois – e foi-o, isto e aquilo, mas, em todo o

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caso, será sempre o seu próprio intérprete. Isso, nem mais nem menos, é dito com a nossa definição antropológica. (ORTIZ-OSÉS, 1989, p.24)

A linguagem simbólica, no presente contexto, refere-se à experiência humana do mundo, anterior a qualquer sistema de codificação lingüístico. É a sutura ontológica entre o mundo do “fato bruto”, mundo desabitado, estéril e inerte, e que, portanto, não pode ser objeto de conhecimento, e o mundo da consciência. De modo circular, há apenas “dado” enquanto “dado à consciência” e há apenas “consciência” enquanto “consciência do mundo”. Este trajeto circular, que é o “mundo-do-homem” enquanto “homem-no-mundo” estrutura-se como linguagem simbólica.

Hermenêutica simbólica (II)

Um segundo modo de compreender o termo “hermenêutica simbólica” é empregado por Gilbert Durand (1995). Dentre as diversas hermenêuticas, este autor compreende duas modalidades ou categorias: as hermenêuticas instaurativas e as hermenêuticas redutoras. Apenas o primeiro termo designa, em sentido próprio, as hermenêuticas simbólicas. Em diferenciação aos autores citados, Durand

encontra, no seio das

linguagens, aquelas que são “simbólicas” em diferenciação às “convencionais”: A consciência dispõe de duas maneiras de representar o mundo. Uma, direta, na qual a própria coisa parece estar presente na mente, como na percepção ou na simples sensação. A outra, indireta, quando, por qualquer razão, o objeto não pode se apresentar à sensibilidade “em carne e osso” (...) (DURAND, 1995, p. 11)

No primeiro modo de representar o mundo, o signo direto é também arbitrário. Uma notação algébrica, uma placa de trânsito, possuem sentido unívoco. Este sentido possui respaldo apenas na convenção. Apenas quando o significado deixa de ser unívoco e acessível, alcançamos a Imaginação Simbólica. O símbolo parte do próprio significante concreto para diversas idéias, mesmo divergentes quanto ao seu sentido último. O mito, enquanto narrativa dinâmica de imagens simbólicas, não pode ser “explicado”, embora seu relato possua coerência. Em termos de Gaston Bachelard: “As imagens não são conceitos. Não se isolam de sua significação. Tendem precisamente a ultrapassar sua significação.” (BACHELARD, 1990b)

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A imagem simbólica é uma inadequação por excelência, para-bolos, atribuindo-se ao sufixo [para-] seu sentido mais forte como “o que não atinge”. A imagem simbólica é a transfiguração de uma representação para sempre abstrata, suporte de uma transcendência que aponta para o indizível (o Reino, o além-morte... o trasmundo). Desta forma, a metade visível do símbolo estará sempre carregada ao máximo de concretude, sendo, ao mesmo tempo, metafísico, onírico (biográfico) e poético (remetendo à linguagem, e à linguagem mais impetuosa). Esta inadequabilidade fundamental do símbolo tenderá a ser superada pela redundância também característica. Nisso é comparável a uma espiral, ou melhor, um solenóide, que a cada repetição circunda sempre o seu foco, o seu centro. Não que um único símbolo não seja tão significativo como todos os outros, mas o conjunto de todos os símbolos sobre um tema esclarece os símbolos, uns através dos outros, acrescenta-lhes um “poder” simbólico suplementar. (DURAND, 1990:16)

A imagem simbólica e o signo arbitrário não constituem “classes” distintas de signos mas, tão somente, apresentam-se como “graus” de simbolização e arbítrio nas diversas construções de linguagem. Uma hermenêutica simbólica, que o autor também chama “hermenêutica instaurativa”, se caracterizará, precisamente, pela recondução deliberada do sentido literal ao simbólico, utilizando-se de uma arquetipologia geral. Estas hermenêuticas se diferenciam das “hermenêuticas redutoras”, que desconsideram - ou mesmo vedam - o acesso ao nível simbólico. A Arquetipologia Geral apresentada por Gilbert Durand, com subsídio dos trabalhos de Eranos, encontra-se em sua obra “As Estruturas Antropológicas do Imaginário”, (DURAND, 1989) na qual o autor classifica o material mítico em “constelações isotópicas”, “estruturas” e “regimes” do imaginário. Este trabalho é uma importante fonte para todos os trabalhos posteriores sobre a imaginação simbólica. Pode-se fazer uma aproximação entre os regimes Diurno e Noturno e as expressões “Apolíneo” e “Dionisíaco”, com algumas ressalvas. Qualquer mito apresenta diversas constelações isotópicas, e não apenas uma. No caso de Apolo, por exemplo, ao lado de imagens ascencionais e luminosas, características do imaginário heróico, encontra-se imagens teriomórficas (a serpente) e catamórficas (o abismo). A dramatização mítica consiste, justamente, no modo como estas imagens negativizadas são resolvidas através da ação heróica. Dionísio, por sua vez,

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apresenta atributos do Regime Noturno. No entanto, as diferenças entre esta narrativa grega e expressões do imaginário noturno nas diversas culturas são tão grandes que torna-se pouco apropriado considerarmos “dionisíacas”, por assim dizer, quaisquer mitos relacionados ao ciclo da vegetação ou à fertilidade da terra. Tendo como base a Arquetipologia Geral, o exercício hermenêutico simbólico consiste em remontar do discurso literal às imagens e temas arquetípicos, organizados em profundidade em torno a determinados eixos ou estruturas. Em qualquer forma simbólica, desde um texto literário, um documento jurídico, uma campanha publicitária, uma tese filosófica ou um cântico sagrado, para além do encadeamento lógico-racional-conceitual, apresenta-se na linguagem uma dimensão afetual e catártica, mobilizada/mobilizadora da circulação de Eros.

Hermenêutica Simbólica (III)

Nas exposições anteriores, partimos da designação de uma única e determinada corrente filosófica (Hermenêutica simbólica I) para diversas linhas de trabalho que se pautam em um referencial mítico-simbólico (Hermenêutica Simbólica II). Um terceiro sentido, que já se prenunciava nos anteriores, considera toda e qualquer produção humana como obra simbólica, à medida que o homem encontrase, desde o princípio, imerso no mundo da cultura e da linguagem: A infraestrutura que correlaciona dialeticamente homem e mundo, e que significa um “consensus” natural entre este e aquele, chama-se: linguagem, no seu sentido original de logos da realidade. A linguagem é, efetivamente, proto-interpretação de homem e mundo ao encontro: no e pelo logos da linguagem o homem mundaniza-se e o mundo hominiza-se (ORTIZ-OSÉS, 1989:71).

O logos é um con-sensus natural. O mundo que se estende à volta de dois sujeitos falantes é um mundo humanizado. No mundo humano, os objetos naturais possuem nomes e sentidos. O logos, enquanto experiência humana do mundo, subjaz à própria capacidade de formulação linguística. Em diferenciação às linguagens que são con-sensi convencionais, o logos é um consensus natural e simbólico. Este linguagem primeira, raiz da significação, constitui uma proto-interpretação de intérprete e interpretado, ou ainda, interpenetração de homem e mundo. Sua natureza é proto-linguística.

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A relação triádica entre história, homem e mundo pode ser compreendida de modo dialético, no qual um termo não elimina ou supera o outro, senão, cada um é suposto e colocado pelo antecedente. O homem supera o mundo por sua práxis e, ao mesmo tempo, é superado pelo mundo, frente ao qual o homem e sua linguagem se calam, constituindo este o horizonte de verificação (verdade) de todo discurso. O universo do sentido, que é o universo do homem em seu mundo, é pressuposto por cada uma das linguagens. Uma hermenêutica do sentido é simultaneamente – dialeticamente – uma hermenêutica do homem e uma hermenêutica do ser. Neste âmbito, toda linguagem constitui uma hermenêutica simbólica (III) conquanto toda linguagem (arbitrária) pressupõe o mundo do sentido (experiência humana do mundo). Todas as línguas (arbitrárias) pressupõe a articulação (natural e simbólica) do homem consigo próprio e com as coisas, sendo tarefa hermenêutica a recondução das linguagens à Linguagem. Homem e mundo encontram-se radicados nesta proto-relação que a inguagem significa, e a nossa missão é a de apalavrar toda a realidade e idealidade, toda a interpretação e sua contrária, toda a ideologia e cosmovisão, com a sua própria origem, medium e horizonte último: o “logos” que a linguagem diz e con-dicciona. É a tarefa propriamente hermenêutica e aquela pela qual o homem supera o homem, o sentido (símbolo) supera o sentido (signo) a palavra falada a letra escrita e a linguagem a realidade muda. (ORTIZ-OSÉS, 1989: 85)

Segundo Ortiz-Osés, à diferenciação de Ferdinand de Saussure entre língua (langue) e fala (parole), deve-se acrescentar a Linguagem, segundo o esquema.

Linguagem

Língua

Fala

Neste esquema, a Linguagem, enquanto “apalavramento radical” de homem e mundo, pode também ser nomeada proto-linguagem. É neste universo articulado do homem em seu mundo que se enraízam as linguagens (línguas) e da qual as palavras (escritas ou faladas) recebem a seiva da significação. Para além dos meros formalismos, é a significação (simbólica) que fornece vida à palavra.

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“O valor do mito persiste como mito através das piores traduções”, enquanto o valor filológico da palavra – flamen ou rex, por exemplo – se evapora numa tradução. Isso significa que o mito, diferentemente da palavra que se agrupa no léxico, não vai se reduzir diretamente, através da contingência de uma língua, a um sentido funcional. É bem verdade que ele constitui uma linguagem, mas uma linguagem acima do nível habitual da expressão lingüística.” (LÈVISTRAUSS, apud DURAND 1995, p.51)

Simbólica es por tanto la comprensión de las cosas por el alma humana, la interpretación anímica del mundo, la intelección del ser por nuestra razón afectiva. Pues el hombre es el animal simbólico, de modo que la realidad dice latente relación simbólica al hombre.(ORTIZ-OSÉS, 2003, p.31)

Acima ou abaixo da expressão lingüística, a linguagem simbólica, aquilo que não se perde na tradução, é o oposto exato do valor filológico, contingente, que não pode, em absoluto, ser traduzido com clareza, senão reconstruído ou aludido, novamente, através do universo humano do sentido. Em todo o diálogo verifica-se um sentido definido, uma interpretação determinada, uma situação hermenêutica. A verificação da idealidade no diálogo sobre a realidade - estrutura dialógica: dois dialogam perante e sobre um assunto com-unitário – sucede com base num acordo ou consentimento (consensus), quer dizer, com base num pôrse de acordo ou entender-se (esclarecer-se) sobre algo que nos exige conformidade. Este acordo verificador (a-letheia: desvelador-revelador) fica actuado implicita ou explicitamente, e esta “novidade (a verdade desvelada-revelada) fica reingressada (reinterpretada) automaticamente na linguagem donde partiu e que a tornou possível. Assim, a linguagem, pelo seu sentido transcendental, devém custos veritatis e, pela sua imanência (diálogo) depositum da fé filosófica. Em todo o caso, critério último de entendimento real.” (ORTIZ-OSÉS, 1989, p. 91, grifos do autor)

Fechando o ciclo: diálogos sobre a comunicação

Para Ortiz-Osés, o diálogo (dia-logos: através do logos), enquanto método hermenêutico e opção filosófica, consiste na recondução da palavra, empregada no momento da fala, ao logos originário, que é o apalavramento radical de homem e mundo, o mundo simbólico da experiência humana, raiz de toda signficação.

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No diálogo, com efeito, a linguagem fala: o diálogo liberta a lógica que a linguagem – como possibilitadora de língua e fala – con-dicciona sempre. Mas é também o lugar de uma verificação intersubjectiva (dialogal) de homem e mundo em respectividade.“ (ORTIZ-OSÉS, 1989, p. 89)

Neste sentido, o diálogo só pode ser compreendido em seu sentido socrático, que se diferencia do mero falar anedótico, que é um “falar para não ficar calado”, bem como do sentido sofístico, que é um “falar para calar (o outro)”. Um diálogo sobre a mídia, que abre-se no presente artigo, situa-nos em um campo no qual as idealidades e facticidades estão todas postas. O método dialógico, a partir do referencial proposto, é semelhante a um exercício de tradução simultânea entre diversas abordagens teóricas, que são fazeres de natureza linguística, ou seja, fazeres hermenêuticos ou interpretativos. O trabalho comparativo com outras formas simbólicas, para utilizarmos o termo de Ernst Cassirer, como a mitologia, o folclore, a poesia, as artes ou a ciência, são possibilitadas e pressupõem o horizonte proto-verificador do logos, que é o mundo-do-homem, ou mundo humanizado pela linguagem. A “tradução” caracterizase como exercício de mediação que não apaga ou dilui as fronteiras entre os diversos campos – como a compreensão não dilui as fronteiras fonéticas entre as diversas línguas, mas possibilita o mútuo entendimento, na medida em que fornece um solo mais amplo no qual pode-se apoiar. Uma hermenêutica simbólica da produção comunicacional, desta forma, deve transitar entre dois polos: a) as especificidades da produção de imagens míticas através dos gêneros comunicacionais, suas características intrínsecas quanto á mensagem, organização da produção e difusão; b) assim como a natureza e o papel da dimensão arquetípica e invariante presente nos mitos e símbolos, em sua presença nos gêneros comunicacionais. São diferentes os modos como o jornalismo, a publicidade, o cinema, o rádio ou a TV recorrem ou se utilizam da dimensão simbólica para construir suas mensagens, elaborar narrativas, criar ou reforçar imagens e traços do imaginário. Cada caso solicita um trabalho diferenciado quanto aos parâmetros estéticos e éticos pertinentes. São estes os trabalhos que endereçamos em um futuro próximo, aos quais o presente artigo busca servir de simples introdução.

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