Mito e Razão no Direito Penal

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Mito e Razão no Direito Penal PEDRO DOURADOS

Quem deu crédito à nossa pregação? E a quem se manifestou o braço do S enhor? Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de uma terra seca; não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum. Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus, e oprimido. Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo seu caminho; mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos. Ele foi oprimido e afligido, mas não abriu a sua boca; como um cordeiro foi levado ao matadouro, e como a ovelha muda perante os seus tosquiadores, assim ele não abriu a sua boca. Da opressão e do juízo foi tirado; e quem contará o tempo da sua vida? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; pela transgressão do meu povo ele foi atingido. E puseram a sua sepultura com os ímpios, e com o rico na sua morte; ainda que nunca cometeu injustiça, nem houve engano na sua boca. Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão. Ele verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará satisfeito; com o seu conhecimento o meu servo, o justo, justificará a muitos; porque as iniquidades deles levará sobre si. Por isso lhe darei a parte de muitos, e com os poderosos repartirá ele o despojo; porquanto derramou a sua alma na morte, e foi contado com os transgressores; mas ele levou sobre si o pecado de muitos, e intercedeu pelos transgressores. Isaías 53

Agradecimentos Em primeiro lugar a Deus, pelo Amor, pelo Sustento, pela Salvação. Três vezes, obrigado. Em segundo, à família, e nesta, em especial, à minha mãe, pelas horas de conversa sobre os mais diversos temas que direta ou indiretamente se refletem nesta Iniciação – afinal, o que seria de nós sem Bakhtin? A meu pai pelo exemplo e estímulo e a meu irmão, pela compreensão. Aos avós, por sempre orarem pelo neto perdido em São Paulo, amo vocês. À Helena Lobo, pois, sem ela, isso não seria. Ser humano maravilhoso, obrigado. À Dalva, do DPM, pois sem ela, jamais teria chegado à Helena, e não teria dado algumas boas risadas – com a Marcela, um abraço. À São Francisco e à FAPESP pelo apoio institucional imprescindível, e que me fez pensar sobre o próprio conceito de instituição – e de burocracia. Ao SEI, nas pessoas da Tia Ezhir e da Tia Cidinha, ao Porto União, nas pessoas das sôras Melissa e Silvia Helena, et aussi à la Cité Scolaire Internationale, à la personne de M. Cornella. Vous me manquez, grenoblois. Agradeço especialmente aos professores do DPM e do DFD, que me incentivaram a pesquisar, a questionar, a ler. Agradeço aos colegas de Facvldade, em especial, à 23 da 183, que sempre mantiveram em mente as potencialidades de Axé em Hans Kelsen. Aos colegas de estágio, no CAZ e no D.J. XI de Agosto – em especial, a Guilherme Lobo, com quem compartilho algumas ideias desvairadas (Jung faz você brilhar). De modo muito especial, ao Projeto 73 e às amizades que acompanharam este pequeno sonho de filosofia nas Arcadas – Peter Barna, André Menegatti e Pedro Chambô, vocês são amigos de que não me esquecerei. Ao Matheus Gomide Gavassoni, pela amizade e pela maravilhosa ideia de arte que gerou a capa. Ao NEB e aos amigos da IBVM. Ao Pastor Abner e ao Pastor Darcy, pelos muitos conselhos, e pela sabedoria inesgotável. Ao André Muceniecks, à Michelle Lima e a Evandro Kent e Lucas Slobo. A Daniel Candia por algumas divagações especiais. A Christine Park, Felipe Alves, Viktor, Naty Massuia e outros que oraram por mim – e aos que sorriram pra mim, também. À Enya, Sade, Mahalia e Michael Jackson, além de Von Liszt, que vivos ou mortos fizeram a trilha sonora deste trabalho. À Marcela Rama, pela inexplicável sintonia.

Ao Bruno Bracco, pelas leituras e pelos cafés abolicionistas. Enfim, por último, mas não menos importante, aos Ratos do largo de Ana Rosa, que ao não me deixarem dormir me fizeram estudar – e porque desde Sartre os roedores têm sido ignorados.

Apresentação A obra que ora se apresenta é resultado – com algumas modificações – de trabalho de Iniciação Científica desenvolvido por Pedro Augusto Simões da Conceição, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob minha orientação e com financiamento da FAPESP. Assim, além do interesse acadêmico que nutro pelo tema e sua abordagem, não posso deixar de expressar meu orgulho de ver esta primeira monografia acadêmica produzida por Pedro poder ser difundida ao público, após ter sido elogiosamente aprovada pela FAPESP. Reexaminar e rediscutir o conceito de conduta no direito penal revela-se uma empreitada extremamente relevante para a dogmática atual, que por vezes tem se deparado com situações às quais as atuais teorias sobre a conduta nem sempre fornecem respostas adequadas. As lentes utilizadas por Pedro para esse reexame, entretanto, não foram estritamente aquelas da dogmática jurídico-penal. A dogmática, mais do que instrumental de análise, acaba por se transformar, ela própria, em objeto de seu estudo, sob o olhar da filosofia, especialmente da crítica da razão. Nos três primeiros capítulos do livro, Pedro expõe os pressupostos do trabalho, esclarecendo a concepção de mito adotada, traçando um rápido panorama sobre a crítica da razão e, a seguir, sobre a racionalidade dos sistemas sociais. Na sequência, o trabalho examina a visão de Adorno e Horkheimer, buscando, na Dialética do Esclarecimento, ferramentas críticas para a análise das três teorias da conduta escolhidas para estudo: as desenvolvidas por Hans Welzel, Claus Roxin e Günther Jakobs. As três teorias mencionadas são expostas e, a seguir, submetidas à denominada crítica dialética, identificando-se problemas, falhas e, também, que o conceito de ação, por vezes, se vê sobrecarregado. Mas a principal conclusão extraída pelo autor é que as concepções de ação – responsáveis por um alto grau de racionalização e especialização da ciência penal – acabam por também aportar uma carga mítica ao direito penal, tema que é pormenorizado em capítulo próprio. O estudo não abandona, todavia, o paradigma da ação, mas insiste para que se tenha presente sua carga mítica. E, a partir desse pressuposto, busca remodelar o conceito, a partir de elementos

da filosofia da linguagem de Bakhtin. O autor ainda enfrenta, ao final do trabalho, questões penais específicas, sob o olhar de sua proposta. Esse brevíssimo voo panorâmico sobre a obra já revela ao leitor quão apaixonantes são os temas e, especialmente, a abordagem escolhida pela obra. A grande contribuição do trabalho de Pedro consiste em efetuar o exame do conceito jurídico-penal de conduta sob o prisma da filosofia, sem receios dos possíveis ruídos que possam advir do diálogo entre linguagens e metodologias distintas. Com isso, a obra traz o espanto filosófico para o direito penal, permitindo ao leitor desenvolver uma reflexão detida sobre o tema e questionar o que está subjacente aos modelos teóricos contemporâneos.

Helena Regina Lobo da Costa Professora Doutora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Índice 1.0 O Mito 1.a A cultura 1.a.1 Entre positivismo e naturalismo 1.a.2 A cultura como linguagem 1.a.3 A cultura a partir do Mito 1.b Campbell e a visão do Mito 1.c Mito como médium cultural 1.d Mito, símbolo e cultura 1.e Mito e transcendência 1.f Conclusão 2.0 A Razão 2.a A Cultura racional 2.b Hegel e a Razão 2.c Da Crítica da Razão 2.c.1 Razão antes da crítica – a dominação racional 2.c.2 A crítica de Kant 2.c.3 Schopenhauer crítico de Kant 2.c.4 Marx e a crítica da razão: a verdade econômica 2.d Conclusão 3.0 A Racionalidade dos Sistemas Sociais 3.a A racionalização do direito penal: a sistematização da teoria do delito 3.a.1 Hans Welzel e a doutrina da ação finalista 3.a.2 Claus Roxin e a ação personalista 3.a.3 Günther Jakobs e o crime enquanto imputação 3.b Conclusão 4.0 Mito e Razão juntos: a Dialética do Esclarecimento 4.a A Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt 4.a.1 O início da Crítica 4.b A Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos 4.b.1 O entrelaçamento “Mito” – “Razão” 4.b.1.a A dominação esclarecida da natureza e o Mito 4.b.1.b A Lógica do Sacrifício e o paradoxo da autoconservação 4.b.1.c A Crise da ratio e o estabelecimento da igualdade Razão=Dominação 4.b.1.d A Razão e o Mito codependentes: a autorreflexão da razão dominadora na Indústria Cultura

4.c A “dialética do esclarecimento” como instrumento de crítica ao Direito Penal – considerações metodológicas 5.0 Hans Welzel: o Kant do Direito Penal 5.a A (mini)revolução copernicana na teoria da Ação 5.b A Ontologia de Welzel: resquícios do neokantismo, amizade com a Fenomenologia 5.c A Racionalização pela teoria da ação: o delito tripartido 5.d O Sistema e o Direito Penal cibernético 5.e Crítica Dialética 5.e.1 Direito Penal para além da ação 5.e.2 O Tempo da Ação 5.e.3 Ação despersonalizada 5.e.4 O esvaziamento dos valores 5.f Conclusão 6.0 Günther Jakobs: comunicação instrumental, organização do comportamento e Direito Penal do Inimigo 6.a Direito Penal como comunicação: instrumentalidade funcional neutra e o conceito de pessoa 6.b Ação é comunicação: crime é comunicação 6.c Resumo: crime como ação em Jakobs 6.d Crítica Dialética 6.d.1 A instrumentalização da pessoa 6.d.2 Organização do comportamento e norma 6.d.3 O Sistema vivo: a pena como resposta comunicacional do Sistema 7.0 Claus Roxin e o conceito pessoal de ação 7.a Ação e seu papel intrassistêmico 7.b Ação enquanto “manifestação da personalidade” 7.b.1 Ação e imputação 7.b.2 A capacidade unificadora 7.b.3 Delimitações do conceito de ação 7.c Crítica Dialética 7.c.1 O problemático conceito de “Manifestação” 7.c.2 A manifestação do Inimigo 7.c. 3 O problema da personalidade 7.d Conclusão 8.0 Teoria da Ação e o aspecto mítico da Sociedade

8.a Mito e Ação: elementos de proximidade 8.a.1.a O tempo cotidiano 8.a.1.b O outro tempo 8.a.1.c O tempo do Direito – a magia dos Autos 8.a.2.a A ação do agente 8.a.2.b A ação o Herói e a Infra-ação do Anti-herói 8.b O paradigma do mito e o paradigma da ação 8.b.1.a O mito e a mentira, uma mentira sobre o mito 8.b.1.b Luhmann e o problema da compreensão comunicacional 9.0 Teoria da Ação 9.a Discurso: entre o enunciado concreto e o gênero discursivo 9.a.1 Ação como enunciado concreto 9.a.1.a A Teoria Comunicacional do Direito e Ação 9.a.1.b A teoria da Ação em Tavares 9.a.2 O Enunciado Concreto – no contexto do dialogismo 9.a.3 Ação como texto, ação como enunciado 9.b O Gênero “Crime” – o Discurso do Direito Penal 9.b.1 Os dois tempos da ação 10.0 A Dogmática Penal 10.a Além da querelle des anciens et des modernes 10.b “Reflexos dogmáticos” da teoria da ação dialógica 10.c A Irretroatividade da lei penal 10.d Omissão e Causalidade 10.e Pessoas Jurídicas criminosas 10.f Culpabilidade como ponto de gravidade 11.0

Adendo Teológico

Conclusão Bibliografia

Introdução Batatas. Esta parece uma palavra bastante inadequada para a abertura de um estudo – pretensamente científico – em matéria jurídico penal, correto? Talvez fosse melhor começar por “Estado Democrático de Direito”. É muito mais profundo, muito mais jurídico, muito mais adequado. Não há, contudo, um grande teórico da sociedade o qual alegou que uma crise na produção de batatas motivou uma das maiores revoluções responsáveis – direta e indiretamente – pela construção daquilo que hoje se compreende por Estado Democrático de Direito? Está, pois, justificada a presença da palavra “batatas”. A palavra batatas pode ser uma palavra científica, jurídico-penalmente relevante para a construção de uma análise crítica do conceito de ação tal qual utilizado pela doutrina – como tentamos realizar aqui. A palavra continua, contudo, com ares de inadequada para o assunto. Estranho é que a própria palavra “adequada” teve também de se adequar ao jogo da ciência jurídico-penal. Não há, mesmo, nada de errado em pensar que um crime pode ser socialmente adequado? E esta é, não obstante, uma das maiores construções doutrinárias do século XX: não a adequação social em si, mas a adequação da própria palavra adequado para que a teoria da adequação social se tornasse aceitável, juridicamente relevante, enfim, aplicável e adequada. Talvez seja da natureza linguística do vernáculo afirmar que um crime é algo socialmente inadequado – não por menos é um crime. Mas, após eficientes construções doutrinárias, não mais. Uma ação que tem tudo para entrar nas categorias de um crime pode muito bem ser adequada. Não se trata de pensar em uma mentira sobre o crime ou sobre o conceito de adequação, mas se trata, isso sim, de construir o novo a partir de conceitos já dados, a partir de vocabulários já sedimentados que passam por transformações semânticas radicais. O mesmo ocorreu – e este processo ainda não se encerrou – com o vocábulo ação. De algo que era necessariamente pensado como físico-biológico, oposto à omissão, passamos a teorias mais

sutis, que demandam grande elaboração conceitual e teórica para aliar as noções de finalidade, personalidade, comunicação ou sentido à “ação”. As batalhas acadêmicas travadas na definição do conceito de ação são, precisamente, acadêmicas; mas, nem por isso, deixam de ser reais. O que se retarda – e isso é inegável – é o tempo para que tais formulações influenciem a prática forense, o cotidiano jurídico penal, o tempo até que se torne algo natural afirmar que uma pessoa cometeu uma ação criminosa enquanto que ela não fez nada – mas somente deveria ter feito. Os mistérios que envolvem uma formação conceitual deste tipo pretendem ser abarcados aqui. Não de maneira tradicional, talvez. Exigir que a ação resolva todos os problemas postos pela dogmática pode abrir as portas para que o conceito se esvazie, e corrobore uma lógica de transformação do complexo em óbvio, do funcional em inútil. Pode parecer que a racionalidade conceitual da categoria ação depende – exatamente – da sua capacidade de refletir todas as demais categorias, mas, não podemos esquecer que aquilo que reflete tudo o que se coloca em sua frente pode ser algo tão fútil como um espelho, cuja complexidade própria se resume a uma lâmina refletora. O conceito de ação, para continuar tendo sua independência dentro de uma doutrina garantista e que prime pelo Estado Democrático de Direito, deve sempre ter consciência de sua própria complexidade, para, depois, analisarem-se as demais categorias e até que ponto elas estão relacionadas à ação. Este trabalho propõe, portanto, uma reconceituação de ação. Para que isto se tornasse possível, outras reconceituações foram necessárias. Isso porque a ação não se revela para o jurista como um objeto puro, como um dado solto no ar – tal qual é comum lermos em alguns manuais – mas como um elemento dentro de uma mais complexa teoria da sociedade. Por isso é preciso re-pensar o que significa a ação no contexto de uma possibilidade social, e não somente de uma teoria da sociedade, mas de uma compreensão de o que seja o social, de o que sejam os ramos da cultura social.

A palavra “ramos”, por sua vez, somente pode ser aqui utilizada porque já passou por uma metaforização, por uma atribuição de pertinência duvidável, por uma re-conceituação. Se pensarmos na palavra ramo com sua conotação biológica, afirmar que o Direito é um ramo nos leva à pergunta pelo tronco e pelas raízes, enfim, pela “árvore como um todo”. O que nos permite pensar, porém, que conhecer o ramo nos levará ao conhecimento da “árvore como um todo”? Em que conhecer a ação – seiva? fruto? semente? flor? – nos leva a conhecer a árvore que é a Cultura ? – tida aqui em seu sentido mais banal possível. O que permite olharmos a sociedade e a cultura como seres biológicos? O direito como ramo? Qual é o poder que permite aproximar elementos vistos como concretos, empíricos, científicos a símbolos, a imagens congeladas de um Ovo universal, de uma raposa capaz de falar, de um panteão libertino e briguento que são postas em movimento para que possamos experimentar aquilo que a ciência tradicional, os discursos acadêmicos e o saber formalizado não nos permitem explicar? É o Mito – senhoras e senhores. Nem por isso deixa o Homem de ser uma possível resposta, como nos ensina um conhecido Mito1 . A racionalidade científico-explicativa de ver o delito como ação típica, antijurídica e culpável é transferida para o saber mitológico capaz de mostrar por que a cultura é uma árvore, o mundo, um ovo, os sábios, raposas e os deuses pervertidos, nós mesmos. A Razão muito lutou para se emancipar do Mito, mas talvez tenha encontrado novamente com ele, no seu ponto máximo – no ponto de maior racionalidade, no ponto onde uma categoria (ação) é usada para explicar o que é uma outra (crime). Ainda um esclarecimento é necessário. Ação, ramos, direito, mito, razão, tipicidade e ovo são termos que podem ser aproximados, em pontos de tensão que se diluem em capítulos específicos, porque um dos pressupostos deste trabalho é que a cisão entre o Direito Penal e a Filosofia está a ser posta por aquele que constrói o saber doutrinário ou dogmático e, aqui, a cisão é afastada ao mais 1

No mito de Édipo, a resposta que daria cabo ao enigma apresentado ao personagem pela Esfinge era, justamente “o homem!”. E, então, se matava a Esfinge.

longe possível, a ponto de permitir a maior intertextualidade sem desnaturar a especificidade de cada gênero discursivo. Se, para um jurista, este texto soar demasiado filosófico, e se, para um filósofo, for necessário ler um pouco de doutrina para a compreensão deste mesmo texto, nosso objetivo terá sido alcançado. Enfim, se a filosofia começa com o espanto e o direito está sempre lá onde está a sociedade, tratase de mostrar que a ordem lógica e racional está sempre presente nas aventuras mais desgraçadas ou cômicas dos grandes heróis míticos, e que a recíproca é verdadeira; talvez, porém, ainda falte abrir lugar – nos discursos já estabilizados e aceitos na sociedade – para o anti-heroi. E para as Batatas.

1.0 O Mito 1.a A cultura Um dos brocados latinos a que frequentemente recorrem os juristas é ubi societas, ibi jus2 , ou seja, “onde está a sociedade, ali está o direito”. Apesar de dificilmente contestável, este brocado traz consigo o risco de um preconceito injustificado: o de olhar a sociedade unilateralmente pelo ponto de vista do direito, como se houvesse uma simbiose exclusiva entre direito e sociedade. Por esta razão, o brocado estaria também correto se dissesse que onde está a sociedade, ali está o direito, a política, a arte, a religião entre outros. De modo bastante genérico, costuma-se chamar o direito, a política, a arte, a religião de “fenômenos culturais”. De extrema importância para a Teoria do Direito, a definição de “cultura”, “mundo cultural” ou “fenômeno cultural” é controversa. Para Reale (1998), o Direito é um fenômeno cultural que pertence ao quadro das formulações éticas da sociedade, mas difere de demais tipos de normação pelo seu caráter estatal, regulador e preocupado com o “bem comum” da sociedade 3 . A cultura é geralmente apontada como aquilo que é típico da produção humana em contraste com o natural, aquilo que o homem partilha com os demais animais. Essa divisão entre o “cultural” e o “natural”, entretanto, varia no correr dos séculos de acordo com a visão filosófica que se adote. Para Marx (2007), pensador do século XIX, por exemplo, a realidade da existência é material e histórica4 . O que move a história, para o pensador, é o movimento dialético dos contraditórios que surgem entre as classes econômicas que se opõem (ex.: burguesia/operariado). Para Marx, essa

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Conferir Camargo, Tipo Penal e Linguagem, (1982), p.73: “Desta forma, o fenômeno jurídico surge ligado ao fenômeno social, dando margem à aceitação da veracidade do postulado ubi jus, ibi societas; ubi societas, ibi jus”. 3 Conferir Lições Preliminares de Direito, (1998), p. 39 e ss. 4 Lévinas, (2009), critica implicitamente o posicionamento de Marx ao denunciar que o materialismo busca o “sentido único do ser” (p. 39- 42), enquanto que, para o autor, “não haveria totalidade [mesmo que material] do ser, mas totalidades”, de modo que o que em Marx é mera ideologia, em Lévinas, “as significações culturais, com seu pluralismo, não traem o ser, mas que, com isso, se elevam à medida e à essência do ser, isto é, à sua maneira de ser” (p. 39). Mais sobre ideologia será desenvolvido nos capítulos seguintes.

realidade móvel cria verdadeiros fantasmas para tentar se justificar, para tentar mascarar o jogo dialético de dominação/submissão, tratam-se das “ideologias”. No conceito marxista de ideologia, podemos incluir tanto a produção filosófica predominante, quanto a artística, quanto a política, por exemplo 5 . Assim sendo, para o filósofo, a produção cultural da sociedade difere radicalmente da realidade material existente e geralmente é uma “arma” usada para mascarar as contradições de tal realidade6 . Podemos dizer que há, em Marx, uma cisão radical entre o natural e o ideológico, ou cultural7 . Já para Schopenhauer (2010), pensador que também viveu no século XIX, o mundo é Vontade e essa Vontade se apresenta para o homem em sua forma objetiva, chamada de representação, da onde a conhecida máxima “o mundo é minha representação”. Seguindo a filosofia de Kant e a separação entre fenômeno (Erscheinung) e coisa-em-si (Ding an sich), Schopenhauer diz que tudo o que existe é Vontade, mas essa existência é – assim como para a filosofia hindu – um ser caótico e sem forma, de modo que a Vontade somente ganha forma e uma existência diferenciada com a capacidade humana de representação. Desse modo, uma existência significativa da Vontade depende da capacidade humana de abstração e interpretação e, para Schopenhauer, certas habilidades humanas de representação atingem um grau tão elevado de objetivação da Vontade que voltam a se converter nesta; tal seria o caso da música, a arte mais elevada – na opinião do filósofo.

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Althusser (1980, pp.25-6) faz, contudo, a ressalva: “a superestrutura comporta em si mesma dois „níveis‟ ou „instâncias‟: o jurídico-político (o direito e o Estado) e a ideologia (as diferentes ideologias, religiosas, moral, jurídica, política, etc)” (grifo do autor). Vemos que Althusser preocupa-se com certa aplicabilidade mais imediata do jurídico e do político, atribuindo-lhes uma “instância” especial em sua leitura de Marx, ainda assim, qualifica ambos como “ideologias” no mesmo sentido que a moral e a religião. Não à toa, o Direito é, para Althusser tanto um instrumento do aparelho repressivo do estado (aquilo que a criminologia usualmente chama de “controle social formal”), quanto um Aparelho Ideológico do Estado, como parte da “sociedade civil”, mas que integra o Estado. 6 Isso não se confunde com o conceito de “abstração real”, que fora necessário ao filósofo quando trabalhou, sobretudo, com temas como a economia política e a natureza do capital, para dar um exemplo. Habermas, in Teoria de la Acción Comunicativa (2010), desenvolve aspectos desse conceito marxiano. 7 Lembramos que tal separação mantém-se enquanto mantiver-se a história, no tempo pós -histórico não há por que haver ideologias, de modo que haveria uma “fusão” entre o super e o infraestrutural.

Enxergamos, na filosofia schopenhaueriana, um certo monismo entre o natural (Vontade) e o cultural (representação), já que, como ele mesmo o diz, “representação é Vontade objetivada”8 (SCHOPENHAUER, 2010). A partir desta breve comparação entre as opiniões divergentes de Marx e Schopenhauer, concluímos que a visão do que é o cultural, e, portanto, uma visão última sobre o que é o direito, a política, a arte (...), depende de uma certa “visão de mundo” estritamente relacionada a uma certa “concepção de homem”. Para o materialismo histórico, se a realidade é estritamente infraestrutural (material), somente uma correta análise de tal infraestrutura pode dar gênese a uma normação autônoma dos homens que conduza ao comunismo social. Tal análise iniciou-a Marx com o “socialismo científico”, fazendo a crítica da economia política. Marx “reduziu” todos os problemas culturais a problemas econômicos, fazendo uma certa análise “cientificista” da sociedade9 . Esta fé na cientificidade calculável, no ramo do direito, é próxima ao “positivismo jurídico” que predominou durante o século XX10 (e ainda predomina largamente). Já para Schopenhauer, a vida é sofrimento, a existência é sofrimento, pois nunca alcançamos a verdade das coisas em si, somos servos das nossas próprias representações, que existem em função da Vontade e de seu ciclo cego submetido a um eterno retorno. Este pessimismo metafísico levou a uma explicação da gênese do direito pela compaixão com o sofrimento alheio, uma explicação que estava aliada a uma visão budista/hindu de mundo e de negação da Vontade, da existência. A análise de Schopenhauer ele mesmo chama de “metafísica”, por isso chamamos tal de uma visão “jus-naturalista”, porém que enxerga a justiça a partir dos

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Ressaltamos que este monismo não quer dizer que temos simples acesso à Vontade por qualquer representação, na verdade, é o distanciamento da essência das coisas que origina o pessimismo de Schopenhauer. A “natureza”, a “arte” e a “ética”, não obstante, podem ajudar a chegar às coisas em si através das representações mais puras. 9 “Há, nos ensaios [de Max Horkheimer] da década de 30, a noção, que ressurgiria na década de 70, de que existe „um sofrimento da natureza circundante‟ que afasta Horkheimer da ideia de Marx de um metabolismo entre o homem e a natureza, que nos Manuscritos Econômico-Filosóficos se traduz na „naturalização do homem e no humanismo da natureza‟”, Olegária Matos, in Max Horkheimer, Teoria Crítica I, (2008), p. XXI. 10 Lembramos que o materialismo que bas eia filosoficamente a teoria de Marx não impede que o seu naturalismo torne-se um naturalismo submetido a uma análise cientificista, como um positivismo naturalista (economicista).

homens11 , algo que começou a ser recuperado também no século XX como resposta ao positivismo jurídico.

1.a.1 Entre positivismo e naturalismo A definição de cultura que submeta tudo a uma estrita análise econômica, ou a qualquer outra “seção” exclusiva da cultura, contornada por um caráter de “cientificidade” é a estrutura mesma do positivismo12 . Em contrapartida, uma definição de cultura que submeta as relações humanas e suas produções típicas a, por exemplo, uma teoria da existência que parta de pressupostos filosóficos que, apesar de convincentes, são impossíveis de ser comprovados é típica de uma doutrina naturalista. O reducionismo a estruturas lógicas de uma contrapõe-se à abrangência que a teoria metafísica da outra propõe. Seja para explicar o que é a cultura, ou, mais especificamente, para explicar o que é o direito, ambas se mostraram ineficazes. Apresentando certo contraponto aos polos, podemos citar a teoria de Jürgen Habermas (1997), que será mais explorada adiante. A proposta de Habermas para o Direito é a de uma justificação pelo procedimento a qual assume que é legítimo aquilo que é legal (positivismo), mas que tal tipo de direito somente pode ser considerado justo (válido) se for submetido a um procedimento democrático e que respeite os Direitos Humanos (naturalismo), procedimento este que deve promover a inclusão comunicativa dos membros da sociedade. Esta inclusão comunicativa de que fala Habermas (inclusão no sentido de participação da formação das leis, com um processo de discussão em busca do consenso e onde ganhe o “melhor

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A justiça não é vista como um ente abstrato solto na natureza. Para Schop enhauer existe efetivamente justiça em termos metafísicos, mas ela se origina no homem. 12 Paradoxalmente, note-se, esta fé no alcance do verdade pelo cientifico-positivamente verificável recai, facilmente, em metafísica. Cf. Horkheimer, Materialismo e Metafísica in Teoria Crítica I, (2007).

argumento”) aponta para uma característica específica do cultural que foge do reducionismo positivista e da abrangência naturalista, que é o paradigma da linguagem.

1.a.2 A cultura como linguagem Os fenômenos culturais, tais como os já citados “Política” ou “Religião”, ou ainda, como nos interessa mais, o “Direito”, possuem uma forte característica em comum: a linguagem. Em certa sociedade, lá onde se encontra o direito e todos os demais fenômenos culturais, podemos dizer que, além das fronteiras geográficas que separam esta sociedade das demais, o(s) seu(s) idioma(s) também é (são) fator(es) determinante(s) para a estruturação do mundo cultural específico desta sociedade. Assim, podemos dizer que todos os fenômenos culturais estruturam-se linguisticamente. Esta abordagem não nos faz cair necessariamente em uma visão estruturalista, pois dizer que a linguagem é uma estrutura comum ainda não é delimitar a cultura a uma única estrutura ou delimitar cultura à verdade de um esquema analítico estável, o que seria típico do estruturalismo 13 . Isso acontece porque, se em uma sociedade específica, um único e comum idioma específico é a base sobre a qual se estruturam os fenômenos culturais, essa linguagem tende a uma especificação cada vez maior dentro de cada ramo da cultura. Adotando um ponto de vista luhmanniano, podemos dizer que a linguagem14 do direito tende a diferenciar-se e a especializar-se com as suas próprias categorias e, consequentemente, a distanciarse, por exemplo, das linguagens política, econômica, artística, etc. A abordagem luhmaniana15 , contudo, parece ainda não esgotar os problemas, pois, para Luhmann, os “subsistemas sociais”, ou culturais, têm como unidade processos de “comunicação” vistos de maneira pré-linguística – conforme analisa Habermas (2002) – e, além disso, quando 13

Cf. Lévi-Strauss, Estruturalismo e Crítica, 1968, p.393: “em antropologia, como em linguística, o método estrutural consiste em descobrir formas invariantes no interior de conteúdos diferentes”. 14 “Linguagem do direito” não se refere aqui meramente ao uso de uma língua específica pelo direito, mas aproxima se mais da noção de “sentido” do Direito (Sinn), pois, para Luhmann, a linguagem não é sistêmica – a mesmo nível que a comunicação – e os processos intrassistêmicos são, como explicamos a seguir, comunicacionais, mas prélinguísticos. 15 Esta será aprofundada ao longo do trabalho, cf. capítulos 3 e 9, especialmente.

falamos em cultura, costumamos dizer que aquela específica de um povo, de uma sociedade, inclui além do direito, da religião, a própria língua deste povo. Esta passa a ser analisada como um ramo específico da cultura, a partir do momento em que é vista como um sistema isolado e observada de acordo com suas funções gramaticais, morfológicas, sintática, semânticas, pragmáticas, entre outras16 . Deste modo, podemos dizer que a cultura está estruturada linguisticamente, mas, a partir do momento que a própria linguagem passa a ser vista ela também como um “fenômeno cultural” isolado (Saussure), não podemos mais afirmar que ela é o denominador comum de todos os demais fenômenos culturais e também o de seu próprio, pois a metalinguagem nos levaria a uma regressão ao infinito, não nos possibilitando uma aperfeiçoada definição de cultura 17 .

1.a.3 A cultura a partir do Mito Vimos que a linguagem não é o suficiente para dizer o que é a cultura, pois a própria linguagem é enxergada como um fenômeno cultural. Não obstante, foi a inserção do paradigma comunicativo que nos permitiu fugir dos extremos da análise cientificista-positivista e do ponto de vista metafísico-naturalista. Nossa tese é de que a linguagem possui um papel fundamental na definição do cultural, mas se vista como a sua estrutura18 , não como o ponto comum de todos os fenômenos culturais já que, ela própria, é fenômeno cultural também. Isso no que se refere à linguagem enquanto sistema, enquanto estrutura. A essa visão da linguagem, contrapõe-se a noção de linguagem de Mikail Bakhtin:

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Ressaltamos que esta visão da linguagem é recente, e está relacionada com o nascimento da linguística estruturalista tal como apresentada por Ferdinand de Saussure no início do século XX. A linguística saussuriana permitiu enxergar, pela primeira vez, a linguagem (mantendo uma divisão estrutural entre língua, como sistema abstrato, e fala, como concretização da língua) como objeto de estudo de uma ciência específica. 17 Parece-nos, por exemplo, ser o detalhe que desapercebeu Ernst Cassirer em seu excelente ensaio Linguagem e Mito (1992), em especial, pp. 15-32. 18 No mesmo sentido, Habermas (1997, p.12): “Ora, a crítica da razão é obra dela própria: tal ambiguidade kantiana resulta de uma ideia radicalmente antiplatônica, segundo a qual não existe algo mais elevado ou mais profundo ao qual possamos apelar, uma vez que , ao chegarmos, descobrimos que nossas vida s já estavam estruturadas linguisticamente”. A noção de estrutura aqui, no entanto, não pode mais ser vista como a entendia Saussure, porém como uma rede de gêneros de discursos parcialmente estáveis, como explicado infra.

Na realidade, não há, no sistema de língua abstrata de Bally [seguidor da linguística estruturalista de Saussure], movimento, vida, realização. A vida começa apenas no momento em que uma enunciação encontra outra, isto é, quando começa a interação verbal, mesmo que não seja direta, “de pessoa a pessoa”, mas mediatizada pela literatura. (BAKHTIN, 1995, p.179, grifos nossos).

Vemos que, para Bakhtin, a língua é vista como enunciados, os quais ocorrem concretamente no mundo. A interação pessoa a pessoa faz a vida ser vivida como linguagem (concreta) e possui um medium, o qual é a literatura. A partir deste ponto de vista, podemos dizer que a linguagem é o que existe de comum entre todos os fenômenos culturais, mas se vista como reunião de casos concretos do uso da enunciação, e não como sistema, e se vista como mediatizada pela literatura. A pergunta que vem à mente é: nesta concepção de linguagem, qual literatura é capaz de mediatizar todos os fenômenos culturais? Talvez a resposta não seja única, talvez haja mais de um “gênero” o qual seja capaz de mediatizar as interações “pessoa a pessoa”. Tal será a resposta do próprio Bakhtin, em seus trabalhos de maturidade: A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes, etc. (BAKHTIN, 2003, p.282, itálico do autor, negrito nosso).

Assim, para cada “campo da comunicação discursiva” e “por considerações semântico-objetais” o falante concreto opta por um gênero do discurso para realizar uma comunicação eficaz, socialmente falando. Tal é uma análise do campo da cultura como visto hoje. Se, porém, nos perguntarmos qual a origem de tais gêneros, como um “ancestral comum” dos diferentes gêneros discursivos, para entender uma gênese de tudo aquilo que chamamos, hoje, de cultural, defendemos aqui que encontraremos o “mito”. Mito é uma narrativa que envolve personagens concretos e possui, geralmente, uma temática identificável pela sua comunidade correspondente. O mito, nesse sentido, é uma história que sempre se propõe a-histórica, válida através da história sem se corromper – in illo tempore, como dizia Mircea Eliade. Enxergamos que a origem dos gêneros comuns daquilo que se chama cultura hoje pode estar no mito pela sua importância para a sociedade. Antes de explicar porque seria o mito esta origem, explicamos o que entendemos por mito.

1.b Campbell e a visão do mito Para traçarmos a visão aqui adotada da noção de mito, assumimos o ponto de vista de Joseph Campbell. Chegar à concepção de Campbell (1998a, 1988b) para mito exige duas coisas. A primeira é entender que a função do mito não é “explicar” as coisas do mundo. Tal visão encaixa-se no senso comum para a função dos mitos, os quais teriam a função de explicar o mundo. Nessa concepção de mito, a lenda, por exemplo, de Thor (países nórdicos) ou de Zeus (Grécia

clássica)19 têm a função de explicar a origem do raio, e o mito da Lua e do Sol (na Amazônia brasileira) tem a função de explicar a existência do rio Amazonas20 . Para Campbell, no entanto, a função do mito não é explicar o mundo, mas sim proporcionar para o ouvinte uma chance de experimentar as possibilidades do mundo: “mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana” (CAMPBELL, 1988b, vid. 1\4, 05‟46”). A segunda é que cada mito apresenta-se como único, e seu sentido exclusivo depende das condições geográficas e históricas exclusivas de um povo específico, de uma sociedade única. Nesse sentido, tomemos como exemplo o personagem “Saci Pererê”, do folclore brasileiro. O fato de o Saci ser um menino negro, o fato de usar um gorro vermelho, de fumar um cachimbo, de andar em um pé de vento, são características que somente no Brasil ajudam a formar a noção de um garoto levado, porém alegre e divertido, ora culpado por pequenos furtos, ora louvado por alegrar as festas – esse personagem, tal qual é aqui desenhado não faz o mesmo sentido se for simplesmente deslocado, por exemplo, para o Japão. Entretanto, seguindo a concepção de Campbell, o personagem do Saci Pererê corresponde a um arquétipo de mito que pode ser encontrado nas mais diferentes regiões do planeta, obedecendo a critérios do inconsciente coletivo das sociedades. 21 Esta ideia, que vai contra a concepção comum de mito, Campbell primeiramente a apresentou em sua obra The Hero with a thousand faces. Nessa obra, Campbell defende que as características únicas e singulares que se podem encontrar em um herói em um mito específico e localizado, podem ser abstraídas em arquétipos que correspondem aos heróis de diversos mitos e de diversos lugares diferentes, seriam, na verdade, o mesmo herói, mas com suas mil diferentes faces.

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Tanto Thor como Zeus são deuses , em seus respectivos “habitats”, os quais possuem o poder de lançar raios, o primeiro com seu martelo e o segundo com seu cetro. 20 De acordo com a lenda, o rio Amazonas nasceu das lágrimas da Lua, uma vez que esta foi separada de seu amante, o Sol. 21 Como se pode perceber, Campbell trabalha com conceitos da psicanálise de C. G. Jung. Para o psicólogo “Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos, o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente de arquétipos”, grifos do autor, in Jung, Os Arquétipos e o inconsciente coletivo, (2000), p.53.

Assim sendo, “o que as diferencia [as histórias de heróis] é o grau de ação [física] ou de iluminação [espiritual]” (idem, 11‟23”), de modo que o mito é visto como algo que “trata disso: da transformação da consciência” (CAMPBELL, 1998a, vid. 2/4, 2‟03‟‟). É neste sentido que histórias do Saci Pererê brasileiro poderiam ser aproximadas com histórias dos Onis ou de outros “demônios” japoneses22 , para citar um exemplo. Talvez seja impossível definir mito em uma única frase, mas, seguindo o trabalho de Campbell sabemos que mitos: a) não possuem a função de “explicar” o mundo, mas sim de localizar a pessoa no mundo, oferecendo uma possibilidade de vivenciar uma experiência pela aventura do herói mitológico e b) o mito está sempre localizado histórico e geograficamente (apesar de sua história ser geralmente localizada apenas geograficamente) porém seus personagens e a sua própria história podem corresponder a arquétipos verificáveis no inconsciente coletivo de diferentes sociedades.

1.c Mito como medium cultural Pode-se perguntar qual a relação que possui o mito com as infinitas categorias e subdivisões do direito moderno. A visão moderna e pragmática de Ferraz Junior, por exemplo, parece estar muito separada de qualquer relação com a mitologia. Para o jurista: “[o direito] foi atingindo as formas próximas do que se poderia chamar hoje de saber tecnológico” (FERRAZ JUNIOR, 2007, p. 84, grifo nosso). O fio condutor que aproxima um “saber tecnológico” de um “saber mitológico” é o ponto comum denominado cultural e que não se pode perder. Por mais que a visão moderna de direito enxergue-o como uma práxis a-valorada a priori, esta práxis é, ainda, uma práxis cultural. Defendemos acima que é o mito um possível denominador comum daquilo que chamamos cultural, explicamo-nos.

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Os Onis e demais demônios japoneses não podem ser vistos à luz da concepção ocidental nem médio -oriental de demônio. Os demônios japoneses não são necessariamente maus, aproximam-se mais dos “duendes” travessos das lendas europeias, ou do nosso Saci pererê, como acima defendemos. A relação da cor vermelha do gorro e do calção do Saci e do vermelho onipresente na representação dos demônios é um dos indícios do personagem arquét ipo.

Qual a origem do direito? Se olharmos na cultura grega, um ser mitológico intimamente relacionado com o direito é a deusa Palas Atena 23 . A deusa é vista como um ideal de justiça, mas também de guerra24 . É necessário frisar a diferença entre a deusa Atena e a titã Têmis. Ambas estão relacionadas ao direito, porém Têmis é mais próxima do direito como sua aplicação cotidiana, é vista como a protetora dos acordos e tratados humanos, sendo, portanto, muito invocada nos tribunais, nos fóruns da Grécia arcaica. Na Grécia clássica, não obstante, foi Atena que passou a ser a preferida, visto ser uma aliada da perfeita justiça e de sua efetividade. Atena não era simples guardiã dos acordos e contratos humanos, o seu compromisso maior era com a verdade da justiça. Enxergamos na oposição Têmis/Atena algo próximo da oposição sofistas/socráticos. Adotemos Atena como ponto de partida25 . Suponhamos que havia, em uma polis grega, um conjunto de leis. Paralelamente a este conjunto de leis, havia uma existência de cultos religiosos, ofícios artísticos, apresentações teatrais de dramas, tragédias, comédias, etc. Tanto as leis vigentes, como a ordem do culto, as quais influenciavam as apresentações teatrais, eram também por estas últimas influenciadas. A gênese das leis (assim como dos cultos) estava nas histórias que se contavam acerca dos deuses, semi-deuses, ninfas e humanos – nos teatros. Não defendemos que havia uma “lenda” para cada nova norma que se estabelecia, porém, os princípios gerais que regiam a atuação democrática da polis, a estrutura mesma do corpo legislador e

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Não confundir Palas Atena com Têmis. Têmis era uma Titã grega (anterior aos deuses, na ordem mitológica) da qual se especula uma possível origem mesma de Atena. Há uma outra versão da lenda, mais conhecida, segundo a qual Atena é filha partenogênica de Zeus e já nasceu “armada até os dentes”, oriunda da cabeça do pai. 24 Ferraz Junior, em sua Introdução, faz uma bela perspectiva das diferenças entre a deusa Iustitia dos romanos – que segurava, com as duas mãos, uma balança com fiel bem no meio, e estava de olhos vendados – e a Atena (Diké) dos gregos que portava uma balança na mão direita (sem o fiel no meio) e uma espada na mão esquerda, além disso, ela estava “de olhos bem abertos” (2007, p.32). 25 Escolhemos Atena, pois nos interessamos com o direito grego clássico, que mais influenciou a nossa concepção moderna de direito graças a uma preocupação socrático -platônica com a noção de “justiça”, a realização do direito da Grécia arcaica (relacionada a Têmis) não foi de grande influência para a nossa con cepção de direito (ressalvamos que a imagem de Têmis passou a ser recuperada pelo neoclassicismo como um ideal humanista de justiça).

do próprio corpo de leis, encontram-se nos mitos, em especial, nos mitos que envolvem a deusa Atena26 . Estes mitos, porém, nunca tratam somente de um assunto. A lenda de Prometeu – aventureiro que subiu ao Olimpo e roubou o elemento “fogo” dos deuses e levou-o à humanidade – conta também a origem de Pandora, a qual, em um outro mito, está relacionada à origem de todos os males da humanidade, mito este conhecido mundialmente como a lenda da “caixa de Pandora”. Dessas reflexões concluímos que o Mito é um espaço comum em que a sociedade explora tanto o direito (Atena enquanto ideal de justiça), quanto a religião (Atena enquanto divindade a ser cultuada), a política (Atena como ideal bélico e como patrona da polis), entre outros. Além disso, os mitos de uma mesma comunidade se inter-relacionam, como é o caso de Pandora que é criada por Zeus no mito de Prometeu, mas possui um papel todo especial no mito da “caixa de Pandora” – a qual é aberta por Epimeteu, irmão de Prometeu. Enxergamos, portanto, o mito como um espaço de mediação cultural. Voltando ao exemplo de uma polis fictícia, com suas leis vigentes e sua ordem de culto estabelecida; caso surgisse, nesta polis, o desejo de mudar as leis ou mesmo a ordem do culto, seria necessário recorrer à mitologia. Não havia, como dissemos, um mito novo para cada nova norma, porém, a legitimidade última 27 poderia ser encontrada na relação da presente formulação das leis, ou da nova ordem cultual, com o que ocorre no mito. Fazia-se necessário uma “checagem” em relação ao mito, no sentido de encontrar alguma coerência entre a produção intelectual e o saber mitológico 28 . Assim sendo, a inserção de novos valores, de novas instituições, de novas normas passava por um “filtro mitológico”. Estas criações poderiam, por sua vez, “tornar-se” novos mitos, dependendo de sua importância. 26

Nas histórias homéricas, Atena aparece aconselhando Zeus, mas também ajudando os gregos contra os troianos. Não será possível enxergar nisto uma “legitimação” da noção ateniense de cidadania altamente seletiva e excludente? 27 Esta legitimidade última não é, necessariamente, a legitimidade primeira, presa a um sentido de origem que remete a um passado originário efetivo. O mito, como explicamos abaixo evolui historicamente, muta e muda-se, transforma-se, sendo que a cada vez torna-se uma nova fonte legitimadora, em compasso com o ritmo da sociedade. Legitimidade última no sentido de denominador comum, no sentido de última fon te comum de sentido entre os ramos da cultura, capaz de incluir ou de excluir. 28 O saber mitológico estava, obviamente, relacionado com a permeabilidade religiosa das antigas sociedades, mas não era completamente dependente deste, enfim, não era necessário ser o Oráculo de Delfos para saber que Atena era a deusa da justiça e que Dionísio era o patrono das festas.

Sabemos, hoje, que a imagem que se constrói em torno de uma divindade específica na Grécia clássica pode diferir radicalmente da imagem da mesma divindade em tempos arcaicos. Os mitos mudam e explicam as mudanças de seus próprios enredos. Há, por exemplo, um mito de Ades quando era “bom” – na guerra contra os Titãs –, há um outro que conta a sua destinação ao mundo dos mortos e vários outros que se desenvolvem a partir deste ponto na “cronologia de Ades”, proporcionando diferentes experiências a serem vivenciadas pelos seus “ouvintes”, a partir de um mesmo personagem. Da mesma forma que a história dos personagens evolui, a história da cultura contada mitologicamente também evolui. O que há de comum entre os personagens e as instituições sócioculturais de fato é que, no mito, há uma convergência entre o lado consciente de tais elementos (tanto o herói mitológico quanto a instituição sócio-cultual possuem uma faceta consciente) e o lado inconsciente (da mesma forma, tanto o herói mitológico quanto a instituição social possuem uma faceta que reside no inconsciente [coletivo] sob a forma de arquétipos). É por esta razão que se podem achar, em uma comunidade específica, mitos que contam a origem de diversos ramos culturais. Há mitos que contam a história das primeiras leis, do primeiro sacrifício, entre outros. Indo mais além, é comum encontrar mitos que narram a origem de pontos específicos de ramos do saber cultural, como, por exemplo, a origem de uma palavra específica, no ramo da linguagem; a origem de uma norma específica, no ramo do direito; a origem de um ritual específico, no ramo religioso. É assim que enxergamos o mito como um denominador comum da cultura, pois quase todos os elementos do que entendemos por cultura adentram a mesma por meio de uma origem mitológica. Também é por meio de mitos que a cultura evolui, sendo que as histórias também evoluem. O mito é ponto de encontro entre o consciente e o inconsciente da sociedade que equaciona as questões sociais explícitas e ocultas por meio de arquétipos.

1.d Mito, símbolo e cultura

Ricoeur (1978) vê uma relação íntima entre símbolo e mito, e submete este àquele. Concordamos que símbolo e mito tenham uma interdependência intrínseca, a qual, na verdade, reflete uma relação dialética, porém não cremos que haja uma relação hierárquica entre eles. Os próprios diferenciais levantados por Ricoeur (1978, p. 28) parecem apontar um possível relacionamento dialético, os quais nos levam a crer que, se o mito é um denominador comum da cultura, o símbolo também o é, como seu par distinto, porém inseparável. As diferenças apontadas são quanto a: - historicidade: se, por um lado, o mito é a-histórico e a mudança histórica da sociedade exige a mudança mesma do mito, o símbolo é histórico e pode muito bem permanecer o mesmo ao passar do tempo, sendo que em cada época é sua interpretação que varia; - o mito ter um papel determinado, enquanto o símbolo ser mais maleável (discordamos em parte, pois esta afirmação parece remeter à visão do mito como “explicação”); - o símbolo parecer ocultar um tempo específico da sociedade, enquanto o mito se encontrar em um tempo esgotado. Nos dizeres de Ricoeur: “uma tradição não se esgota ao mitologizar o símbolo, ela se renova através da interpretação, que sobe à vertente do tempo esgotado ao tempo oculto, vale dizer, fazendo apelo da mitologia ao símbolo e à sua [do símbolo] reserva de sentido” (1978, p. 29). Em suma, na leitura de Ricoeur, o mito é a-histórico e fixo (semanticamente falando) e o símbolo é histórico e possui uma reserva de sentido. Como se pode supor, a nossa visão de mito nos leva a discordar que o mito se refira a um tempo esgotado, pois isso levaria à pressuposição de um sentido único e exclusivo do mito, um sentido verdadeiro, como se o mito não pudesse ele também ser interpretado de formas diversas. É, justamente, nessas possibilidades de interpretação, no entanto, que a própria relação entre mito e símbolo se mostra evidente: ocorre, no desenvolvimento histórico da sociedade, a mitologização de símbolos, mas, ocorre também, paralelamente, uma formação de novos símbolos a partir de mitos conhecidos.

Podemos dizer que há uma tensão entre mito e símbolo e que o conteúdo mesmo desta tensão é a “metáfora”, a qual é comum ao mito (sobretudo em análises alegóricas ou psicanalíticas) e ao símbolo. É a partir da metáfora, por exemplo, que Cassirer (1992) enxerga uma origem comum entre o mito e a linguagem (sem reduzir um ao outro), visto que toda linguagem é simbólica (apesar de nem todo símbolo ser linguístico em sentido estrito). Deste modo, concluímos que: - mitos são a-históricos. Prova disso é que o desenvolvimento da sociedade exige o desenvolvimento dos “enredos” dos mitos, fazendo com que os antigos mitos sejam abandonados junto com o passado da sociedade, ou então, totalmente modificados para se “adaptar” aos tempos modernos. - símbolos são históricos. É o que acontece, por exemplo com a “suástica”, a qual permanece imageticamente a mesma, mas tem seu significado metafórico-alusivo transmutado a través da história (símbolo de paz e de prosperidade no Oriente antigo, e trazido para a Europa no século XVIII ⁄ XIX, transformou-se em símbolo do Nazismo durante o século XX). - mitos e símbolos compartilham uma zona de tensão que faz com que entrem em relação dialética. Esta tensão se baseia em sua capacidade de alusão e de criação de metáforas e está relacionada, por um lado, com a tradição fixa e por outro, com a interpretação presente (RICOEUR, 1978). Se, entretanto, os mitos estão estruturados em cima de arquétipos os quais se encontram no inconsciente coletivo da sociedade, dizer que os símbolos co-existem em relação dialética com aqueles não implica localizá- los também no inconsciente coletivo? Sim. É necessário frisar, no entanto, que, assim como os mitos, os símbolos possuem uma significação consciente, a qual é interdependente em relação à significação inconsciente. Esta parece ser a conclusão a que chega Castoriadis (1982) acerca da função do simbólico na sociedade. Para Castoriadis, o simbólico é em parte formado pelo homem, de modo racional e histórico (1982, p.152), mas o filósofo frisa que também “existe uma utilização imediata do simbólico, onde o

sujeito pode se deixar dominar por este” (1982, p.153), por causa da existência dos símbolos no “imaginário social” – termo que se aproxima muito do “inconsciente coletivo” de Jung29 . Assim, portanto, nossa tese de que o denominador comum de, praticamente, grande parte daquilo que se denomina cultural é o mito nos leva a dizer que a cultura é, também, determinada pelo simbólico30 .

1.e Mito e transcendência Uma questão se mostra importante quando colocamos mito e símbolo como os denominadores comuns da cultura humana. Nossa tese é que todos os demais campos da cultura podem neles se encontrar e serem representados sem descaracterizarem-se e sem descaracterizarem o próprio mito ou símbolo. Deslocamos esse papel que provavelmente se atribuiria à linguagem, pois, uma vez isolada como um sistema à parte, a linguagem passa a ser analisada linguisticamente 31 e isso nos leva à metalinguagem. Entendemos que qualquer análise do campo da linguística, da teoria do discurso, da literatura é, neste sentido, uma metalinguagem. Se dissermos que a linguagem é denominador comum da cultura fundamos a cultura em um círculo oco, e colocamos a linguagem a fundamentar-se na metalinguagem, a qual, por sua vez, encontra fundamento em argumentos meta-metalinguísticos, e assim progrediríamos ad infinito. A pergunta que se pode fazer é: não poderíamos fazer a mesma análise cética – feita com a linguagem – com a categoria mito ou símbolo? Não haveria, então, um sistema isolados de símbolos e mitos, os quais gerariam uma aporia que também exigiria um regresso ao infinito, de modo que fundamentar a existência da cultura nos mitos e símbolos fosse tautológico? A resposta a esta pergunta é não, e os motivos são dois. 29

Castoriadis chega ao “imaginário coletivo” a partir da psicanálise estruturalista de Lacan, sem deixar de retornar a Freud e, até mesmo, a Kant, no sentido de um “imaginário categórico”. 30 É importante lembrar que o simbólico não se reduz ao linguístico, e, portanto, se a língua não pode ser “denominador comum” da cultura, por outro lado, o simbólico (incluindo, aqui, elementos não lingüísticos) n ão pode ser a estrutura da cultura. 31 Ver nota 8, supra. A crítica da linguagem por meios que se utilizam dela própria é uma conseqüência da radical crítica da razão de Kant, a qual se origina da própria Razão.

Primeiramente, olhando de um ponto de vista histórico, temos que mito e símbolo estão relacionados dialeticamente, de modo que ambos se fundamentam reciprocamente, um dando suporte ao outro. O regresso deste relacionamento dialético nos levaria à origem mesma da produção cultural pela sociedade: antes da cultura, encontraríamos, portanto, mito e símbolo, se relacionando e se desenvolvendo, para que então direito, arte, política viessem a, paulatinamente, deste relacionamento, surgir. A-historicamente falando, no entanto, não podemos nos esquecer que uma das principais características do mito e do símbolo é que “mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana” (CAMPBELL, 1988b, vid. 1\4, 05‟46”). “Espirituais”, aqui, não é, de maneira absoluta, uma mera alusão à capacidade simbólica do ser humano ou ao espírito hegeliano, é, antes, uma referência ao transcendente. Ricoeur (1996) analisa a obra Le Théatre et l’Existence (1952) de Henri Gouhier e cita uma passagem onde o autor define o trágico da seguinte maneira: “Há tragédia pela presença de uma transcendência, qualquer que ela seja.” (RICOEUR, 1996, p.123, grifo nosso). Lembramos que o trágico, aqui analisado por Gouhier, mas também por Ricoeur (o qual faz releituras das análises de Jaspers, Nebel, Scheler, Nietzsche entre outros), pode muito bem ser encaixado dentro dos mitos, como uma “categoria” (RICOEUR, 1996). Assim, se separarmos os mitos da uma sociedade específica e encaixarmo-los em um ramo específico, poderíamos colocá-los, eles também, como um fenômeno cultural específico, tal qual fizemos com a linguagem. O que impede, não obstante, que os mitos fechem-se em um ciclo metamítico ad infinito é o caráter de transcendência sempre presente no mito (e no símbolo). Este caráter de transcendência em si não é metafísica, apesar de ser provável que toda a metafísica, como uma produção cultural, tenha também suas origens culturais nos mitos. No mito, a transcendência é intrínseca, na filosofia, a metafísica é um limite, uma fronteira (Kant). Lembramos que este caráter transcendente do mito é lembrado por Campbell quando este fala das “potencialidades espirituais” da vida humana e vai ao encontro da Psicologia Analítica de Jung, para quem a origem dos mitos, dos sonhos, dos símbolos e das ações do inconsciente não estavam, como

em Freud, em parte limitadas a questões sexuais, mas poderiam também assumir esse caráter de espiritualidade (JUNG, 2000).

1.f Conclusão A análise do Direito, enquanto um ramo da cultura, pode ser feita a partir de dois pontos de vista, latu sensu. O primeiro é o ponto de vista positivista para o qual demos como exemplo a análise economicista de Marx, que reduzia todos os problemas culturais a um filtro comum e positivo: a análise econômica32 . O segundo é a análise que se pode fazer a partir de um naturalismo fundamentado em uma teoria metafísica da existência e que reduza os problemas culturais a suas categorias onipresentes, para o qual demos o exemplo de Schopenhauer e seu pessimismo metafísico. A inserção, contudo, do paradigma da linguagem, permitiu a Habermas uma análise que não ficasse entre os extremos do positivismo e do naturalismo. Sua análise nos leva a entender que a cultura está estruturada linguisticamente e que as ações sociais dependem de um suporte comunicativo. A noção de linguagem como estrutura da cultura não nos leva a adotar o ponto de vista estruturalista, pois não pretendemos reduzir a análise jurídica ao método saussuriano de estudo da estrutura; nos leva, tal noção, ao ponto de vista de Bakhtin, para quem a linguagem não existe em uma estrutura suprassocial que se desenvolve anacrônica e sincronicamente. Para Bakhtin, a linguagem existe, porém, em “enunciados concretos” na vida real, os quais tomam lugar no “diálogo”33 e alternam sua existência com a alternância dos falantes concretos.

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Lembramos que não é correto dizer que todo marxismo é economicista, pois nos referimos principalmente ao próprio Karl Marx e, diga-se, ao “velho Marx”, como pensam Luckács e Arendt. O próprio marxismo após Luckács é conhecido por sua (re)hegelianização, ou seja, pela re-inserção de um aspecto plutôt filosófico que econômico (e, na sua esteira, poderíamos colocar tanto as vertentes existencialistas marxistas [Sartre] como as vertentes críticas [Escola de Frankfurt]). 33 Ressaltamos que “diálogo” para Bakhtin é um termo que se aproxima muito da noção de comunicação, e não fica restrito ao diálogo falado, nem mesmo ao diálogo entre duas ou mais pessoas. Para Bakhtin toda expressão comunicativa está inserida em um contexto maior, o qual é dialógico, pois sempre existe enquanto “réplica” a algo que já foi dito ou, pelo menos, baseia-se em um gênero do discurso comum a todos. Não existe, para Bakhtin, fala Adâmica.

Tais enunciados concretos são mediatizados pela literatura. Esta afirmação levou Bakhtin a formular a teoria dos “gêneros do discurso”, que são a forma estrutural e supra-pessoal parcialmente estável que guiam o falante concreto na formulação de seu enunciado. Assim que o enunciado concreto passa a existir, contudo, a capacidade expressiva do falante é capaz de modificar o(s) gênero(s) utilizado(s) e ainda assim manter eficiente a sua capacidade comunicativa. Esta questão nos levou à pergunta de qual gênero capaz de ser, por sua vez, o mediatizador dos próprios gêneros, ou, por assim dizer, o seu “ancestral comum”, de forma a ser o “denominador comum” da cultura enquanto tal e, portanto, fonte de análise também do Direito, em especial, do Direito Penal. Apresentamos, aqui, como resposta, o “mito” como denominador comum da cultura. O mito é uma narrativa que, conforme Campbell, não tem a função de explicar o mundo, mas oferecer ao seu ouvinte a experiência do mundo, apontando as “potencialidades espirituais da vida humana”. Para sustentar sua análise, Campbell faz uso da Psicologia Analítica de Jung e de termos como arquétipo e inconsciente coletivo, por exemplo. Para Campbell, portanto, os mitos contam histórias de heróis que seriam estruturados em arquétipos no inconsciente coletivo de diversas sociedades, o que nos permite aproximar o Saci Pererê brasileiro com algum Oni japonês, pensando-o como um “herói de mil faces”. A história do mito, a sua narrativa, é consciente e se apresenta de maneira a-histórica para seus ouvintes (ela independe da época em que é [re]contada). Tanto a parte consciente como a inconsciente (estruturada em arquétipos) do mito nos levam a crer que, no mito, se encontra a “nascente da cultura”, o filtro de todos os ramos da cultura (direito, religião, política, arte, entre outros), não necessária e exclusivamente como uma origem isolada em um passado distante, mas como uma origem dinâmica e mutável através dos séculos graças à necessidade de mudança dos próprios mitos das sociedades. Elevar o mito a tal patamar nos levou a fazer o mesmo com o “símbolo”, o qual, seguindo as intuições de Ricoeur e Castoriadis, possui uma relação íntima com o mito, a qual, conforme aqui afirmamos, constitui relação dialética (que envolve a criação de símbolos a partir de mitos e a

criação de mitos a partir de símbolos34 ). Mito e símbolo possuem, ambos, uma face consciente e uma inconsciente e sua principal diferença se encontra no caráter histórico do símbolo (o qual lhe proporciona uma “reserva de sentido”, uma abertura para um “tempo oculto”, nos dizeres de Ricoeur) e no caráter a-histórico do mito. Por fim, mito e símbolo podem ser tratados como denominadores comuns da cultura por, além de sua íntima dialética interna que nos obrigaria a chegar às origens das primeiras criações culturais, seu caráter de transcendência, sem que se trate propriamente metafísica, já que a transcendência é intrínseca ao mito como sua constituinte, e não como produto – o qual é o caso da metafísica enquanto produto da filosofia que, por sua vez, é um saber cultural.

2.0 A Razão [...]

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Retornando ao exemplo da suástica, assim que este símbolo, n o pós-guerra, passou a ser imediatamente associado não somente ao Nazismo, mas às próprias ações nazistas (genocídio, juventude hitlerista, invasão de Paris, etc), de um modo bastante geral; assim que passou a ser o próprio símbolo da Segunda Guerra Mundia l, a suástica passou também a ser um próprio referente das diversas histórias que ocorreram na Guerra, e nas quais ela é também um “personagem”. Ao se ver a suástica, lembra-se de histórias nas quais ela é apenas uma parte, e não mais o todo simbólico. Neste ponto quase antinômico fica clara a dialética símbolo-mito, pois na “reserva de sentido” da suástica, no seio da sua representação, começam a aparecer os traços de narratividade típicos do mito e não do símbolo. Por outro lado, a participação constante da suástica em histórias da S.G.M. foi o ponto de partida essencial para que esta se tornasse o símbolo destas histórias.

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