Moda é patrimônio

July 25, 2017 | Autor: Michelle Kauffmann | Categoria: Material Culture Studies, Memory Studies, Fashion
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VIII Colóquio de Moda – 5º Congresso Internacional

MODA É PATRIMÔNIO FASHION IS HERITAGE Benarush, Michelle Kauffmann; MA (Casa da Marquesa de Santos / Projeto Museu da Moda; Secretaria de Estado de Cultura – RJ) [email protected] Resumo Este artigo pretende investigar a importância da moda como patrimônio cultural. Como objeto de design, a moda é desenvolvida para ser um produto, entretanto, é também um registro histórico da sociedade que a criou. O movimento de transfiguração de um objeto corriqueiro como a roupa em um documento a partir do qual é possível gerar conhecimento será abordado. PALAVRAS CHAVE: Cultura material, Moda, Memória. This article aims to investigate the importance of fashion as cultural heritage. Like any designed objects, fashion is created to be a product, however, it is also a historic record of the society that created. The ways in which a utilitarian and trivial object such as clothing becomes a legitimate document from which it is possible to produce knowledge will be tackled. KEYWORDS: Material Culture, Fashion, Memory.

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“O que a memória ama fica eterno”. Adélia Prado

“Tout objet historique est fétiche”. Maurice Merleau-Ponty

No último século, o estudo da moda como um campo do saber produziu clássicos

escritos

por

historiadores1,

sociólogos2,

psicólogos3,

filósofos4

e

economistas5, que se basearam primordialmente nas representações imagéticas e textuais do vestuário. Essas linhas de pesquisa entendem a moda como fenômeno sociocultural, que sem dúvida ela é. Entretanto, a roupa, como qualquer objeto de design, materializa um tempo passado, nos fornece uma noção ideológica e cultural da sociedade que a criou e consumiu.

“A coisa projetada reflete a visão de mundo, a consciência do projetista e, portanto, da sociedade e da cultura às quais o projetista pertence. Toda sociedade projeta (investe) na sua cultura material os seus anseios ideológicos e/ou espirituais e se aceitamos esta premissa, logo é possível conhecer uma cultura – pelo menos em parte – através do legado de objetos e artefatos que ela produz ou produziu” (Denis, 1998, p. 37).

O objeto, diferente de sua imagem, é usado como ponto de partida para reflexão de maneira ativa. A roupa demanda uma interação física, ao passo que uma ilustração oferece somente uma contemplação passiva. A roupa é pessoal, pois toca o corpo nu, e, ao mesmo tempo, é extremamente pública, pois comunica ao mundo os valores de quem a usa. No livro O casaco de Marx, Peter Stallybrass torna claro o “significado simbólico da roupa ... e sua capacidade para ser permeada” (Stallybrass, 2008, p. 14-15).

“A mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma” (Stallybrass, 2008, p. 10). 1

Hollander, 1978; Müller, 2000; Steele, 1998; Roche, 1989. Barthes, Bourdieu, 1984; Godart, 2010; Lipovetsky 1989. 3 Flügel, 1930. 4 Simmel, 1905; Svendsen 2006. 5 Velben, 1899. 2

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Para pensar a roupa como patrimônio, é necessário vê-la à luz da cultura material, que é o “estudo, por meio de artefatos, das crenças—valores, idéias,

atitudes e convicções—de uma comunidade ou sociedade particular, em um dado momento” (Prown, 1982, p. 1, tradução nossa). O objeto que resiste ao seu próprio tempo oferece uma “matriz intelectual” de sua época (Prown, 1982, p. 12, tradução nossa), ou seja, cada objeto carrega em si não só a capacidade criativa de seu criador, mas, sobretudo, as idéias e os valores de quem o comissionou, adquiriu e usou, e por extensão, da sociedade da qual faz parte (Prown, 1982, p. 1, tradução nossa). As roupas revelam, além de preferências estéticas, detalhes técnicos e tecnológicos envolvidos na sua fabricação. Possuem, portanto, uma identidade cultural e social.

“É possível pensar a vida através do vestir, das preferências pelos materiais, da articulação que se fez deles, do tempo empregado no fazer, pensar, refazer e repensar a roupa” (Andrade, 2008, p. 20).

O antropólogo e material culturalist, Daniel Miller, aponta para a importância do estudo transdisciplinar do vestuário:

“...o estudo do vestuário tem sido tradicionalmente obcecado com o estudo de designers, especialmente designers de alta-costura, negligenciando quase que completamente os efeitos do vestuário sobre os usuários” (Miller, 2007, p. 49, tradução nossa).

Na introdução do livro Clothing as material culture, Miller argumenta que o estudo contemporâneo do vestuário deve ser baseado na junção de duas linhas de pesquisa: a que foca na modelagem, nos tecidos e na produção, com o estudo dos seus aspectos “humanos e cosmológicos”, ou seja, deve unir o “material e o social” (Miller, 2005, p. 1, tradução nossa).

“A base da reivindicação é que tal transcendência representa uma certa maturidade de perspectiva, uma que reconhece as virtudes de

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várias disciplinas e expertises, e busca juntá-los em vista de um projeto maior de entendimento acadêmico” (Miller, 2005, p. 2, tradução nossa).

Um artefato só vira documento da cultura material quando é guardado, colecionado ou mantido por alguém que investe nele sentimento. São muitos os motivos para se colecionar um objeto velho e usado: autenticidade, raridade, ou inimitabilidade; por serem relíquias herdadas, ou até por fetiche6. Tende-se a guardar o valioso e o belo e descartar o feio e o comum. Baudrillard aponta para a importância simbólica das antiguidades:

“O objeto antigo, este, é puramente mitológico na sua referência ao passado. Não tem mais resultado prático, acha-se presente unicamente para significar. É inestrutral, nega a estrutura, é o ponto-limite de negação das funções primárias. Todavia não é nem afuncional nem simplesmente “decorativo”, tem uma função bem específica dentro do quadro do sistema: significa o tempo” (Baudrillard, 2008, p. 82).

Todo objeto pertencente a uma coleção, seja ela privada ou pública, lá está por decisão de alguém. É necessário um “processo de deslocamento dos objetos

materiais do cotidiano em ícones legitimadores de idéias, valores e identidades” das sociedades (Gonçalves, 2007, p. 24). É, portanto, um processo consciente do colecionador ou curador apontar em determinada peça a capacidade se tornar um significador, um documento simbólico de um determinado período. Ainda, segundo Baudrillard, “colecionamos sempre a nós mesmos” (Baudrillard, 2008, p. 99). Coleciona-se por diversos motivos, porém, só se coleciona o que sobrevive. As roupas são frágeis por natureza e sua vida lhes impõe uso, lavagem, remendos e descarte. Suas características físicas, combinadas com maneira que interagem com seus usuários e o mundo, fazem com que poucos exemplos sobrevivam à força do tempo. Não é exagero dizer que a grande maioria dos têxteis encontrados em coleções particulares e museológicas pertenceu à elite ou à aristocracia. Estudar roupas e têxteis “necessariamente, significa estudar o excepcional e o especial, já 6

No capítulo intitulado “O fetichismo da mercadoria: seu segredo”, Marx, em seu livro clássico, O Capital, descreve uma “relação entre coisas” e o “caráter místico” dos objetos. “O fetichismo é o ato de investir os objetos de significados que não lhes são inerentes” (Denis, 1998, p. 28).

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que o comum, de uso cotidiano, raramente sobreviveu a seu usuário” (Paula, 2006, p. 254). Afinal, colecionar objetos é um hobby dos eruditos, que vêem valor no acúmulo do conhecimento. O homem comum usa, empresta, doa e descarta suas roupas. Ao contrário dos eruditos, que guardam roupas antigas não por serem apegados ao valor intrínseco, mas sim ao seu valor simbólico. O apego não é ao material do qual um vestido é feito, é na habilidade e na inovação estética do costureiro ou até mesmo pela memória que aquela roupa lhe trás.

“Ser culto ... consiste em saber distinguir entre o que se compra para usar, o que se rememora e o que se goza simbolicamente” (Canclini, 1997, p. 300301).

Ter consciência dessas distorções é imprescindível para o estudo da moda como patrimônio cultural.

A Memória das Roupas A interpretação das roupas é um trabalho analítico que envolve uma descrição minuciosa das formas, estilos, qualidade, materiais, usuários, e prováveis ocasiões nas quais foi usada. Não é um fim em si mesmo; ao contrário, a interpretação deve despertar interrogações, pois é somente pela pesquisa que um objeto utilitário e corriqueiro como a roupa torna-se um documento a partir do qual é possível construir conhecimento (Julião, 2006, p. 97). Para uma interpretação bem sucedida, faz-se necessária uma descrição do artefato: trata-se de uma saia, um vestido, ou parte de um conjunto? É feito em algodão, poliéster, ou seda? É de cetim, renda ou brocado? É estampado? Quanto mais detalhes, mais profunda a análise: a bainha foi desfeita? Tem forro? O acabamento foi feito à mão? Existem estruturas internas, anágua, espartilho? A condição do objeto também importa: possui manchas, está puído, foi remendado? Vê-se que a leitura do objeto dá-se em diversos níveis, do abstrato ao material.

“Os puídos nos cotovelos de uma jaqueta ou numa manga eram

chamados de “memórias”. Esses puídos lembravam o corpo que tinha

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habitado a vestimenta. Eles memorizavam a interação, a constituição mútua entre pessoa e coisa” (Stallybrass 2008, p.65-66).

Essa avaliação inicial oferece indícios cruciais para a interpretação e análise, que têm como objetivo principal desvendar o significado do artefato “enquanto

produto, expressão e vetor de relações sociais, em determinado contexto histórico” (Julião, 2006, p. 96). A partir da leitura das características materiais é possível inferir “dados essenciais sobre a organização econômica, social e simbólica da existência

social e histórica do objeto” (Meneses, 1998, p. 91). A interpretação, associada a uma pesquisa historiográfica valida o artefato culturalmente, dando-lhe autenticidade e, salvo do esquecimento, o artefato torna-se memória. De acordo com a filósofa Marilena Chauí: “A memória é uma evocação do passado. É a capacidade humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva aquilo que se foi e não retornará jamais” (Chauí, 2000, p.158).

A roupa, quando vira memória, evidencia trajetórias cotidianas e propõe reflexões que devem ser comparadas às suas representações textuais e imagéticas. Nos periódicos, em artigos, fotos, ilustrações e pinturas de época, é possível comprovar se as roupas que sobrevivem estão de acordo com o ideal estético proposto; se condizem com a voga ou se fazem parte de uma subcultura, de uma antimoda. Quando a bainha de uma é roupa é alterada ou uma manga cortada, é possível inferir um desejo do usuário de atualizar a silhueta da roupa. Mesmo a mais simples modificação sinaliza um desejo de reaproveitamento, resultando em um prolongamento da vida do artefato. Até mesmo uma roupa que – por não servir mais, ou por não mais agradar esteticamente – é desfeita completamente cedendo sua matéria para uma outra peça, por exemplo, uma almofada, mostra um “reuso

pragmático da vestimenta” (Cumming, 2004, p. 130, tradução nossa). As roupas, como aponta Andrade, são capazes de escapar do “poder hegemônico” dos sistemas da moda: As propriedades dos tecidos – flexibilidade, aderência, resiliência, longevidade, dentre outras – possibilita seu reuso, isto é, permite que sejam

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desmembrados de sua articulação original e reutilizados em outra articulação infinitas vezes enquanto sua fisicalidade permitir (Andrade, 2008, p. 20).

A seguir, será apresentado um exemplo de uma análise e interpretação de um vestido utilizando técnicas da cultura material. O vestido estudado é parte de uma coleção de roupas e acessórios doados por Aimée de Heeren7 (1903-2006) ao Museu do Fashion Institute of Technology (MFIT), recentemente pesquisada por mim.8 O primeiro passo foi uma leitura geral do artefato, que resultou na seguinte descrição (foto 1): Vestido para o dia feito em linho na cor cru, com mangas curtas e comprimento na altura dos joelhos. Detalhe em viés preto colocado no torso, formando desenhos gráficos e na saia, formando linhas verticais. Viés vermelho aplicado sobre o preto na altura da cintura produzindo um efeito de cinto, com amarrações na frente. Gola esporte, deitada. Botões redondos de plástico, na cor cru com bordas vermelhas, casa de botão inglesa feita à mão. Saia ligeiramente evasê com comprimento de 72cm. A bainha foi descida 5cm do comprimento original, sendo agora uma bainha postiça acabada em viés, feita à mão, com ponto invisível. Há sobras de tecido (2cm) por dentro das costuras internas.

O vestido possui uma etiqueta de identificação do museu que contém os seguintes dados: “70.57.21 / France / 1937-38 / Gift of Mr. Rodman A Heeren /

MFIT”. O acabamento feito à mão e os detalhes finos, como por exemplo, as sobras de tecido por dentro das costuras e a casa de botão estilo inglesa feita à mão, dão sinais de que o vestido seja alta-costura, e talvez por isso, a atribuição do museu à procedência francesa. O objeto tem sinais de uso apesar de estar em ótima condição, e a bainha desfeita mostra um desejo da proprietária de atualizar a silhueta do vestido. A partir dessa análise inicial, faz-se necessária uma pesquisa historiográfica que deverá, na melhor das hipóteses, preencher lacunas. Nesse caso, as principais questões em aberto são a autoria do vestido, assim como o ano/estação em que foi 7

Socialite e ícone da moda internacional nascida em Castro, PR. Casa-se com Luis Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas e fundador da Fundação Getúlio Vargas no início da década de 1930. Seu casamento é desfeito em 1938 e Aimée muda-se para Paris. Casa-se novamente em 1941 com o americano Rodman de Heeren, herdeiro das lojas de departamento Wanamaker. Morre em Paris, em 2006 aos 103 anos. 8 A pesquisa das roupas e acessórios doados por Aimée de Heeren ao Museu foi tema da minha dissertação de mestrado em História da Moda e Museologia na mesma instituição.

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lançado. Como já havia uma data estimada pelo museu, a pesquisa em periódicos de moda se iniciou a partir de 1935. Entretanto, somente na edição de julho/agosto de 1946 da revista francesa Femina, uma variação do vestido assinado pelo renomado estilista Francês, Marcel Rochas (1902-1955), (foto 2) foi encontrada.9 O vestido de Aimée era, portanto, da coleção de verão de 1946, que promovia saias na altura, ou ligeiramente abaixo dos joelhos. Apenas alguns meses depois, em fevereiro de 1947, Christian Dior (1905-1957) revolucionaria a moda, criando o New

Look, que aumentava substancialmente o comprimento e os volumes das saias. O visual proposto por Dior era uma ruptura clara à silhueta quadrada e à economia de tecidos que deu o tom da moda dos anos 1940. Dior proporcionou novamente às mulheres o luxo, a ostentação e silhuetas volumosas, que viria a se tornar o símbolo da moda da década seguinte. Aimée, assim como muitas outras mulheres, desfez a bainha de seu vestido recém-comprado na tentativa de adequá-lo à nova moda. Ela sabia que para atualizar seu vestido antiquado bastava aumentar o comprimento da saia e recheá-la com anáguas. O relacionamento de Aimée com sua roupa é representativo de diversos valores culturais e econômicos de sua época. Primeiro, o valor ao material têxtil, em especial à roupa, que tem um alto valor monetário e simbólico. Afinal, um vestido de alta-costura é como um objeto de arte: é feito sob medida para uma compradora que lhe dedica horas em provas, e cujo poder aquisitivo e senso estético se distinguem. Outro princípio importante, que talvez se origine do primeiro diz respeito à consciência do não descarte, do desejo de zelar por um bem. Vale lembrar também que nessa época as mulheres não contavam com ajuda profissional para se vestir, não havia personal stylist. As mulheres eram responsáveis pelo próprio visual, e as mais bem-vestidas entendiam não só a teatralidade das roupas, mas consideravamnas indispensáveis para a construção de suas identidades.

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Apesar de ter aberto seu ateliê em meados da década de 1920, é a partir da Segunda Guerra que Rochas torna-se um dos mais cobiçados costureiros de Paris.

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Figura 1

Figura 2

The Museum at FIT, 70.57.21

Vestido Marcel Rochas

Doado por Sr. Rodman A. Heeren

Femina

Foto: Michelle Kauffmann Benarush

Julho/agosto, 1946, p. 49

A proposta do estudo das roupas como cultura material assemelha-se ao estudo arqueológico, onde se busca entender o costume e a cultura de determinados povos a partir dos artefatos criados e consumidos por eles. As roupas mostram muito mais do que formas, volumes, cores e texturas; nas roupas é possível ver também o envolvimento emocional, corporal e sensorial das pessoas que as usaram. A interpretação (ou leitura) das roupas oferece oportunidades de se estabelecer novos e ousados conceitos relativos à sua cultura e história.

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Os Museus e a Identidade A trajetória e a importância do colecionismo de moda no Brasil é tema pouco abordado, apesar de existirem no país acervos importantes como o do Centro de Referência Têxtil/Vestuário da EBA/UFRJ, do Instituto Feminino, do Museu Carmen Miranda, do Museu Casa da Hera e do Museu Histórico Nacional, para citar alguns. Teresa Cristina Toledo de Paula, conservadora-doutora em têxteis do Museu Paulista argumenta para uma falta de identidade nacional nos acervos:

“Bem distantes das chitas floridas e dos tecidos vermelhos, tintos com paubrasil, as coleções museológicas brasileiras com tecidos formaram-se seguindo os receituários internacionais vigentes para museus a partir de meados do século XIX e, portanto, alheias a questões de caráter e interesse locais (e talvez atuais)” (Paula, 2006, p. 253).

Os museus são, por natureza, instituições que transformam objetos em bens culturais. São regidos por missões que inspiram diretrizes de gestão do acervo. A maioria dos museus deseja preservar, pesquisar, e expor seus objetos de maneira relevante. Quando entram no museu, as roupas mudam de caráter, deixam de ser objetos utilitários e de adorno pessoal e passam a ser objetos de admiração. Tornam-se, portanto, testemunho de sua época, uma fonte primária, viram em si objeto de estudo. “... os objetos figuram como uma espécie de eixo permanente e

ponto de partida das pesquisas” (Julião, 2006, p. 95). Ou seja, as fontes de conhecimento são os próprios objetos. Depois de compreendidos e contextualizados, os objetos devem aparecer para o público em exposições. As melhores mostras são narrativas ou mesmo interrogações propostas por curadores e pesquisadores que visam organizar os “objetos para a produção de sentido” (Meneses, 1994, p. 22). São resultado de um recorte, seja ele histórico, estilístico ou tecnológico. Exposições ajudam a sociedade a:

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“... celebrar um culto comum ... [funcionam como uma] apresentação da sociedade para si mesma do espetáculo de sua origem, a partir do “patrimônio histórico”” (Guedes, 2007, p. 426).

Ou seja, além da sua função simbólica, os museus desempenham também uma função social, que auxilia na criação e transformação de identidades.

”Assim, o museu se constitui como um espaço de lembranças e esquecimentos, onde os objetos, como vetores de significação, revelam e ocultam determinados sentidos sobre o passado, quando incorporados no espaço museológico” (Gomes; Oliveira, 2010, p. 44).

São os objetos que denotam as características e idiossincrasias de uma cultura, ora apontando para o regionalismo, ora para o nacionalismo. “...a natureza

física dos objetos materiais trazem marcas especificas à memória” (Meneses, 1998, p. 90). Busca-se no passado o autêntico, o ícone cultural, o objeto que expressa metaforicamente uma cultura (Prown, 1995, p. 9, tradução nossa). É a partir desses objetos, seja ele uma cadeira, um espremedor de laranja ou um vestido, que consegue-se “aferir o potencial, reconhecer a vocação e descobrir os valores mais

autênticos de uma nacionalidade” (Falcão, 1985, p. 24).

“... do mesmo modo que uma pessoa pode ter a sua identidade definida pela posse de determinados bens, uma “nação” define-se a partir da posse de seus “bens culturais” (Gonçalves, 2007, p. 122).

Nesse contexto, em que uma peça de vestuário se torna um suporte de informação, é importante refletir também sobre seus diversos estatutos (caracteres). No sucessivo processo de constituição de sentidos e significados que o objeto tem durante a sua vida, desde sua concepção conceitual por um estilista, seu estado enquanto mercadoria, a aquisição e o uso por um comprador-colecionador, até sua chegada à uma instituição cultural. E mesmo depois de estabelecida sua posição

final como memória e/ou patrimônio, a roupa continua a ser ressignificada, dessa vez através de exposições e pesquisas. As propostas curatoriais podem ser diversas, desde as tradicionais histórica e seqüencial até as do tipo constelação, que trabalham em cima do princípio da sinédoque, em que a parte representa o todo, e

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vice-versa. Ou seja, propõe-se mostrar os relacionamentos entre os objetos, comparando-os em questões de estilo, cultura e forma. O acúmulo sistemático de roupas, acessórios e têxteis é essencial para nos dar noção da progressão evolutiva de estilos, mas também crucial para estabelecer de forma definitiva o pensamento de moda como patrimônio cultural brasileiro. Não há como se orgulhar do passado se não o conhecemos. Tão importante quanto extinguir a mentalidade de que no Brasil só se copia e não se cria, é banir a frase “Brasil um país sem memória”. O designer e articulador político Aloísio Magalhães discursou em 1976:

“Uma civilização é sempre construída por uma forma de acúmulo. Uma civilização não é um atropelado de avanço em que a gente vai jogando as coisas... A sabedoria a que pode atingir uma forma de civilização está em você acumular os seus conhecimentos e suas conquistas e usá-las cada vez mais adequadamente” (Magalhães,1985, p. 50).

Apesar de a moda servir como importante meio de comunicação da identidade, a memória da moda brasileira ainda está em construção. Não se trata de se ater somente aos estilos propostos por estilistas e costureiros famosos; é importante também olhar para as roupas do dia-a-dia, do homem comum. Estudos sobre o passado ajudam a aumentar o orgulho, a concretizar a trajetória, e reforçar a identidade nacional. Só uma visão larga da cultura possibilita o entendimento dos modos e costumes como patrimônio.

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