Modos de ser da arte e modos de temporar: estudo etnográfico na oficinia de criatividade de um hospital psiquiátrico / Art and Temporality: an ethnographic study on the artistic workshop of a psychiatric hospital

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA SOCIAL

FEDERICO TESTA

MODOS DE SER DA ARTE E MODOS DE TEMPORAR: ESTUDO ETNOGRÁFICO NA OFICINA DE CRIATIVIDADE DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO

Porto Alegre 2009

FEDERICO TESTA

MODOS DE SER DA ARTE E MODOS DE TEMPORAR: ESTUDO ETNOGRÁFICO NA OFICINA DE CRIATIVIDADE DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO

Monografia elaborada como requisito para conclusão do Curso de Ciências Sociais – Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Trabalho de Conclusão de Curso Orientador: Prof. Dr. José Carlos dos Anjos

Porto Alegre 2009

FEDERICO TESTA

MODOS DE SER DA ARTE E MODOS DE TEMPORAR: ESTUDO ETNOGRÁFICO NA OFICINA DE CRIATIVIDADE DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO

Monografia elaborada como requisito para conclusão do Curso de Ciências Sociais – Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Aprovado em ____ de ______________________ de_________.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Caleb Faria Alves – UFRGS _______________________________________________

Prof. Dr. José Otávio Catafesto de Souza – UFRGS _______________________________________________

Porto Alegre 2009

A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência às duas formas atuais de sujeição, uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências do poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfose.

Gilles Deleuze

RESUMO: A presente pesquisa, inserindo-se na órbita de uma antropologia da arte ou estética, visa dar conta da singularidade das produções-práticas artísticas dos internosreclusos de um hospital psiquiátrico, realizadas na oficina de criatividade desse mesmo hospital. Busca-se responder antropologicamente à questão - “que arte é essa?”, referindose ao contexto (universo) mencionado, discutindo questões e conceitos a ela vinculados, principalmente: corpo, poder, subjetivação e temporalidade. Ainda, ao tratar dessa questão sobre o estatuto e o modo de ser da arte com que é possível se deparar nessa oficina, realiza-se uma tentativa de diferenciação da noção de Arte tal como advém do circuito de produção e circulação de bens culturais e de uma esfera artística, discutindo noções como obra, produto, processo, reprodutibilidade, temporalidade. A partir disso, esboça-se uma concepção não ontologicamente fechada da produção artística em questão, situando-a frente às possibilidades de resistência, subjetivação, de fruição corporal através da vivência de fluxos e afetos.

Palavras-chave: temporalidade.

arte,

antropologia,

poder,

afeto,

hospital

psiquiátrico,

corpo,

ABSTRACT: The present research, inserting itself in the field of anthropolgy of art or aesthetics, intends to make an approach to the singularities of the artistic practics and productions of the inmates of a psychiatric hospital, made in the creativity workshop of this same hospital. The objetive is to answer anthropologicaly to the question - what art is this?, always refering the context. This answer discusses several concepts and problems, mainly: body, power, subjectivation and temporality. In the discussion of this art’s status and way of being, takes place a possible diferentiation between the notion of Art as it comes from the art circuit (cultural and symbolical goods

production and circulation) and this

workshop’s art, discussing notions as work of art, product, process, reproductibility, temporality. Then a non ontologicaly closed conception of the current art is delineated, situating it relatively to the possibilities of resistence, subjectivation, corporal fruition, through the experience of fluxes and affections.

Key words: art, anthropology, power, affection, psychiatric hospital, body, temporality.

SUMÁRIO

1

INTRODUÇÃO......................................................................................................4

2

ETNOGRAFAR A OFICINA DE CRIATIVIDADE DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO....................................................................................................9

3

MODOS DE SER DA ARTE NA OFICINA DE CRIATIVIDADE............... 17

3.1

ARTE-ACONTECIMENTO..................................................................................19

3.2

CORPO, ARTE E SUBJETIVAÇÃO....................................................................35

3.2.1

Primeiro trecho: A tinta e as mãos.....................................................................38

3.2.2

Segundo trecho: Os adornos e o corpo...............................................................41

4

MODOS DE TEMPORAR COMO METÁFORA DA SUBJETIVAÇÃO.......47

4.1

TEMPORALIDADE TELEOLÓGICA E NÃO-TELEOLÓGICA.........................55

4.2

TEMPORALIDADE COMO ESTAR SENDO........................................................58

4.3

O TEMPO DA INSTITUIÇÃO...............................................................................60

4.4

TRESPASSAMENTOS DE TEMPORALIDADES E REGIMES DE TEMPO.....61

5

INCONCLUSÕES..................................................................................................64

REFERÊNCIAS.....................................................................................................66

APÊNDICE - Relatos e reflexões de campo........................................................69

4 1

INTRODUÇÃO

A pesquisa tomará como objeto as práticas estéticas tais como aparecem na oficina de criatividade de um hospital psiquiátrico. No entanto, as diversas questões envolvidas nessa temática aparecem como vinculadas a algumas preocupações teóricas, éticas, políticas. Pensar essa arte nos coloca frente a uma forma muito específica de relação social, e de situação dessas relações num contexto muito específico: o hospital psiquiátrico. Essa é, sem dúvida, uma realidade marcada por caracteres daquilo que Goffman (1961) chama instituição total, na qual os internos tem seu self mortificado, são objetivados frente ao poder, são dessigularizados – com base em diagnósticos articulados entre os saberes e os poderes médicos-psi. A ideia de pesquisar essas práticas artísticas sobre a ótica da subjetivação 1 é uma forma desvinculá-las desses diagnósticos calcados nos modos de subjetivação capitalísticos e autoritários dominantes, apresentando as possibilidades de devir, de alteridade, de diferença 2 . Assim, cabe situar o debate sobre o poder de forma não unilateral, fazendo aparecer – juntamente com o último Foucault (1985) – não só as forças advindas de 'fora', mas aquelas advindas de 'dentro', isto é, as possibilidades de instaurar-se como um não-sujeitado. Isso quer dizer apresentar as possibilidades de uma resistência fluida e infinitesimal que se dá nas fissuras desse poder objetivador e totalizante da instituição – de corpos que podem tornar-se momentaneamente outros, através de seus fluxos e devires, indisponíveis às teias de vigilância e controle do poder disciplinar; isto é, corpos que podem ser vividos em sentido não-disciplinar. Com isso não se pode entender uma justificação do internamento-reclusão, do hospício, do asilo; 1

Isto é, nas possibilidades de emergência de um sujeito a partir de elementos e práticas heterogêneas. A idéia agenciamentos de subjetivação é trazida para o contexto da sociologia numa visão do microssociológico também por Themudo (2002). Este autor busca, através da sociologia de Gabriel Tarde, aproximar as ciências sociais de possibilidades apresentadas pelo pensamento de Deleuze-Guattari, principalmente na discussão sobre os processos de subjetivação. Além disso, Themudo aponta para uma estreita relação entre arte e sociologia, em diversos níveis, nas reflexões e posturas de Tarde – o que confere legitimidade das questões tratadas nessa pesquisa: a subjetivação e a arte no âmbito de uma sociologia construída por um clássico, além do estabelecimento de uma ponte com as referências aqui adotadas de Deleuze-Guattari, principalmente na discussão sobre imagem (Deleuze, 1992), e aquilo que um paradigma ético-estético aponta: fluxos, devires, agenciamentos, subjetivação, singularização (Guattari, 1992). Por meios diferentes, Vargas (Tarde, 2007) aponta para essas intersecções, transposições e convergências que, no âmbito teórico da pesquisa são de extrema importância. 2

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5 pelo contrário, busca-se apresentar as possibilidades de singularização, ressignificação, reapropriação frente a essas estruturas tão grandes e tão semioticamente potentes. Essa abordagem carrega uma crítica àquilo que Franco Basaglia chama “ideologia do desviante” 3 . Segundo essa crítica, em uma sociedade configurada sobre a organização, enfatiza-se o valor de conformar-se às regras. Assim, cabe isolar e neutralizar grupos e indivíduos que opõem resistência (BASAGLIA, 1978, p.13). Nessa pesquisa cabe atentar a essas formas de oposição a essa ideologia de controle social total efetuada nas instituições ditas totais. Para isso, dever-se-á manter distância das retóricas médicas-psi ou positivistas que operam a visibilização, o esquadrinhamento, o exame, a objetivação, total desses corpos que compõem os diagnósticos. Cabe pelo contrário, apresentá-los – sem “mostrá-los” em seus fluxos em seus processos de ocultamento – isto é, não objetivá-los positivisticamente, mas sinalizá-los também naquilo que tem de diferença insondável. Dessa maneira, a etnografia estará baseada numa concepção da linguagem que busca ser não-objetivista, que busca sinalizar afetos e catástrofes, isto é, processos não-discursivos, não verbais, de subjetivação. Com isso visa-se questionar ética, política e esteticamente a totalização operada pelo saber-poder médico-psi, apresentando, contra ele, a multiplicidade das formas de subjetivar e das formas de “trabalhar” com a matéria através das práticas artísticas. Há uma justificativa predominantemente antropológica, pois o que se visa realizar aqui é um exercício etnográfico 4 . Nesse sentido, o que se propõe mais radicalmente é um exercício afetivo e vivencial de alteridade, isto é, a possibilidade de uma experimentação, de uma vivência de possibilidades de ser, de subjetivar, de produzir, que se caracterizam por sua irredutível diferença. A escrita etnográfica apresenta a potência ética-estética de fazer vibrar as intensidades dessa experimentação no texto, assim como expressar, de

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“Il deviante si trova al di fuori o al limite della norma, è mantenuto all'interno o dell'ideologia medica o di quella giudiziaria che riescono a contenerlo, spiegarlo e controllarlo. Il pressuposto qui implicito che si tratti di personalità abnormi originarie, ne consente l'assorbimento nel terreno medico o penale, senza che la devianza – quello concreto rifiuto di valori relativi, proposti e definiti come assoluti e immodificabili – intacchi la validità della norma e dei suoi confini” (BASAGLIA, 1978, p.20) 4 Do ponto de vista etnográfico, a inserção se enquadra num amplo contexto de visitas e participações que se erigiram em 2006 e se mantiveram desde então. As particularidades da progressiva inserção no universo do hospital e da oficina serão comentadas nos Relatos e reflexões de campo. A densidade qualitativa dessa inserção e a sua extensão ao longo dos últimos anos marcam esse texto, inclusive impossibilitando uma configuração sucinta ou um mero resumo dessa experiência, impossibilitando em parte uma extensão reduzida do mesmo.

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6 forma diversa àquela que explicita e objetifica o outro, a diferença e a multiplicidade daqueles que se manifestam. A etnografia, então, deve estar vinculada a produzir uma disponibilidade ao ser afetado, como nos mostra Jeanne Favret-Saada (2005), e superar a observação-participante em parâmetros objetivistas malinowskianos. Isso se justifica no fundamento antropológico do trabalho: no movimento de tornar-se outro, isto é, no exercício antropológico de tensão entre estranhamento e adesão afetiva, é possível apreender formas diversas em nossa própria sociedade, formas de subjetivar e produzir que

destotalizem

os

modos

de

subjetivação

dominantes,

contrapondo-se

a

sociocentrismos e etnocentrismos – é possível que a diferença se manifeste como legítima. O texto se divide em três capítulos: Etnografar a oficina de criatividade de um hospital psiquiátrico, Os modos de ser da arte na oficina de criatividade e Modos de temporar como metáfora da subjetivação. Além destes, um capítulo final de (In)conclusões e um Apêndice, de não menor importância, que consiste nas descrições e reflexões de campo referentes à última inserção 5 . O primeiro tematiza algumas particularidades do universo em questão, salientando questões éticas, políticas e metodológicas. O segundo constitui o núcleo do trabalho propriamente dito, e visa sinalizar algumas das singularidades do modo de ser da arte em questão. Esse capítulo se divide em duas seções: Arte-acontecimento e Arte, corpo e subjetivação. A seção Arte-acontecimento visa discutir a produção artística na oficina, perscrutando possibilidades de contato com o caráter singular dessa produção. Para isso, a noção de campo artístico é tematizada como via negativa de definição do modo de ser da arte ou das práticas artísticas da oficina e criatividade. Salientar-se-á o caráter processual, não-teleológico dessas práticas e produções, como também a impossibilidade de vislumbrar suas singularidades nesse contexto a partir de abordagens cuja ênfase recaia sobre a obra acabada – produto ou as estruturas de produção, reprodução, 5

Esse apêndice poderia inclusive ser ido antes do trabalho propriamente dito que aqui se apresenta. Uma leitura dessa natureza levantaria maior possibilidade de contato e vivência da situação etnográfica em questão, sua complexidade, intensidade, como também dos dilemas e tensões em campo. A idéia de manter esse texto como apêndice foi a intenção de manter a integridade da situação etnográfica, assim como a integridade de um texto que se articula de maneira diferente (tanto estrutural como estilisticamente), colocando questões e afetos que surgem em campo, que acabariam por se perder se se levasse em conta apenas o primeiro eixo (os capítulos que precedem o apêndice).

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7 consumo e circulação de bens artísticos ou mercadorias culturais. Assim, será buscado um conceito de arte 'ampliado', focado na possibilidade de subjetivação, agenciamentos, fluxos e intensidades corporais, ainda que no contexto de uma instituição total e disciplinar. A segunda seção - Arte, corpo e subjetivação - busca problematizar o corpo, as relações corpo – poder, através das práticas artísticas realizadas na oficina, sondando possibilidades não disciplinares de experiência corporal ou do uso dos corpos – através de gestos, posturas, movimentos na produção artística. A partir disso busca-se associar ética-estética-política, no âmbito de uma visão processual da experiência artística em três situações etnográficas nessa oficina, estabelecendo uma relação íntima entre arte, corpo e subjetivação. É a partir daí que se discutem as possibilidades de resistência. O próprio processo de subjetivação (e possibilidades de práticas corporais de re-singularização, reapropriação e indisponibilização ao poder, na emergência ou produção de um sujeito não sujeitado) são vistos no âmbito do estético. Deste modo, atenta-se para a produção da arte através do corpo e para a produção do corpo através da arte. O capítulo Modos de temporar como metáfora da subjetivação esboça uma aproximação entre temporalidade e subjetivação, a partir de uma noção de tempo acontecimental, por assim dizer, um tempo não unívoco e absoluto, mas como fluxo e devir da diferença e como possibilidade de constituição de um sujeito 6 . Além disso, as questões levantadas nesse capítulo visam lançar luz sobre a arte tal como foi tratada no anterior, apresentando essa arte como vinculada a formas de temporar específicas e singulares. Para apresentar essas formas realizou-se uma colagem de trechos e fragmentos de diário e reflexões de campo, estabelecendo um texto descontínuo e heterogêneo, porém tematicamente unificado pela questão da temporalidade vista a partir dos fazeres artísticos dos internos da oficina 7 . 6

A relação entre tempo e subjetivação é tratada por Gilles Deleuze (2006) em seu livro sobre Foucault. É interessante, antes de prosseguir, apresentar um resumo dos principais objetivos da pesquisa: 1. Investigar o modo de ser, o estatuto e as características da arte e das práticas artísticas como são experienciadas na oficina; 1.1. Elaborar um inventário de diferenças entre essa arte e a noção de arte que configura a esfera artística (bens simbólicos-culturais que circulam num mercado artístico), salientando etnograficamente as singularidades e os pontos de diferenciação dessas artes dos internos segundo perspectivas teóricas e conceitos das ciências sociais e da antropologia; 2. Compreender os modos de produção e vivência das imagens no contexto da oficina, enfatizando as possibilidades dessas imagens na re-significação e re-singularização do corpo; 2.1. Perguntar pelas possibilidades das imagens compostas pelos corpos-reclusos também comporem esses corpos; 2.2. Entender como a vivência da imagem vem a

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ser mais importante que a realização de uma obra acabada; 2.3. Apresentar os processos de autonomização das imagens frente à produção, e apresentá-las como fontes de ação e agência, através da noção de fe(i)tiche, trazida por Bruno Latour; 2.4. Buscar apresentar como os corpos podem ser não só pintores, mas superfícies de pintura, isto é, superfícies simbólicas, podendo ser considerados como imagens, visando sinalizar como os internos podem vir a viver seus próprios corpos através das imagens, através da descrição e análise etnográfica; 3. Buscar sinalizar na escrita os fluxos, os afetos, os processos de subjetivação surgidos na manipulação da matéria, assim como apontar suas temporalidades e seu caráter de marcação do tempo e produção de uma temporalidade subjetivamente vivida; 4. Compreender como as práticas artísticas tal como se apresentam na oficina estão em uma resistência fluida, nas fissuras das teias de vigilância e controle da instituição total, isto é, como elas podem indisponibilizar os corpos ao poder, produzindo, mesmo que momentaneamente, corpos não-dóceis e sujeitos não-sujeitados, ainda que numa oficina que funciona segundo a lógica de uma instituição total; 4.1. Descrever a re-apropriação e a resignificação dos corpos através das práticas artísticas.

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9 2

ETNOGRAFAR A OFICINA DE CRIATIVIDADE DE UM HOSPITAL

PSIQUIÁTRICO

A partir de Foucault (1984) é possível descrever a reclusão através de seu caráter disciplinar. A disciplina exige a distribuição dos indivíduos no espaço, através da especificação de um “local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo” e nisso consiste a “cerca” (1984, p.130). Ela é a materialização da fronteira que em termos culturais e históricos é variável e flutuante, como loucura e sanidade. É a efetivação de um processo de exclusão e regramento da diferença, institucionalmente legítimo, que se efetiva no limiar visível entre interior e exterior, tidos como espaços estanques. O mais importante é ressaltar o caráter singular que o hospital psiquiátrico apresenta enquanto lócus de reclusão e a influência desse elemento na temporalidade que determina os ritmos e rotinas e nas práticas que determinam os usos do corpo e a relação com o outro. O que define predominantemente o universo dessa pesquisa é, assim, a clausura, a cerca, a reclusão e o asilo – o prision-like, que Goffman (1961), na introdução de Asylums, se utiliza para caracterizar as instituições totais. Estas possuem seu próprio compasso, seu próprio ritmo que, digamos, coloniza aqueles que estão dispostos nas suas teias enquanto internos. Dessa forma, em seu caráter total, essas instituições tendem a centralizar sobre uma única autoridade administradora burocrática todas as atividades cotidianas do recluso, o que permite apontar o caráter coercitivo de regramento de contextos de asilo 8 . A definição do universo pode ser ainda mais clara se direcionada para as relações presentes na oficina de criatividade do hospital, que será o lócus efetivo da pesquisa. A oficina de criatividade, grosso modo, consiste num espaço no térreo do prédio histórico do hospital, no qual os internos realizam atividades artísticas. Importante salientar: na presença de funcionários e estagiários, o staff de Goffman (1961). Tais atividades 8

Numa primeira versão desse texto, constava uma digressão sobre a história do hospital psiquiátrico em questão. No entanto, a opção ética e epistemológica adotada aqui de não privilegiar a construção de uma individualidade, mas a percepção da singularidade daquilo que acontece no lócus dessa pesquisa, torna a apresentação do contexto histórico, apesar de rica e interessante, incoerente. A opção de manter o elemento histórico iria no sentido de uma exposição não criteriosa do universo e conseqüentemente dos atores (os internos) que o constituem (sendo que nem sempre essa exposição acrescenta efetivamente algo ao que se propõe como temática de pesquisa).

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10 consistem principalmente em pintura, desenho – e, com menor freqüência, música. Aí, diversos materiais estão disponíveis para utilização dos internos nessas atividades criativas. Um dos aspectos chaves da escolha desse espaço foi o princípio segundo o qual tais atividades nos permitem entrar em contato com manifestações mais intensas, exteriorizadas – e, por isso mais ricas em sentido e significado para aqueles que as realizam. Além disso, a escolha da oficina, foi baseada na idéia de que nesse local transpareceria melhor a concepção temporal dos internos (mesmo que de forma múltipla) de forma mais independente das coerções institucionais disciplinares. Tal pressuposto deverá ser problematizado ao longo da pesquisa. Porém, foi mantida a idéia de que na produção artística (evidentemente me refiro aqui àquela realizada no contexto do hospital, não nos sistemas de produção simbólico-cultural do campo artístico) há a possibilidade de uma maior liberação de movimentos e expressividades do que nas atividades que visam algum tipo de produção econômica ou “re-socialização”. De fato, recorrer-se-á à oficina como um ambiente propício para inserção devido ao tipo de atividade que ali se realiza. Um elemento primordial na definição da Oficina como universo é de ordem mais estética ou ontológica, por assim dizer. Ele consistiria na noção segundo a qual o tempo é concebido como fluxo e criação. Nesse sentido, através da arte, haveria a possibilidade de expressão de temporalidade: tanto naquilo que é criado, como no gestual. A produção artística, no seu aspecto de movimento, ação (social) e manipulação da matéria tem uma importância central na vivência de possibilidades de temporalidades e na construção de um tempo vivido que atravessa os atores. Isto é, viver momentos em que se realiza um outro regime de tempo, um outro regime de movimentos, que não aquele da produção industrial, por exemplo; ao colocar-se no papel de agente criativo, o ator vive seus próprios ritmos, os ritmos das matérias que utiliza, das alteridades em que se enreda, podendo engendrar novas possibilidades de subjetivação. Assim, a oficina aparece em sua riqueza enquanto contexto fenomenológico de alteridade. A criação é vista como descoberta e produção de possibilidades de estar no mundo – como expressão da diferença. Em última análise, a atividade criativa permite, digamos legitima, movimentos, gestos, falas, condutas que em outros contextos – outras situações no hospital - não seriam permitidas. Assim, a definição da oficina como universo permitiria, ao fim e ao cabo, levar em conta todos os aspectos objetificadores e

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11 coercitivos da reclusão (que estariam ali manifestos), como também os agenciamentos de subjetivação que se processam nesses contextos. Outro fator importante na definição desse universo seria de ordem semiológica – isto é, a abundância de significantes acessíveis e expressos. As práticas artísticas aparecem na oficina como uma verdadeira linguagem concreta 9 , que captura quem se disponibiliza a essa ambiência, por assim dizer, na qual essa linguagem se realiza, o espaço particular da oficina – uma independência de uma atitude de pesquisa propriamente dita, para que essa linguagem aja intensa e concretamente sobre quem a vivencia: uma linguagem dos e nos corpos e objetos, dos e nos gestos e movimentos. Assim, o universo se estabelece desde o seu caráter geral de reclusão, passando pela idéia de instituição total – o que nos permite chegar ao hospital psiquiátrico -, até o contexto particular de interação da oficina de criatividade. A noção de primado do múltiplo é a definição de uma situação, a partir da qual o universo da pesquisa e o exercício etnográfico nesse contexto devem ser compreendidos. O deparar-se com a multiplicidade talvez seja a chave interpretativa de maior importância ética. Isso porque através dela é possível preservar a idéia de que qualquer participação na oficina de criatividade (como nos demais contextos do hospital) é um deparar-se com a diferença em seu diferir - a singularização, a alteridade radical e insondável. Salienta-se a impossibilidade da total objetivação dos internos, pois cada um é um rosto, cada um é outro 10 . Isso é sinalizado nos gestos, nas falas, no dar-se a ver de cada um. Assim, 9

Partindo da ressonância entre antropologia e teatro proposta por Marcus (2004) como alternativa ao miseem-scéne malinowskiano e sua imagem do trabalho de campo e da etnografia, utiliza-se aqui a concepção de linguagem concreta presente no teatro de Antonin Artaud, opondo-se à linguagem enquanto discursividade, diálogo ou palavra: “a cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que se faça com que ela fale sua linguagem concreta”; “essa linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da palavra”; “essa linguagem física, essa linguagem material e sólida através da qual o teatro pode se distinguir da palavra” (1999, p.36). Tal linguagem seria, em Artaud, uma “poesia no espaço”, consistindo em tudo o que ocupa a cena e se manifesta materialmente, e que só pode ser “totalmente eficaz se for concreta, isto é, se produzir objetivamente alguma coisa através de sua presença ativa em cena” (idem, p.38). Também Foucault (1997) salienta, no que tange as técnicas de interpretação, este elemento da linguagem enquanto concreta, isto é, enquanto não-discursiva: “há muitas outras coisas que falam e que não são linguagem [verbal]. Depois disto, poder-se-ia dizer que a natureza, o mar, o sussurro do vento nas árvores, os animais, os rostos, os caminhos que se cruzam, tudo isto fala: pode ser que haja linguagens que se articulam em formas não verbais. Isto equivaleria (...) ao semäion dos gregos” (p.14). 10 Cada outro, cada um dos rostos, exprime, em sua superfície, um mundo possível. “Não desejo em outrem senão os mundos possíveis que exprime” (DELEUZE, 2003, p.327).

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12 demarca-se, de certa forma, um limite do regime de visibilidade com que trabalha a teoria, ou da torre de marfim, mas que acaba por ser um impulso à vivência antropológica. O primado do múltiplo é a recusa à abstração teórica de uma estrutura prédefinida universalmente de forma mecânica para todos os agentes que se situam num determinado contexto. Ela inviabiliza continuar a pensar a questão da temporalidade nos termos durkheimianos, pois refuta a idéia do homem duplo 11 , por exemplo. A questão do primado do múltiplo nos leva a pensar a temporalidade e a subjetividade processualmente, se dando em diferentes cartografias, não necessariamente presas aos postulados do sujeito-estruturado. Adentrar a oficina de criatividade do hospital psiquiátrico é confrontar-se com diversos planos de ação, de realização de gestos, de formas de ser da arte, de velocidades, de relação com a matéria, de sentimentos, de sentidos e de temporalidades. Assim, a escrita etnográfica deve se abrir a essa multiplicidade, buscando experimentar uma linguagem que possa ser retroativa a essa multiplicidade, a esses fluxos nem sempre discursivos que se engendram na oficina. A escrita etnográfica passa a ser uma experimentação com a linguagem inspirada nesses agenciamentos e deve ser encarada também ela como fluxo – tal experimentação será tentada em alguns trechos dos relatos de campo. Para dar conta do universo e dos problemas que impulsionam essa pesquisa se utiliza uma metodologia qualitativa baseada principalmente na etnografia e na observação 12 . A observação deve, no entanto, ser tirada de um âmbito objetivista 11

Segundo Durkheim, no homem, existem dois seres: “Um ser individual que tem sua base no organismo, cujo círculo de ação se encontra, por isto mesmo, estreitamente limitado; e um ser social que representa em nós a mais alta realidade na ordem intelectual e moral que possamos conhecer pela observação, isto é, a sociedade. Esta dualidade de nossa natureza tem por conseqüência, na ordem prática, a irredutibilidade do ideal moral ao móvel utilitário, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à experiência individual” (DURKHEIM, 1983, p.217). 12 Por fim, em termos de pesquisa, busquei sempre adotar a observação participante, na tentativa de compreender a multiplicidade de vivências que, na Oficina, tomam lugar. Não utilizei um diário de campo, metodicamente. Fiz somente algumas anotações de idéias que julguei imprescindíveis, por vezes sem articulação narrativa, ou mesmo continuidade. As anotações não foram feitas durante a participação, pois julguei que isto seria um tanto destoante naquela situação. Procurei também não me agarrar nos referenciais de normalidade que se apresentavam nos funcionários e estagiários, buscando sempre a máxima proximidade com os internos e com as suas questões [Relato e reflexões de campo, 2007].

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13 malinowskiano, e constituir-se no âmbito de uma disponibilização, de um ser afetado 13 . Assim, atenta-se para gestos, posturas, movimentos e práticas corporais, na busca de uma apreensão pática 14 dos agenciamentos não discursivos 15 que compõem esses processos na experiência artística dos internos. Nesse sentido, a própria escrita da etnografia deve ser experimentada também num âmbito estético, para que esses fluxos e afetos 16 sejam sinalizados. Ainda, adota-se uma concepção estetizante da etnografia por motivos éticos – de não visibilização, objetivação e esquadrinhamento dos internos e seus devires – o contrário seria reproduzir, se levarmos em conta o universo dessa pesquisa, a lógica do poder articulado a partir de teias de saber minucioso e objetivo sobre os sujeitos e os corpos, como aponta Foucault (1984). A escrita etnográfica apresenta a potência éticaestética de fazer vibrar as intensidades 17 dessa experimentação no texto, assim como expressar, de forma diversa àquela que explicita e objetifica o outro, a diferença e a

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“Não se trata, tampouco – após condenar essa primeira modalidade de descrição como empirista, ingênua ou autoritária, na medida em que se arroga o direito de representar o outro -, de voltar-se para dentro, opondo uma suposta transparência do sujeito para si mesmo à opacidade do mundo dos outros” (GOLDMAN, 2005, p.150). 14 “Escolhi conceder estatuto epistemológico a essas situações de comunicação involuntária e não intencional: é voltando sucessivamente a elas que constituo minha etnografia” (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160). 15 Por exemplo, com exceção de algumas conversas e expressões verbais que acompanham o trabalho dos internos, não será utilizada a entrevista com roteiro, pois buscar-se-à enfatizar o não verbal, através da observação e da apreensão e engajamento-adesão nos processos e nas relações. Isso porque o hospital psiquiátrico é um lócus de cruzamento entre vários discursos e práticas, pelos mais diferentes agentes. Nesse contexto, existem relações dadas como premissas do próprio funcionamento do manicômio – que não se cristalizam em forma de uma linguagem verbal explícita. Da mesma maneira, as práticas que engendram uma produção subjetivada não se articulam verbal e mecanicamente. O termo “agenciamentos não discursivos” é tomado de Guattari (1992). 16 “Não de afeto no sentido de emoção que escapa da razão, mas de afeto no sentido do resultado de um processo de afetar aquém ou além da representação” (GOLDMAN, 2005, p.150). “Então estou direcionada para uma variedade particular de experiência humana – ser enfeitiçado, por exemplo – porque por ela estou afetada” (…) “Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista do nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer”. (FAVRET-SAADA, 2005, p.160). 17 “Quando se está em um tal lugar, é-se bombardeado por intensidades específicas (chamemo-las de afetos) que geralmente não são singficáveis. Esse lugar e as intensidades que lhe são ligados têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los”, ainda: “o que me é comunicado é somente a intensidade de que o outro está afetado (em termos técnicos, falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma carga energética). As imagens que, para ele, e somente para ele, são associadas a essa intensidade escapam a esse tipo de comunicação” (FRAVET-SAADA, 2005, p.159).

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14 multiplicidade daqueles que se manifestam. A etnografia, então, deve estar vinculada à ao ser afetado, como nos mostra Jeanne Favret-Saada 18 . Uma etnografia do afeto é necessariamente uma etnografia do poder 19 , ou melhor, uma cartografia do poder em sua multiplicidade, isto é, das relações entre as forças em suas multiplicidades. O que significa dizer que, enxergar o poder de maneira múltipla, plural (e não unilateral) implica necessariamente falar em afeto (pois o afeto, em seu aspecto transversal e relacional, é a propriedade definidora da força) e resistência - pois, “a última palavra do poder sobre a força é que a resistência tem o primado” (DELEUZE, 2006, p.96). Enxergar o poder apenas em seu aspecto integrador e homogenizante (o pólo da instituição e a instauração de seus mecanismos sobre a vida e os corpos) é limitante, no sentido de conceber somente as forças internas ao perímetro de um campo de forças determinado, o que significa em certo sentido, que seria conceber o poder apenas enquanto organização proveniente da instituição, perdendo de vista os múltiplos focos e pontos que ele deve unificar – focos que sempre apresentam singularidade e resistência, apontando para um “fora” desse poder diagramático da instituição. Outro sentido de pensar o poder somente de maneira a reiterar sua operação de integração das singularidades na homogeneidade, seria pensar a Arte como campo, como esfera, sem levar em conta as forças que uma arte singular movimenta e relaciona. É pensando essas forças que este trabalho se constitui, na superfície dessa singularidade, na sua possibilidade de escavar nela um foco de resistência.

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FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado; GOLDMAN, Márcio. Jeanne Favret-Saada, os afetos a etnografia. In: Cadernos de campo n. 13:149-161, 2005. 19 Deleuze aponta que, para Foucault, poder é afeto: “Um exercício de poder aparece como um afeto, já que a própria força se define por seu poder de afetar outras forças (com as quais está em relação) e de ser afetada por outras forças. Incitar, produzir (...), constituem afetos ativos, e ser incitado, suscitado, determinado a produzir, ter um efeito ‘útil’, afetos reativos”. Estes últimos “não são simplesmente a ‘repercussão’ ou o ‘reverso passivo’ daqueles [afetos ativos], mas antes o ‘irredutível interlocutor’, sobretudo se considerarmos que a força afetada não deixa de ter uma capacidade de resistência” (DELEUZE, p.79, 2006).Nesse sentido, tanto etnografar o poder em seu sentido coercitivo, intergrador, homogeneizador, como etnografar o poder enquanto resistência é sinalizar etnograficamente essas relações de afetar e ser afeto, afetos ativos e reativos.

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15 Etnografar esses focos é abandonar o privilégio tão recorrentemente concedido nas ciências sociais à uniformidade aos conceitos calcados numa sólida noção de identidade 20 . Como aponta ainda Canevacci: Para contrastar o perigo das diferenças – vistas como desordem – a antropologia (como a filosofia, a psicologia, a sociologia e a arquitetura) estruturou-se como apologia e defesa da identidade (2005, p.17).

Para realizar uma etnografia nos termos aqui intencionados é exatamente esse “perigo” que deve ser vivido, no entanto, como radicalidade e experimentação, como possibilidade de devir outro. Desse modo, é necessário ter “o objetivo explícito (...) de aplicar uma metodologia das diferenças”, reivindicando uma “espontaneidade metodológica polifônica”, uma metodologia do “gozo da diferença” (idem, p.8), o que nos coloca frente de uma antropologia da vivência enquanto estética – e da vivência dessa mesma antropologia enquanto estética. Outro ponto que vale ser sublinhado, em termos do que seria uma “metodologia espontânea”, é a questão da impossibilidade da aplicação de algumas técnicas. Isso se daria não só por critérios éticos, digamos, aqui utilizados, de não visibilizar por completo os agenciamentos dos internos, como também pela impossibilidade prática de utilizar técnicas concebidas a partir de um prisma de previsibilidade e normalização das ações. O contexto da oficina é um contexto de primado do múltiplo – e é exatamente como uma vivência antropológica do múltiplo que deve ser encarado. A própria possibilidade da utilização de um roteiro de entrevista se mostra prejudicada – mesmo quando a entrevista se realiza abertamente: A: “Há quanto tempo estás no Hospital?” B: “Onde tu mora? Pra cá ou pra lá?” 21

Assim, a partir de um não sentido das técnicas mecânicas, o pesquisador deve que atentar, ao invés de buscar extrair somente o que seriam “dados brutos” autofundamentados, para os fluxos de subjetivação, para os agenciamentos não 20

“A história da antropologia afirmou-se não apenas por privilegiar as (supostas) uniformidades, mas também na destruição sistemática e ‘objetiva’ das diferenças. São as diferenças que devem ser aplainadas para que seja possível fazer fluir o carro cientificista e triunfante de ‘a’ cultura” (Canevacci, 2005, p.17). 21 Exemplo da tentativa artificial de fazer os internos falarem sobre seus referenciais temporais.

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16 discursivos, para os gestos, para as mímicas, para outros vetores que possibilitassem a apreensão pática desses atores na vivência de seus fluxos e temporalidades e subjetividades individuais e coletivas.

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17 3

OS MODOS DE SER DA ARTE NA OFICINA DE CRIATIVIDADE

A partir de uma antropologia que transite num paradigma ético-estético e uma noção de arte não institucionalizada em seu aspecto de produção não teleológica (isto é, que não coloca a temporalidade do processo em função de um termo que representa seu fim), é possível pensar sobre a particularidade das múltiplas manifestações artísticas tais como aparecem na oficina, buscando responder à questão inicial “que arte é essa?”. Indagar sobre essa arte é indagar sobre uma forma singular de articulação ética-políticaestética, é perguntar sobre os corpos, sobre o estatuto e poder das imagens envolvidas nessas práticas artísticas. Encarando as múltiplas manifestações artísticas na oficina como possibilidade de uma experimentação de si, de produção de afetos e perceptos num temporar subjetivante 22 , deve-se visualizar os demais domínios da vida contaminados com esses focos criacionistas vivenciados no estético, na produção artística. Fazer não só uma antropologia da arte, em sentido estrito, mas uma antropologia da vivência enquanto estética, de uma artialização da vida – uma antropologia estetizante, que deve ela mesma situar-se fora de um cientificismo positivista, abrindo-se para sinalizar esses focos de forma ética e estética. Com esse privilégio concedido ao criativo, não se deixa de levar em conta as articulações coercitivas do poder na produção de corpos dóceis (Foucault, 1984) ou na mortificação do self (Goffman, 1961) no âmbito do hospital. A intenção, no entanto, é descobrir focos, nas fissuras desse poder, de criação, de possibilidades internas ao fazer artístico. Para isso, é necessário encarar a especificidade dessa arte da oficina

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A vivência e a participação ativa nas práticas artísticas realizadas na oficina de criatividade fizeram com que a pergunta sobre o estatuto e o modo de ser dessa arte se impusesse, como um deslocamento epistemológico e afetivo: dos modos de temporar aos modos de ser da arte. A arte aparecia como fazer a partir do qual se vislumbrava como possibilidade pensar a questão inicial sobre a temporalidade na oficina, a vivência e produção dessa temporalidade. As características dessa arte aparecem intensamente ligadas a essa temporalidade, de modo que seria impossível estabelecer o tempo como objeto de reflexão sem refletir sobre a particularidade da arte que ali se produz. Nesse percurso, a pergunta por essa arte dos internos acabou por adquirir centralidade, de modo que a indagação sobre a vivência social da temporalidade passou a se colocar em segundo plano e em função dela. Que arte é essa? A partir dessa questão as possibilidades de encontrar algo que pudesse definir essa arte em seu caráter de acontecimento passaram a ser problematizadas, principalmente levando em conta a idéia de primado do múltiplo a partir da qual a oficina aparece.

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18 como metáfora geral de oposição à estruturação do hospital, ainda que a oficina esteja colocada no âmbito da instituição total. Nessa problematização, a principal hipótese diria respeito à maneira de ser da arte na oficina de criatividade. A partir dela, seria possível pensar em decorrências e no significado dessas particularidades da forma como essa 'arte menor' se dá, nunca vindo a constituir-se de maneira acabada. Essas hipóteses decorrentes buscariam discutir as questões levantadas anteriormente, referentes a corpo, poder, subjetivação, etc. Enunciemos, então, essas suposições. A arte tal como aparece nas práticas da oficina se diferencia do conceito de arte pressuposto na noção de campo artístico. Essa arte seria uma arte processual, nãoteleológica, cuja ênfase recairia sobre o processo e não sobre o produto artístico 23 . Esse processo poderia ser visto como a experimentação de si, do corpo, da matéria, na produção de algo que se fecha em si mesmo, não sendo reprodutível, não sendo elaborado segundo valores secularizados de uma esfera artística, não sendo elaborado como bem a circular em circuito ou mercado simbólico-cultural. Essas primeiras suposições nos levam a pensar na hipótese dessa arte ser vivida não como uma mera produção estética, mas como a produção estética de uma dobra, isto é, de uma possibilidade de subjetivação frente ao poder disciplinar, confrontando-se a todo o instante com os seus mecanismos. Isso levaria a ainda mais uma suposição: aquela de que o corpo pode ser vivido através dessas imagens e investido por elas, de maneira a se “indocilizar” frente ao poder disciplinar e totalizador.

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A noção de arte como produto pressupõe uma noção de temporalidade específica. Segundo essa noção, a obra é uma ação acabada, “a execução de um ato com resultado” (VALÉRY, 1999, p.191). Essa execução se dá em função de um termo final, a obra mesma, o resultado, o produto artístico. A arte-obra seria, como produto, resultante de uma temporalidade que transcorre de forma teleológica, rumo a um ponto definido, que marca o fim do processo de criação. A temporalidade da produção é necessariamente determinada em função da realização da obra. É a partir da obra enquanto bem simbólico-cultural (e, por conseguinte, da noção de tempo que a obra implica) que é possível estabelecer teoricamente a noção de campo artístico. Porém, e se percebêssemos a arte enquanto acontecer, enquanto processo que não culmina em um termo definido, sendo vivenciado por isso através de outras temporalidades (não teleológicas)? E se os modos de ser da arte da oficina realizassem outros modos de temporar? As múltiplas temporalidades constituem um dos obstáculos à aplicação da noção de obra ou de um viés que privilegia a ideia de campo artístico. A relação temporalidade-campo artístico, a partir das noções temporais presentes na oposição produtoprocesso, é comentada no capítulo Modos de temporar como metáfora da subjetivação.

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19 3.1

ARTE-ACONTECIMENTO Nas ciências sociais, a abordagem dos fenômenos artísticos parece estar

localizada em torno de alguns conceitos e noções molarizantes, que provém, em grande parte, do pensamento dos clássicos. No entanto, tais idéias tendem a colocar-se fora do artístico, do estético, e, frequentemente, desviam dele os olhos em suas análises 24 . Esse desviar de olhos se justifica na formulação de problemas e questões, através do estético, que não são necessariamente formas de se perguntar pela maneira de ser da arte sobre a qual se debruça. Pergunta-se sobre o campo ou esfera artística, modos de produção simbólico-culturais, circuitos e circulação desses bens, produtores e públicos, mercados, divisão social do trabalho, relação entre superestrutura e infra-estrutura, autonomização das esferas, secularização, classes sociais, representações coletivas, memória coletiva, etc. A questão é que a arte tende a ser vista como algo que aponta sempre para fora dela, pra um fora sobre o qual a antropologia ou a sociologia poderiam produzir um discurso explicativo eficaz. Acaba-se por perder de vista os próprios objetos e processos que configuram as diferentes experiências artísticas e estéticas, pois eles são sempre significantes cujo significado não está neles próprios, são sempre uma linguagem que representa, e por isso, re-apresenta algo desse fora. É possível, então, falar de um vício sociológico 25 : transformar processos-produtos artísticos em referente para algo externo ao fazer estético (classes sociais, história, 24

O trabalho de Roger Bastide, Arte e sociedade (1979), pode ser visto sob este prisma. O primeiro capítulo, Formação e desenvolvimento da estética sociológica, traça um esboço do lugar da estética na obra de diferentes sociólogos e pensadores sociais – na maioria deles podemos encontrar esse desviar de olhos dos fenômenos artísticos em si. Segundo Bastide, a sociologia da arte se divide em estudos sociológicos das condições anestéticas e das condições estéticas, distinção que teria sido concebida por Charles Lalo, “o verdadeiro fundador da estética sociológica” (p.25). No entanto, há uma predominância do anestético e dos problemas desse nível de análise sobre o estético. Bastide traz o exemplo de Francastel, que parte da arte para chegar à “sociologia dos grupos ou das sociedades globais, através de suas manifestações artísticas” (p.32). A arte seria, então, uma forma eficaz de penetrar em questões realmente sociológicas e científicas, por sua vez anestéticas, isto é, índice de outros elementos mais significativos do social: “[a arte] é um instrumento privilegiado parar descobrir as molas escondidas das sociedades”; “os modos de prece, de dança, de canto de arquitetura não são inifinitos, podem ser classificados e nos ajudam a classificar os tipos de organizações sociais que os reivindicam”; a abordagem da arte chega mesmo a ser vista como uma técnica, a partir da qual se visa conhecer outros fatores (anestéticos) do social. Essa técnica auxilia “a penetrar nos aspectos mais difíceis e obscuros do social” (p.33). 25 José de Souza Martins, em Sociologia da fotografia e da imagem (2008), parece ter reconhecido em alguma medida este vício e este desviar de olhos, em relação a ele (tratando da abordagem sociológica da fotografia) contrapõe uma abordagem que não utilize os fenômenos expressivos ou artísticos como meros documentos sociológicos para questões que os extrapolam, mas que traga o estético para dentro da

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20 campos, economia, educação, trabalho). Talvez seja possível pensar fora desse vício, voltar a um conceito não fechado de arte, dissolvê-lo, e apresentar aquilo que o preenche: o caráter densamente vivencial, experiencial, processual – as passagens, devires e afetos que o movimentam. A experiência artística como algo que extravasa a elaboração de um produto. Esse capítulo buscará, digamos, voltar aos objetos e processos, àquelas relações que conformam a maneira de ser de uma forma específica de arte, num determinado contexto – a oficina de criatividade de um hospital psiquiátrico. Uma inserção na oficina de criatividade se constitui como um mergulho nas práticas ali realizadas: práticas artísticas, principalmente pintura e desenho, secundariamente escultura e música. De saída, uma impossibilidade: a de propor uma definição fechada ontologicamente que só promoveria uma dessigularização da produção dos internos, por isso passou-se a enfatizar não o ser dessa arte, como categoria estática, mas “a maneira de ser, a maquinação para criar o existente, as práxis geradoras de heterogeneidade e complexidade” (GUATTARI, 1996, p.127). Assim, passou-se a ideia de modo de ser da arte. Nesse sentido, o esforço em permanecer num dentro da experiência estética que, no entanto, nunca se constitui, para perguntar “que arte é essa?”. Esse permanecer dentro significa “fazer transitar as ciências humanas e as ciências sociais de paradigmas cientificistas para paradigmas ético-estéticos” (GUATTARI, 1992, p.21), para que seja possível apreender alguns traços desses

indagação sociológica e mesmo o estabelece como condição: “só é sociologicamente documental a fotografia que é fotograficamente estética” (p.58); “a preocupação estética do fotógrafo é que liberta a fotografia, sociologicamente analisável, da pobreza do raciocínio linear que a vê como equivalente de outros instrumentos de investigação sociológica e, portanto, como mero enriquecimento quantitativo dos métodos disponíveis” (p.59). Além da redução do estético ao anestético, salientada na nota anterior, diversos preconceitos pairam sobre a análise sociológica em geral. Vários desses preconceitos aparecem nas reflexões de Bastide (1979) ou dos autores que comenta. Pode-se citar alguns: a inferioridade de uma arte primitiva realizada através da ornamentação (p.106); a analogia desta com a criança (“a mentalidade primitiva dos pequenos”) e com a mulher, que juntos formam uma coletividade conservadora no que tange a arte (p.108); o controle e utilização da arte pelo Estado para os mais diversos e sinistros fins – “o Estado alemão concebeu melhor as verdadeiras bases da criação” (p.131); a estética como vinculada ao controle social dos valores coletivos (p.132); evolução natural de uma forma artística inferior para que possa relacionar-se com uma superior (p.141); arte como “instrumento de solidariedade social” e pacificação (p.184); arte como jogo desinteressado que difere das “atividades sérias” – “a magia, a guerra, a religião, o Estado” (p.186); a visão funcionalista da arte como elemento orgânico de harmonia social: “cada vez que a sociedade se encontra em presença de sentimentos que pela sua própria intensidade são perigosos para a vida social, reage espontaneamente, aí inscrevendo a ordem: o êxtase, o abraço, a matança, tudo se transforma em dança e música” (p.189); ainda nessa linha: “A pacificação das relações sociais está ligada, dessa maneira, à dupla transformação da hostilidade em jogo e da luta muscular em prazer da arte” (p.192).

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21 processos criativos, que não estejam colocados necessariamente na lógica da produção e recepção de bens simbólicos, sua circulação num mercado específico com leis e estruturas próprias. Na oposição colocada desde Lévi-Strauss entre estrutura – acontecimento, é necessário promover um deslocamento para o segundo termo. Para isso, o enfoque não deve estar colocado somente numa estruturação genética, mas sim nos fluxos e nas práxis atuais dos atores, nos focos criacionistas e singularizantes que essas práxis podem apresentar: O que funda o novo paradigma estético é uma tensão por apressar a potencialidade criativa que se encontra na raiz da finitude sensível, “antes” que ela se aplique às obras (...), aos objetos mentais e sociais. As potencialidades de acontecimento/advento das velocidades limitadas infinitas posicionam estas últimas como intensidades corporais (GUATTARI, 1996, p.129).

A tentativa, porém, de olhar para as obras dos internos a partir desse paradigma estético, deve levar em conta que o processo de produção social das obras, a partir da constituição de territórios existenciais singulares, deve estar aberta não somente à característica discursiva das relações que engendram os processos, como também do nãodiscursivo que engendra e aparece. Passa-se a uma noção de arte como acontecimento. Assim, “a caracterização distintiva do novo paradigma processual é justamente uma tensão em direção a esta raiz ontológica da criatividade”, isto é, esse “criacionismo mutante, sempre em processo de inventar-se e também sempre em processo de perder-se” (idem, 1996, p.131). Somente a partir do enfoque sobre a criação, sobre o acontecimento, sobre os fluxos atuais dos internos na sua relação com os outros, com o material, é possível apreender traços da diferença desse modo de ser na arte e da diferença sendo na arte. Retornemos a uma experiência e a algumas das possibilidades de problematização que ela movimenta. A oficina de criatividade é um espaço no antigo prédio do hospital. Paredes escritas, versos, palavras que trespassam. Desenhos. O espaço dessa oficina interpela. Um grande salão com mesas e cavaletes dispostos. Tintas em paletas de caixa de ovo, pincéis, papéis. Os internos pintam e desenham, alguns simplesmente transitam, alguns batem nas cordas de algum dos dois violões. Estagiários e funcionários circulam,

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22 classificando trabalhos dos internos e guardando-os em pastas.

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Ela senta frente ao

cavalete, ausente às palavras. Desenha, pincelando com tinta escura, linhas paralelas, às quais vai acrescentando ramificações de diferentes cores, com uma espécie de lentidão são as linhas mesmas que são lentas e quase ondulantes. Essa proliferação de linhas continua, recebe formas circulares nas extremidades. São flores, assim parecem – quem transita ao redor da pintura assim a define, com facilidade; dizem que as pinta para mim, brincam com isso. Ela começa a tornar o desenho mais abstrato, adicionando formas triangulares nas linhas originais, brinca com essas formas, e agora pinta, quase que interrogativamente, como se perguntasse às flores sobre sua imagem. Me olha. Aprendi a viver o seu mutismo e a sua linguagem, essa impossibilidade da palavra disponibiliza-nos a essa sua interrogação-pintura. Suas flores são cada vez mais vivas: capricha nas cores no que seria um dos botões dessas flores. Ela pinta calmamente, num ritmo que é o mesmo das linhas primeiras que traçou. Sua calma é um perscrutar. Surgem pétalas. Seu corpo, frente ao cavalete, meio curvado, participa da pergunta, em pequenos momentos de ausência de movimento e suspensão do pincel no ar – esperando um acontecer, um não-pictórico... Pinta perguntando – Ela precisa fazer algo aparecer ali. Perece esperar, nos intervalos dos movimentos, pela cor. Essa espera se faz num repouso do corpo, do pincel. A tinta escorre, pinga, às vezes. Ela me olha, me chama nesses intervalos, como que convida para essa espera. Tudo indica um trabalho concluído: dois ramos de flores vermelhas, sugestivos, galhos azulados, com alguns princípios de abstração nas formas que cercam as flores. Recebe elogios. Eu me manifesto ao longo de toda a pintura, respondendo aos seus olhares. Enfim, tudo indica um trabalho pronto. As estagiárias e funcionários comentam o seu capricho. Tudo poderia acabar ali. Ela, no entanto, e para a surpresa dos elogios que entram em suspensão, começa a pincelar cores escuras por sobre as figuras que estão dispostas na folha, de modo a cobri-las. Faz isso obstinadamente, cobrindo toda a superfície da folha com uma camada de tinta, que, em alguns pontos, é mais translúcida, deixando transparecer as flores. Descrição falha essa – descreve o produto, o que se faz visível no papel pintado. Não o fluxo, o processo e toda carga que ele possui, todo o

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Os trechos de diário de campo no corpo do texto apareceram em itálico.

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23 hesitar, todo o sentimento de alteridade que se insinua. E descrição falha porque a experiência dEla traz a questão do estatuto do fazer artístico na oficina de criatividade. A questão chave “que arte é essa?” parece central na inserção na oficina. A partir disso seria possível estabelecer uma relação de diferença ou até oposição entre o fazer arte enquanto campo artístico, enquanto campo de produção de bens simbólicos ou culturais e o fazer artístico enquanto fluxo poiético tal como aparece, muitas vezes, na oficina. Esse fazer como fluxo traz a oposição processo – produto. O olhar externo sobre a arte, a história da arte em grande medida – é o olhar sobre o produto, a obra acabada que circula, que, segundo dizem, comunica, se faz disponível à troca. O produto é processo perdido, esquecido, cristalizado num fixo, numa coisa. É um termo, o fim, a resolução de um desenvolvimento. É quando a vivência produtiva acaba. A experiência da arte na oficina nos traz a possibilidade de pensar as práticas artísticas no âmbito do fluxo, isto é, do processo, opondo-se à lógica dominante do produto. Na oficina, é possível um deparar-se com modos de ser da arte que se opõe à Arte tal como a experimentamos num exterior. Ali, uma arte na qual processo e produto se confundem – uma arte que é processo e cujos resultados (o papel dEla, coberto de cores escuras) são apenas os vestígios desse devir irrepetível. Nesse sentido, o que realmente interessa são esses mesmos os processos, essas passagens, esses devires, não as obras, os resultados, o acabado, o projeto efetivado. O que interessa é a subjetivação através das cores, da tinta, do pincel – a imputação à matéria de um modo de temporar, de se relacionar com o devir temporal e com as possibilidades materiais de criar, manifestar, inventar processos. A pintura dEla estaria pronta como obra esteticamente apreciável muitos movimentos antes de sua finalização enquanto experiência poiética; isso porque o processo não acaba no aparecimento das flores, dotadas de beleza e potência estética, sobre o papel, no elogio, no apreciável, no comunicável, na figuração, na obra que deve despertar o olhar contemplativo do outro. Não. A pintura dEla tem aí somente um ponto, um novo começo possível, na dissolução do produto através da perpetuação indefinida da produção – uma produção que se excede em significação, que é muito mais profunda do que o resultado convencional da produção-pintura, “as flores”. O investimento presente nessa indefinição do momento de conclusão do trabalho é muito maior. Ela cobre as flores, elas se tornam invisíveis; “que, pena”, “que lamentável”, dizem ali,

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24 “olha o que ela fez!”, exclama alguém que passa não tendo mais o que “ler” naquela tinta sobre o papel, não tendo mais o que situar, o que depreender dali. Ela bate o pincel no papel, com força, a tinta abandona este em nacos que se colam à folha e que são por ela espalhados. Vive esse bater, esse movimento sobre a pintura como um movimento que engaja todo o corpo, que exige gestos, forças, por vezes perda do equilíbrio, exige que se levante. Onde estão as flores? O 'a ser visto' se esconde – não quer ser visto, há um fechar-se da produção nela mesma. Essa é uma arte que não circula, que se fecha sobre si. As flores estão ocultas, a visibilidade foi subvertida. Nada se representa. A pergunta “o que é?” não faz mais sentido. Não há mais projeto, não há um processo teleológico de produção de algo que ainda não é mas se constituirá. Nada se constitui. É a experiência de um corpo que deve aprender a dança desse esconder, deve liberar movimentos que subvertam a repetição e a previsibilidade de um corpo que realiza uma produção de transcorrer linear. É a experiência da arte, na matéria, do movimento, do tempo, de si, o que torna cada momento do processo singular e o que torna o processo um grande trespassado por vetores de singularização, cada ponto é único, tudo acontece e aparece da forma como aparece apenas uma vez, é único; depois, é extinguido ou se esconde. O esconder o antes e matar o depois-produto - as flores que ali estavam antes também é momento único. Isso define uma arte na vivência, um fazer estético que transcende produção-produto, que é um devir estético em relação à manipulação da matéria – é um fazer-se no processo de criação. Cobrir aquelas flores, fazer com que desapareçam acentua o irrepetível, o não-circulável, não-comunicável. Não há mercadoria. É exatamente esse o sentido da arte que o campo artístico molarizador não pode conceber, é o singular que tende a morrer enquanto experiência criativa interminável no produto reprodutível que nasce das mãos do artista externo, do artista interno ao campo artístico, do artista interno do exterior. Assim, vendo as flores dEla. aparecerem e desaparecerem, vi a Ela. Fui afetado por uma sensação de irrepetível na sua pintura, enquanto vivência 27 . As flores aparecem e desaparecem. A partir dessa passagem do invisível ao visível, para um retorno, uma dissolução nesse invisível, é possível pensar sobre a arte de 27

Trecho de diário de campo, 2008.

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25 uma maneira a não constituí-la como conceito ontologicamente fechado – isto é, falar de uma arte que não se constitui, não se acaba, mas que está perpassada por intensidades de vivências e possibilidades de subjetivação num contexto disciplinar e total como o de um hospital psiquiátrico. A partir dessa experiência cabe questionar alguns conceitos sociológicos e antropológicos que dizem respeito à arte, exatamente por vivenciar práticas artísticas no contexto mencionado, e suspeitar de sentidos que elas possam adquirir. É interessante, a partir disso, apresentar algumas idéias referentes à noção de campo artístico e inventariar diferenças em relação a essa modalidade de experiência artística que aparece no relato. A idéia de modo de ser da arte vem aqui utilizada também para estabelecer a produção dos internos dentro do fazer artístico, ainda que a lógica dessa produção difira da arte institucionalizada, no sentido de não concernente ao campo artístico 28 . Ainda que os pressupostos epistemológicos aqui assumidos se distanciem daqueles de Pierre Bourdieu (2005), é interessante trazer desse autor a idéia de campo artístico, bem como sua estrutura de funcionamento, buscando estabelecer um corte: entre Arte (modos de produção e percepção dos produtos simbólicos relativos ao campo de produção erudita e ao mercado artístico) e esse modo de ser artístico na oficina. Com isso não se pretende afirmar a ausência de sobreposições dessas duas realidades – o que se pretende é estabelecer um critério que permita encarar a particularidade do objeto em questão, sem estabelecer o habitual perímetro de homogeneização conceitual. Nesse sentido, poder-seia falar de uma arte menor, uma arte outsider, marginal, da produção dos internos em relação ao campo: isto é, ideologicamente esta seria uma arte inferior, inábil, rústica. Assim, a arte interna, vista fora dos estereótipos que se atribuem a ela a partir de espaços sociais consolidados (a Arte, os saberes Psi, etc), estaria numa posição de questionamento dos padrões sociais externos do que deva ser a arte, isto é, dos universos de referência de valores de produção e recepção eminentemente estéticos e legítimos socialmente – que os “vícios sociológicos” mencionados anteriormente tendem a reificar como arte ou como aquilo que deva orientar a abordagem de fenômenos expressivos. Com isso, não se quer afirmar um caráter intrínseco de desviante dessa arte interna: bem

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Esse procedimento apareceu como uma necessidade quando me deparei com discursos acadêmicos em relação à produção dos internos que imputava a essa produção uma lógica que talvez lhe fosse estranha.

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26 pelo contrário – o que se buscará apresentar aqui é o seu caráter de emergência criativa, singularidade e abertura. O rótulo desviante só se coloca em relação a esses modos de operar do campo e no campo artístico constituído em mercado, que se apresentam ideologicamente como a Arte – e se colocam como socialmente hegemônicos, inferiorizando formas alternativas, isto é, que desviem desse padrão, que se coloquem avessas à lógica de um mercado artístico e do produto, do bem simbólico como mercadoria 29 . Parece que essa hegemonia se estende também às abordagens nas ciências sociais. É necessário questionar mesmo a relevância da noção de produto, por exemplo, para o modo de ser dar arte na Oficina – e com isso a possibilidade da noção de campo artístico dar conta das singularidades dessa arte – do aparecer e desaparecer das flores dEla, por exemplo 30 . A dinâmica de funcionamento do campo artístico pode ser pensada a partir dos ensaios O mercado dos bens simbólicos e Modos de produção e modos de percepção artísticos, ambos capítulos da obra A economia das trocas simbólicas (2005). Na ótica de Bourdieu seria possível falar em campo artístico a partir da “transformação da função do sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura desses bens”, sendo estas correlatas “à autonomização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e consumo dos bens simbólicos” (2005, p.99). A autonomização se dá através da constituição de um público de consumidores virtuais, de produtores legítimos, isto é, artistas profissionais (educados, treinados, possuidores de um sentido do jogo internalizado, de um habitus e uma doxa próprios), e da formação de instâncias de consagração e legitimação eminentemente simbólico-culturais-artísticas (idem, p.100). Desse modo, há a “afirmação de uma legitimidade propriamente artística”, isto é, os

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Para uma tematização problematizadora da ideologia do desviante ver BASAGLIA, Franco e ONGARO, Franca Basaglia. La maggioranza deviante: L’ideologia del controllo sociale totale. Torino: Einaudi, 1978. 30 Evidentemente, as produções dos internos, como foi referido, são apropriadas através de um sistema de arquivamento por pastas: essa ‘apropriação’ por parte da instituição define, por assim dizer, um ponto final ao processo, constituindo, ao fim e ao cabo, um produto, uma obra (mesmo que independente do projeto ou protótipo de seus produtores). Os trabalhos assim apropriados poderiam ser considerados segundo a lógica de uma esfera artística autonomizada que poderia, através da instituição, absorve-los em suas teias. Esses produtos, mais produtos do poder e das dinâmicas e dispositivos desse poder em seus modos de operar na oficina, poderiam ser expostos, circular ou mesmo serem comercializados e reproduzidos. Outra possibilidade de análise se abriria, sem dúvida, ao enfatizar o ponto final conferido à produção pelo arquivamento.

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27 artistas profissionais passam a ter direito de “legislarem com exclusividade em seu próprio campo – o campo da forma e do estilo" (p.101). Conforme Bourdieu: O processo conducente à constituição da arte enquanto tal é correlato à transformação da relação que os artistas mantêm com os não-artistas e, por esta vai com os demais artistas, resultando na constituição de um campo artístico relativamente autônomo e na elaboração concomitante de uma nova definição da função do artista e sua arte (2005, p.101). A arte em questão no campo artístico seria uma arte que separa produção e

produto, dando ênfase à noção de produto, enquanto bem cultural – e mesmo de mercadoria cultural – que circula num mercado artístico. A obra de arte, segundo Bourdieu, no campo artístico apresentaria dois traços essenciais: o de mercadoria e o de significação (p.102) 31 , sendo que as concepções da arte como mercadoria e da arte como pura significação estariam e disputas e disponíveis à tomadas de posição no campo (p.103), ainda que os artistas (especialistas, produtores de bens simbólicos) tendam a produzir um discurso de autonomia total da arte e do artista. A noção de campo artístico, tal como aparece em Bourdieu, supõe uma explicação totalizante, enfatizando o circuito constituído essencialmente de: a) relações sociais (particulares ao campo em questão); b) produto (bem simbólico). O campo teria suas próprias dinâmicas e seria definido como “complexo de produção, reprodução percepção e consumo da obra artística” (Viana, 2007, p.41), ou seja, O espaço social que possui uma estrutura própria relativamente autônoma em relação a outros espaços sociais. Mesmo mantendo relações entre si, os campos (…) se definem através de objetivos específicos, o que lhes garante uma lógica particular de funcionamento e estruturação (idem, p.43).

O campo se constitui então como uma categoria de um poder molar, que articula finalidades e lógicas específicas. O campo artístico tem como objetivo, talvez seja possível afirmar, estabelecer, através do bem artístico, processos de circulação, consumo e troca: um circuito. No entanto, tal lógica “anestética” é exterior ao produzir, ao fazer 31

Essa idéia de mercadoria-significação não é isenta de pressupostos. Segundo Viana (2007), na exposição que faz da teoria de Bourdieu, a obra de arte (que aqui estamos chamando produto) é encarada sob o prisma da possibilidade de legibilidade (p.54). Isto é a obra é legível por fazer referência a algo que deve ser transmitido enquanto mensagem (o que pressupõe a linguagem pictórica da arte visual enquanto focada na semelhança, representação e comunicação). O pressuposto aqui parece ser o de uma semiótica no sentido mecanicista, isto é, uma teoria da informação-comunicação na qual a mensagem deve transitar e ter seu código decifrado (obviamente por aqueles que dispõe de recursos para tal operação).

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28 artístico mesmo – esse poder molar não explica agenciamentos moleculares nem o sentido processual da poiésis na oficina, não se prestando a perscrutar a vida-movimentoagência das imagens, nem como isso pode participar de processos societais que não se dão através de valores artísticos (autonomizados). Ao enfatizar o aspecto de integração das múltiplas experiências e produções artísticas na noção de Arte-instituição, corre-se o risco de perder de vista o micro, o efêmero, a matriz propriamente criativa da arte em seu aspecto não de estrutura, mas de acontecimento. Isso equivale a dizer que, considerando a arte a partir do pólo integração ou estruturação, enxerga-se apenas o que se manifesta dentro, isto é, o que se dá num diagrama predefinido de relações de forças – perdendo-se de vista o fora, o que não está previsto nesse campo de forças, fontes de inovação e resistência aos mecanismos que imperam no interior desse diagrama (no caso, a arte institucionalizada ou o campo artístico). É no pólo integração-instituição-estrutura que se situa a noção de campo artístico. Essa categoria e o tipo de análise que ela propõe não se preocupa com as “catástrofes” 32 , com o pré-pictorico, com formas de arranjos coletivossociais que se podem instaurar através da mediação de imagens ou práticas artísticas. Nem mesmo os objetos produzidos – os produtos, que são um dos fundamentos da existência do próprio campo – são vistos em sua força expressiva ou em seu poder de afetar ou participar de processos coletivos ou individuais de subjetivação. Isso significa dizer que não há nada especificamente artístico nos conceitos dessa abordagem 33 , que parece mecanicizar, des-estetizar e reificar a crítica a um suposto 'fetichismo da arte' quando ela é, predominantemente em várias de suas formas de vigorar, esse mesmo fetichismo, essa possibilidade de produzir algo (que sabemos produzir) mas que se autonomiza (em relação a nós como produtores) e nos escapa, tornando-se também fonte de ação, agindo sobre nós – isto é, justamente o que Latour (2002) chama “fe(i)tiche”. A ideia de campo carrega ainda uma concepção de sujeito ou ator social que deve ser esclarecida. A ontologia que parece permear a abordagem de Bourdieu é baseada

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Deleuze (2007), em Pintura, apresenta a noção de catástrofe como origem da cor. Ainda que aqui se discorde quase absolutamente das proposições de Viana (2007) sobre a esfera artística, sua concepção de crítica, sua ontologia e demais pressupostos epistemológicos e filosóficos, é interessante trazer uma afirmação desse autor, segundo a qual faltaria a Bourdieu “uma concepção de interpretação da obra de arte” (p.56). Afirma ainda o autor que mesmo quando interpreta a obra, isto é, faz uma análise que não trata necessariamente das relações do campo, o sociólogo francês não teoriza sobre seu método de interpretação. 33

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29 naquela do homem duplo de Durkheim 34 . No que se vincula à noção de campo, a ação dos atores no espaço social é explicada pelo habitus. Este poderia ser definido como a fonte, o esquema de respostas dos atores conformado por disposições duráveis que remetem o indivíduo a uma esfera autonomizada da sociedade. A noção de habitus informa o indivíduo remetendo-o ao espaço social, descreve suas práticas e disposições conformadas e sedimentadas, estruturadas diacronicamente. O habitus seria como um sistema internalizado de disposições, princípios organizadores e geradores de práticas que se vinculam às regras de um campo: “A prática de um indivíduo é resultado da mediação entre habitus e campo” (VIANA, 2007, p.44). O habitus remete a uma trajetória a um passado. Assim, o sujeito sempre já está lá, pois o social o precede e conforma. Além disso, a repetição a mesmidade permeia essa concepção de ator: um passado que explica sempre as possibilidades do presente. Essa idéia explica mecanismos de um sujeito – ele mesmo mecanismo, objetivável – sempre já constituído socialmente em sua trajetória molar; não explica, no entanto, as possibilidades de subjetividades se constituírem no devir ou no porvir, não explica as possibilidades de novos modos de subjetivação, de um sujeito que é sempre polifônico, não centralizado, não anterior ao processo, por exemplo, da vivência de práticas artísticas. A essa idéia de habitus opõe-se a de modus, que atenta para as possibilidades atuais, não fixadas num passado ficcionalizado como trajetória, atenta para as linhas de fuga, para as possibilidades de devir outro, possibilita ver agenciamentos nas práticas que engendram um sujeito a partir de múltiplos elementos (societais-espaciais-temporais-estéticos) no âmbito do processo e não do internalizado. O modus nos conduz à arte como acontecimento. Certamente seria necessário explorar melhor esse conceito de campo artístico de Bourdieu com a finalidade de elaborar um inventário das diferenças entre os modos de 34

A forma como Durkheim (1983) estabelece a discussão sobre a gênese social das categorias continua a reverberar em teorias contemporâneas, como a de Pierre Bourdieu, por exemplo. Porém, há na visão durkheimiana – que nesse sentido retoma Kant, uma pressuposição que se torna problemática: a do sujeito no qual as estruturas habitam. Esse sujeito é visto como um dado, ainda que sua forma de apropriação cognitiva do mundo seja dependente de construtos de origem social, a ossatura da inteligência. É um sujeito contínuo em sua bipartição (indivíduo-sociedade), unificado, que possui um centro, ainda que seja dual (simbólico e individual) que vive um tempo contínuo, padronizado, um devir organizado ainda que de forma socialmente contingente, ou uma espacialiadade ou paisagem colorida afetiva e simbolicamente pela cultura. O sujeito é um dado, aqui ou lá (tribos australianas em As formas elementares da vida religiosa). O sujeito não é, por conseguinte, uma produção que existe apenas processualmente enquanto subjetivação. O tempo é o tempo social-cultural, um transcorrer contínuo organizado social e simbolicamente de maneiras diferentes.

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30 ser da arte na oficina e o campo artístico, seus pontos de diferenciação, atração, intersecção, repulsão e contato. Os pontos de contato, com certeza passam a ser cada vez mais freqüentes, com um processo de visibilização da Oficina para o exterior, através da realização de exposições dos trabalhos dos internos em galerias de arte 35 , etc. No entanto, devido às impossibilidades de extensão do presente texto, a exposição sobre a definição de Bourdieu se faz suficiente para uma diferenciação inicial e não absolutizante da arte da Oficina em relação aos produtos do campo artístico, com a finalidade de responder à questão “que arte é essa?”. Algumas diferenças essenciais seriam da Oficina em relação ao campo artístico: a não existência de regras propriamente estéticas e objetivas na produção das obras e no processo dessa produção, a não existência de um público virtual de consumidores (em termos estritamente artísticos), a inexistência da instituição de modos de recepção das obras 36 , assim como de modos de produção, a partir de um aprendizado, e da internalização de uma doxa e de um habitus. É possível citar ainda a inexistência, na oficina, do artista profissional, assim como a inexistência daquilo que define a autonomia de um campo: a ortodoxia, marcada pela “hierarquia segundo o grau de reconhecimento no interior do grupo de pares-concorrentes” (BOURDIEU, 2005, p.107). A noção de “pares-concorrentes” não encontra repercussão prática na Oficina, não havendo os mecanismos de consagração das obras como realidades estéticas unívocas e mercadorias passíveis de circulação no mercado, internamente ao campo. Além disso, não encontramos ali um poder “para definir as normas de sua produção” – sendo essa normas basicamente imposições do funcionamento da instituição – ou para definir “os critérios de avaliação de seus produtos e, portanto, para retraduzir e reinterpretar todas as

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Toma-se como exemplo uma exposição em galeria de obras selecionadas de alguns internos, realizada em 2008. Poderia-se discutir aqui a ideia de apropriação apresentada anteriormente como procedimento institucional existente na oficina, configurando produtos. Essa apropriação enquanto arquivamento e mesmo exposição possui, no entanto, uma complexidade própria: diversas instâncias que se articulam no âmbito do hospital e fora dele, na produção de discursos e saber, na produção de uma legitimidade dessa arte. 36 Salvo se considerarmos o arquivamento institucional referido como modo de recepção no sentido da apropriação e do arquivamento. Aqui, no entanto, esse processo não se daria a partir de valores artísticos de apreciação, mas de procedimentos do poder em termos de visibilização, de criação de um sistema de informações e controle sobre os internos. Nesse sistema, há sempre a possibilidade de recorrer às produções arquivadas não somente com finalidade de apreciação estética, mas de exercício do saber-poder psi.

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31 determinações externas de acordo com seus princípios próprios de funcionamento” (idem, 2005, p.106). Esses e outros traços diferenciam a lógica de funcionamento da produção artística da Oficina da lógica da produção do campo artístico. Cabe ressaltar ainda a impossibilidade da constituição dessas obras como produtos que se desvinculam de seus produtores em termos de circulação num mercado específico de valores intrínsecos – essas obras se desvinculam de seus produtores num outro plano, o do arquivamento, por parte da instituição, que controla a produção de cada interno, podendo visibilizá-la aos saberes psi através de seu arquivamento em pastas individuais de cada interno. Assim, a diferença chave em relação ao campo artístico, isto é, à arte institucionalizada numa esfera autônoma de produção e consumo, com mecanismos de consagração e distinção, é a ineficácia teórica e impossibilidade ética da noção de produto. A lógica na Oficina é outra: o processo tem precedência sobre o produto – a produção se faz em função do próprio processo, de maneira não teleológica, e não na produção de um bem acabado, passível de circulação – ainda que algumas das pinturas dos internos sejam passíveis, como já foi referido, de apropriação por esse mercado. Sem dúvida, uma das formas de produção de discurso sobre a produção dos internos se dá a partir da lógica do campo artístico, relacionada a uma análise do produto final, isto é, das ‘obras’ arquivadas em acervo, descolando-a das vivências atravessadas e únicas do processo de produção. Alguns trabalhos dos internos, levando em conta mesmo algumas observações de Bourdieu sobre modos de produção e percepção artísticos, podem, de fato, e a partir desses modos, ser considerados produções estéticas, obras de arte. Muitas vezes é possível admirar pinturas e esculturas, produzidas na Oficina, sem conhecer seus produtores e sem sentir as reverberações de seus processos criativos, como processos nos quais surge a possibilidade da afirmação social de uma identidade aberta na criação. Outras pinturas, no entanto, podem ser apreciadas não só por suas qualidades socialmente aceitas como estéticas, como também pela intensidade significativa que adquirem, na sua relação com seu produtor e com o contexto no qual aparece, o hospital psiquiátrico 37 . Nesse caso, o conteúdo significativo presente no produto artístico o

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Subindo a escada, nos deparamos com uma pintura (cujas informações na etiqueta colada na parede ao lado do quadro atribuem a um paciente do hospital). A pintura retrata, basicamente em tons de amarelo, um

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32 relaciona a seu contexto de produção, no entanto, o conteúdo no sentido tradicional do termo, não nos restitui o processo: as manipulações, as ações e as vivências que tiveram lugar naquela produção enquanto uma forma de expressão na matéria de afetos e perceptos da situação de reclusão e da vida no hospital psiquiátrico, não revela os acontecimentos em seu caráter processual que investiram a matéria de significado e a autonomizaram mesmo em relação a esse processo de criação. Assim, a análise do produto a partir de um universo de valores propriamente estético (o do campo), perde de vista o processo naquilo que apresenta em vetores de re-singularização de internos jogados nas teias de uma instituição que mortifica os afetos e a subjetividade. Através da incompatibilidade da noção de campo artístico, focada no pólo produto, com o devires singulares dos processos de criação, é possível continuar indagando pela singularidade da arte tal qual aparece na oficina, e tal qual se apresentou no relato. Vimos que o julgamento, a partir de um domínio de valores especificamente estético-artístico, acabaria por reproduzir a própria lógica de funcionamento do campo artístico ou os pressupostos da teoria que o explica. Por um lado, expandir o estético, enquanto domínio de criacionismo para além da ideia de produto, para além da obra acabada, dissolve ou matiza o próprio conceito de arte, colocando-o, por exemplo, na própria relação dos internos do hospital psiquiátrico com o poder da instituição ou como forma de utilizar seus corpos em sentido diverso desse poder, através do engajamento em processos, gestos, movimentos, intensidades corporais e fazeres artísticos com a matéria expressiva disponível na oficina. Além disso, a idéia de arte tal como a pintura das flores parece apresentar, se vincula à própria possibilidade de subjetivação, de constituição de um si através dos processos e das matérias expressivas em questão. Ainda que tendamos a olhar a partir dos valores do campo artístico e do universo estético para as produções dos internos, devemos levar em conta que “esta setorização dos modos de valorização está profundamente enraizada na apreensão cognitiva de nossa época” (GUATTARI, 1992, p.122), e que ela constitui apenas uma das possibilidades de rosto no qual diversas expressões parecem se fundir, sobrepor e misturar. Ao lado do rosto, os dizeres: "Eu sou você" [Trecho de diário de campo, junho de 2006]. Ou ainda, outra pintura exposta: dois orifícios, que tem como que o formato de olhos, no interior dos quais se enxerga duas figuras à Rousseau, vestindo túnica pretas, com pássaros negros na mãos, sendo que tais figuras que aparecem através dessas janelas-olhos parecem habitar o interior de uma cabeça...

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33 encarar um processo criativo, situando-o em estruturas molares – o circuito de produção e consumo artísticos, por exemplo -, que perdem de vista os acontecimentos moleculares presentes na arte-processo que se manifesta na oficina. Assim, uma antropologia que queria transitar num paradigma estético ou estetizante, não pode estar centrada nesses valores setorizados (como seria no caso de adotar a noção de campo artístico e a primazia da obra para toda a produção artística), sob risco de sociocentrismo e etnocentrismo. Assim, deve-se ter presente que “A arte não tem o monopólio da criação, mas leva a seu extremo a capacidade de inventar coordenadas mutantes” (p.125). A arte tal como universo de referência de valores, a arte institucionalizada constitui a forma hegemônica de ser da arte. No entanto, os processos de criação artística – como também social, política, psíquica – extravasam esse universo de valores autonomizado. Desse modo, abandonando o desencantamento moderno que vê a nítida separação dos domínios, a arte na oficina de criatividade nos leva a perceber as possibilidades criativas na produção de modos de subjetivação que se opõem à lógica da disciplina e da instituição total e que, ainda que estando sob sua égide, estabelecem, nas fissuras da mesma, possibilidades de resistência e, por que não, de reencantamento: “A estetização geral (e relativa) dos diversos universos de valor conduz a outro tipo de reencantamento das modalidades expressivas da subjetivação” (idem, p.125). Desse modo, a arte apenas fornece a possibilidade de pensar sobre os focos criativos de re-singularização dos grupos sociais e dos indivíduos a partir da ótica dos fluxos atuais, da manipulação do material, de relação com o outro. Trata-se de uma artialização da própria vida. Fica evidente que: Não nos referimos à arte institucionalizada, a suas obras como se manifestam no campo social, mas a uma dimensão da criação em seu estado nascente, perpetuamente adiantando-se a si mesma, potência que tem a capacidade de emergir subsumindo à contingência e às aleatoriedades das intenções de materializar universos imateriais. O afeto da subjetividade territorial vê-se habitado por um horizonte que está além do tempo discursivo (tempo marcado pelos relógios sociais) numa duração eternitária que escapa à alternativa lembrança-esquecimento (GUATTARI, 1996, p. 123). A arte pode ser vista não como esfera secularizada e autonomizada do mundo

social, mas como possibilidade dessa experimentação de si num nível micro, dessa produção de afetos e perceptos, o processo expande-se de modo a contaminar os demais

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34 domínios da vida com esses focos criacionistas vivenciados no estético, na produção artística. No relato apresentado, as flores que Ela pintou pareciam estar sendo oferecidas, como presentes, como algo a circular, de alguma maneira, socialmente realizadas nesse jogo, como algo a comunicar – sendo a interna muda, e se comunicando sem as palavras. No entanto, quando a obra está acabada, Ela a impossibilita: torna as flores invisíveis através de uma camada de tinta escura. Não interessava que essas flores existissem além daquele momento. Não interessava que sua existência fosse um referente de uma mensagem. Ela as cobre. Depois de acabado esse cobrir, parece não haver mais nada a ser feito com a pintura, parece que a pintura mesma se dissolve, por assim dizer, naquela superfície escura intransponível pelo olhar. No entanto, as interações, durante o pintar eram centrais. Este caso foi escolhido entre tantos outros por deixar claro a impossibilidade da 'obra' acabada. No entanto, ele não apresenta o poder de investimento e subjetivação que vários outros momentos vividos na oficina apresentam, como por exemplo, uma interna que pinta adornos e posteriormente os 'veste' realizando-os e, por assim dizer, tendo seu corpo realizado por eles 38 . As flores são de certa maneira algo que Ela liga a si, algo que deve ser escondido privado da visibilidade do poder disciplinar, que sobre ela se baseia. Esse cobrir as flores é quase uma metáfora dessa invisibilização, momentânea e passageira, frente ao hospital enquanto máquina de dessingularização, objetivação e mortificação do self. As flores devem sumir, assim nada pode sobre elas se articular, diagnosticar, etc. Não há nenhum cânon que governe a produção dEla, nenhuma disputa de campo ou hexis internalizada a partir de práticas de um ensino artístico. A arte e o artístico-estético não estão integrados de maneira total no que se entenderia como um universo de valores artísticos moderno, secularizado em suas lógicas e dinâmicas, autonomizado em suas relações 39 . Desse modo, a noção de campo artístico diria respeito a apenas uma forma de ser do estético, isto é, enquanto tributário de uma concepção de moderno, que se vincula a um desencantamento do mundo e a um 38

Esse relato será tratado com maior profundidade em um outro momento, no qual se tematizará a relação corpo-poder-subjetivação no contexto das práticas dessa mesma oficina. 39 “A segunda lacuna [da teoria de Bourdieu] refere-se à questão dos elementos que não se intergram no campo artístico e são considerados artísticos” (VIANA, 2007, p.57).

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35 progresso secularizado das esferas do mundo social. Talvez fosse interessante pensar fora do parâmetro moderno da secularização das esferas e encarar, por exemplo, que as experiências artística e religiosa, assim, como ética, política, psíquica, institucional, científica, podem se interpenetrar e trespassar, movimentando afetos similares e produzindo agenciamentos relacionais. A esfera da criação estética não seria assim monopólio de uma esfera artística, mas poderia ser vista como a própria possibilidade política de resistência e ressingularização dos atores, como a própria possibilidade ética de arranjos coletivos, por exemplo. A idéia de campo artístico parece demasiado rígida e fechada 40 para compreender o modo de ser da arte ou os devires artísticos-éticos, artísticos-políticos, artísticos-sociais dos internos da oficina de criatividade. Os vícios sociológicos, as heranças funcionalistas, cientificistas e positivistas que ainda são hegemônicas na forma de pensar antropologicamente ou sociologicamente os fazeres poiéticos não podem vendar o olhar para as possibilidades ético-estéticas que as práticas expressivas e produtivas – tais como aparecem na oficina - apresentam em termos de criação e emergência de modos de subjetivação não totalitários, de corpos não-dóceis, de sujeitos não sujeitados.

3.2.

CORPO, ARTE E SUBJETIVAÇÃO

A partir de Foucault (1984), é possível afirmar que a situação de internamento nos coloca frente a um poder sobre os corpos, que “os investe, passa através deles” (p.29): um poder que consiste na objetivação destes, na sua fabricação enquanto corpos dóceis, disponíveis aos procedimentos, tratamentos e exames de um poder que está articulado ao saber psi - “esse saber e esse controle constituem o que se poderia chamar a tecnologia política do corpo” (idem, p.28). Esse corpo está colocado em espaços disciplinares específicos, a partir dos quais pode-se constituir toda uma minuciosidade do controle, da visibilidade e da correção. Corpos cercados, estigmatizados, seguem rotinas regulamentadas e ciclos de repetição, estão englobados pelo ritmo totalizador da 40

Reiterando as ressalvas em relação a Viana, este afirma em relação ao caráter rígido da noção de campo que “essa rigidez pode ofuscar a compreensão de determinados fenômenos artísticos” (2007, p.58).

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36 instituição (Goffman, 1961). A caracterização de instituição total certamente define o contexto do hospital psiquiátrico em questão. A expansão infinitesimal do poder sobre a vida instaura uma anatomia política, que inaugura o corpo e seus processos como lugar do poder. No entanto, o corpo não é só um agido, mas um agente – sua constituição não se dá somente na ação desse poder objetivador, que atribui a ele funções e eficácias produtivas – sua produção se dá também através de outros processos, de outras formas de utilizá-lo, significá-lo e, socialmente, realizá-lo. Assim, cabe indagar por esses outros processos e formas de utilizá-lo, num locus muito específico desse hospital psiquiátrico – sua oficina de criatividade, que, como já foi dito é um espaço no qual os internos realizam práticas artísticas, principalmente pintura e desenho, mas também escultura e música, através dos materiais ali disponíveis 41 . Esse perscrutar sobre as potências do corpo no sentido de ser vivido de uma maneira re-significada e não-disciplinar, subjetivada, num contexto totalitário que dessingulariza e objetiva, se vincula, de modo geral, à pergunta do filósofo Baruch de Spinoza - “o que pode um corpo?”. O que pode esse corpo frente aos dispositivos de um poder que se articula sobre ele? Quais são suas potências de re-arranjo de forças, de resistência 42 , de fruição avessa a esse poder, de invisibilidade, de singularização, de investimentos simbólicos? Essas indagações nos levam a pensar o corpo como matriz primeira na reflexão sobre processos de subjetivação, em agenciamentos e afetos que não necessariamente se fazem de forma disciplinar – isto é, equivale a dizer com Foucault (1985) – que esse corpo é uma superfície de cuidado de si, através de uma articulação de

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As práticas artísticas ou a manipulação desse tipo de material nos leva imediatamente a pensar numa fruição material mais liberada, por assim dizer, das disciplinas e do controle, uma maior imprevisibilidade dos usos e engajamentos do corpo – no entanto, uma particularidade do espaço em questão é o fato de que se integra uma instituição total e reproduz seus procedimentos: a própria estruturação desse espaço, a disposição ordenada das mesas e dos materiais, a possibilidade de circulação de estagiários e funcionários, etc., deve apontar também para um espaço de previsibilidade ou, ao menos, de previsibilização, por assim dizer, das ações. 42 Tematizar as possibilidades de resistências, deve estar acompanhada de um imperativo: estar atento a um possível argumento conformista ao contexto manicomial equiparando criação e resistência (reificando as duas noções, afirmando e justificando, por um lado, o confinamento e a reclusão), isto é, não perder de vista caráter institucional da oficina. Ter presente a ressalva foucaultiana: o poder trabalha sobre o visível e quer visibilizar – nesse ponto, tematizar as formas de resistência aparece como algo que deve ser feito como uma especial atenção política.

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37 si, de forma a produzir novas possibilidades de subjetivação, repitamos, não totalitárias e não disciplinares 43 . Ao enfatizar a idéia de subjetivação busca-se pensar a experiência estéticaartística como possibilidade de constituição de um sujeito não-sujeitado. No entanto, conforme foi afirmado no capítulo anterior, isso não pode ser pensado fora dos processos propriamente artísticos – o que significa dizer que se essa produção de subjetividade é estética, se faz na experiência artística e de certa maneira configura sua especificidade no hospital. Essa constituição de um sujeito através de outros processos que não os disciplinares, do exame, da disciplina, etc, configuram o processo artístico em questão como processo político, polEitico 44 . Trata-se de pensar essa arte num sentido amplo, digamos de uma 'artialização' da vida, ou da vida como obra de arte. Há, dessa maneira, uma “inseparabilidade da tríade ética/estética/política”, lembrando que: os domínios da ética, da estética e da política já haviam sido reunidos intrinsecamente, desde que a noção de vida entrou em cena, por exemplo, com Foucault – que cunhou o termo 'biopolítica' -, e com Deleuze – quando a vida tornou-se imprescindível para a filosofia” (ROQUE, T. Prefácio in: NEGRI, 2003.p.8)

Desse modo, perguntar “o que pode um corpo?” é, como já foi dito, também indagar pelas possibilidades infinitesimais da constituição de lugares de resistência, entendida enquanto re-singularização, re-apropriação, indisponibilização frente ao poder disciplinar e subjetivação que ele apresenta, mesmo em contextos de controle total e disciplinar (como é o hospital psiquiátrico). Uma resistência fluida, em nível micro, temporalmente inextensa, não-reflexiva, que se dá no plano da vivência de fluxos, afetos e imagens, que multiplicam as fontes de ação e que se dá no âmbito de uma experiência corporificada. Uma resistência que é um singularizar-se, feito em pequenos devires e 43

É importante explicar brevemente diferença entre cuidado de si, tal como estabelecido por Foucault, e a forma como aparece a prática de si na oficina de criatividade. Para Foucault (1985), no terceiro volume da História da Sexualidade, o cuidado de si e as práticas de si se vinculam a um domínio de si realizado por práticas racionais e planejadas de rigor moral para consigo que se inscrevem nas práticas cotidianas e na relação do sujeito com o corpo, isto é, a uma vigilância reflexiva de si, configurando uma estilística da vida moral. Na oficina, acredito que esse viés de vigilância-reflexividade não parece encontrar correspondência. As práticas de si se fazem noutro sentido, numa fruição, como será discutido ao longo desse capítulo. 44 É possível apontar Canevacci (2005): “PolEitics (...) Um título híbrido e aporético, em busca de cruzamentos possíveis entre o poético e o político. Com essa nova palavra, uma espécie de ideograma líquido, apresenta-se um possível enxerto posterior (...) entre as duas palavras não mais bloqueadas em sua desesperada separabilidade” (p.163).

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38 mutações 45 , por um instante ínfimo, nos intervalos, nos espaços, nas fissuras de um poder disciplinar que se instaura sobre os corpos na instituição psiquiátrica. Através dessas reflexões – surgidas, em sua maioria da própria experiência de campo – busca-se, através de um paradigma ético-estético e processual (Guattari, 1992) observar as relações de engendramento entre corpos – arte, isto é, perceber etnograficamente como corpos estão realizando processos artísticos e estão sendo realizados por eles. Através dessa questão e do princípio de inserparabilidade estéticapolítica, busca-se dar conta das relações entre corpo e poder através das práticas realizadas na oficina. Para isso, deve-se atentar para as superfícies de pintura, por exemplo, como corpos – e para os corpos como superfícies de pintura. Essa perspectiva coloca a vivência de imagens e vivência do corpo num mesmo nível, buscando ver nessas relações possibilidades infinitesimais de resistência dos corpos ao poder objetivante e disciplinar. Cabe, assim, expor dois trechos do diário de campo, referindo-se a duas situações diferentes na oficina de criatividade do hospital, para que seja possível tematizar algumas questões apresentadas anteriormente.

3.2.1 Primeiro trecho: A tinta e as mãos

Aquele interno pára de pintar. Olha o papel. Acontecimento. Algum arrebatamento, algum fluxo o captura e carrega. Parado em frente ao papel, algum contato novo. A tinta fria tocou suas mãos, inaugurou suas mãos como potência de receber tinta. A mão manchada não é mais a mão que executa, que realiza algo numa superfície de papel. Não, essa mão foi de alguma maneira realizada, ao tocar aquela tinta – ao ser tocada por ela, e ao recebê-la. Uma catástrofe, o ato de pintar se interrompe, algo acontece, algo emerge nesse corpo. Esse toque o arrancou da pintura simplesmente lúdica, o jogou em um devir-tinta, superfície, pintura, imagem. O fato de a 45

“Mas, para compreendê-las, é fundamental partir de um uma 'outra história', não a do poder, não a do domínio nem a do controle, mas a da resistência que é anterior ao domínio e ao controle, e provoca suas mutações”. Trata-se de “pensar positivamente as resistências” (ROQUE, T. Prefácio in: NEGRI, 2003. p.14).

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39 tinta o ter tocado o coloca frente a algum espanto frente a si, e a uma nova forma de vir a ser, de perceber seu corpo, de uma possibilidade de uma nova prática tomar lugar no corpo e através dele. Ele começa, alguém o ajuda – pinta as mãos dEle e as coloca contra o papel. É surpreendente sua relação com essa sensação de ter a tinta na pele das mãos. Ele estremece, se cala, se perde, não se sabe mais se a tinta vem de suas mãos ou do papel, nem onde deve ficar a marca, ou cada um desses elementos, que agora estão acoplados. Ele está estático, seu cuidado parece ser não deixar escapar aquela tinta e aquelas mãos. Pessoas que por ali passam clamam pelo resultado: pedem para que pressione as mãos contra o papel, e as retire. Mas não, não se trata de imputar algo ao papel, pois algo aconteceu antes disso – com as mãos. Acredito que sua sensação, seu estar sendo afetado é muito maior pelo contato material com a tinta fria nas mãos. Esse colorir-se como um apropriar-se, significar o corpo através da tinta: aqui aparece a idéia da importância ou precedência do processo sobre o produto (por exemplo, a marca que poderia deixar de suas mãos sobre o papel) – um processo não teleológico, não realizado em função do que ainda não é: aqui, não há essa idéia de temporalidade em função de, esse tempo que passa, mas sim do tempo agido – um tempo atual, não um ainda-não-ser. Um tempo que é criativo, cujo transcorrer não é o transcorrer do tempo da instituição e da forma como ela se expande sobre a vida. Desse modo, o processo existe em função dessa vivência mesma – irrepetível, irreversível, da materialização de afetos: uma vivência que não se caracteriza como essencialmente artística, mas que chama um estar criando emergente, um subjetivar emergente. Dessa maneira, a arte não detém o monopólio da criação – ela trespassa as relações. Uma arte cujo cerne é a própria possibilidade da produção de um sujeito que pode viver fluxos próprios, que pode diferir. Nesse sentido, a criação é esse encontrar de possibilidades de subjetivar a matéria, de compor-se e experimentar-se através dela: “o que importa, primordialmente, é o ímpeto rítmico de uma temporalização capaz de fazer unir os componentes heterogêneos de um novo edifício existencial” (GUATTARI, 1992, p.32). O que essa arte-agenciamento-processo implica é a produção desse tempo qualitativo, vivo. O pintar as mãos é um marcar do tempo no corpo, o marcar o papel com as mãos plenas de tinta, um marcar do tempo que se imprime na materialidade, que transcorre de maneira diversa aos relógios da instituição total. Pintar as mãos é fazer delas, fazer do corpo

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40 algo cuja forma de ser é estética – é fazê-lo uma superfície de pintura e, assim, superfície de investimentos picturais, simbólicos. É um corpo pintor-pintante, mas é um corpo pintado e enquanto tal singularizado segundo os vetores de subjetivação dEle, desse interno, que consegue sorrir ao pintar-se. Pintar as mãos é investir o corpo com algo que o compõe de maneira diferente da forma como o saber médico o produz. É experimentálas como resultado de um processo de pintura, como uma produção e, por isso, ver essas mãos, sentí-las também enquanto imagens. Uma forma de cuidado desse corpo, de prática de si através do corpo – uma dobra! A expressão do interno que mantém as mãos sobre o papel é nova para mim. Aquelas mãos pitadas e pintoras unidas ao papel são novas para ele. É realmente um processo singular, um processo de descoberta de uma forma de lidar com a tinta, com as mãos, reatribuir um sentido, ainda que não discursivo a estas realidades. Logo, outro interno, sentado à minha frente – que antes não estava utilizando tintas – apanha um pincel e passa a pintar as mãos com as diversas cores da paleta, um “cuidado” detalhista que ele não parecia ter em relação aos seus desenhos - ele parece experimentar algo com o pintar as mãos, o fluxo surgido no outro se propaga, contagia, como parece apontar Gabriel Tarde (2007), um fluxo imitativo que, no entanto, produz ou possibilita a diferença. A princípio, ninguém nota sua atitude. Pinta utilizando as diversas cores, cuidadosamente. Olha as próprias mãos: realidades novas, que adquirem uma outra vida. Ele olha com seriedade e expressão quase severa para essas mãos cuidadosamente pintadas. Levanta os braços, levando às mãos à altura dos ombros: os deixa cair com grande força e peso sobre o papel, causando um impacto na mesa, gerando um estremecimento – passa desferir esses golpes por mais algumas vezes. Que mãos são essas que pintam o papel? Não importam as marcas! Esse corpo-mãos-tintacores é novo nesses golpes, que surpreendem quem está em torno. O cair forte e obstinado, quase violento, dessas mãos sobre o papel é o que importa, a vivência desses golpes, em sua força, intensidade, indocilidade: os corpos se reapropriam de si frente à disciplina da instituição total? Sim, há algo nEle que se ausenta do controle totalitário. Há algo nEle de força não disciplinada, não controlada, não extraída pelas forças externas. A vida é objetivada pelo poder, mas é também tomada pelo fazer artístico em contrapartida – uma contrapartida discreta: a diferença em seu diferir – a Diferença que

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41 insiste. Como há algo atual, novo, que se guarda na atitude do interno que primeiro pintou as mãos - as mantém sobre o papel, com um sorriso leve.

3.2.2 Segundo trecho: Os adornos e o corpo

Nesse relato gostaria de enfatizar uma interação em especial: a com Ela., que me fez compreender a forma como se relaciona com as imagens – empreendendo uma compreensão mais ampla da natureza, ou melhor, dos modos de ser, da agência dessas imagens. Nessa manhã, Ela 46 é uma das poucas na Oficina. Transito, perco a oportunidade de conversar com alguns internos que se vão. Talvez seja relativamente tarde, não sei: noto que não trouxe o relógio comigo nas últimas visitas. Isso me leva a pensar a minha relação com o tempo na Oficina. Enfim, sento-me ao lado dEla. Ela chora, ou ri. O som é muito parecido. Sei que chora, aponta suas dores, seu corpo – um corpo contorcido, um corpo dolorido, sobre o qual sofrimentos se inscrevem, sobre o qual o manicômio se inscreve - leva minha mão às suas costas. Levanta. Continuo ali, lhe entrego papel, giz. Tento compreender seus gestos. Não sei se consigo... Olho para onde olha ou aponta, tento traduzir. Me apercebo do reducionismo dessa tradução. Tento parar. Pega uma caneca plástica – entendo o gesto, pede que eu sirva com água. Dia quente. Sirvo. Volto.

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Em relação às pinturas dEla e às vivências que as acompanham, a interrogação remonta a outras experiências na oficina. Reproduzo aqui um exemplo: Uma senhora desenha com giz, seguindo um mesmo padrão. Seus gestos ao manipular o material, expressam o mesmo peso que ela utiliza para pintar, parece aflita. Não parece disponível à minha inconveniente interpelação para a conversa. Eu falo das cores que utiliza, elogio um roxo que com o qual ela faz pequenas esferas ao redor de um círculo. A forma como ela move tudo que utiliza, expressa um peso. Seu gestual se diferencia do dos outros internos.. Cada um deles parece ter uma relação diferente com a questão material do desenho ou da pintura. (...) Essa senhora a quem alcanço o giz, desenha com força, mas ainda assim com lentidão. Certamente há uma duração diferente na realização de cada um dos trabalhos, por cada um dos agentes: seu gestual expressa uma certa temporalidade que não parece capturável intelectualmente.Essa lentidão é uma ambiência afetiva singular... Ela olha fixamente seu desenho (...). A senhora a quem havia alcançado o giz, vem em minha direção, com seus trabalhos reunidos em mãos. Ela os entrega para mim. Pergunto se são para mim ao que ela não responde, apontando na direção de onde os outros trabalhos são guardados nas pastas específicas de cada um que freqüenta a oficina. Vejo que um de seus desenhos foge do padrão de círculos grandes cercados de esferas pequenas – é o que rudemente posso ver. Pergunto o que era aquele desenho, diferente dos outros. Ela. não responde, caminha e indica para que eu vá junto. Vou. Sento-me ao seu lado na mesa. Ela parece querer acrescentar coisas a este ultimo desenho. Alcanço o giz para ela, o coloco em suas mãos. Ela desenha com um laranja, aponta para mim. Digo “eu?”, ela afirmativamente move a cabeça. Toca na minha mão. Eu a estendo, ela a segura sem força ou agressividade e a leva até seu ventre com um quase-desespero [Trecho de diário de campo, junho de 2007].

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42 Desaprendo a narrar, pois tudo está se dando ali fora da palavra. Ela me pede para guardar seus desenhos na pasta. Guardo. Me pede tintas, acho, em meio as suas dores que não me arrisco à compreender. Pego a paleta deixada por uma interna que pintou bonitas flores. Entrego a Ela, com algumas folhas. Ela começa a pintar, se levanta, dança ao escutar uma música que a agrada vinda do rádio, volta à sua pintura, engaja seu corpo e suas dores nos movimentos dessa dança, faz a pintura participar desse retorcer em dores. Nunca tinha visto, da parte dela, utilização das tintas. Mesmo não utilizando a caixa com giz, ela me faz um gesto como que “leva isso embora”. O que Ela vive é um “confronto com uma nova matéria de expressão” (GUATTARI, 1992, p.17), com a qual não possui familiaridade, entrando num jogo de relações com o pincel e as tintas, não só um aprendizado mas um outro experimentar da matéria e de seus próprios movimentos, de seu próprio corpo: às vezes ri por ultrapassar os limites da folha com as pinceladas e pintar a mesa, às vezes reclama. Essa nova forma de expressão é um novo elemento possível no vir a ser de um acontecimento, de uma vivência de produção de sentido, de re-singularização de si, de um aprendizado sobre o corpo, cobre movimentos possíveis com o uso do pincel e das tintas. Ela está muito focada na pintura. Pinta aquilo que sempre desenha, formas circulares, compostas de pequenos círculos e 'bolas'. Havia visto muitas vezes aquele padrão em seus trabalhos, e eles pareciam sempre significar algo, pela forma 'pesada' com que pintava, com que realizava os movimentos, quase que cheios de uma tristeza insondável. Ela pinta. De fato, se re-experimenta enquanto algo cujo modo de ser se equipara ao da imagem: desenha suas formas circulares costumeiras, mas dessa vez não pára nisso: segue o jogo do fe(i)tiche – aquilo que ela mesma pintou como que adquire uma realidade própria: ela como que pega aquilo que pintou e faz gestos relacionados ao próprio corpo, investindo-o (e vestindo-o) com aquelas realidades pintadas – que ela produziu mas que a ultrapassam (LATOUR, 2002). Aquelas imagens do papel passam ao seu corpo através de uma forma de postar-se em relação a essas imagens, uma forma de ser imagens com elas, de compor-se com elas. Seus gestos: um circunda o pescoço – um colar! Outro, o pulso: uma pulseira; depois, um brinco. As formas circulares antes concêntricas dEla se apresentam, através da ação com a tinta, uma entificação, passam a ter um sentido no corpo, passam a ser objetos. Talvez a tinta as tenha realizado de

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43 maneira singular – singular é forma como Ela se relaciona com elas, nesse cuidar de si. Essas imagens têm uma existência não meramente no papel, mas no processo de criação e vivência delas, “Não se trata de uma imagem passivamente representativa, mas de um vetor de subjetivação” (GUATTARI, 1992, p.38). Ela me mostra que “existem imagens” porque “as coisas mesmas são imagens, porque as imagens não estão na cabeça, no cérebro. Ao contrário, é o cérebro que é uma imagem entre outras” (DELEUZE, 1992, p.57). Ela experimenta essas imagens, se experimenta através delas, se experimenta como imagem em singularização – “As imagens não cessam de agir e de reagir entre si, de produzir e de consumir. Não há diferença alguma entre as imagens, as coisas e o movimento” (idem, p.57). Acontece que Ela é uma imagem que tem um dentro, é sujeito, produz-se enquanto tal. Conforme Deleuze, “há (...) uma defasagem entre a ação sofrida por essas imagens e a reação executada. É essa defasagem que lhes dá o poder de estocar outras imagens, isto é, de perceber” (1992, p.57). Assim, nessa percepção de si enquanto imagem mediada pelo jogo com as imagens produzidas, Ela se singulariza, instaura um investimento simbólico sobre seu corpo que se dá em sentido oposto à imagem constituída pelo saber-poder médico-psi do que seja o corpo do louco e sua anatomia política. Além disso, essa experimentação do corpo não se faz tendo em vista uma função ou uma eficácia produtiva, não se dá em função de objetivação e produção de saber – isto é, se dá em sentido diverso de um poder que dessingulariza, que individualiza o corpo e o faz dócil. O poder se faz mostrando, tornando visível o objeto sobre o qual se exerce – isto é, faz do corpo um corpo nu, desprovido de adornos e outros elementos que podem vir a compô-lo não anatomicamente. O que Ela faz é vestir-se – esse vestir-se é um resistir, pois é estabelecer barreiras – barreiras estéticas – a esse regime de visibilidade total sob o qual está jogado. Adornar-se é compor esse corpo, retirá-lo da mortificação em que se encontra – é um tornar belo: é realizar esse corpo de uma maneira que a instituição total mata: como um corpo estético e singularizado – do qual nem todos os processos são acessíveis e objetiváveis. O que é possível extrair daí é o poder de 'agência' das imagens-adornos como formas de produção de si, no sentido da experiência de si num processo. Imagens que investem o corpo, o enfeitam, o remetem a um passado, o produzem a ele mesmo enquanto imagem: realizam o corpo e são realizadas por ele. O gesto dEla. de levar seus

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44 colares, pulseiras e brincos até si é um gesto realizador – a agência não está somente nEla., a origem da ação, se pensarmos com Latour (2002) está também na autonomização dessas produções com as tintas e seu transcender essa produção enquanto fe(i)tiches. Assim, um corpo simbólico singularizado é engendrado pela relação entre imagens (no sentido de Deleuze), sendo que nessa relação imagens sujeito e imagens objeto intercambiam a origem da ação, não estando essa sob monopólio – essas imagens são “coisas”, adornos, brincos, colares, são “movimentos”, possuem ação, são vestidas, são pintadas, se relacionam. Sem dúvida, a experiência dEla com seus adornos torna possível também pensar o processo de criação/produção artística na Oficina, novamente, em seu caráter de irreprodutibilidade, isto é, em seu caráter único de acontecimento singularizante: ou seja, o sentido processual da arte, não importando seus produtos circuláveis. Além disso, é possível pensar o processo de subjetivação frente ao poder como interno ao processo artístico-estético e constitutivo do mesmo. Os adornos dEla não circulam. O que temos aqui, a partir das tintas, do papel, e desse jogo de agências é uma arte vivida, não-capitalísitica, não institucionalizada num campo artístico. O que temos aqui é a arte enquanto possibilidade de experiência, de diferir, de ser outro num sentido mais radical e profundo. E nesse caráter de processo, de devir (um modo de agir o tempo, de temporar). Acrescente-se ainda que essa forma de lidar produzir-ser produzido pelas imagens representa uma apropriação em outro sentido: o de subverter mesmo a função institucional da oficina, subverter o caráter lúdico, recreativo, subverter o caráter de re-socialização no sentido da instituição total, isto é, uma lógica internalizada de um prision like (Goffman, 1961), que é a produção de um sujeito social e sujeitado. Ela transforma seu corpo em superfície de pintura – por si só esse maquinismo é um procedimento oposto às disciplinas e articulação da anatomia política pelo diagnóstico, pelo hospital, pelo saber médico sobre seu corpo. A corporeidade 47 ou experiência do e no corpo, que se faz presente nesses dois trechos, nos aproxima da idéia de um corpo não passivo, não oposto à mente, não oposto ao mundo. Essa corporeidade pressupõe sempre um corpo agido-agente, que não é um 47

Poderia-se falar em uma “experiência a partir da qual o ser como sujeito e o ser como objeto se constituem na reciprocidade do conhecimento e da ação (embodiment)” (ALLIEZ, 1995, p.53).

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45 dado, mas uma produção. É nesse sentido de produção que o corpo é um lugar de resistência ao poder disciplinar: a experiência desse corpo, em sua constituição, significação e realização. É nesse sentido que pesquisar os fazeres artísticos na oficina de criatividade do hospital psiquiátrico em questão nos coloca frente a uma experiência da corporeidade: tanto no aspecto coercitivo, isto é, na articulação desse corpo segundo um poder disciplinar, como no aspecto de produção, ou seja, na possibilidade de, através desses múltiplos fazeres artísticos, vivenciar possibilidades do corpo em um sentido antidisciplinar. Assim, observar-vivenciar as agências desse corpo através da arte, na arte, em sua relação com a manipulação-fruição da matéria, os gestos, os modos de fazer, os fluxos, os processos, é percebê-lo num sentido de subjetivação (isto é, constituição processual de um sujeito não-sujeitado, de um corpo não-dócil, que num nível infinitesimalmente pequeno e que por momentos quase inexistentes, se reapropria de si e se ressingulariza e significa através de gestos e imagens). Por outro lado, essa vivência não se dá somente num sentido de produção na arte, mas de produção do corpo pela arte, isto é, a possibilidade daquelas imagens criadas, passarem a atuar sobre esses corpos, de modo a singularizá-los, e assim colocá-los como lugares de vivência subjetiva, de produções de imagens de si e em si que difiram das imagens das anatomias políticas engendradas pelos saber psi. Essa produção, basta retomarmos o relato sobre a produção de adornos dEla, trazido anteriormente, apresenta a possibilidade da diferença afirmar-se em seu diferir, através de imagens que são corpos e corpos que são imagens, que acabam por configurar uma forma 'resistência' no sentido de re-apresentar o corpo em sentido oposto àquele do poder e do saber.

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MODOS DE TEMPORAR COMO METÁFORA DA SUBJETIVAÇÃO “Não existe (...) um Ser já aí, instalado através da temporalidade”. Félix Guattari

Pelo menos desde as reflexões dos inícios da escola sociológica francesa, com o neokantismo de Durkheim e Mauss, a questão da temporalidade passa a ser vista sob uma ótica sociológica 48 . Assim, se faz uma análise da temporalidade enquanto categoria do entendimento, no sentido kantiano, dos sujeitos – que são, vistos – aqui, diferentemente de Kant - socialmente 49 . A ênfase é colocada na apreensão do tempo enquanto estruturante da experiência do mundo dos fenômenos pelos sujeitos. Isto é, o tempo é visto como categoria de uma “ossatura da inteligência” socialmente estruturada e que 48

Emile Durkheim, em As formas elementares da vida religiosa, questiona-se sobre a origem das categorias do entendimento: tempo, espaço, qualidade, quantidade, etc. Para o sociólogo, tais categorias têm origem estritamente relacionada à religião e, por isso, origem social. Propõe, então, uma renovação da teoria do conhecimento, visando superar as dicotomias entre aprioristas e empiristas. Escreve Durkheim que na base de nossos julgamentos e juízos está um “certo número de noções essenciais que dominam nossa vida intelectual” (1983, p. 211) e que, desde Aristóteles são chamadas de categorias do entendimento. Estas categorias, ao contrário de contingentes ou acidentais, seriam como “ossatura da inteligência” ou “quadros rígidos que encerram o pensamento”, que se relacionam com as propriedades mais universais das coisas para nós e na forma como a representamos: “noções de tempo, de espaço, de gênero, número, causa, substância, personalidade” (idem, p. 211). Segundo ele, estas categorias aparecem como quase inseparáveis do funcionamento do espírito. Durkheim segue uma linha apontada por Kant em relação à teoria do conhecimento: além de busca uma justa medida entre empiria e apriorismo. Porém sua síntese busca explicar a gênese social das categorias. Durkheim aponta que até o momento apenas essas duas doutrinas estavam em pauta: “Para uns, as categorias não podem ser derivadas da experiência: elas lhe são logicamente anteriores e a condicionam. São representadas como tantos dados simples, irredutíveis, imanentes ao espírito humano em virtude da sua constituição nativa. Eis porque se diz que são a priori. Para outros, pelo contrário, elas seriam construídas, feitas de peças e pedaços, e o indivíduo seria o operário desta construção” (1983, p. 214). Além disso, a postura durkheimiana adota, em parte um universalismo. Para Durkheim as estruturas do entendimento são universalmente necessárias à elaboração da experiência pelo intelecto: “este [o pensamento] parece não poder libertar-se delas sem se destruir, pois parece que não possamos pensar objetos que não estejam no tempo ou no espaço” (idem, p. 211). Porém, ao criticar os aprioristas, coloca que “as categorias do pensamento humana jamais estão fixadas sob uma forma definida; fazem-se, desfazem-se e refazem-se ininterruptamente; mudam segundo os lugares e os tempos” (p. 215). Assim, o sociólogo francês quer elaborar uma visão não calcada na dicotomia apriorismo-empirismo do conhecimento, propondo que a gênese das categorias do entendimento se daria socialmente. Isso, porém, pressupõe uma certa antropologia filosófica, aquela do homem duplo. 49 O que sugere Durkheim é que, na sociedade, o indivíduo se ultrapassa. Isto é, ele não é somente um bloco eu = eu, é também a sociedade – ou melhor, a sociedade é nele. Assim, a forma como organiza sua experiência não é, segundo Durkheim, somente individual, mas socialmente construída. Isto quer dizer, que afirma a universalidade da presença das categorias no intelecto humano, mas estas categorias dependem da sociedade em que se formam. Ou seja, a percepção do mundo é uma percepção não só subjetiva, mas social; e, enquanto subjetiva, essa percepção trabalha com elementos de gênese predominantemente social. Ainda é possível afirmar que uma razão comum a um dado contexto social liga os homens e permite que suas percepções sejam reiteradas por percepções objetivamente instituídas.

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47 passa, a partir dessa gênese social 50 , a estruturar as possibilidades cognitivas de um sujeito socialmente dado. Assim, o tempo seria ainda um a priori – no entanto, somente na medida em que originado de uma longa experiência social internalizada e constitutiva dos sujeitos. A análise dessas categorias a priori do entendimento engendra uma sociologia do conhecimento – no caso, estudo da experiência estruturante e estruturada socialmente do tempo (como também do espaço) - o que será um dos principais subsídios do estruturalismo de Lévi-Strauss. Tal concepção, no entanto, pressupõe como dada essa subjetividade estruturada homologamente à sociedade que a abriga e realiza 51 . A matriz teórica aqui adotada busca pontos de fuga em relação a essa idéia de uma subjetividade-coisa, dada, ainda que socialmente. Assim, o tempo é visto como “uma forma de relação”, ou uma “rede de relações” (ELIAS, 1998. p. 34) que, no entanto, não deve postular o sujeito – e sim encarar as dinâmicas processuais dessas relações como engendradoras de subjetividade. Nesse ponto, as situações de reclusão e de asilo são vistas como geradoras de dinâmicas sociais específicas que se relacionam como modos de subjetivação também específicos – isto é, com a possibilidade de uma singularização da vivência do tempo. Assim, da estrutura e suas categorias se passa à dinâmica e aos processos: o tempo, antes tido categoria reificada, é resgatado em seu sentido de fluxo, processo e vivência: o temporar como experiência fundamental da temporalidade.

Desse

modo,

a

reflexão

abandona

um

âmbito

estritamente

(pré)estruturalista de conotação durkheimiana, que impregna a discussão sobre o tempo nas ciências sociais. Ainda assim, como ficará claro, mantém-se a idéia de estruturação da experiência, através das noções de disciplina e regime de tempo. No entanto, abandona-se a idéia desse sujeito social como dado, mas engendrado inclusive por esses processos, conforme aponta Foucault (1984).

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Seja através dos ritos, ou através da simbolização em geral exprime-se uma noção de temporalidade e mesmo uma forma de organizar, demarcar, pontuar o tempo. Assim, surge a possibilidade da investigação dos referenciais sociais de tempo. Porém, o próprio Durkheim, apesar de acreditar na universalidade das categorias, aponta para uma não fixidez delas na forma como se constituem, a partir de substratos sociais diferentes. Assim, é possível inferir que a noção de tempo e a temporalidade mesma são algo contingente, diretamente ligado ao mundo das relações sociais. Essas categorias, “pontos de apoio indispensáveis, em relação aos quais todas as coisas são classificadas temporalmente, são emprestadas à vida social” (DURKHEIM, 1983, p.212). Isto é, a vida social fornece as bases para a classificação temporal das coisas. 51 É aqui que se insere a já comentada noção de homem duplo, uma antropologia filosófica que aparece em Durkheim como pressuposto.

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48 Assim, a passagem da estrutura constituída sobre a categoria a priori de tempo para a dinâmica do temporar, enquanto possibilidade de subjetivação nos coloca “diante de uma escolha ética crucial: ou se objetiva, se reifica, se ‘cientificiza’ a subjetividade ou, ao contrário, tenta-se apreendê-la em sua dimensão de criatividade processual...” (GUATTARI, 1992, p.24). Essa passagem é também a anteriormente assinalada, do pólo estrutura-mecanismo ao pólo acontecimento-maquinismo. Ao falarmos dessa dimensão de criatividade processual, é necessário levar em conta que: A polifonia dos modos de subjetivação corresponde, de fato, a uma multiplicidade de maneiras de ‘marcar o tempo’. Outros ritmos são assim levados a fazer cristalizar Agenciamentos existenciais, que eles encarnam e singularizam (1992, p.27).

Desse modo, o tempo perde o seu caráter de fixidez a priori na estrutura social e cultural do sujeito e passa a ser visto nas dinâmicas mesmas de marcar o tempo, nas condições que ele apresenta de abrigar produções de subjetividade social e individual. Essas produções perfazem a heterogênese, a junção não projetada ou reflexiva de pontos, fragmentos, que compõe o sujeito como multiplicidade engendrada no próprio acontecer e não anterior a ele. O ser social não é visto então pela ótica estruturante de uma sociologia do conhecimento focada sobre as faculdades interiorizadas, mas em sua abertura a uma gama de registros expressivos e práticos em contato direto com a vida social e com o mundo exterior. Assim, o sujeito – ainda que existente através do socius, não é um a priori da experiência, assim como a categoria de tempo. Isso porque o espaço e o tempo não são receptáculos neutros, devem ser realizados, engendrados por produções de subjetividade que incluem cantos, danças, relatos sobre os antepassados e os deuses. Todo trabalho sobre formas materiais invoca a presença de entidades imateriais (GUATTARI, 1996, p.124)

A partir dessas reflexões, é possível tirar a discussão sobre a temporalidade do âmbito de uma teoria durkheimiana da estruturação da “ossatura da inteligência”, dessas estruturas inconscientes que organizam o fluxo da experiência sensível, passando-se a uma noção do tempo como atividade e produção. “Nessa concepção de análise, o tempo deixa de ser vivido passivamente; ele é agido, orientado, objeto de mutações qualitativas” (GUATTARI, 1992, p.30). Assim, a noção de temporalidade dá lugar a esse tempo

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49 qualitativo, vivido, isto é, um tempo que é a metáfora da constituição mesma do sujeito nos contextos sociais. A noção de subjetividade 52 que, no entanto, aqui aparece pretende ultrapassar “a oposição clássica entre sujeito individual e sociedade” (idem, p.11), porém não desvinculando-se do âmbito da antropologia. O que interessa aqui é estabelecer uma diferença da concepção originalmente durkheimiana da construção social do tempo, apenas no âmbito da formatação da experiência, como – mesmo a partir de uma gênese social – ele é considerado como uma categoria do espírito humano: Por um longo período, o tempo foi considerado uma categoria universal e unívoca, ao passo que, na realidade, sempre lidamos com apreensões particulares e multívocas. O tempo universal é apenas uma projeção hipotética dos modos de temporalização concernentes a módulos de intensidade... (idem, p.28).

O que passa a ser mais importante na análise, principalmente na vivência na Oficina, são as variações dos ritmos em direção à possibilidade de apreender processos de singularização através do “ímpeto rítmico de uma temporalização capaz de fazer unir os componentes heterogêneos de um novo edifício existencial” (idem, p.32). Assim, a partir do primado do múltiplo que apresenta a Oficina de Criatividade, a experiência antropológica não se faz necessariamente a partir de vetores discursivos, mas sim a partir de uma apreensão de uma observação participante dos gestos, dos sinais que compõe a manifestação social dos agentes. Não somente isso como um integrar esses fluxos, viver eles, através dos materiais, que os agentes mesmos utilizam. Assim, a experiência etnográfica adquire uma intensidade ontológica anterior à própria descrição, como que criando um lugar que antecede o próprio posto do antropólogo como narrador. Nesse sentido, a vivência desses fluxos com “zatoreselesmesmos” (LATOUR, 2002), não encontra tradução imediata numa linguagem cientificista, mas na possibilidade de experimentar esteticamente a própria escrita antropológica. A finalidade disso seria o sondar a “experiência não discursiva da duração em oposição a um tempo recortado em presente passado e futuro, segundo esquemas espaciais” (GUATTARI, 1992, p.38). Assim, o modo de ser da arte específico da Oficina de Criatividade apresenta um conjunto de possibilidades de vivência do tempo, arrancando-o às rotinas e aos 52

Definição provisória de subjetividade: “conjunto das condições que torna possível que instâncias individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação com uma alteridade ela mesma subjetiva” (GUATTARI, 1992, p.19).

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50 regramentos impostos pela instituição. Por isso, apesar de todo o caráter de criatividade sinalizado ao longo desta monografia, deve-se trazer a noção de regime de tempo como contrapartida, como não absolutização da possibilidade de agência dos atores em questão. O regime de tempo diz respeito a um dos pólos do mapa conceitual em questão, situandose num plano de objetivação, sinalizando o ritmo englobante da instituição. Está relacionada à investigação de um aspecto coercitivo da estruturação da rotina - através da vigilância, do controle e da internalização dos ritmos e do funcionamento da instituição – aí, salienta-se o poder em seu sentido de integração-homogeneizaão como elemento chave de compreensão. O regime de tempo está assim relacionado à noção de disciplina, focada na vigilância dos internos. Além disso, os diferentes paradigmas psi, e suas diferentes concepções de tratamento, ao longo da história da loucura, produziram conceitos diferentes dessa própria loucura – e legitimaram práticas que influenciaram a formação de diferentes regimes de tempo e formas de administração da temporalidade, relacionadas às respectivas formas de controle configuradas nessa articulação saberpoder. O conceito de regime de tempo se aproxima muito, como se nota, dos desdobramentos foucaultianos da idéia de controle da atividade (FOUCAULT, 1984, p.136). Foucault apresenta a instituição desse controle, pelo menos desde as comunidades monásticas, através da organização regrada do horário, num processo disciplinar que estabelece censuras, obriga a ocupações determinadas e regulamenta “ciclos de repetição” (idem, p.136). No contexto do Hospital Psiquiátrico em questão esses ciclos variaram historicamente a partir da relação do Hospital com o exterior, por exemplo, através a imagem do auto-sustento, através de um trabalho intenso e quase constante vinculado a uma imagem de produtividade (Foucault, 2005). Num contexto atual, é possível notar, por parte dos internos, a uma certa liberação da obrigatoriedade desse tipo de atividade, que se cristaliza numa rotina monótona e de possibilidades restritas. O regime de tempo aparece na regulamentação da atividade em ciclos de repetição, que têm como condição de possibilidade os referenciais objetivos, objetivamente acessíveis, conhecidos e impostos para todos no contexto da reclusão. A partir deles, a instituição impõe sua temporalidade aos internos coercitivamente, numa rotina quase invariável e na elaboração de um calendário próprio que exprime os ciclos de repetição e se estende sobre a vida dos internos e suas referências – é essa uma das faces do objeto. Ela se

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51 vincula à administração do tempo que varia conforme a idéia que a sociedade mais ampla faz da loucura (discursos que produz sobre ela, que determinadas práticas atualizam) 53 . Pude notar claramente esse regime de tempo não só em sua ação sobre mim, na regulamentação de um horário, controlado documentalmente pela instituição, como também na interrupção recorrente das práticas dos internos em nome de um horário préestabelecido do funcionamento das rotinas do Hospital. Assim, a partir dessas reflexões, é possível concluir a necessidade de investigar a positividade do poder, ou como o poder age, para compreender a construção da temporalidade em contextos de reclusão marcados pelo caráter de instituição total. Talvez essa ação invisível do poder, na interrupção, iniciação e regulação das atividades no tempo dos relógios fique nítida nos relatos de campo. Há sempre um contexto maior que circunscreve a agência sobre o tempo por parte dos internos, que nos leva a pensar a Oficina como algo que trabalha na manutenção mesma desse regime tempo, tornando-o aceitável. Assim, é necessário romper com concepções meramente utópicas da possibilidade de vivência do tempo, sempre tendo presente o caráter coercitivo do contexto do Hospital Psiquiátrico. A própria possibilidade dos agentes de subjetivar o tempo é mediada pelo caráter totalizante da institucional, sendo a sua forma de vivência do tempo uma forma de subjetivação social que é atravessada pela coerção, pela positividade do poder do Hospital. Ainda assim, a ênfase dessa monografia repousa sobre o pólo oposto: a possibilidade de produção de um tempo subjetivante e vivido através de uma arte que não se dá somente num âmbito de valoração estético-artística. Essa arte sobre a qual essa pesquisa se debruça coloca em questão algumas possibilidades de pensar sobre a temporalidade. É possível retomar a discussão sobre obra ou produto e processo a partir de uma problemática que diferencia essas duas instâncias pela forma de relação com o devir temporal e as possibilidades de o viver. O projeto que se atualiza no produto acabado, na obra de arte, se coloca como relação específica com a temporalidade. A arte vista aqui enquanto processo sem um fim 53

Seria possível retomar a questão colocada acima sobre a época em que a administração do Hospital era realizada por irmãs de uma ordem religiosa, na qual os internos trabalhavam incessantemente – segundo ritmos ditados pela administração, por exemplo, na horta, na produção de alimentos, buscando legitimar o Hospital para o mundo dos externos como algo que não representasse apenas uma despesa morta, através da promoção de uma imagem de auto-sustento, trabalho útil e produtividade, segundo referências e valores socialmente difundidos entre os externos e segundo as concepções do que deveria ser um manicômio.

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52 necessário, apresenta modos de relação com o tempo que podem se dar de múltiplas formas, mas de formas que não submetam o presente a um futuro determinado: o que diferiria de uma produção utilitária. Pelo contrário, nesse processo, visto enquanto jogo de possíveis, o tempo pode diferir daquele tempo utilitário que é também o da instituição. O presente pode ser vivido em sua riqueza de possibilidades e de diferenciação potencial. Assim, a arte vista enquanto processual se opõe à arte-projeto, que se faz em função da constituição de um resultado – num processo que deve sempre acabar. É sobre o produto que se articula a arte institucionalizada enquanto circuito ou esfera artística. A noção de campo artístico pressupõe esses produtos acabados enquanto bens que circulem. Esses bens são obras, são processos que culminam na atualização em um produto acabado e cristalizado – segundo Paul Valéry (1999), o próprio processo seria uma atualização, uma saída do espaço de possíveis para o ato que constitui uma obra enquanto objeto. Esse produto cristalizado é antecedido por um processo de atualização através do qual vem a ser. Esse vir a ser se dá, na produção de uma obra, em função de um termo final, a obra mesma, o resultado, o produto artístico. A obra é a ação acabada, “a execução de um ato com resultado” (VALÉRY, 1999, p.191), ou ainda, é o “final de uma certa atividade”, a do produtor, “ou a origem de uma outra atividade”, a do consumidor (idem, 1999, p.184). A arte-obra seria, como produto, resultante de uma temporalidade que transcorre rumo a um ponto definido, que marca o fim do processo de manipulações materiais-simbólicas de criação. Ora, essa é uma noção de tempo vinculada a uma teleologia da criação do produto: ao projeto de constituir um produto, ainda que do ponto de vista dos procedimentos para essa constituição possa não haver um protótipo definido 54 . O tempo transcorre em função da realização do que ainda-não-é. O projeto aparece como relação temporal teleológica (isto é, tendendo a um fim), necessária à realização de uma obra acabada, constituída enquanto bem simbólico e cultural, que pode 54

Nesse sentido seria possível citar escolas artísticas modernas e contemporâneas (algumas correntes do dadaísmo, surrealismo, neo-dada, etc) que pregaram uma, por assim dizer, anarquia procedimental: os procedimentos são tornados aleatórios e afirmados em seu caráter mecânico e absurdo. Construções automáticas ou composições realizadas através do automatismo psíquico certamente não poderiam, do ponto de vista de sua execução e dos procedimentos e ações em que essa execução consiste, ser vinculadas a ideia de projeto, a não ser através da afirmação de que seu projeto seria eliminar o projeto na produção artística tornada aleatória. No entanto, sob o ponto de vista formal da constituição de um produto acabado enquanto obra, que circula, que pode ser vendido-apreciado num mercado artístico, mesmo essas escolas poderiam ser vinculadas à ideia de projeto. Isto é, o processo se daria em direção a um fim, um resultado: o produto.

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53 circular num circuito-mercado específico. “O projeto não é somente o modo de existência implicado pela ação, necessário à ação, é uma maneira de ser no tempo” (BATAILLE,1992, p.52). Assim, a noção de arte como produto pressupõe uma noção de temporalidade específica (a do projeto) a partir da qual é possível estabelecer teoricamente a noção de campo artístico. Porém, se percebermos a arte enquanto acontecer, enquanto processo que não culmina em um termo definido, sendo vivenciado por isso através de outras temporalidades (não teleológicas) e se os modos de ser da arte da oficina realizarem outros modos de temporar, estão somos levados a reconhecer que um dos pontos de singularidade dessa arte é, sem dúvida, as relações temporais: a temporalidade diferencia os modos de ser da arte da oficina dos produtos artísticos no campo artístico. Os modos de temporar, aqui tratados em sua não fixidez em seu caráter variacional e diferencial, arrancam a vivência estética da dependência da realização do produto, o por isso inviabilizam uma abordagem que se estrutura exatamente sobre o eixo obra-projeto-produto. A noção de obra, tal como realizada no campo artístico, apresenta uma das possibilidades de vivência do tempo num processo criativo. Se essa possibilidade for substituída por um leque de registros temporais possíveis, as noções que fundamentam uma abordagem calcada no campo perdem sua efetividade e potência explicativa dos processos artísticos em questão. A partir da discussão anterior sobre modos de temporar e modos de subjetivar, apresentam-se alguns breves tópicos, como que colagens de breves extratos de campo 55 , que conferem consistência etnográfica a essas reflexões. Cabe reiterar que a proposta inicial da pesquisa era exatamente a de cartografar temporalidades. Essa proposta, no entanto, foi provisoriamente abandonada para uma reflexão sobre os modos de ser da arte

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Os extratos aqui apresentados remontam à inserção, descrição e reflexão de campo realizadas em junho de 2007. Várias dessas passagens haviam sido abandonadas, assim como os tópicos específicos sobre a vivência do tempo que elas visam discutir e apresentar. No entanto, resolveu-se retoma-las devido à coerência e consistência que podem conferir às indagações anteriores sobre a arte da oficina. Além disso, ao reintegra-las, aceita-se correr um risco, tido por Tarde (2007) como um inevitável para as ciências sociais: o de formular hipóteses e reflexões no âmbito da filosofia. Isso pode aparecer como um problema, mas a postura de Tarde assinala uma possibilidade de integrar questões relevantes, que por vezes parecem impertinentes à reflexão sociológica ou antropológica. No entanto, ao reintegrar essas passagens, opta-se também por uma certa imagem da antropologia ou da sociologia, que por vezes tem sua legitimidade desconsiderada, que, no entanto se contrapõe a uma reificação das problemáticas que só pode remeter a um positivismo mais ou menos matizado.

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54 na oficina. São agora retomadas no sentido de apresentar os modos de ser da arte, os modos de temporar e os modos de subjetivar, como dimensões de um mesmo processo, ou devir, sendo que seria impossível elucidar qualquer um desses aspectos sem fazer qualquer referência, ainda que vaga, aos outros. Assim, a premissa adotada é aquela segundo a qual a temporalidade se singulariza na produção artística da oficina em suas múltiplas manifestações; assim, pensar, localizar essas diferentes formas de temporar aparece como fundamental para compreender as práticas artísticas em questão. 4.1

TEMPORALIDADE TELEOLÓGICA E NÃO-TELEOLÓGICA

Encaminho-me a uma mesa do fundo, à esquerda da porta de entrada. Ali acaba de sentar uma interna que não conheço. Pergunto se posso sentar ao seu lado e olhar sua pintura, ela parece responder afirmativamente, sento. Ela pinta com uma calma incrível, pára e pensa, escolhe as cores com todo o cuidado. Vejo nesses procedimentos a possibilidade dEla realizar um produto, a partir de um protótipo e de um projeto. Capricha nas formas, desenhando uma casa grande, um castelo. (...) É incrível notar como os variados gestos dos diversos internos se diferenciam; como é diferente a forma como cada um deles manipula a matéria, em ritmo, suas demoras, suas velocidades e lentidões, em temporalidade, em peso. Existe algo de muito particular em cada gestual que expressa cada um. Ela pinta, com uma espécie de seriedade. Nunca há ninguém mais nessa mesa, só Ela. Faço algumas perguntas, falo por algum tempo, tento estabelecer alguma possibilidade de simpatia... Ela me olha, no entanto séria, respondendo sem muita ênfase (...). “E tu, o que tu tem de bom? Tem dinheiro?”. É o que repentinamente me pergunta. Eu respondo que não, que só tenho algumas moedas no bolso. Ela diz que quer comprar coisas (“uma cola, uma cachaça”). Depois do meu aparente ‘choque’, menciona “pão de fatia” e “bolo de milho”. Pergunta se não posso ir ao mercado. Respondo que sim, mas que não tenho dinheiro – e de fato, só tinha comigo algumas moedas. Ela começa a procurar algo na bolsa. Tira um saco plástico azul. Dele tira um pano, com bordados e pinturas que ela havia confeccionado. Me olha “o que tu me dá por ele?”. Eu respondo que as moedas que tinha não seriam suficientes para pagar 54

55 aquele trabalho. Ela me olha. Eu digo que não posso aceitar. Ela parece não mudar de idéia. Eu digo que tenho poucas moedas, e que acabaria sendo um presente aquele trabalho dela. Ela move a cabeça afirmativamente e estende a mão por baixo da mesa. Como eu já havia sido censurado pelos funcionários e estagiários por escrever o nome de uma interna (a pedido dela) na face da folha em que ela havia desenhado, não sei se posso fazer a transação. Tenho uma impressão de vigilância. Esta impressão não havia me tocado anteriormente. Pelo contrário, pensava encontrar ali uma certa liberdade, um espaço onde poderiam se manifestar um pouco mais livremente. Porém, também ali o controle existe. E se manifesta de várias formas. Não pretendo aqui um puro juízo de valor acerca das pessoas que integram a oficina. Pelo contrário, considero que este aspecto – que vejo como negativo – remete à própria instituição, na forma como se configura e se define ou se definiu ao longo de um processo. Enfim, o aspecto de regulação social está presente no que caracteriza substancialmente um manicômio. Seja. O sentimento de estar num regime de visibilidade, de estar sendo observado, exerce algum tipo de coerção. Por fim, entrego as moedas, que fazem um barulho bem audível, nas mãos dEla, que procura algum lugar para guardá-las. Encontra, um bolso em sua bolsa e ali as coloca. Eu observo o pano. Alguém na mesa da frente diz se dirigindo a Ela, ou a mim “O que é isso, um bordado?”. Eu sorrio um tanto sem graça. “Que bonito”, uma estagiária exclama, apontando para o pano, indo para algum outro ponto da sala. Ela, a interna, diz para que eu o guarde, assim o faço. Depois me olha, diz que vai pedir a uma das funcionárias da Oficina ir ao mercado comprar o seu “bolo de milho” e “pão de fatia”. A mulher responde que não é possível com aquelas poucas moedas. “Tu tem que juntar um pouco mais”, e acrescenta “espera pra juntar mais”. Ela, ao ouvir a mulher, parece não compreender. De certa forma, aparece aí uma noção de tempo. Uma abstração temporal. Isto é, juntar dinheiro, acumular, se vincula a um tipo específico de concepção de devir, de previsão e de progressão. Além disso, implica uma noção de ainda não ser, isto é, de finalismo e de um projeto que implica uma realização dispersa temporalmente. Do fato de não ser possível comprar algo, deve-se derivar o fato de ainda não ser possível comprá-lo, ou seja, predeterminar o caminho para o devir e referi-lo em pontos objetivos e socialmente acessíveis: por exemplo, o calendário. O plano de acumular ao longo do tempo implica uma autodisciplina e uma rigidez de

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56 administração do tempo. O calendário, por exemplo, possibilita essa rigidez. O ainda é dado pela idéia de um futuro que se antecipa (no caso, a compra): porém, nada no presente autoriza a fazê-lo. Somente através de referenciais simbólicos socialmente objetivos, o sujeito pode se descolar do presente e pensar em um por vir no tempo comum aos seus contemporâneos, aos outros sujeitos que adotam os mesmos referenciais. Mas há algo além, acumular moeda estende, ao longo desse referencial socialmente estabelecido, coordenadas temporais particulares nesse tempo comum e um modo de transcorrer do tempo a partir delas, em função do futuro que ainda não é - a compra. A impossibilidade de comprar esvazia o presente imediato de sentido intrínseco e descola do imediato a vivência temporal no sentido de elaborar um projeto. Conforme Bataille: A ‘ação’ está inteiramente na dependência do projeto. E, o que é mais pesado, até o pensamento discursivo está empenhado na existência do projeto. O pensamento discursivo deve-se a um ser empenhado na ação, realização nele a partir dos seus projetos, no plano da reflexão dos projetos. O projeto não é somente o modo de existência implicado pela ação, necessário à ação, é uma maneira de ser no tempo, paradoxal: é reposição da existência para mais tarde (1992, p.52).

Assim, o tempo transcorre teleologicamente – em relação a um fim, e deve ser organizado a partir de uma submissão a esse fim: “Tu tem que juntar um pouco mais, espera pra juntar mais”. Essa espera, no entanto, desloca a vivência para uma realização futura, esvaziando o presente de possibilidades que não sejam aquelas que se colocam enquanto determinadas para a realização do projeto: (...) ali tudo está suspenso, a vida é adiada para mais tarde, de adiamento em adiamento... O pequeno deslocamento [décalage] dos projetos é suficiente, a chama apaga-se, à tempestade das paixões sucede uma calmaria (BATAILLE, 1992, p.52).

A temporalidade dEla se opõe a esse sentido prévio do transcorrer, é uma temporalidade aberta – que se constitui num presente, e num futuro aberto como porvir: uma temporalidade não-teleológica que se estabelece não em função de um fim disperso num transcorrer já determinado (a acumulação de dinheiro para a compra). 4.2

TEMPORALIDADE COMO ESTAR SENDO

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Ela se encaminha para onde estão alguns vidros de esmalte, perguntando se pode pintar as unhas, eu respondo afirmativamente, um pouco surpreendido pela pergunta. “Não tá pintado mais”, diz ela. E (re)começa a pintar as unhas. Eu pergunto se ela não quer desenhar, ela me olha fixa e seriamente. Outra interna brinca com a seriedade dela. Depois de pintar as unhas por algum tempo, vou com ela até a mesa do material, e pegamos folhas. Ela fica um pouco incomodada por não encontrar “suas” canetinhas; as encontramos numa outra mesa, ao fundo, onde ainda outra interna desenha 56 - havia chegado um pouco depois dEla, mostrando sua toca e sua boneca... Volto a falar com uma interna muda com quem me comunico por sinais 57 , ela se comporta de forma descontraída, o que me ajuda a compreender seus gestos e a buscar interagir. Alguns homens carregam os bancos para as mesas, fazemos alguns sinais, indicando a força deles, ela concorda. A interna que havia me perguntado se podia pintar as unhas, que denomino aqui Ela, senta-se naquela mesma mesa. Mostrando-me seu desenho. “Não desenhei árvore mais”, eu sugiro que desenhe de novo, Ela me encara. Continua seu desenho. Fala o mesmo sobre o sol – “não desenhei o sol mais, o sol não tá desenhado mais”...

No pátio, recordo da forma como Ela descreve o estado de algumas coisas: “não desenhei a bonequinha mais” (apontando para a folha com desenhos), “não pintei as unhas mais” ou “não tá pintada mais a unha”. Notei que ela constantemente pintava as unhas. Como se o estar pintado fosse uma constância do pintar. Isso não se manifesta, segundo penso, primeiramente em seu discurso, mas em sua ação. Como se a boneca desenhada fosse a constância do desenhar a boneca. Esse tipo de descrição, talvez como 56

Trata-se da interna do relato da passagem anterior, sobre Temporalidade teleológica e não-teleológica. Aqui aparece nitidamente um limite da forma de descrição adotada baseada em não individualizar ou nomear os agentes. Por vezes pode-se configurar um cenário confuso no qual não se sabe ao certo, na descrição, as fontes das ações; sem dúvida, este é um fato problemático no que tange à leitura – menos problemático, no entanto, no que tange ao método aqui utilizado – de etnografar e cartografar acontecimentos, processos, e não os agentes em suas ações individuais, caracterizados como personagens com atributos e caracteres fixos e preestabelecidos artificialmente através de um procedimento de estereotipar que não deixaria, por sua vez, de ser ficcional. Cabe salientar ainda, que a forma e o estilo dos relatos de 2007 não apresentava ainda os fundamentos para escrita que os posteriores, o que explica a inadequação da forma de descrição às propostas metodológicas e estilísticas da escrita. 57 Trata-se da interna com quem vivenciei diversas passagens dentre elas aquela da pintura das flores, que foi exposta no capítulo Modos de ser da arte, na seção Arte-acontecimento.

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58 toda a linguagem enquanto descrição, carrega uma concepção de permanência e uma percepção de tempo. Interessante notar como essa concepção, no caso dEla, mesmo que não claramente formulada, a leva a determinadas práticas. Por exemplo, essa relação do estado fixo, ou seja, algo que supostamente é constante no transcorrer do tempo, com o devir do fazer ou garantir este estado. Certamente, Ela não vive inteiramente segundo essa concepção da manutenção da constância. Estar pintado é a postura ativa em relação à matéria, é o esforço constante e interminável de manutenção da constância do estar pintado; estar sempre pintando – aqui a obra nunca se dá porque nada se acaba ou se constitui - no sentido de que todo sensível é fluido: é quase uma outra ontologia o que essa temporalidade propõe. Uma ontologia no qual estar fazendo é garantir a ordem e a existência das coisas, sua consistência ontológica. A própria existência do investimento sobre o corpo (o pintar as unhas, o pintar as mãos) deve ser garantida por um esforço de manutenção desse corpo em seu sentido estético e imagético. Estar pintado equivale a estar pintando (estar originando a ação de pintar), a circularidade da tarefa de um Sísifo. Isso se manifesta em algumas ações, que suas palavras, às vezes angustiadas, sinalizam. De todo modo, fica como observação a contingência da própria linguagem enquanto construção no tempo e a contingência da forma como essa temporalidade se expressa na alternância entre falar e fazer. Preeminência do processo: ele nunca se conclui – o parar não é um culminar em obra, mas um inexistir, um vazio – um tempo sem ação. Pintura não existe aqui, mas pintar somente, estar pintando. Assim como aquilo que aparece nessa pintura, um corpo pintado, investido de cores está sendo e vem a ser – nunca fixo no tempo. Uma figura, “a bonequinha”, está sendo enquanto é pintada. O fim do processo é o fim de toda a experiência estética ‘positiva’ e o início de uma experiência (que pode em sua negatividade ser também de ordem estética) da falta, da ausência. Um presente: eis o tempo – eterno presente, inextenso por si mesmo, pois depende da manutenção através do esforço constante no presente. O que se realiza nesse presente não tem um futuro. A arte aqui nunca vem a se constituir, sempre retorna ao indeterminado, ao vazio, ao silêncio. É que o tempo não preexistia à sua produção, pois temporar, poder afetar o mundo através das tintas, poder afetar a si através do esmalte, é estar sendo, é presença – presentificarse. Não há passado: pois ao acabar de desenhar a figura no papel “não desenhei mais a

58

59 árvore” – o passado é sempre um não mais. Não há futuro, pois o papel e a figura nada são, pois neles não há mais ninguém ou nada movendo-se, compondo, juntando cores. 4.3

O TEMPO DA INSTITUIÇÃO

Enfim, depois de algumas outras situações, passando das onze horas, os internos começam a recolher o material e são levados para o almoço. É a única temporalidade una e claramente identificável que posso ver: a da instituição (...). A teoria durkheimiana do tempo busca dar conta do que se poderia denominar ‘culturalidades’

diferentes:

nesse

sentido,

prima

pela

particularidade.

Porém,

internamente a essas culturalidades, ela tende a primar por uma unidade, por uma busca de universais. Isso significa que a particularidade que aparece na subcultura ou na culturalidade delimitada por um perímetro claro, é em verdade um procedimento de homogeneização, integração e redução do outro ao mesmo, capturando e buscando dissolver teoricamente, por assim dizer, os pontos de diferenciação e singularização 58 . Essa concepção, ao estabelecer estruturas temporais constituídas interiormente a um grupo e sua vivência social, acaba por desconsiderar entidades muito ‘menores’ que esse grupo, inclusive elementos que compõe os próprios indivíduos como multivíduos, na visão de Canevacci 59 . Poderia-se pensar nesses elementos menores que compõe o social e os indivíduos, como seres compostos ad infinitum 60 , como antítodo às posições

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Canevacci (2005) denuncia esse procedimento etnocêntrico, totalizador e produtor de estereótipos vinculado ao uso da noção de (sub)cultura, que acaba por dissolver as múltiplas manifestações num uno apresentado por um perímetro conceitual restritivo. O singular seria já dado enquanto estereótipo, conduzindo a uma noção de (sub)cultura cujos traços dissolveriam todas as diferenças que pudessem se manifestar no interior dela, primando por um aspecto homogêneo, uma identidade. “Todo conceito de [sub]cultura acabou em posições generalistas e homogeinizantes” (idem, p.16). 59 “Mas é ainda adequado este termo – ‘indivíduo’ – para designar o sentido heterogêneo e heterotópico do sujeito? (...) Inclusive aquele termo ‘indivíduo’ – depois daquele mais filosoficamente nobre ‘sujeito’ – foi arquivado. É obsoleto” (2005, p.37). 60 É, sem dúvida, para isso que a ponta a sociologia de Gabriel Tarde e o que constitui um de seus pontos de diferenciação radical de Durkheim. Ver Tarde (2007), Themudo (2002) e Vargas (2000). “Quando Gabriel Tarde fundava uma microssociologia, era exatamente isso que fazia: não explicava o social pelo indivíduo, mas analisava os grandes conjuntos assinalando as relações infinitesimais, a ‘imitação’ como propagação de uma corrente de crença ou desejo (quanta), a ‘invenção’ como encontro de duas correntes imitativas” (Deleuze, 2006, p.45).

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60 homogeinizantes e simplificadoras, restaurando e multiplicando os pontos de diferenciação 61 . A experiência dessa visita ensinou que a observação participante é um confronto com o múltiplo, com a diferença, com o singular – não com o uno, mas com uma polifonia e uma dissonância constantes, nas quais a unidade só pode ser concebida como absoluta e crescente multiplicidade e heterogeneidade. Assim, é muito difícil apreender qualquer unidade homogênea de referenciais temporais construídos nesse contexto social, que não sejam os previstos pela instituição em seu caráter total – aqui sim se encontra a unidade! O Um se articula ao poder ordenador do hospital, enquanto que do lado dos internos, isto é, onde há resistência ao regime de tempo, há múltiplo. Essas múltiplas formas de temporar que se entrecruzam polifonicamente parecem ser encompassadas pela temporalidade desse Um-Instituição. Fica claro aqui que uma abordagem voltada para a homogeneidade da percepção temporal só conseguiria enxergar o regime coercitivo do tempo. 4.4

TRESPASSAMENTOS DE TEMPORALIDADES E REGIMES DE TEMPO

Fico naquele pátio um tempo, escutando os rumores de alguma unidade próxima. Recordo e penso da força, do peso que a necessidade do referencial temporal parece ter para Ele, pintando rapidamente através de sua técnica do “um, dois, três, quatro” 62 . Ao mesmo tempo em que pergunta constantemente pelo tempo, parece ser quase que indiferente às respostas. Quer colocar nelas os seus referenciais, em parte as festividades 61 É o que parece sugerir Bataille, encarando mesmo estes elementos como fluxos: “É a essa diferença irredutível (...) que deves relacionar o sentido de cada objeto. No entanto, a unidade que tu és, foge-te e te escapa (...). O que tu és, liga-se à atividade que une os elementos sem número que te compõem à intensa comunicação destes elementos entre si (...). A vida nunca é situada num ponto particular: (...) ela passa de um ponto a outro (ou de múltiplos pontos a outros pontos), como uma corrente ou uma espécie de fluxo elétrico” (1992, p.100). E há ainda uma acentuação sociológica dessa composição infinitesimal: “tua vida não se limita a esse inapreensível fluxo interior; ela também se derrama para fora e abre-se incessantemente ao que se escoa ou jorra na tua direção. O turbilhão durável, que te compõe, choca-se com outros (...) com os quais ele forma uma vasta figura animada” (p.101). 62 Para Ele há uma correspondência gestual à vocalização do “um, dois, três, quatro” – seu pincel traça rápidos sinais para cada um dos números. “Primeiro, sento em frente a um senhor, que parece muito feliz em estar pintando. Ele me pergunta que horas são. Respondo, ele continua seu trabalho. Conversamos um pouco sobre as cores utilizadas, ele responde, me mostrando como pinta, contando sempre até quatro. Pinta bastante rápido e faz diversos trabalhos, num ritmo rápido – principalmente se o compararmos ao de alguns outros internos que ali pintam” [trecho de diário de campo, 2007].

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61 do calendário, sinalizadas pela instituição, e, em parte, o seu passado vivido – as duas referências se dissolvem na temporalidade e na duração da feitura de cada pintura: “um, dois, três, quatro”. Pergunta, inicialmente, “que dia é hoje?” Ele mesmo responde “vinte e dois”. Pergunta o horário. Respondo, ele repete. Pintando, ele diz que o dia anterior havia sido dia de visita: “veio muita visita”, diz. Ele parece sempre buscar referências de tempo, pergunta constantemente pelas horas, dias, datas festivas, etc. Continuamos nossa conversa. Pergunto quando são os dias de visita. “Sábado. Sábado e domingo” é o que ele diz. Logo pergunta novamente pela data. Eu respondo, “vinte e cinco”, repete ele. Nesses intervalos pincela mais lentamente o papel, para logo voltar ao “um, dois, três, quatro”. Ele pergunta que dia da semana é, respondo que é segunda-feira. Ele diz que terça-feira é dia do café, fala em estar gripado, “gripe”, e em como é bom tomar um “café preto”. Há claramente aí uma expressão de tempo cristalizado num calendário de rotinas do hospital. Porém, a forma como Ele lida com os referencias é deveras singular. Pergunta sempre sobre o natal, se falta muito para que chegue; às vezes, responde quantas semanas faltam, ou volta a perguntar. Enfim, sua conversa é permeada de se não a presença, pelo menos de uma busca de localização de referenciais. Continua pintando, num ritmo não tão veloz quanto da outra visita. Falamos sobre sua roupa, sobre o desenho. Um outro interno chega à mesa, com uma revista, o cumprimento. Ele não dá muita atenção. Continuo a conversa com Ele. Pergunto sua idade, ele diz 42. É visível que não é tão jovem. Repete, “quarenta e dois” e pergunta a minha. Nisso, passa uma das funcionárias, que ele cumprimenta, mostrando a barba feita. Ela pergunta que dia será amanhã. Depois de uma tentativa errada, ele responde “terça feira”, ela pergunta de quê é dia na terça feira, ele, rindo, responde “de café preto!”. Seria possível sinalizar que Ele se situa em múltiplas temporalidades, que se trespassam de maneira singular: uma temporalidade da instituição total, suas rotinas, seu calendário, o dia do café, preto, o dia da visita – pouco importa que não existe correspondência efetiva entre a designação que Ele dá ao dia e a rotina da instituição, o que importa é o direcionamento para referenciar-se no tempo através dessa rotina, de forças que articulam de fora através de mecanismos e controles. No entanto, há algo que remete a uma localização de si no tempo através de um passado, que no entanto se

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62 desconstitui: sua idade, seu aniversário, as festividades referentes à rotina externa ou préinternação que, posteriormente à reclusão, adquirem outro significado e são incorporadas ao calendário da instituição. Há ainda a temporalidade como duração do processo artístico, como medida dos movimentos, como fator quantitativo na produção de pinturas, mas qualitativo na vivência do tempo: o “um, dois, três, quatro” e seus intervalos. Ele vive em meio ao trespassamentos de todos esses referenciais. No entanto, a temporalidade da reclusão, estabelecida pelo hospital e pela institucionalização da vida acaba por predominar, colocando o interno num regime de tempo. O regime de tempo se relaciona diretamente com a noção de disciplina, focada inicialmente numa vigilância dos internos. Assim, os diferentes referenciais históricos do tratamento – ao fim e ao cabo, os diferentes conceitos de loucura – acabam por influenciar um determinado regime de tempo e uma determinada administração da temporalidade relacionada a uma forma respectiva de controle, havendo um elemento de poder. Esse conceito se aproxima das exposições de Foucault (1984), sobre o “controle da atividade” (1984, p.136). Foucault situa pelo menos desde as comunidades monásticas, um modelo que se difundiria no que tange ao controle das atividades através do “horário”. Esse processo disciplinar compreenderia outros três processos: “estabelecer as censuras, obrigar a ocupações determinadas, regulamentar os ciclos de repetição” (idem, p.136). O aspecto, em Foucault que mais se aproxima do conceito que aqui proponho de regime de tempo é a regulamentação de ciclos de repetição. Essa regulamentação expressa a necessidade de referenciais objetivos e conhecidos por todos no contexto da reclusão. É a partir deles que a instituição impõe a sua temporalidade aos internos, exercendo sobre eles uma coerção, que se constata na rotina quase invariável e na elaboração de um calendário próprio de atividades e referências de tempo na vida dos internos.

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INCONCLUSÕES

Quais seriam as conclusões possíveis de serem extraídas de um trabalho como esse? Muitas questões surgiram ao longo da pesquisa, e a proliferação delas continua a ser um objetivo. Para isso, no entanto, é necessário retomar alguns pontos aqui desenvolvidos. Talvez o principal deles seja a visão, na Oficina de uma multiplicidade de formas legítimas de ser da diferença em manifestações de alteridade insondável e inobjetivável, caso queiram ser vistas em seu diferir. Cada interno aparece como um rosto singular, vivendo seus devires singulares. Isso trouxe a possibilidade de pensar a questão da temporalidade não em função de um paradigma da estruturação das categorias num sujeito dado, mas sim na constituição parcial desse sujeito, em seus fluxos que escavam na temporalidade dos relógios, um kairós, um tempo próprio, apropriado, vivido e único em seu acontecer. Assim também aparece a arte na Oficina: modos de ser tão plurais quantas forem as formas de os internos vivenciarem-nos. Diferentemente da lógica do produto, a arte aparece como um processo, marcado pelas possibilidades de agenciamento, de produção de subjetividades e vetores societais – isto é, aparece não apenas sob um viés artísticoestético, mas sob as possibilidades de vivência e produção de temporalidades e de processos de singularização. Nesse sentido, uma arte que difere da arte marcada pela reprodutibilidade técnica, pois é composta em sua atualidade por cada acontecimento, cada gesto, realizado ao longo do processo. Uma arte que produz realidades sociais, como os adornos dEla e a agência singular deles na experiência única de sua realização, uma arte fechada em si mesma, não teleológica, que produz realidades que possuem um valor processual. A partir da premissa, advinda de reflexões de Foucault (1984) e Goffman (1961), segundo a qual o hospital psiquiátrico seria uma instituição total e disciplinar, na qual teias de vigilância e controle instaurariam um poder sobre os corpos e mortificariam os sujeitos, buscou-se pensar o poder de forma não unilateral, pensando-o como possibilidade de ação e paixão, ou seja, de afetar e ser afetado (Deleuze, 2006) – 63

64 salientando a não passividade dos zatoreselesmesmos (Latour, 2002) frente a esse poder, apresentando ou sinalizando formas pelas quais zatoreselesmesmos articulam forças internas e externas através de fazeres artísticos, de forma a operar em lógicas contrárias a esse poder. Ao enfatizar a idéia de subjetivação buscou-se pensar possibilidades, através de exemplos etnográficos, da experiência estético-artística realizada pelos internos do hospital psiquiátrico na oficina de criatividade do mesmo, como possibilidade de constituição de sujeitos não-sujeitados. Essa experiência estético-artística tem lugar no corpo de múltiplas formas: seja como um corpo que pode liberar movimentos e gestos, não funcionais, não eficientes, não racionalizados, mas afetivos; seja na possibilidade de esse corpo produzir imagens, seja na possibilidade de realizar-se simbolicamente como imagem. Ainda salientou-se uma outra possibilidade, na descrição dos “adornos dEla”: a das imagens produzidas por esse corpo se autonomizarem e investirem-no de significado e afetos num processo de re-apropriação não-disciplinar. Essa seria a possibilidade dessas imagens produzidas também produzirem ativamente esse corpo. Assim, foi possível discutir a agência das imagens sobre esse corpo e seu papel num processo de manifestação e afirmação da diferença, através de uma corporeidade singularizada num processo de produção artístico. As imagens foram vistas não como representações de algo, não como sintomas que apontam para um significado exterior a elas, um diagnóstico ou uma patologia. Pelo contrário, buscou-se apresentar o poder dessas imagens e sua incidência no corpo, como “vetores de subjetivação” (GUATTARI, 1992, p.38). No entanto, esse processo de subjetivação foi apresentado no interior processos propriamente artísticos – o que significa dizer que se essa produção de subjetividade é estética. Isso quer dizer que o conceito de arte, seu modo de ser, tal como se dá no hospital é um conceito que se relaciona diretamente à vida, a uma produção de vida; tal produção - subvertendo a própria proposta institucional da oficina - faz de alguns casos e momentos da experiência artística no hospital uma produção específica, cujo cerne não é a produção de um produto artístico acabado, mas o processo de subjetivação. Essa constituição de um sujeito através de outros processos que não os disciplinares, do exame, da disciplina, etc, configuram o processo artístico em questão como um processo (micro)político intimamente vinculado a noção de corpo e corporeidade. Buscou-se,

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65 então, pensar essa arte dos internos num sentido amplo, digamos de uma 'artialização' da vida, ou da 'vida como obra de arte'. Há, dessa maneira, uma “inseparabilidade da tríade ética/estética/política” - o que possibilitou pensar resistências-fluxos-maquinismos ao contexto da instituição total e seus mecanismos totalitários. Por fim, esta monografia possibilitou um pensar um pouco mais cuidadoso sobre os contextos de reclusão e asilo, sobre as instituições totais e os modos de subjetivação e de construção de mundos por parte dos internos. Assim, levando-se em conta o caráter coercitivo desses contextos, através da idéia de regime de tempo, buscou-se sondar a possibilidades de viver temporalidades nas fissuras do poder institucional, sondando possibilidades de subjetivação e resistência frente à disciplina do hospital psiquiátrico e do internamento. Assim, a própria Oficina aparece com um caráter dúbio: maquinismo dos internos, estruturação da Oficina no pólo instituição. No entanto, sondar as possibilidades de re-singularização nas fissuras do poder total desse tipo de instituição ainda aparece como uma tarefa incompleta.

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68 LIMA, Elizabeth. Por uma arte menor: ressonâncias entre arte, clínica e loucura na contemporaneidade. In: Interface (Botucatu), Botucatu, v.10, n.20, dez.2006. Disponível em: . LIMA, Elizabeth; PELBART, Peter Pál. Arte, clínica e loucura: um território em mutação. In: Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.3, set.2007. Disponível em . MARCUS, George. O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em antropologia. In: Revista de Antropologia, São Paulo, v.47, n.1, 2004. Disponível em: . NEGRI, Antonio. Kairòs, Alma Venus, Multitudo. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. SPINOZA, Baruch. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. TARDE, Gabriel. Monadologia e sociologia – e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2007. ___________. A opinião e as massas. São Paulo: Martins Fontes, 1992. THEMUDO, Tiago Seixas. Gabriel Tarde: sociologia e subjetividade. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza: Secretaria da cultura e do desporto, 2002. VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999. VARGAS, Eduardo Viana. Antes Tarde do que nunca: Gabriel Tarde e a emergência das ciências sociais. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000. VIANA, Nildo. A esfera artística: Marx, Weber, Bourdieu e a sociologia da arte. Porto Alegre: Zouk, 2007.

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69 APÊNDICE – Relatos e reflexões de campo

Os relatos e reflexões de campo aqui apresentados aparecem como seção independente com a intenção de manter a complexidade da situação etnográfica da oficina de criatividade tal como se manifesta no conjunto das descrições. Seja ao longo das inserções, seja ao longo do desenvolvimento próprio do texto que as descreve, diversas questões surgiram, que talvez não pudessem ser inseridas no corpo do texto anterior sem que perdessem sua consistência etnográfica e sua riqueza textual. Além disso, várias questões relativamente independentes dos desenvolvimentos apresentados nos capítulos anteriores surgem, e dispensar a descrição na sua integralidade, seria correr o risco de perdê-las. Há também uma outra justificativa para essa aparente separação, de cunho mais textual e estilístico, por assim dizer. Há uma modificação na forma e nos usos da linguagem nas duas seções, esta segunda apresentando um uso mais livre e literário, seja na formulação das questões e reflexão, seja nas descrições – há também uma mudança de voz: no relato se utiliza a primeira pessoa. Desse modo, a referida aparente separação garante uma maior possibilidade de experimentação textual etnográfica, isto é, um manter-se mais próximo às potências literárias e ficcionalizantes da etnografia. Essa opção se fundamenta também na intenção já apresentada de fazer uma antropologia estetizante, que transite num paradigma estético e ético. A exposição dos relatos e reflexões etnográficas é definida aqui por uma proliferação das notas como método de cruzamento de tempos etnográficos diversos. As descrições da inserção aqui apresentada na íntegra são colocadas, através das notas, em contato e relação com imersões etnográficas anteriores, dando um caráter polifônico à temporalidade do próprio texto. Antes de prosseguir, é necessário salientar uma questão de um ponto de vista mais prático e também pessoal. Essa diz respeito à inserção no campo escolhido. O hospital psiquiátrico foi escolhido como lócus da pesquisa pelas razões teóricas expressas, mas também porque havia um contexto precedente e mais amplo de vivências no nesse universo. Esse contexto se erige a partir de junho de 2006, período em que iniciei a fazer visitas ao museu do hospital, o pela faculdade de História. Tais visitas tiveram como 69

70 objetivo inicial uma pesquisa sobre o acervo do museu, assim como sobre a história do hospital. Nesse contexto, pode se destacar também o exercício etnográfico realizado para a disciplina Antropologia – Introdução, que integra a primeira etapa do curso de Ciências Sociais. Além das referidas experiências, outras inserções foram realizadas, junto ao memorial, consistindo em visitas pelo Hospital como também na revisão dos textos redigidos anteriormente, resultando na produção de um novo texto, resultante de algumas experiências ali vividas e observações históricas acerca do hospital. Em 2007, ao cursar a disciplina de Antropologia VII – Leituras etnográficas, me vi já vinculado a um campo etnográfico, o que me permitiu elaborar uma problemática antropológica para novas visitas, dessa vez, com um caráter mais investigativo e menos no sentido do choque cultural. A Oficina permanece como lócus também em 2008, na realização das disciplinas de Introdução à Pesquisa Social e Pesquisa Social III – Métodos Qualitativos. O desenvolvimento teórico e etnográfico continua em 2009, com a apresentação de trabalhos para seminários de antropologia social, a elaboração de um projeto, e, por fim, com a presente monografia. Assim, essa pesquisa buscará explicitar algumas questões que se vinculam a um amplo contexto de vivências no lócus escolhido – o que conferirá uma maior densidade empírica, qualitativa e afetiva em relação à temática escolhida. Cabe ressaltar mais alguns aspectos quanto à inserção de campo – como ela se constituiu e também como se fez viável. Numa das visitas posteriores às citadas anteriormente, convido um amigo estudante de Psicologia e Ciências Sociais, para conhecer o museu, pois acreditávamos que ele poderia encontrar ali subsídios para reflexões e estímulos para pesquisas. Com esse estudante compartilhei muitas das minhas primeiras impressões acerca do hospital e também do choque que me este causou. Posteriormente a essa visita, esse colega passou a realizar trabalhos e observações na Oficina de Criatividade, passando a compartilhar também suas experiências. Foi, então, pela curiosidade da primeira impressão em relação à Oficina, através de uma rápida visita inicial, e pelas indicações do referido colega que pude pensar uma primeira problemática de pesquisa, parcialmente abandonada – a construção social do tempo - e fazer duas inserções iniciais. Estas visitas foram muito frutíferas, em primeiro lugar, pela densa e insubstituível vivência; em segundo lugar, porque, através delas, pude iniciar a esboçar um caminho para a pesquisa, realizando novas visitas durante o mês de novembro de

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71 2008 (quando tive que me inscrever em um estágio voluntário para que fosse possível a inserção), levantando bibliografia, elaborando problemáticas, que culminam com a produção de um projeto e, por fim, dessa monografia.

Primeiro relato Segunda-feira, dia escolhido para retomar as vivências no Hospital Psiquiátrico. Fazia já algum tempo que não visitava o Hospital e não me deparava com as situações que o conformam como experiência. Uma espécie de distanciamento é o que passei a sentir em relação aos contextos do Hospital. Talvez pela intensidade das situações com as quais lá tenho que me deparar. Pois bem, é com essa sensação de distanciamento que chego, por volta das dez horas, na entrada. Ali tenho que apresentar meus documentos e informar o motivo de minha visita. Desde minhas últimas inserções entre os internos na Oficina, algumas mudanças tiveram lugar. Por exemplo, G., meu contato mais administrativo na Oficina, não estava lá, pois tinha saído de férias ou algo assim. Já em meus contatos telefônicos com as pessoas da Oficina senti um estranhamento - falei com C., que já conhecia das outras visitas, e essa me informa da ausência de G., pedindo que eu entrasse em contato com B., então responsável pelas atividades. Eu não conheci B. em minhas visitas anteriores e não recordo de sua presença em minha participação na Oficina. É com ela, no entanto, que devo falar, caso queira retornar de fato a pesquisar e vivenciar no contexto do Hospital. Depois de passar pela portaria, onde sou anunciado por telefone à Oficina, me encaminho para essa unidade pelo pátio do Hospital. Poucos internos transitam. É um dia nublado e relativamente frio para novembro. Circular pelo pátio do Hospital me causa um estranhamento quase desconfortável que há muito não sentia, afinal, o Hospital há tempos não me era novo e chocante como das primeiras vezes que lá estive 63 . Certamente, 63

Sobre esse choque inicial: Como foi escrito num dos trechos de um outro texto, feito em grupo sobre o

museu do hospital, “ao entrar no Hospital, como pesquisadores de objetivo aparentemente bastante delimitado, pessoas ‘sãs’, nos conservávamos conectados ao mundo que nos é usual, principalmente através de nossos colegas de grupo, nossas referências. Ao mesmo tempo, e de maneira conflitante,

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72 naturalizei algumas coisas. De todo o modo, é uma nova forma de estranhamento que se vincula a essa sensação de distanciamento. Continuo caminhando, sei o caminho para a Oficina, fica na extremidade do prédio – há uma placa: “Nise da Silveira”. Atravesso o pátio interno, entro por uma porta entreaberta. Ao chegar, ouço vozes e murmúrios de alguns internos, algumas dessas vozes são conhecidas. Vejo funcionárias da Oficina. Sentada a uma mesa, C., que fala no telefone. Em frente a ela, B., que eu ainda não conhecia. Ela me recebe e começamos a conversar. Essa conversa será bastante frustrante em alguns sentidos, estabelecendo uma ruptura, uma demarcação em minhas vivências na Oficina. B. me informa da mudança de administração/direção do Hospital, me explicando a necessidade de um aval institucional para que eu realize minha pesquisa. Digo a ela que já estive outras vezes na Oficina, conto como comecei meus contatos com o Hospital e a Oficina. Ela me fala dos entraves burocráticos. Segundo B., para que eu realizasse a pesquisa eu deveria submeter um projeto ao DEP (Departamento de Ensino e Pesquisa) cuja comissão se reúne na última semana do mês para deferir ou indeferir. Além disso, deveria também passar pela aprovação do comitê de ética do Hospital, que se reúne com uma freqüência determinada. Estas duas imposições institucionais, a princípio inviabilizariam a própria realização do meu trabalho, devido não somente a imposições externas à vivência com os internos, como também pela impossibilidade prática de esperar pelas reuniões desses comitês. Comunico essa impossibilidade a B. Ela, então, resolve ligar para o DEP para informar-se do que poderia ser feito. B. levanta-se, dirige-se ao telefone. Penso que talvez realizar minha observação participante possa ser inviável com a mudança de direção do Hospital e esse meu novo contato na Oficina. As dificuldades parecem ser maiores do que nas demais visitas. Nesse meio tempo, vejo internos, mais especificamente duas internas, com quem já havia travado contatos nas últimas visitas. M., uma delas, me reconhece e sorri. Em um de meus relatos anteriores, ela ocupa lugar central. A outra interna que entrou na sala parecia sentir muita dor, apontava para um dente seu e gemia. Foi um tanto impactante (mais do estávamos conscientes da necessidade de se ir além desse ângulo, de abrir-se a novas realidades. Aceitamos, assim, enfrentar a fragilidade daquilo que, até então, nos servia de parâmetro, e tivemos uma experiência que repercutiu de maneira particular em cada um” [Trecho etnografia, 2006].

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73 que eu esperei que pudesse ser), devido ao meu distanciamento da Oficina. As mudanças são diversas, principalmente porque a Oficina começou a adquirir uma visibilidade maior em relação ao exterior, como algo legítimo e autêntico. Diversas atividades passaram a ser realizadas, desde exposições até palestras e reuniões de pesquisa, tendo a Oficina e as “obras” dos internos como temática. Pelo que pude perceber, isso é radicalmente diferente da situação que encontrei em 2006 e 2007. Nesse processo de valorização para o exterior – por parte dos externos e para os externos, muitas questões surgem. É muito complicado pensar na relação entre academia (a produção acadêmica) e o manicômio. Essa visibilização da oficina carrega consigo uma burocratização de minha inserção, que até então não tivera lugar. Numa ótica foucaultiana, o poder se estabelece ao tornar visível, ao estabelecer um regime de visibilidade, na medida em que ele próprio se esconde. A questão dessa burocratização e da penetração cada vez maior da academia no contexto, ainda que venha legitimar as práticas realizadas pelos internos na Oficina, acaba por fazer esse contexto disponível ao poder e à ação da burocracia e uma intensificação do controle por parte da instituição. Além disso, há uma certa instrumentalização do contexto que deve ser abordado a partir de imperativos acadêmicos de produtividade, etc. Essas impressões me tocam enquanto espero por um momento o telefonema de B. Ela logo desliga o telefone e me informa que eu deveria ir até o DEP e tentar a inscrição num estágio voluntário ou algo semelhante para que eu pudesse, então, freqüentar a Oficina, procedimentos estranhos às minhas inserções anteriores. Isso me causa uma grande aversão, pois assim também eu me faço visível à instituição, me faço disponível a um controle minucioso por meio de documentos e de horários, me faço disponível também a ação desse poder, tornando-me visível. Isso é bastante desestimulante, principalmente se há uma intenção de crítica dessa instituição. Aqui há uma grande diferença das minhas inserções precedentes, não só por ter que passar por teias de controle burocrático como também estabelecer como que um “contrato”, por assim dizer, com a Oficina, no qual os dias de visitas estariam restritos a um combinado – e assim também, quem sabe, a apresentação do contexto para mim enquanto observador cujas finalidades últimas permanecem como que incógnitas para os encarregados da administração.

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74 De todo modo, resolvo me dirigir ao DEP e me informar sobre as possibilidades de freqüentar a Oficina. B. me explica vagamente sua localização, digo que entendi sua explicação, ainda que não faça idéia de onde fica o local. Saio da Oficina. Na frente do prédio histórico, avisto E., historiador do museu do hospital e meu primeiro contato no contexto da instituição, num certo sentido, o Museu é sempre um ponto de referência na minha construção da espacialidade 64 do Hospital. Ele me reconhece, trocamos algumas palavras. Pretendo ainda voltar ao museu na realização dessa pesquisa. Digo a E. que estou visitando a Oficina de Criatividade. Ele me informa de um projeto da pós64

E também da temporalidade: Quando me refiro à noção de trespassamentos de temporalidades, recorri a uma noção vaga que pudesse dar conta de uma realidade extremamente complexa, porém, sem pretender esgotá-la. Essa noção sem dúvida é um tipo aberto, que pode auxiliar na ilustração da seguinte reflexão. O hospital abrange múltiplas temporalidades: desde os regramentos da reclusão, o tempo da instituição, o tempo dos internos, o tempo dos externos, etc. Essas concepções se chocam se completam, competem, etc. Algumas vezes apenas subsistem, seja latente ou efetivamente. Qual uma das possíveis simbologias do museu nessa lógica, no contexto de atravessamentos temporais? Poderia ser dito que o memorial está ali fixando e simbolizando uma temporalidade específica: a história. Ressaltando-se da multiplicidade, o memorial representa a longa duração, como que uma temporalidade constante e paralela às outras que são vividas ali. A História, ao mesmo tempo, é o horizonte das histórias vividas ali. Porém, não uma história vaga e sim o devir conceitual, teórico, material e prático de uma realidade específica: a loucura e suas representações e figuras. O museu nos ajuda como que a compreender a realidade que vemos no hospital, sem tomá-la como necessária, isto é, percebendo o caráter histórico e contingente das instituições, dos padrões e dos modelos que caem sobre a vida das pessoas que lá habitam. Ao mesmo tempo em que o museu está inserido num tempo pontual e definido, almeja estar além desse tempo e enxerga-lo em seu movimento. Aí, se pode compreender o quanto as imagens-conceitos (loucura) e referências (tempo) dos atores se atravessam, trespassam suas prática. O museu torna o hospital ainda mais rico em dimensões e realidades temporais. E ainda busca conhecê-lo enquanto realidade temporal. Isso, sem mencionar as questões sociais e políticas que estão em jogo, quanto à nossa relação com a diferença, quanto as nossas necessidades de papéis e tipificações binárias que consomem os indivíduos que encarnam. A partir dessas percepções, pelo menos três grandes territórios temporais se colocam: o tempo vivido, o temporar subjetivo – o tempo dos internos; o tempo da instituição – a disciplina e a administração do tempo (regime de tempo); e a história (a percepção do devir sob a ótica da longa duração). Essas três realidades – seria possível destacar ainda outras – adotam seus referenciais próprios, suas marcas objetivas próprias, suas feições singulares – porém, todas se trespassam e atravessam, sendo impossível pensar qualquer uma delas sem recorrer às outras, a partir de cuja reciprocidade de constrói. Assim, é impossível pensar nos referenciais administrativos do tempo, o regime disciplinar do tempo, sem pensar em como este se coloca em confronto com o tempo vivido pelos internos e em como estes mesmos encontram intervalos nesse tempo, abismos, nos quais realizam sua própria temporalidade, fugindo à automação. Ainda, é impossível pensar o regime de tempo como uma realidade dada, sem recorrer à sua história, isto é, às diferentes concepções de homem, de corpo, de patologia, de normalidade, de saúde, de produtividade – e de loucura; isto é, sem recorrer às representações e imagens, às idéias e aos valores que orientam essas concepções e que fundamentam ou oferecem um solo legítimo no qual se realiza uma prática. É impossível compreender as diversas formas de administração institucional do tempo do recluso se não se compreende o sentido dessa reclusão em um contexto mais amplo e se não se busca os estratos dessa instituição, seu subsolo, sua arqueologia nos diferentes níveis em que se realiza. Assim, é possível afirmar que da multiplicidade das temporalidades – pelo menos dessas temporalidades tipicamente apresentadas – não se deve concluir sua não relação. Antes pelo contrário, todas estas percepções estão imbricadas e atravessadas por teias que as colocam em relação. Em última análise, uma visão sociologizante da temporalidade não pode desvincular estas realidades sob pena de torná-las reificadas. [Trecho etnografia, 2007].

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75 graduação da Universidade que está sendo realizado ali, fala de uma professora e uma turma integrados numa pesquisa na Oficina que, segundo ele, é muito interessante... Conversamos um pouco mais. Nos despedimos. Sigo procurando o DEP. Depois de caminhar um pouco sem encontrar o local, resolvo me dirigir à portaria. Lá pergunto à funcionária, que me responde com enorme simpatia e interesse, inclusive me dando algumas sugestões referentes ao estágio voluntário. Agradeço e me dirijo para onde ela indicou. Não encontro o local, ainda que conheça aqueles caminhos de outra visita. Vejo uma funcionária do Hospital, vestida de branco, ser abordada por uma interna que lhe pergunta se compraria panos de prato. Essa interna de quem não sei o nome foi uma das primeiras com quem tive contato no Hospital, pois ela aprecia freqüentar o museu. Pergunto para essa funcionária onde fica o DEP, ela me indica... Como não sei o nome da moça que vende os panos não estabeleço contato verbal, esperando que ela me reconheça. Isso não parece ter acontecido. Me dirijo ao DEP, entro, finalmente. No DEP, entro em uma sala na qual deveria ser atendido. A funcionária que ali está fala ao telefone, um assunto que me parece estranho à realidade do Hospital, espero por algum tempo. Chegam mais algumas pessoas. Querem inscrever-se em estágios, são estudantes de psicologia. Eu espero a minha vez. A funcionária prolonga a conversa no telefone. Vejo um médico se apresentar às estudantes, leio cartazes nos murais. Espero. Depois, sou atendido. Informo à funcionária da questão da impossibilidade de realizar minhas visitas, informo ela de minha conversa com B. – ela me diz que o melhor a fazer é o estágio voluntário. Estou relutante – recebo uma ficha, documento que devo completar com alguns dados. Ao entregá-lo, recebo um outro documento: uma ficha de freqüências, a partir da qual se poderá controlar minhas presenças e ausências nos dias estabelecidos (que, segundo B., “será muito útil, porque se tu trabalhares oitenta horas tu vais ganhar um certificado – muito bom para o currículo, que vai fazer diferença na hora de tu procurares um emprego”): meu tema de reflexão etnográfica vem ao meu encontro – a condição de eu estar na Oficina é a possibilidade da regulamentação de um horário e de uma freqüência, de ciclos uniformes de inserções na Oficina: a regulamentação e controle desse tempo – o tempo da instituição se constituindo através do contrato comigo como tempo hegemônico, como modo de temporar que remete às prescrições da instituição – além disso, um modo de ser localizado espacialmente no Hospital a partir desse controle

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76 do tempo – tudo aponta para o conceito que a pesquisa toma como ponto de partida: o de regime de tempo. Estou adentrando nesse tempo da administração, tempo do Hospital. Além dessa ficha de freqüências, recebo uma ficha de avaliação. Essa ficha estabelece critérios de conduta e avaliação positiva ou negativa sempre de acordo com valores e critérios referentes à ordem da instituição. Esses documentos monopolizam um pouco minha atenção, me causando um enorme desconforto. Ao fim e ao cabo, esse contrato que devo assinar isenta o Hospital de qualquer responsabilidade caso algum incidente se dê comigo. Isso é o de menos, ainda que o fato de este acordo estar basicamente velado no contrato seja bastante significativo. O que perturba toda minha disposição frente à inserção é ter que estar constando nos registros, nessa rede de documentos que regulamentariza a vida da instituição enquanto instituição total. Estou visibilizado, disponível, controlável: um papel social que nunca se impôs nas minhas inserções anteriores. Mais do que isso: tenho que cumprir um horário obrigatório e realizar atividades produtivas do ponto de vista da ordem institucional e da manutenção dessa ordem: etnografar a mim mesmo nessa posição de visibilidade, de funcionário da instituição, de staff (Goffman, 1961) me parece ser um grande exercício de estranhamento. De certa forma, seria uma estratégia de análise mais eficiente na descoberta dos funcionamentos dos mecanismos e articulações disciplinares do poder do que uma etnografia dos internos. Essa minha instrumentalização, esse meu estar disponível, estar no papel, estar regulado e mediado pela instituição e por um papel desempenhado nela e em relação a ela, cria novas mediações na minha relação com inmates e staff (idem). Uma etnografia de meu lugar, não de mim mesmo, do ponto singular do campo de forças que passo a ocupar, das relações de articulação do poder: uma possibilidade. A questão da temporalidade – que, a princípio me orienta, soa como que algo em vias de abandono se não servir de metáfora ou vincular-se a algo além dela: os papéis institucionais, talvez. De nada adianta sondar essas virtualidades por enquanto. O mal-estar de ter que me relacionar com processos legitimadores de dominações me causa esse mal-estar. É isso ou nada: a única possibilidade de pesquisar novamente na Oficina... Assino. Assino o contrato, pego as fichas, as guardo: devo levá-las à Oficina no meu primeiro dia como membro do staff, de interno ocasional – de externo no interior do dentro, assegurando e assegurado pela existência desse dentro. Como contribuirei eu, não

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77 intencionalmente, ao poder disciplinar, à instituição total, ao regime de tempo? Como estou eu mesmo disposto em um regime de tempo? É aqui que este primeiro relato adquire os traços definidores de um relato de frustração. Em diversos aspectos se dá esse frustrar-se. Um primeiro seria a minha ida à Oficina e a minha impossibilidade de inserção direta entre os internos, suas produções. Isso porque uma nova direção do Hospital, segundo B., estabelece esse controle rígido: depois, ficaria sabendo de um certo informante das tendências, segundo seu ponto de vista, pró-manicômio dessa administração e as medidas que procuram efetivar. Enfim, essa frustração é a primeira: estar na Oficina, sem estar de fato lá. A preservação de meu lugar, a impossibilidade de contato com uma alteridade radical: a necessidade da mediação institucional e do controle 65 . Essa é minha outra frustração: o estar colocado nas teias de controle documental da instituição, seus órgãos e funções totalizantes. A instituição se oculta ao me visibilizar para si. De que formas eu mesmo não estarei sendo um ponto pelo qual atravessam as teias do poder disciplinar e do controle? Essas e outras questões me interpelam. Questiono a possibilidade mesma de realização de minha pesquisa, de seus pressupostos, de tudo que diz respeito a ela, enquanto caminho. Dou algumas voltas pelo pátio do Hospital, depois de minha saída do DEP. Me vou, frustrado de diversas maneiras. Caminho.

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Por outro lado, se coloca, nesse bloqueio efetivado pela mediação da instituição, a experiência de uma outra alteridade, de um Outro que se constitui na imposição do Mesmo e na dissolução dos demais outros, das demais alteridades: a instituição, uma estrutura sem outrem, um mundo sem outrem. A instituição aparece como estrutura perversa. O hospital seria essa redução ao mesmo, à identidade: esse fazer coincidir sem erro, a partir do diagnóstico, o outro e a consciência dele como objeto. Deleuze (2003) relaciona outrem aos mundos possíveis que exprimem (p.327). O hospital seria a forma de reprimir esses mundos possíveis de cada outro. Afirma Deleuze, “é porque a estrutura Outrem falta, substituída por uma outra estrutura, que os ‘outros’ reais não podem mais desempenhar o papel de termos efetuando a primeira estrutura desaparecida [outrem], mas somente, na segunda, o papel de corpos vítimas (...) ou o papel de cúmplices-dúplos, cúmplices-elementos (...). O mundo do perverso é um mundo sem outrem, logo um mundo sem possível. Outrem é o que possibilita” (p.329). Assim, a prescrição de um lugar pela instituição para mim é impor-me um papel de cúmplice-duplo, de pequeno mesmo da instituição, na mortificação, controle e articulação do poder sobre os “corpos-vítimas” (os internos). Através dessa prescrição censura-se a alteridade possível em sua experiência radical (isto é, enquanto diferença). “Toda perversão é um outremcídio, um altrucídio e, por conseguinte, um assassínio dos possíveis” (p.329).

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78 Segundo relato Na visita de segunda-feira, combinei com B. retornar à Oficina, trazendo documentos e a resposta do DEP. Além disso, conversaríamos mais sobre minhas intenções de pesquisa e participação. Dirijo-me para o Hospital, a pé, através da avenida e suas polifonias, refletindo sobre o estranhamento que tem me atingido nesse retorno ao Hospital. Um distanciamento afetivo, em relação ao contexto, que parece não ter fim. Tem sido bastante difícil me movimentar no Hospital, diferentemente de todas as experiências anteriores. Além de tudo, entraves burocráticos à inserção começam a aparecer como não tinham ainda aparecido nos dois anos precedentes. Continuo minha caminhada e chego ao Hospital por volta das duas e meia da tarde. Na cerca externa, enquanto tento tornar presente na memória as sensações que me trespassaram nas primeiras vezes que me deparei com a visão do Hospital, minha vivência se reinicia. Um interno, muito tímido, olha, de trás da cerca, para a avenida. Como caminhava rápido, olhando para o prédio, sobressalto ao vê-lo ali. Ele ri da situação, eu mesmo rio. Ele parece ter surgido do nada. É um senhor, idoso, porta algumas sacolas. Cumprimento-o. Continuo a caminhar. Paro. Como que pergunto a mim mesmo por que tinha continuado a caminhar como que ignorando aquela presença, único interno próximo a cerca externa. Retorno. Vejo que ele tem em mãos uma gaita de boca. Ele me olha, percebe que notei sua gaita... Peço para que ele toque. Ele demonstra timidez, ainda assim eu insisto. Ele, então, pergunta se eu não tenho nenhum cigarro para lhe dar, através de gestos – ou pelo menos imagino que ele tenha perguntado isso – talvez não importe muito: as interações no Hospital vão além de significados fixados, talvez haja uma sinalização ainda mais intensa e radical – “eu difiro” – “sou uma sociedade que difere da tua” – penso na máxima de G. Tarde, “existir é diferir”. Suas manifestações são de uma leveza impressionante, assim repercutem. Peço para que toque. Digo que também tenho uma gaita e que toco. Ele faz um gesto para que eu toque, respondo que não trouxe a gaita, parece que ele começa a ficar mais à vontade... Peço para que toque, outra vez. Nossos gestos vão muito além dessa negociação. Ele começa timidamente levando a gaita à boca, e a princípio não tira dela nenhum som. Gradualmente, um som baixinho começa a sair, aumentando em intensidade aos poucos. A melodia é bastante suave, e parece se

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79 arrastar no ar quente da tarde, uma cena única, o prédio e seu abandono ao fundo, em seu silêncio profundo, aquele encontro inesperado... Aquelas notas de gaita frente àquele silêncio, habitadas em seus espaços por ele. O Hospital, seus prédios antigos, uma espécie de estar longe estando perto, uma aura. As notas não fazem uma música só consigo, ela se compõe com o silêncio do prédio, imponente, denso, vibrações temporais cansadas, se compõem com o fluxo polifônico de carros-máquinas-coisas-vozes-pessoas da avenida – todas essas vibrações se concentram, se dilatam e se contraem naquela melodia tímida. Descentramento. Ele toca um pouco e pára. “Parabéns, muito bom”, lhe digo, sendo arrancado eu mesmo daquela composição heterogênea. Ele sorri, se posta como quem vai ser aplaudido... Aplaudo, ele vibra! Isso me contagia. Ele como que me mostrou o que deveria fazer, me apontou um caminho – ele investe naquela aproximação, mediada pela mineralidade das grades que separam o hospício da rua. Que separa os internos do dentro dos internos do fora – que os faz externos do fora: outsiders. Um contato inesperado, uma troca, ainda que mediada pela cerca, que demarca bem os nosso lugares. Ele ri. Esse riso abala a própria cerca em sua gravidade. Nos despedimos. Isso de alguma forma me deixa feliz, se choca com toda a minha sensação de distanciamento em relação ao Hospital. Ainda caminhando pela avenida, chego mais perto da recepção, onde uma outra interna está perto da cerca; “um realzinho”, grita ela para mim. Respondo que não tenho, ela repete o pedido, digo que não tenho. “Tem sim”, diz ela. Não tenho, digo. Vasculho os bolsos, alguns centavos. Mostro para ela aquelas moedas que não somam “um realzinho”. “Isso não adianta”, insiste descontente, “um realzinho”. Não chegamos a termo. Aquilo continuaria indefinidamente. Essas interpelações, esses rostos me chamam para fora de meu distanciamento, aos poucos. Continuo minha caminhada. Duas experiências bem diferentes separadas por alguns passos. Acho que ela quer comprar cigarros – devo trazer cigarros para as próximas visitas, sempre soube da cultura do cigarro aqui 66 – pulseiras, colares, dar, receber, retribuir. Fluxo de pensamentos. Chego ao portão, 66

É próximo do meio dia, não temos muito tempo para conhecer o hospital e provavelmente, é horário de almoço nas unidades ativas, ainda assim, continuamos a andar e observar atentamente o hospital. Uma coisa se pode notar, a maioria dos internos fuma, inclusive realizam inúmeras ‘trocas simbólicas’ em decorrência disso”. “Quando nos encaminhávamos para a saída, pensávamos não haver nenhuma unidade de expressão simbólica entre os internos. Porém, notamos um homem que faz alguns gestos para uma mulher que estava caminhando e esta lhe dá um cigarro e o acende. Depois cada um segue seu caminho.

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80 Chego na recepção, me identifico e me dirijo para a Oficina, através do pátio. Nunca tinha estado no Hospital à tarde. Tudo muda. O espaço adquire outras colorações, outros lugares. Eu me situo afetivamente nesse espaço de acordo com essas novas cores. Cruzo com alguns internos que nunca vi, continuo andando pelo pátio, próximo ao prédio histórico, olhando para os porões, muito mais visíveis nessa hora do dia, me perguntando sobre que passado guardariam, que segredos... A luminosidade da tarde os fez surgir, porões – o ar que transita dentro deles é velho, possui uma história própria, foi um ar respirado por alguém – quem? Aqueles porões me provocam uma curiosidade e uma aversão, o que imaginar em relação a eles: o que eles abrigaram? Que vivências se imprimiram neles? Os porões sofrem também, ali na base do enorme prédio. A tarde, no pátio do Hospital, é mais densa que fora da cerca. O prédio, em seu abandono, sugere um silêncio pesado. O espaço parece tanto um outro que passo do local da Oficina, continuo andando, depois me pergunto como teria a Oficina desaparecido... Volto alguns passos, encontro a entrada. Isso nunca tinha me acontecido ali. (Aquela estranha densidade, aquele estranho diferir de si do espaço me coloca frente a uma geografia afetiva, a um espaço que age, que afeta e é afetado, que origina ações, de uma paisagem que rompe o monopólio humano da ação, e faz perder-se, como o espaço da Zona, no Stalker 67 de Tarkovsky). Na tarde, a entrada fica muito mais escura, sombra do prédio, de algumas árvores, o espaço todo adquire outras tonalidades e me afeta de formas diferentes. É como se eu entrasse pela primeira vez na Oficina. Entro no pátio interno, sinto um cheiro forte. Olho para as paredes, para tudo que nelas está escrito e desenhado. Me pergunto se será mesmo possível prosseguir a pesquisa, penso nos futuros entraves, penso em estar já constando nos registros da instituição... Entro de fato na unidade, a entrada é uma sala vazia. Passo para a segunda sala. Duas mulheres ali estão, uma jovem, provavelmente estagiária, outra mais velha, provavelmente funcionária. Me encaram como que surpresas... Pergunto por B., respondem que ela não está – e que, se viesse, só chegaria mais tarde, demoraria meiahora ou um pouco mais. Sento-me nessa sala, numa cadeira em frente à mesa. A “estagiária” me ignora, e vai realizar seus trabalhos no salão onde estão as mesas dos Isso nos levou a questionar essa posição inicial. Ou ainda: No caminho, avisto um homem, um tanto oculto ’fumando’ um papel enrolado que pega fogo. [trechos de diário de campo, 2006]. 67 Refiro-me ao filme Stalker (1979) do cineasta soviético Andrei Arsenyevich Tarkovsky (1932 – 1986).

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81 internos – que está vazio. Vazio, parado. A mulher mais velha, “funcionária” começa a me fazer algumas perguntas, quem sou, de onde venho, o que estudo; pergunta também sobre meu trabalho. Por um momento gaguejo, pareço ter esquecido de minha temática, de meus referenciais, de meu projeto. O distanciamento de que falei no início se coloca também aqui. Pareço ter esquecido. Deleuze diz que o gaguejar é um resgate das palavras, da linguagem. Penso que meu gaguejar possa ser o início de algo novo. Me perco nas frases poéticas escritas nas paredes, me pergunto quem as terá escrito. “Me recuso a inventar novas palavras, as que existem já devem dizer o que se consegue dizer”. Minha espera começa, B. não havia chegado. “Fica a vontade pra ir por aí”, me disseram. Eu fico sentado. “Ouviu, Deus? Eu não quero morrer! Porque não sei nem quando nem onde vou ficar muito feliz”, as frases saltam das paredes... Talvez eu esteja tornando o Hospital uma realidade muito pesada, penso. Esperar, espero. Uma funcionária da manutenção movimenta um pouco o ambiente, penso que deveria ter trazido um gravador para entrevista-lá, e tentar conversar sobre a questão do tempo, uma curiosidade sobre as suas percepções a respeito disso aparece para mim. Espero B. O tempo se arrasta, estou sem saber o que fazer. Uma estagiária vem buscar uns documentos. Se vai. Continuo na mesma cadeira... Pessoas, talvez internos, cruzam a porta, mas logo se vão. Resolvo caminhar pela Oficina, olhar alguns trabalhos, secando. Incrível reconhecer estilos, lembrar dos autores de cada um... Passo a olhar as folhas secando, tentando lembrar dos estilos de cada interno. Reconheço vários, as formas são bem recorrentes ao longo do tempo, essa é uma observação nova – que só pode ser feita nesse retorno à Oficina depois de quase um ano. Talvez as constâncias nas técnicas criativas dos internos, nas formas recorrentes que aparecem em seus trabalhos, se vinculem, de alguma forma, à noção temporal que está presente no contexto de reclusão – como essa repetição de figuras, formas, materiais, técnicas, se articula com uma repetição de ciclos estabelecidos a partir do contexto asilar, a partir de uma vivência do tempo atravessada por um regramento institucional, ou mesmo pelas próprias restrições que o contexto apresenta às possibilidades de viver o tempo. São questões a serem desenvolvidas, são questões do “aqui”, do lugar da escrita. Nenhum interno na Oficina. Minha segunda visita, e ainda nenhuma participação, nenhuma inserção entre os internos da Oficina. Prefiguração de uma pesquisa frustrada?

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82 Talvez. E talvez toda vivência em sua pretensão de pesquisa seja frustrada. Não sei muito bem o que fazer ali: B. não havia chegado, não havia nenhum interno na sala. Resolvo sair, rever o espaço do pátio que se encontra atrás da Oficina, observá-lo como mais atenção, deixar-me tomar pelo abandono, pelo silêncio povoado desse antigo prédio e sua ruína. Depois de esperar tanto, chega B. Conversamos. Ela me fala de grupos da Universidade que estão realizando trabalhos com o acervo da Oficina, me fala de professores, de textos, publicações. “Talvez fosse interessante tu te informares sobre como participar”... A ideia um tanto violenta de que sou um externo ao campo, aos saberes psi, à saúde pública e mental, áreas que supostamente não tenho acesso, transparece. A conversa se prolonga um pouco. Penso no meu próprio lugar – munido de técnicas de pesquisa e procedimentos objetivadores, quero extrair “dados” dali, daquelas vidas, daqueles rostos, para, de certa forma, “matá-los”, dizer o que e quem são: ainda que não o queira, meu lugar é uma disciplina que se quer científica, meus procedimentos são os dessa disciplina. Armadilha. O quão utilitarista e acadêmica pode ser a antropologia! Explora, extrai, filtra, objetiva, visibiliza, tira. Uma exploração do contexto em nome da produção de um saber que não é feito para ele ou com ele. Esses pensamentos me afastam da minha pesquisa, não quero fazê-la, não acredito que isso fornecera às pessoas com quem me relacionarei, ferramentas, possibilidade de ação ou emancipação – seria demasiado hipócrita pensar que esses são procedimentos da antropologia 68 . Talvez se vinculem à antropologia sendo extra-antropológicos. Aquele estar na Oficina é também uma preocupação política. Mas uma preocupação que está num “para mim”, pois as questões políticas que ali vejo, são as que imputo. Que sociedade é essa que não deixa diferir? São reflexões desorganizadas e assistemáticas; me sinto um pouco oprimido naquele contexto, não sabendo bem como faria para me reintegrar às atividades da Oficina, como falaria com os internos, como escreveria sobre eles – como lidaria com esse imperativos antropológico de expô-los... Enfim, talvez seja essa apenas uma antropologia. Talvez. Penso que talvez minha temática seja impossível, 68

É supreendente a recorrência como a ética é pensada na antropologia separadamente da epistemologia. Como se todos os procedimentos metodológicos não fossem já um ethos, não possuíssem sua própria ética. Como se fosse suficiente estabelecer um procedimento ético fora das técnicas de pesquisa. Como se houvesse o imperativo: tome, rapte, roube, arranque, exponha! E depois, a dupla mensagem verbalizada: a ética da pesquisa.

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83 muito externa ao contexto da Oficina para que possa ser ali pensada e vivenciada, penso na impossibilidade cada vez mais evidente, naquele dia, da minha pesquisa. Me vou.

Terceiro relato Nessa visita, algo mudou. Não sinto mais aquele forte estranhamento em relação ao Hospital. Chego no pátio central tomado por pensamentos sobre a loucura, sobre o caráter totalitário dos nossos sistemas classificatórios, sobre até onde pode ir o poder sobre os corpos. A realidade do Hospital aparece agora como algo mais próximo. Uma problematização cresce em mim. São nove horas, ando pelo pátio rumo à Oficina; hoje é o meu primeiro dia como estagiário voluntário – existo institucionalmente, sou visível à instituição. Existem documentos, registros. Ao fim do estágio, ao longo dele, estarei sendo avaliado. Essa é para mim uma nova forma de inserção na realidade da Oficina, no âmbito do que Goffman (1961) chama staff – os funcionários, vetores de englobamento efetivo da vida dos internos, mas que sofrem perante o perigo de ter englobada a sua própria, staff a partir do qual se proliferam violências e mecanismos de demarcação. Enfim, chego na oficina, passa por mim um interno tocando gaita, faço uma saudação. Ao chegar na Oficina, não encontro nenhuma de minhas “referências institucionais”, como B. ou G. Espero alguns instantes, resolvo entrar no salão onde estão dispostas as mesas, alguns internos ali estão. A maioria são rostos familiares: o Sr. C., M., P., G. Alguns me reconhecem. Ou julgo que o façam. Circulo no espaço e começo a conversar com o Sr.C., as falas são parecidas com as que eu lembrava: “que dia é hoje?”, “onde tu mora?”... Respondo que é segunda-feira, “não é terça? Terça é dia de café preto”. A conversa é muito parecida com a que tivemos há um ano atrás. P., sentando na mesma mesa que C., pergunta meu nome, o nome da minha mãe, muito parecido com a conversa que tivemos quando o conheci. Conta meus dedos, conto os seus, as falas se repetem69 ... Sento por um 69

Pergunto para ela como é seu dia, o que faz depois que sai da oficina, enquanto a vejo pintar. Ela responde pouca coisa: almoça, depois vai “pra lá”, indicando a unidade. Pergunto se ela demora para pintar e ela diz que sim. Nesse meio tempo, um interno toca diversas músicas no violão, e canta. Um outro se aproxima. Diz que tem quatro dedos, conta os meus, afirmando os mesmos quatro. Faço a mesma coisa e conto os seus dedos, ele aceita o resultado de cinco, dizendo algo como “eu tenho cinco também”. Sinaliza para que eu o siga até uma das mesas, ali conversamos, sobre meu nome, o nome de meu pai e de minha mãe, repetidas vezes, me é muito difícil compreender o que ele diz. Diz que veio ou mora em tal estado. Me mostra seu olho direito, parece ser cego deste olho. Me mostra seu joelho. Diz ter levado um

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84 tempo com os dois senhores idosos, olho seus trabalhos, não estou certo se se lembram de mim. De repente, sou chamado por N., uma funcionária da Oficina, que se lembra de me fazer assinar minha presença na lista que tenho como estagiário. Esse é um fato muito interessante, o fato de, dessa vez, eu estar entre o staff, o que muda totalmente meus status e as relações na Oficina, com os internos, com os estagiários e funcionários, etc. É uma questão central a ser tematizada ao longo da descrição da visita, retomando é claro que há uma mudança radical do olhar sobre mim – estou sendo avaliado, possuo uma ficha que será entregue ao DEP, na qual o staff da Oficina me avaliará segundo o desempenho de funções prescritas... Assino a lista de presença, meu documento é guardado por N., a funcionária, novamente na gaveta da mesa. Quem sabe o que fará dele o castelo-instuituição-hospital 70 . Antes disso ela preenche comigo algumas informações que faltam. Retorno ao salão e à interação com os internos. Não sei muito bem onde ficar, com quem falar. Chegam alguns internos que nunca havia visto, como também alguns rostos familiares. Recomeço, depois de alguns instantes, a andar pela sala. M. vem em minha direção. Estou próximo do local onde ficam os potes de tinta e os pinceis. Alguns internos vão chegando, muitos deles eu não conheço. M., a princípio, pede que eu coloque tinta na sua paleta, uma caixa de ovos. Pego os potes, interrogativamente, um por um, esperando uma confirmação sua sobre as cores, ela escolhe. Depois, começa ela mesma a manusear os potes e depositar, com uma colher, as tintas na sua paleta. Ela se

“tombo”, o que entendi com a ajuda da interna sentada a minha frente. Ela diz a ele, sorrindo, vendo sua inclinação a perguntar nomes, “tu sabe o meu nome, não vo te responde”, diz isso com carinho, com uma extrema simpatia. Ouço seu nome proferido por alguém e me apresento. Ela desenha com traços fracos em azul e vermelho. Seu nome é “tal”. Pergunto o que está desenhando e ela diz estar desenhando uma outra flor. Falo que as flores são bonitas ao que ela diz que gosta de flores. Conversamos. Pergunto o que ela faz depois da Oficina, como passa o dia. Narra alguns acontecimentos como referências, “almoçar”, “esquentar as mãos”. Ela diz, em um tom calmo, como passa o seu dia, com suas amigas, descrevendo num tom de monotonia. Pergunto a quanto tempo ela está no hospital, ela diz, “quase três anos”, em seguida: “amanhã é meu aniversário”, desejo parabéns. Ela diz que no dia seguinte haverá festa e churrasco. Digo isso para o interno sentado ao meu lado, que de novo pergunta meu nome. [Trecho diário de campo, 2007]. Esse trecho apresenta também o caráter de multiplicidade da oficina, ou ainda o não sentido das técnicas mecânicas, a antropologia na oficina como etnografar a polifonia. 70 Remete-se aqui às rotinas autofundamentas e autoreferentes do poder em sua disposição burocrática e molar, em cujas teias as vidas se definem e se perdem, que aparecem no romance de Franz Kafka. Além do absurdo da burocracia em seu caráter total, o escritor também apresenta, nesse romance uma idéia de entrelançamento entre poder-autoridade-vida. “Em nenhuma parte antes vira K. tão entrelaçadas a autoridade e a vida, tão trançadas que às vezes podia parecer que a autoridade e a vida tivessem permutado seus lugares” (p.79). Ver: KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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85 encaminha para um cavalete no qual fixa uma folha, gesticulando, me chama... Me aproximo e sento num banco ao seu lado, olhando-a pintar. Interagimos, ela me olha depois de pincelar como que esperando uma resposta – engraçado, M. é muda, ou pelo menos assim é definida pelas pessoas que freqüentam e trabalham na Oficina, ainda assim, sinto que conseguimos nos comunicar. Isso desde o dia em que me vi sozinho com ela em frente à Oficina no horário de abri-la para os internos, numa outra ocasião... M. desenha linhas paralelas, às quais vai acrescentando ramificações de diferentes cores, essa proliferação de linhas é finalizada com formas circulares na extremidades... São flores, assim parecem – as estagiárias que passam pela pintura assim a definem... M. começa a tornar o desenho mais abstrato, adicionando formas triangulares nas linhas originais. Capricha na cor no que seria um dos “botões” dessas flores. Ela pinta calmamente, num ritmo diferente do Sr. C., por exemplo, que pinta rapidamente acompanhado de um solilóquio, sobre a proximidade e a distância de alguns lugares ou datas. M. pinta com calma, tudo indica um trabalho concluído: dois ramos de flores vermelhas, sugestivos, galhos azulados, com alguns princípios de abstração nas formas que cercam as flores, recebe elogios. Eu me manifesto ao longo de toda a pintura, respondendo aos seu olhares. Enfim, tudo indica um trabalho pronto. As estagiárias e funcionárias comentam o seu capricho. M., no entanto, começa a pincelar cores escuras por sobre as figuras que estão dispostas na folha, de modo a cobri-las. Faz isso obstinadamente, cobrindo toda a superfície da folha com uma camada de tinta, que, em alguns pontos, é mais translúcida, deixando transparecer as flores. Descrição falha essa – descreve o produto. Não o fluxo, o processo. Falha porque a experiência de M. traz a questão do estatuto do fazer artístico na Oficina de Criatividade. A questão chave “que arte é essa?” parece central na inserção na Oficina. A partir disso seria possível estabelecer uma relação de diferença ou até oposição entre o fazer arte enquanto campo artístico, enquanto campo de produção de bens simbólicos ou culturais e o fazer artístico enquanto fluxo poiético e polEitico (Canevacci, 2005) tal como aparece, muitas vezes, na Oficina. Esse fazer como fluxo traz a oposição processo 71 – produto. O olhar externo sobre a arte, a história da arte em grande medida – é o olhar sobre o produto, o produto que circula, que, segundo dizem, comunica, se faz disponível à troca. O produto é 71

“Process is the becoming of experience” (Whitehead apud Alliez, 1995, p.50).

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86 processo perdido, esquecido, cristalizado num fixo, numa coisa 72 . A experiência da arte na Oficina nos traz a possibilidade de pensar as práticas artísticas no âmbito do fluxo, isto é, do processo, opondo-se à lógica dominante do produto. Na Oficina, é possível um deparar-se com modos de ser da arte que se opõe à Arte tal como a experimentamos. Ali, uma arte na qual processo e produto se confundem – uma arte que é processo. Nesse sentido, o que realmente interessa são os processos, não os produtos, o que interessa é a subjetivação 73 através das cores, da tinta, do pincel – a imputação à matéria de um modo de temporar, de se relacionar com o devir temporal e com as possibilidades materiais de criar, manifestar, inventar processos. A pintura de M. estaria pronta como produto esteticamente apreciável muitos movimentos antes de sua finalização enquanto experiência poiética; isso porque o processo não acaba no aparecimento das flores, bonitas, sobre o papel, no elogio, no apreciável, no comunicável, na figuração, na obra que deve despertar o olhar contemplativo do outro. Não. A pintura de M. tem aí somente um ponto, um novo começo possível, na dissolução do produto através da perpetuação da produção – uma produção que se excede em significação, que é muito mais profunda do que o produto convencional, “as flores”. O investimento é muito maior. M. cobre as flores, elas se tornam invisíveis; “que, pena, que judiaria”, “olha o que ela fez”, diz alguém não tendo mais o que “ler” naquela tinta sobre o papel, não tendo mais o que situar, o que depreender dali. M. bate o pincel no papel, a tinta abandona este em nacos que se colam à folha e que são por ela espalhados. Onde estão as flores? Essa é uma arte que não circula, que se fecha sobre si. As flores estão ocultas, a visibilidade foi subvertida. A pergunta “o que é?” não faz mais sentido. É a experiência da arte, na 72

Paul Valéry concebe a poética como processo e fazer, o poïen, “aquele [fazer] que termina em alguma obra” (1999, p.180). Seguindo a distinção desse autor entre ação que faz e coisa feita, queremos deslocar a noção de poética para o pólo do processo. Valéry, diferentemente, privilegia a noção da obra enquanto obra do espírito: “final de uma certa atividade ou a origem de uma outra atividade” (p.184); assim, da poética enquanto atualização do ato na obra (“o ato, ou seja, a determinação essencial, já que um ato é uma escapada miraculosa para fora do mundo fechado do possível e uma introdução no universo do fato”, p.191), passamos, nessa etnografia, à noção de poética enquanto processo, enquanto jogo dos possíveis, isto é, experimentação do mundo dos possíveis não como fechado, mas como aberto. Resta etnografar as possibilidades vividas na fruição estética. Valéry assinala a distinção do estado (o que impulsiona a atualização da obra, a partir de uma “sensação de valor e impulsão”) do ato, que conduz à obra. É exatamente o estado que é o vir a ser da experiência, e é sobre ele que versa uma etnografia da poética enquanto processual. 73 “the subject experiencing its object as...” (Whitehead apud Alliez, 1995, p.50). “A sensação preenche o plano de composição, e preenche a si mesma preenchendo-se com aquilo que ela contempla: ela é enjoyment, e self-enjoyment. É um sujeito, ou antes um injetco” (idem, p.51). “o que equivale a pôr a sensação no mundo, e o mundo no sujeito que emerge do mundo (‘a superject rather than a ‘subject’), p.49.

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87 matéria, do movimento, do tempo, de si, o que torna cada momento do processo singular e o que torna o processo um grande trespassado por vetores de singularização, cada ponto é único, tudo acontece e aparece da forma como aparece apenas uma vez, é único; depois, é extinguido ou se esconde. O esconder o antes, as flores que ali estavam antes, também é momento único. Isso define uma arte na vivência, um fazer estético que transcende produção-produto, que é um devir estético do si em relação à manipulação da matéria – é um fazer-se no processo de criação 74 . É exatamente esse o sentido da arte que o campo artístico mata, é o singular que tende a morrer no produto reprodutível que nasce das mãos do artista externo, do artista interno ao campo artístico, do artista interno do exterior. Assim, vendo as flores de M. aparecerem e desaparecerem, vi M. Fui afetado por uma sensação de irrepetível na sua pintura, enquanto vivência. Essas percepções talvez transformem todo sentido dessa “pesquisa”... Deixo M. e volto a circular pela Oficina. Volto a falar com Sr. C. e P.. Vejo o trabalho de G. cuja técnica se mantém quase inalterada nesse tempo que deixei de freqüentar a Oficina, como também sua simpatia. Transito. Sempre frustrando-me em relação às aspirações de pesquisador que quer extorquir a realidade e extrair dela “informações”, “dados”, que permitam a tematização de questões teóricas que precedem o campo. Nessa visita, apesar das tentativas de levar a cabo o “programa” desse projeto que fez um eu-pesquisador, intimamente abandono um pouco as questões teóricas, buscando abrir-me ao não esperado. Um interno que nunca havia visto entra na Oficina, diferentemente dos demais, parece bastante jovem. Estou sentado à mesa com Sr. C. e P., este último continua a me fazer as perguntas corriqueiras – continuo a respondê-las, também C.. Tento começar algum assunto com C., retomando alguns fatos que haviam chamado a minha atenção nas vivências anteriores que tive com ele, por exemplo, sua técnica de pintar: “um – dois – três – quatro”, acompanhado por rápidas pinceladas, ou o seu uso das cores, ou referências como “o dia do café preto” ou onde moro. C. responde, quase abreviadamente. Logo se volta para seu trabalho, com alguns elementos das falas... Fico sem saber como prosseguir minha investigação.

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Poderia-se falar em uma “experiência a partir da qual o ser como sujeito e o ser como objeto se constituem na reciprocidade” (Alliez, 1995, p.53).

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88 Vejo entrar no recinto um jovem, o disse. Não tinha visto ele ali até, então, a princípio, não soube dizer se ele era um interno. Posteriormente, quando ele pegou e dispôs sobre a mesa o material de desenho, percebi que o era. Continuei minha conversa com C. e P., este último desenhando muito pouco, me parecendo estar muito mais envolvido com o ambiente da Oficina e com a minha presença ali. Levanto da mesa dos dois senhores e caminho pela Oficina. Depois de circular um pouco, chego à mesa na qual está o jovem e pergunto se posso me sentar, ele responde afirmativamente e ali me sento. Olho seus desenhos, ele fala algumas coisas, acompanhando o ritmo de seus desenhos, num diálogo múltiplo. Não responde minhas perguntas que, em grande parte, devem ser enormes clichês dos externos em relação aos internos. Fico observando seus desenhos; depois de alguns instantes pergunto por eles, “uma arma”, “parece uma arma de fogo?”, não parece, ao menos para mim. Ele começa desenhando abstratamente algumas formas arredondadas automáticas à Hans Arp 75 . Depois disso, parece pensar se pergunta como articular aquelas partes existentes – faz algumas formas retangulares, e procura um lugar para colocar um “coração”, “onde posso colocar o coração?”. Bricolage levi-straussiana, mais para heterogênese. A “arma” parece mais algo orgânico, ainda assim mecânico algo não humano, maquínico: é uma máquina, ele faz o gesto de disparar. É um si, uma produção do si. Assim me aparece a imagem que esse interno, J., me mostra. Perguntei seu nome. Faço perguntas. Sua “arma” cativa, lida com o indeterminado, pura fruição do processo, faz diversas delas, cada uma com um impulso de formas primeiras arredondadas diferentes umas das outras, algumas cruzes. É um corpo, uma arma, ali, um coração. J. fala. Pergunto sobre sua chegada no Hospital, tinha 19 anos. “To aqui há 20 anos”. Ou mais, ou menos. O pó é perigoso, cocaína destrói, “nunca cherei”, “já fumei maconha”. “Tu já fumou maconha”. Ele vem do estado tal, ou de algum outro lugar, não é ‘daqui’, conheceu a cidade ou o centro ou o “morro” numa de suas saídas no hospital. “Não quer desenhar?” – Não sei se eu posso... – “pode sim...” – Não posso, da última vez, me xingaram, disseram que eu não podia – “pode sim, elas deixam”. De fato, tinha sido censurado há tempos por escrever o nome de uma interna em 75

“Ao lado da sátira social e humana, os dadaístas criavam formas e cores dentro do mais puro automatismo psíquico, como nestas composições de Arp, que as chamava ‘construções automáticas” (CAVALCANTI, Carlos. Como entender a pintura moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. Fig. 36.

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89 um lugar de seu desenho – no qual ela pediu... Aquilo teve uma importância enorme num processo de aproximação com aquela pessoa. Mas eu não podia fazê-lo. J. diz “pinta”. Me traz algumas folhas, pincel, tintas, fico sem saber se pinto ou não – dilemas patéticos de “pesquisador” que se vê tendo que resguardar-se frente a um contexto institucional que media, regula, e garante minha observação participante. Por um momento, me vem essa impressão – desse bloqueio à vivência. Pinto, então. Começo desenhando formas circulares, arabescos, em amarelo, cor que J. me sugere – “um chapéu de Aladim”, ele sorri, parece gostar. Desenho mais formas do mesmo padrão, espalho alguns olhos pela folha, J. ri. Experiência nova, afeto. Agencio eu o meu tempo na Oficina eu-externo, devir-interno. Pincel, tintas – temporo com as tintas. Eu-externo, não. Eu-interno. Não. Eu-interno-do-exterior. Sim. Eu-não. Isso é uma novidade, até então eu nunca tinha sido um “oficineiro”, nunca tinha trabalhado com as tintas ali, com eles. J., pena ter que abreviar seu nome, trocamos palavras, não comunicamos, dizemos. Eu olho, penso com descaso na minha entrevista semi-estruturada. Ficções! – ficção também a escrita. Pintando com J., eu realmente sinto estar presente na Oficina, entrando um pouco em suas entranhas, escavando também eu um lugar provisório ali para mim, território. Já nem sou mais pesquisador, pinto por um longo tempo, me sinto bem. Uma funcionária passa, sorri. Eu continuo. Não quero cair na falácia etnográfica do solipsismo, mas pintava. Nova folha, “desenha um mestre”, espalho a tinta, um homem, careca, longas barbas, amarelo, aquele tom de palha, “faz cabelo”, J. tem razão, aquela careca está terrível. Cabelos, um pouco ondulados. “É assim que ele se enxerga” comenta a funcionária com uma das estagiárias... Não é assim que eu me enxergo. Na verdade, não importa. Nova folha, árvores, lembro de Constable, ainda aquelas tonalidades ocre, amarelo, palha, aquelas pinceladas grossas. Árvores aparecem na folha, J. faz alguns comentários, e eu sobre as suas “armas”, agora ele usa tinta, ele ri, sua pincelada é fraca, suave, desenha os contornos. Ri. Fico eu com minhas árvores. Externo no interior, interno do exterior. J. se vai. Volto à mesa de N.. Volto porque ela sentava ali há um ano, numa das visitas anteriores. Tenho um pando pintado por ela comigo, ainda que não tenha tido coragem de desempacota-lo muitas vezes, fora do Hospital. O trabalho de N. vem sendo reconhecido inclusive fora da Oficina, em exposições. A lógica do produto, do campo artístico, parece

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90 conseguir absorver seu processo. N. em processo é lenta, escolhe as tintas, é séria, movimentos pesados, pinceladas-lentas-fortes-nítidas-contínuas. Pára, canta. Acompanha o peso de suas pinceladas, melodia arrastada. Gosta de cores quentes, ou não. Mas em todo caso pinta com elas. Vejo. Pinta casas, pessoas e animais, principalmente. Seus bois são muito apreciados fora dali, segundo informante. Volto porque já havia sentado ali no dia, sem dizer nada. Pergunto se ela se lembra de mim, acho que não. Digo que me lembro dela, não responde, ela é séria. Ela parece ser tratada com alguma diferença pelos externos dentro, ali. N. trabalha numa mesa só sua. Ela não fala comigo, não quer, não parece querer. Desisto, então. Fim do período. Estagiárias comentando e organizando trabalhos – “muito interessante, que fálico” diz uma das armas-máquinas-corpos de J. Fico um pouco perturbado com aquele comentário. Chega, T. outra externa que trabalha-administracuida da Oficina. Me despeço de M., com ela me comunico. Sento, escuto conversas. “Me vou”. E me fui. Pensando em J. E no coração. Pensando na possibilidade que ele me deu de vivenciar a arte na Oficina. Fim do relato. Só se conta o que se quer.

Quarto relato A descrição densa às vezes pode vir a ser uma forma de tornar menos aparentes os afetos provocados por determinadas situações. Um maior impressionismo talvez enriqueça o relatar – fragmentária é a lembrança. Um pontilhismo de memórias, realizado a partir do que persiste, talvez seja uma forma de possibilitar uma outra linguagem no relatar. Essa é uma das questões que tem surgido constantemente ao longo do intercalar do estar lá e do estar aqui: pode uma linguagem tão formatada e presa dar conta de uma realidade não-discursiva, permeada de agenciamentos, de afetos, de linguagens não discursivas, de pequenos choques e situações que se instauram provocando algo que não se faz disponível para uma descrição minuciosa, realista? Não se trata de responder a essa questão, mas de tornar a descrição retroativa a ela. Por isso, nesse quarto relato, tentarei ensaiar alguma outra forma de narrar, apresentar, que não a utilizada anteriormente; ainda que esses relatos tenham um cunho mais pessoal, é importante registrar as questões

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91 referentes à escrita e ao colocar-se em relação a ela. Parece de extrema necessidade problematizar a escrita antropológica e, sem dúvida, a melhor forma de problematização é o fazer ser, o possibilitar outra escrita. Isso foi tentado, de certa maneira, no relato anterior. Chego mais tarde que de costume no Hospital. Entro na Oficina. Poucos internos no ambiente. Me sento em frente a uma mesa. Interajo com M. e outros internos. Há algo diferente hoje nessa forma de relação – e (espero) ela se explicitará ao longo do relato.Uma das estagiárias me cumprimenta. Conversamos um pouco. Explico sobre minha pesquisa, falamos sobre a importância de estar lá antes como vivência do que como pretensões acadêmicas ou de alguma outra natureza. Volto à mesa. Ela me pede ajuda para identificar os trabalhos, escrevendo o nome do interno que os realizou e a unidade de onde vem. Um choque – sou estagiário! Como que tinha esquecido que tinha me feito disponível à instituição, sou estagiário e devo agir como um. Aceito. Começo a escrever atrás de uns vinte trabalhos os dados de C., aquele senhor com que conversei em outras visitas. A partir disso, como também de experiências precedentes, posso de fato vivenciar a divisão radical entre staff e inmate: se na visita anterior eu pintei com J., me colocando, de certa forma naquele plano – ou ainda diminuindo as distâncias, classificar e identificar os trabalhos feitos pelos internos é um procedimento do staff, que altera profundamente as relações na Oficina – tanto no que tange aos internos como aos estagiários. Tal situação me incomoda, e a percepção dessa mudança me faz querer parar de classificar os trabalhos, levo a tarefa até o fim, mas posteriormente nego fazer elas com mais trabalhos, brincando com a proposta. Tal relação será de fato instável ao longo dessa visita (não se pode chamar de visita, considerando o caráter obrigatório que o estágio me coloca); depois de circular pela Oficina, resolvo afirmar essa circunstância, e me ofereço para dar continuidade e ajudar nessa atividade dos estagiários. Posição estranha essa. De certa maneira, minha observação participante ou participação observante, passa a ser muito mais dos externos, do staff’s world do que do mundo dos internos. Isso, afetivamente, me causa um desconforto, pois de certa maneira passo a integrar, impessoalmente, um mecanismo cujas ações pude ver sobre os internos de uma forma que não poderia perceber positivamente. Ainda assim, as possibilidades de realização mesma da etnografia dependem desse enquadramento postulado pela

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92 instituição. Além disso, minha conduta estará sendo avaliada dentro da Oficina (basta lembrar da ficha que será posteriormente preenchida), principalmente minha conduta como estagiário à disposição de papéis e funções institucionais. Desde a última visita, esse tem sido meu maior estranhamento. Não é que haja uma distância efetiva dos internos, pois talvez eles não tenham me percebido nunca como interno – não tendo eu me colocado nessa condição, sendo isso inclusive impossível. No entanto, o staff pode agora me situar, me classificar, faço parte de um sistema digamos simbólico, estou situado de uma forma previsível e regulamentada frente aos internos, frente à instituição, e frente a eles mesmos (estagiários, funcionários). Com isso, pude perceber uma aproximação. Uma diferença geral de receptividade – não sou mais uma incógnita, não situada nos lugares possíveis das relações no Hospital; assim, apresento menos perigo, talvez. Além disso, passo a dividir um mundo, digamos, representações e funções efetivas com aqueles que estão colocados como eu estou, no posto de estagiário. Estranhamento. Numa outra mesa V. chora, parece sentir dor. Algo que eu ainda não havia presenciado acontece, então: M. vai em direção a V. e tenta acalmá-la, a acaricia. M. parece saber como acalmá-la, numa manifestação como que de cumplicidade. Começa a dançar com ela. V. se acalma. A descrição não traz a intensidade vivida dessa cena. Novamente grita a necessidade de uma outra linguagem. Passarei a maior parte da visita nessa mesa, com os internos que nela estão: I., V. e outro que eu não conhecia. Antes disso, porém, vou à mesa de um homem, que avistei chegar e que não pude em nenhum momento suspeitar que fosse um “paciente”, E. Trajes externos, nada o denuncia, nada nos denuncia. Fico pasmo com aquela presença e me recordo que na minha primeira visita ao Hospital, ao museu, fui apresentado a Ele. Ele pega seus materiais, escreve seu próprio nome e dados nas folhas que usa, procedimento muito significativo. Pergunto se posso me sentar à mesa em que pinta e olhar – posso. Sento. Não sei muito bem como conversar com ele, não é como os outros internos – não é interno. Me conta fragmentos de sua história – não me vejo em condições de contá-los aqui – limites vivenciais aos procedimentos objetivadores de uma disciplina que se quer científica, mas parece esquecer que etnografar é visibilizar, expor, tornar disponível ao saber, ao poder, e suas articulações. Lucidez, Ele é lucidez – sabe de como é classificado pelos saberes psi, sabe de suas condições econômicas, transita nos

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93 dois mundos com habilidade. Pinta com incrível expressividade corporal, de pé, realizando movimentos com todo o corpo, respiração alterada, profunda – novamente o Processo estético antes dos Produtos da arte – a relevância vivencial e fenomenológica do processo.

No

processo

não



comunicação,

circulação,

transferibilidade,

reprodutibilidade, troca – não há mercadoria, mas meteorito (nas expressões de Gilles Deleuze). Uma poiésis que se destaca das regras, que não se integra no campo artítistico – que relativiza a própria lógica dos campos se abandonarmos a oposição legitimidade – ilegitimidade. Ele interage com sua pintura, num sentido de produção de movimentos a partir da interação com tinta e papel – uma pintura gestual, gestualizante – mais gesto, movimento, fruição do movimento corporal que pintura – aparece um corpo pintante, pintor. Ele se distancia do papel, com firmeza, mas sem tornar-se brusco, nessa distância olha, respira, percorrendo a folha com olhos que são outros: o corpo precisa ser outro para que o processo continue. A estética torna-se um modo de ser, um devir do corpo, a forma como esse passa a vigorar e a ser experimentado-apresentado, tudo nele se altera. As técnicas que aparecem nesse corpo não são estritamente artísticas, são técnicas que fazem emergir um corpo artístico, que elabora movimentos na relação com a inscrição de imagens e cores no papel – uma possibilidade de liberação de movimentos, uma subversão das disciplinas corporais? Que corpo é esse que se torna, por momentos ínfimos, imprevisível? Uma silenciosa quase-dança compassada pelo intercalar dos ritmos das pinceladas e da respiração sonora. E há algo além: nesse entusiasmo (ένθουσιασμός enthousiasmos - para os gregos, algo próximo de uma possessão divina que se liga à arte e à poesia através inspiração provocadas por Apolo e Dioniso, por exemplo) com o pintar a construção de um corpo que faz arte – a corporificação. Aqui a técnica não busca eficácia pictórica, essa técnica é toda uma relação de espacialidade, de corporeidade 76 , de relação pática com a criação artística através do mundo e com o mundo através da criação artística. Talvez por isso possa parecer estranho ver os movimentos dEle., no contexto em que aparecem: uma Oficina que permite os movimentos, mas que reproduz em sua espacialidade alguns dos elementos de ordem, organização, visibilidade. São movimentos que o singularizam na forma como se

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Sobre a relação entre espaço e corporeidade, o texto de mesmo do nome em Caosmose, de Félix Guattari (1992).

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94 manifesta seu corpo. Suas pinceladas são livres, são antes movimentos que não se destinam a arte. Nesse sentido, todos os seus traços parecem livres, não fosse por um pequeno detalhe: ao começar cada nova pintura, ele se vira para as anteriores, as observa por um instante e começa a nova, como que fazendo mentalmente um mosaico. Essas relações apontam para um modo de ser da arte – ou ainda, para as possibilidades de modos de ser da arte, que não se situam na Arte: a estética de uma vivência com as tintas, com o papel, o pincel, a matéria. Uma relação estética que desafia a posição política do interno. Ainda assim, a previsão primeira dessa “liberdade” pela instituição: estrutura – anti-estrutura: essa liberação dos movimentos talvez afirme e perpetue a estrutura do hospício tornando-a aceitável. Ainda assim essa aceitabilidade é como que sobrevivência, se pensarmos o que é estar jogado nas malhas de uma instituição total. “Existencialismo, Jean-Paul Sartre” – fico pasmo ao escutar a voz dEle. me interpelar enquanto, estagiário, classificava trabalhos. “Tu faz filosofia. Ou não? Eu também estudei” – faço... – “Sartre, filósofo existencialista, diz. Sartre e o sujeito condenado a sua liberdade são nessa pesquisa estranhos. Ele transita pelo espaço da Oficina, bate displicentemente nas cordas de um violão e volta às suas pinturas. É elogiado por sua produtividade, cumprimenta internos que vão observá-lo. É sério. Pego o violão, toco, ele parece gostar. Trocamos algumas palavras sobre, levo o violão até sua mesa, toco ali. S., uma interna, de quem tinha já ouvido falar se aproxima, escuta, calada. Pessoas dizem que ela canta, pedem para que cante. Pergunto a ela se sabe cantar – afirmação. O que ela gosta de cantar – “Hey Jude”, começo a tocar no violão – ela me olha, não acompanha – quer cantar? “quero”. Pega o violão, bate nas cordas – canta “Hey Jude”, alto. É aplaudida. E não. E. a olha sério. Mais tarde, ele se vai. Fico na mesa com S. Ela me encara. Largo o violão em seu lugar. Volto à mesa. Depois, assino a minha lista de presença, freqüência – ou seja lá – a lista que os estagiários devem assina para que seja realizado um controle das horas passadas na Oficina. Pergunto se S. não quer pintar, ela pinta com o material que E. havia deixado à mesa, desenha uma árvore. Me pergunta o que fazer. Digo que ela tem que saber. Me pergunta se deve desenhar o que todo psiquiatra freudiano 77 quer ver – algo como “é isso que tu quer ver?”. Situação irônica,

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“o freudismo, sob a aparência de ciência, propõe como normas insuperáveis os próprios procedimentos da subjetivação burguesa, a saber: o mito de uma necessária castração do desejo, sua submissão ao

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95 levando em conta o comentário de uma das estagiárias – que por sinal, não está presente hoje – que relatei, na visita anterior. O tempo passa lento na Oficina, volto à mesa de V. e I., conheço um interno com quem converso e interajo, ele é de extrema simpatia. Comentamos eu, ele e I. os trabalhos – uma leveza, uma tranqüilidade por parte deles, sinto. Talvez as invente neles. Talvez mesmo os invente assim. Fico nessa mesa praticamente até a hora do almoço dos internos. Não só observo a rotina institucional com participo dela, mesmo que me pareça inicialmente ser de forma amena. Participo da regulamentação do horário e dos ciclos de repetição – dos imperativos que caracterizam o regime de tempo. É como se estivesse absorvido imperceptivelmente nos protocolos da instituição, essa idéia me perturba. Situação estranha essa de estar no posto de estagiário. Acompanho minha colega até a unidade de I., para o almoço, uma unidade feminina: incrível ver a multiplicidade que existe numa unidade como essa, os mundos, os rostos, cada um contendo seus segredos, suas histórias, seus devires, suas durações. A situação me parece um pouco aprisionante – sou externo. Um choque com a unidade. Volto, pelo pátio, à Oficina. Penso nas ruínas que são o Hospital. Um espaço temporalizado, esculpido pelo grande escultor de que fala Yourcenar 78 . Esse espaço que me leva para lugares afetivos que não situo. Relação estranha essa com a ruína, com o sentir vida nas marcas das paredes, do poder imaginar nelas histórias e vozes incrustadas. Volto à Oficina. Converso com minha colega. Rostos. Esse espaço que percebo parece me perceber e conter, com a mesma intensidade, agindo sobre mim. Ao chegar à Oficina, não há praticamente ninguém. Nenhum interno. Aliás, um. Já o havia visto, sem saber que o era. Parece ironia. É o dia da relativização da possibilidade de identificar externos-internos. Se veste bem para os padrões externos, é asseado, carrega um pasta, usa óculos escuros, careca. Enfim, estereótipos fáceis. Mesmo como interno, trabalha no hospital. É uma figura muito interessante em suas manifestações. Sua simpatia e tranqüilidade escondem densas vivências de muitos anos no hospício. Sua pele é um pouco como aquelas paredes. Sento a seu lado na mesa. Ele triângulo edipiano, uma interpretação significante que tende a cortar a análise de suas implicações sociais reais” (Guattari, 1985, p.22). 78 YOURCENAR, Margueritte. Il tempo grande scultore.

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96 pinta, e com uma caneta própria, que tira do bolso da camisa, escreve ao lado da figura o que é, “flor”, “mulher”... Uma brincadeira visual com significado e significante: “isto não é um cachimbo”. Ao mesmo tempo, a palavra que faz ser: como o médico que realiza a doença ao designá-la – G. quer ser médico. Por que tu queres ser médico? “Me visto como médico, não vê?”, “olha a minha pasta de médico! Aqui eu tenho papéis, meus papéis de médico...” – abre a pasta e mostra uma infinidade de folhas amassadas, apertadas, velhas dentro dela... São tuas receitas? “É, são meus papéis de médico, eu guardo tudo, eu sou tudo – fiz cursos..” – Sim, bem que eu vi que tu te vestias com esse rigor – “sim, fiz vários cursos. O que eu quero mesmo é ser médico, gosto”. Me fala sobre o seu desenho-pintura, diz que fez rápido demais – “fui um dos fundadores dessa Oficina, venho aqui desde o primeiro dia, agora venho pouco porque tenho que trabalhar...” – Fundadores? “Sim, um dos primeiros, junto com a Dra., antes de ser aqui”. Conversamos sobre, G. tem muito o que dizer: incrível o quanto consegue dizer sua loucura-razão-pura, sua lucidez. De fato as histórias transbordam em diversos fluxos narrativos simultâneos que se entrecruzam... “já vi muito aqui nesse Hospital, aqui aconteceu de tudo”. G. foi internado quando tinha vinte anos – por que veio pra cá? “nervos, problemas de nervo. Tinha tudo, depressão, não falava, esquizofrenia, me trouxeram pra cá, no tempo em que os loucos ficavam aqui no pavilhão... Tinha de tudo aqui dentro com os loucos... Faziam de tudo com os loucos, de tudo... O que eu já vi aqui... Não vai falar, não vai falar... o que eu já vi...”. E viu, viveu. Conta do tempo em que o hospital era administrado pelas irmãs – “as casinhas delas ficavam lá... eu sou do tempo delas... sou um dos mais velhos aqui, vi tudo”. Como era? “nos davam banho, no Mangueirão, sabe? Lá atrás...” Como assim? “Nos davam banho de mangueira... pelados...” No inverno também? “Também”. Quanto conta G. nesse curtíssimo espaço de tempo, se não fosse sua escolha do “não conta” haveria muito para se relatar aqui – G. possui muitas vivências no São Pedro – uma história vivenciada e viva nele... A possibilidade de conhecer sobre práticas extintas e fatos funestos do Hospital, através da história oral remontar talvez a um contexto mais amplo da história da loucura na cidade, no estado. Ele fundou diversas associações de internos segundo diz – numa delas os internos trazem pautas e problemas que são discutidos em assembléia – detalhe: com a supervisão de um “doutor”. Interessante pensar sobre essas associações na “loucura”, no

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97 hospício, suas possibilidades de organização e mobilização... A proposta parece muito interessante – assembléias, festas, carteirinhas. “Clube da amizade”, nome estranho para uma associação dessa natureza. Pergunto se posso ir a uma das sessões “Sim”, me informa a data e o local. Continua a me falar da organização... Digo que gostaria de falar com ele mais tempo, “eu tenho psicólogo particular agora... tu gostou de falar comigo?”, claro que sim... Fim do relato.

Quinto relato Hospital, meu voltar ao interior do dentro. Chego tarde. Atravesso o gramado do pátio. Unidade cheia, internos que nunca vi, me vêem eles. Uns cinco, seis ou dez que nunca vi. Assino minha folha, o documento que me controla a freqüência e as falhas. Chego e encontro G., meu primeiro contato na Oficina há um ano. A cumprimento, chamo pelo nome – sorri, mas não estou certo de que me reconheça. Ironicamente, a pessoa com quem falei, substituindo G., e que me colocou frente aos mais diversos obstáculos burocráticos e institucionais – basicamente impossibilitando de saída a pesquisa, não está ali. Por sinal, nunca a vejo, quase. Estranho pensar a etnografia literariamente tomar liberdades de fala como essa. Enfim. Um pouco mais de seriedade: assino minha séria folha de estagiário, que me liga ao staff e me separa dos internos através na mediação do DEP, isto é, da instituição. Como que uma lembrança do lugar que ocupo, do lugar policialesco a partir do qual a instituição estabelece o staff: o papel de vigiar-visibilizar, como numa forma específica de vir a ser, de subjetivar 79 . É uma tensão que se coloca: subverter-se a si próprio enquanto estagiário, subverter a instituição que se interpõe, em mim, como obstáculo a viver a diferença. Adentro o ambiente das mesas, onde estão os internos. São diversos, reencontro vários conhecidos – alguns ocupando seus lugares habituais. Falo com eles, falo com C., o senhor que me pergunta dia, horas, tempo – tenta enquadrar em seu sistema de organização de tempo, meio seu, meio da instituição – ele e

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“cada um, na sua medida, desempenha um pequeno papel de polícia” (Guattari, 1985, p.27). Ainda: “A luta deve ser levada em nossas próprias fileiras, contra nossa própria polícia interior” (idem, p.24).

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98 o seu “dia de café preto”, conversamos. Falamos das cores de uma estampa em sua camisa e da semelhança dessa com as cores que utiliza em sua pintura – se alegra. C. pinta muitíssimo rápido, em seus diálogos com diversos interlocutores dos quais sou privado de ver e conhecer. Ele vive seus fluxos com a matéria, pinceladas. Nunca mais o ouvi contar “um dois três quatro” ao pintar. Algumas falas são recorrentes. Transito. Confuso, mesas cheias, ambiente explodindo em rostos múltiplos, tento localizar meus conhecidos, a senhora M., que sempre me reconhece, ocupa um lugar habitual – gesticula ao me ver, parece ter me achado descabelado – quer que eu penteie os cabelos, chama alguém que passa, faz seus gestos – ela realmente consegue instaurar um vetor comunicativo, na própria singularidade formal dos gestos-linguagem que usa. Está pintando, bate com o pincel na folha, presa com prendedores a um cavalete: nada de flores hoje – no entanto, todo um agir corporal, um modo corporal de relação com a pintura, mais performático, mais forte. O processo me aparece aqui novamente como privilegiado. Mil processos na Oficina – barulho, sons: um dos internos fala repetidamente, algum outro bate nas cordas do violão, vozes se entrecruzam: não me lembro de haver visto tanto movimento na Oficina. Uma jovem fica próxima desses internos que desconheço, de acordo com o que escuto alguém dizer – esses internos foram trazidos por ela da unidade na qual trabalha: me vêm as imagens das unidades que já visitei e todo o choque que me causaram – apesar de todo o enquadramento, de toda a formatação disciplinar do espaço na produção de corpos acessíveis e dóceis de que fala Foucault, em Vigiar e Punir, há algo de multiplicidade radical, de infinitos de alteridade que questionam a própria quase-estabilidade afetiva que às vezes me percebo mantendo nesses espaços. Muito importante: não isolar a experiência da Oficina, não separá-la das imagens e experiências das unidades, pois elas fazem parte do mosaico institucional que compõe a vida, as rotinas, os trajetos e itinerários no Hospital e o cotidiano dos internos. É percebendo esse contexto mais amplo que retomo a percepção da reclusão como contexto sui generis de relações, percepções, objetivações, subjetivações, etc. Um interno que desconheço fala comigo – não compreendo nada do que diz, absolutamente nada. Não sei o que fazer e começo a fazer perguntas “quer pintar?”, “quer papel?”, para as quais não obtenho resposta, somente as mesmas sentenças que não entendo. Ele parece ansioso, parece perguntar se pode-se sentar... Sim, respondo. Pego

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99 papel. A jovem que acredito tê-lo trazido de sua unidade o entrega primeiro, ele parece não quere pintar, outros internos sentados na mesma extremidade da mesa que ele, realizam atividades, alguns desenham com pincéis atômicos, outros pintam, outros folheiam uma revista. Sento a essa mesa, próximo deles. Tento conversar com este interno que havia falado comigo, começo a entender algumas de suas palavras, fala sobre seu sapato. Observo os outros, um senhor, na cabeceira, pinta calmamente, riscos de um azul claro e de um verde também claro. Demora-se nisso, num fluxo muito diferente desse seu possível companheiro de unidade com quem converso: agora entendo – seu sapato é novo. Ao lado desse senhor, um interno jovem, me olha com o que julguei ser desconfiança. Também não o havia visto. Avisto outros internos conhecidos, que não havia percebido ainda. Não sei se é possível descrever esse espaço efervescente e múltiplo que está a Oficina nessa manhã... A jovem leva o interno até a extremidade oposta da sala, ali, um violão. Ela toca, ele dança, aplaude. “Ação”, diz, “ação!”, um outro interno se junta ao grupo. Não sei o que observar. Interajo com M., depois com C.... Minhas “colegas” me cruzam, comentando a intensidade do trabalho naquele dia. São tantos os processos e interações que me insiro, que nenhum aparece como mais importante que outro em termos de uma narração estruturada, etnográfica. Encontro E., interno com quem estabeleci contato numa visita anterior, ele pega o material, escreve seu próprio nome e começa a pintar. Cumprimento-o, aperto sua mão. Causa estranhamento vê-lo ali, de tudo tão externo, em meio aquele ambiente trespassado por pessoas cujo estar sendo “interno” grita... Não conversamos muito, eu e E.. Além disso, tenho também que ajudar em questões do funcionamento efetivo – no prisma da instituição – da Oficina. Uma função cuja sensação definidora é, para mim, o mal-estar. Retorno ao lugar de M., ela me pede, com seus sinais, que tire o papel pintado e o coloque na sacadora, trago outro papel para ela. Interessante: isso não se dá numa lógica de infantilização que, às vezes, transparece por parte dos externos em relação aos internos – mas sim numa lógica de cumplicidade, digamos, de vislumbres comunicabilidade possível, apesar da preservação da radicalidade da diferença, inclusive na linguagem: lembremos da singularidade dos gestos. *

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Dirijo-me à extremidade onde estão os violões, começo a tocar. Um dos internos “novos” pega um outro violão que ali se encontrava e começa a tocar. Enquanto tocamos, desencontradamente, um interno que sempre costuma passar rapidamente pela Oficina, aparecer e desaparecer ali, se aproxima, pega o violão – “olha aqui”, fala calmamente, num tom de quem mostra algo pacientemente – “essas são as cordas mais grossas, afina assim; essas são as mais finas; viu?” – vi – começa a cantar: “Hoje peguei a viola, botei na sacola e fui viajar” – escuto. Pergunto se aquela música era dele, responde que sim... Ele a havia feito naquele momento. Me devolve o violão e sai – pega papel, tintas, fuma, volta, pinta. Tento falar com ele, ele me passa um ar de lucidez plena, consciência, ou seja lá... Me olha quando um outro interno toca violão, numa cumplicidade, como que num entendimento de sentido. Não pergunto seu nome, me é dito depois por outra pessoa, Z. De acordo com essa informante, Z. “é um passarinho”. De fato, ele vêm e vai, ele é movimento 80 , como se não se fizesse disponível e localizável, como se não quisesse estar docilizado, como se explorasse pequenas fissuras, fendas, nas rotinas e programas institucionais. Devir-passarinho, esse estar arisco, tomar distâncias, fazer arte, fazer poesia nos intervalos, nos interstícios das atividades regradas do Hospital. Quartas-feiras, se não me engano, acontece uma oficina de criação literária – também me diz a “informante” – eu não tinha conhecimento: penso que devo lembrar de me informar melhor sobre essa oficina, outra possibilidade de inserção e vivência de devires artísticos, na escrita: com as palavras – uma convergência com o grafar do etnografar, seus exercícios de ficção ancorada na vivência? Enfim, ele, Z., vem e vai. Devém, se vai. Segundo ela, ele escreve muito bem, singularmente – joga com as palavras – passarinho, porque canta na Oficina e se vai – conhece as sonoridades das palavras, escreve seus versos. Conta ela que perguntou “Por que não vem na oficina de escrita?”, a resposta: “escuta, por que eu viria? Não quero o compromisso, entende?”. O que é esse compromisso? Uma adesão voluntária, pensamos: um envolvimento com algo, um estar colocado em alguma relação de obrigatoriedade. Não, compromisso: estar inteiramente 80

Encaminho-me a outra extremidade da sala, onde um senhor Z. pinta num cavalete. Ele pinta cuidadosamente diversas formas padrões as quais ele cobre com uma tinta em tons de amarelo. Suas pinturas são muito singulares. Não consigo conversar com ele. Parece extremamente atento em seu trabalho, tem uma técnica própria. Responde quase sempre com ‘é’. Um interno vem até mim e Z. cumprimenta este e se vai, rapidamente [Trecho de diário de campo, junho de 2007].

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101 nas malhas da instituição – agir como se a possibilidade de escrever oferecida pela instituição fosse a única possibilidade de escrever: escrever, como pintar, ali, significa estar visível, exposto – ter um “arquivo”, uma pasta onde a produção se separa do produtor e fica armazenada, independente do processo de produção e do autor do mesmo – para consultas dos possuidores dos critérios de análise e julgamento do saber psi,: fica disponível à sua consulta, análise, exame, produção mitológica de passados e trajetórias cristalizadas no exercício totalitário de remeter todas as manifestações a um código dominante 81 , de transformar tudo em significante e sintoma, no exercício do diagnóstico. Compromisso com a oficina é isso: fazer controlável – estar disposto mecanicamente num espaço previsto pela estrutura dominante, fazendo algo previsto – não seria isso comprometer-se

com

essa

estrutura,

comprometer-se

em

reiterá-la?

Z.,

voluntaristicamente, não o quer: não o quer antes por si – é um “passarinho”. Quero falar mais com ele, mas já se foi. Aqui, práticas não necessariamente reflexivas, de uma resistência discreta, de um restituir vida à palavra (o poema ou a canção de Z.) tornando-a irrepetível ou mantendo-a próxima: uma resistência não da contraposição violenta, mas um recolhimento do que se faz. Os saberes que se articulam sobre as produções dos internos freqüentemente matam o que tais produções possuem de emergência de um modo de subjetivar, pois as tratam como produtos – objetos, então, de análise – e as desvinculam dos agenciamentos processuais, do movimento, do devir. O império do significante faz todos os produtos apontarem para uma essência pré-estabelecida do louco, mito clássico do desatino. Isso está presente em menor ou maior grau no debruçarse dos saberes psi sobre essas “obras”. A própria noção de obra, segundo penso, é inadequada: antes um obrar – estar disponível às possibilidades de subjetivar, de relacionar-se ativamente com o mundo, através da arte como manipulação da matéria. Enfim, ilusão sociológica atribuir essa fuga nas micro-possibilidades de guardar-se, de fazer-se indisponível, de resistir à visibilização das ações, a Z.? Talvez. Ainda assim, onde há poder há resistência 82 . 81

Ainda que estes procedimentos não caracterizem somente o que Guattari denomina freudismo, cabe trazer uma crítica desse autor: 82 “a última palavra do poder é que a resistência tem o primado, na medida em que as relações de poder se conservam por inteiro no diagrama, enquanto as resistências estão necessariamente numa relação direta com o lado de fora, de onde os diagramas vieram. (...) um composto social mais resiste do que cria estratégias, e o pensamento do lado de fora é um pensamento da resistência” (Deleuze, 2006, p.96).

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102 Continuo andando, como que aleatoriamente, falando com alguém, parando instantes em alguma mesa. “Olá, N.”, digo a uma interna que conheço. Sou totalmente ignorado. Lembro-me o quanto um grupo de pesquisa valoriza seus trabalhos, expostos inclusive fora do Hospital... Detalhe: os membros desse grupo, segundo informante, não descem à Oficina. Ando, ainda. Numa outra extremidade, uma interna para mim familiar, cujo nome, no entanto, não sei pinta um animal – uma pintura que julgo muito expressiva e que me captura o olhar. Um animal em um cinza escuro, preto e vermelho, como que um gato, abstrato no entanto, contornos fortes, essa pintura me paralisa: ela pinta com força e lentidão, olhar perdido antes no movimento da tinta no papel do que no produto em construção. Digo – isso está muito bom. Ela vira lentamente a cabeça para mim, passa algo como cansaço: “quer pintar?”, não respondo, “quer pintar pra mim?” – por que?, pergunto, está muito bom, é teu – “termina pra mim”, fala baixo, volta-se com a mesma lentidão para o papel, num cavalete, continua. Quando passo por ali depois, a pintura não está mais, nem ela... Somente uma não-figura, formações de tinta, que escorrem, como se uma ferida negra estivesse aberta no papel, a sangrar. Aquelas pincelas feridas, conseguem guardar uma intensidade afetiva – aquele preto, a forma como se aglomera no papel é singular. Algo me escapa ali, mas algo me afeta. Ela se foi. Diversos internos começam a ir embora, ou ser levados. Distribuem na Oficina chá, ou café, não sei bem, em canecas plásticas azuis. Falo com o sr. C., realizado: “café preto faz bem pra saúde, muito bem... to com a barriga cheia de café, ô coisa boa – que dia é amanhã?” Não sei, 21? “tem horas?” Não tenho relógio “tem que comprar um relógio – relógio novo – relógio é muito caro”. Perco de vista novamente os seus-nossos interlocutores. A Oficina começa a respirar alguns intervalos de silêncio, internos se vão, internos são levados, um gradual esvaziamento. M. não está mais no seu lugar, está fora do salão onde pinta, fuma um cigarro. C. se vai, deixando, como de praxe, uma grande quantidade de pinturas. * Fico novamente sentado à mesa dos “internos novos” para mim. Um dos internos pára de pintar. Não sei muito o que nem como relatar. Outros pintam. Um senhor pinta em seu

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103 ritmo imutável. Observo internos que pintam em outras zonas do salão. Vale a pena tentar sinalizar para um acontecimento interessante. Aquele interno pára de pintar, quando vê ter pintado uma das mãos. Tudo pára. Olha o papel. Uma das estagiárias tem uma idéia – pinta as mãos dele e as coloca contra o papel. É surpreendente sua relação com essa sensação de ter a tinta na pele das mãos: pessoas que por ali passam clamam pelo resultado: pedem para que pressione as mãos contra o papel. Acredito que sua sensação, seu estar sendo afetado é muito maior pelo contato material, lúdico, com a tinta. Esse colorir-se como um apropriar-se, significar o corpo através da tinta: novamente aqui aparece a idéia da importância ou precedência do processo sobre o produto – um processo não teleológico, não realizado em função do que ainda não é: aqui, não há essa idéia de temporalidade em função de, esse tempo que passa, mas sim do tempo agido – um tempo atual, não um ainda-não-ser. Desse modo, o processo existe em função dessa vivência mesma – irrepetível, irreversível, da materialização de afetos: uma vivência que não se caracteriza como essencialmente artísitica, mas que chama um estar criando emergente, um subjetivar emergente. Dessa maneira, a arte não detém o monopólio da criação – ela trespassa as relações. Nesse sentido, a criação é esse encontrar de possibilidades de subjetivar a matéria, de compor-se e experimentar-se através dela: “o que importa, primordialmente, é o ímpeto rítmico de uma temporalização capaz de fazer unir os componentes heterogêneos de um novo edifício existencial” (GUATTARI, 1992, p.32). O que essa arte-agenciamento-processo implica é a produção desse tempo qualitativo, vivo. O pintar as mãos é um marcar do tempo, o marcar o papel com as mãos plenas de tinta, um marcar do tempo que se imprime na materialidade. A expressão do interno que mantém as mãos sobre o papel é nova para mim. É realmente um processo singular, um processo de descoberta de uma forma de lidar com a tinta, com as mãos, reatribuir um sentido, ainda que não discursivo a estas realidades. Logo, outro interno, M., sentado à minha frente – que antes não estava utilizando tintas – apanha um pincel e passa a pintar as mãos com as diversas cores da paleta, um “cuidado” detalhista que ele não parecia ter em relação aos seus desenhos, ele parece experimentar com o pintar as mãos. A princípio, ninguém nota sua atitude. Pinta utilizando as diversas cores, cuidadosamente. Olha as próprias mãos: realidades novas, que adquirem uma outra vida. Pintar as mãos, e produzilas. Corpo pintor-pintando-pintado: as fontes de ação entram num jogo de não-

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104 localização, corpo que pinta é superfície de pintura, afeta, é afetado, dobra-se sobre si: dobra-se. Levanta os braços, levando às mãos à altura dos ombros: os deixa cair com grande força e peso sobre o papel, causando um impacto na mesa, gerando um estremecimento – passa desferir esses golpes por mais algumas vezes. Que mãos são essas que pintam o papel? Não importam as marcas! O cair forte e obstinado dessas mãos sobre o papel é o que importa, a vivência desses golpes, em sua força, intensidade, indocilidade: os corpos se reapropriam de si frente à disciplina da instituição total? Sim, há algo em M. que se ausenta do controle totalitário. Como há algo atual, novo, que se guarda na atitude do interno que primeiro pintou as mãos - as mantém sobre o papel, com um sorriso leve... Esse imponderável ao controle racional, à administração dos corpos que atravessa o Hospital, se manifesta ainda em outras circunstâncias. M., o interno, agora de mãos limpas (as mãos como potência de cor, e de força não é algo que se mostre), resolve ir-se. Me convida a acompanhá-lo, a princípio, minha insegurança de staff se manifesta quanto a poder ou não fazê-lo, depois, resolvo aceitar o convite. Trocamos poucas palavras, M. parece querer me indicar caminhos: a saída, a portaria. Digo que não me vou naquele momento. Aqui, experiencio novamente essa sensação do processo não teleológico, da vivência dos fluxos – que se relacionam também a uma temporalidade singular, no sentido que não a temporalidade da eficácia prático-técnica das ações e a regulamentação dos movimentos nesses tempos. M. traça um trajeto não uniforme, não atalha, não utiliza o caminho mais curto; caminha com dificuldade, no entanto, manca. Fazemos uma caminhada não linear, fazemos uma caminhada na espacialidade de M., nas formas como ele é afetado pelo espaço – me surpreendem seus itinerários, seus caminhos, suas resoluções. Vamos até a frente de uma unidade, depois, caminhamos em um sentido oposto para sentarmos em bancos em frente ao prédio histórico. Alguns internos ali estão dispostos, como que numa praça. No máximo dois minutos depois, ele pede que nos levantemos, caminhamos em direção aos fundos do Hospital e depois de um tempo ele pergunta – “tens que voltar pra Oficina?” – tenho – “tudo bem, daqui eu quero ir sozinho”. O deixo, o olho tomar distância, olho para a unidade em minha frente. Olho para o prédio histórico, penso exatamente em sua história em sua permanência no tempo, ele é outro tempo. Olho suas ruínas, a deterioração que a ação do tempo tem – como um

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105 escultor, que singulariza sua obra. Encontro caminhos em suas paredes, trajetos: vitrais! Temas religiosos? Não consigo enxergar bem o que está ali representado – um outro tempo – é o que salta o que está inscrito naqueles vitrais... Retorno à Oficina. Internos se vão. Há bem menos pessoas na sala. E. se vai. Nos despedimos. Salto algumas partes do relato. Outras pessoas, sem dúvida externos, começam a adentrar na oficina. Em alguns instantes, o número de internos é superado pelo número de externos, estranha osmose; ironicamente: dois ou cinco internos – dez ou mais externos. Aquelas presenças modificam minha ambiência na Oficina, me parece como que uma espécie de invasão... Essas impressões não podem guiar a minha relação com essas presenças: minha etnografia passa a ser uma etnografia dos externos na Oficina. No entanto, essa postura me chateia e perturba. Circulo, os observo à distância, alguns me olham. Alguns fazem comentários. Outros passam a representar no teatro institucional um papel de integração total à oficina, ajudando uma estagiária, a impedir a “fuga” de uma interna que havia entrado (por sinal, eu a havia acompanhado em seu trajeto até a Oficina ao acompanhar M. em sua caminhada) para “roubar” revistas da Oficina. O papel do controle é demasiado típico do externo para que de fato seja possível um livrar-se por parte do antropólogo de impressões afetivas primeiras a respeito através da ruptura epistemológica. Aquela cena, não exatamente pelo seu conteúdo, mas mais por sua forma, me fere mais que me desperta um pensamento analítico e antropológico. Essas pessoas, depois de abandonar a atividade de impedir a “fuga” dessa interna, vão sentar-se à mesa de um interno que pinta sozinho, e começam a perguntar-lhe coisas. Pessoas que nunca vi na Oficina, mas que tem a postura de quem chega em seu laboratório – não vejo por que ocultar meu juízo de valor. O que eles me passam é essa condição explícita deles de externos: de internos do fora, de estabelecidos – tudo neles aponta ao fora, à norma – são e parecem estar resolutos a serem externos ao dentro, em sua hexis, em suas manifestações, em seus olhares. É a lógica de alguém que detém um saber; a ótica de estar ali sem relativizar o seu lugar de enunciação, de estar ali sem tentar dissolver esse posto de saberes e pressupostos que articulam uma condição diferenciada de observação dos internos – descubro: são estudantes de psicologia: vão fazer seu estágio ali. O que fazem esses saberes? O que fazem eles ali? Tornam práticas disponíveis e visíveis à ação

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106 dos saberes psi, em um contexto no qual as manifestações são controláveis: estão no seu “laboratório”. Estar ali, na posição de estagiário me perturba. Não consigo olhar para os estudantes, observar suas posturas, sem denunciar minhas reflexões. Mal-estar: reversão, em relação ao início das visitas, da volta ao Hospital, agora não em relação ao contexto dos internos, mas à presença dos externos. Não quero que meu lugar de pesquisador se aproxime dos lugares indissolúveis seguros-de-si – ou que se postulam enquanto tal nas formas também não-discursivas de manifestação – dos estudantes-estagiários que ali estão. Vejo os olhares que algumas estudantes dirigem à Oficina, aos internos. Vejo suas posturas, suas roupas, sua preocupação com uma higiene em relação ao contexto – tudo isso uma violência silenciosa que se instaura, que só pode ser apreendida, mas não capturada pelas categorias. O que faço? Me retiro. Não por muito tempo, o número de estudantes aumenta. Aquela visita me aparece como uma visita ao exótico, a algo a ser exposto, a um zoológico – o exagero é necessário para transmitir o que sinto frente à situação. Os internos são poucos, vários saem do salão onde estão os estudantes, entre eles, a M.. Não sei como reagir àqueles olhares, àquela falta de disponibilidade ao contexto apresentada por esses estudantes... Pego uma folha, atravesso o grupo reunido frente à mesa de tintas, preparo uma paleta, pego um pincel. Quero estabelecer uma diferença em relação a eles, na relação de si com o contexto da Oficina. Sento-me junto a M., o interno que voltara à Oficina, depois de caminhar rumo a “onde mora”, começo a pintar: alguns olhares confusos desses estudantes passam a se dirigir a mim, encerrados numa lógica alheia à da oficina, pois não se abrem à vivência afetiva do contexto, não abrem mão de seus lugares – de seus lugares em formação. Continuo a pintar, aquela é a única contraposição, simbólica, que consigo apresentar àquela série de violências, também simbólicas, que parte deles em relação a tudo que há de diferente na oficina. Pinto, continuo a pintar... Um exercício de participação, de jogar com os lugares, de criar um ângulo de observação sobre esses estudantes. Naquele momento, meu estado alterado afetivo e meu interesse etnográfico se dirige a eles, não estou numa identificação com o staff naquele momento, as negociações de que participo se dão em outro nível. Continuo pintando, esquecendo de etnografar aquela nova presença a Oficina. Pinto também por uma recusa de me colocar no lugar duplo de pesquisador e estagiário que é, ou será, de certa forma, o lugar desses estudantes. Um ponto de introdução ao

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107 pensar antropologicamente parece não estar presente para eles: tornar o exótico familiar, no sentido de as lógicas do outro aparecerem como válidas, e lógicas possíveis de si mesmo. Parecem tratar a oficina como um grande laboratório: por que não fazem de si mesmos seu laboratório? Por que não analisam e desconstituem suas próprias polícias? Por que não fazem de seus próprios corpos seu lugar de produção de experimentos? Eles se retiram para uma sala, na qual se reúnem com professores ou seja lá quem. As estagiárias estão limpando paletas e pincéis... Passo a ajudá-las. Me dirijo a uma sala ao lado dessa na qual os estudantes estão, na qual há uma pia: lavo o material, lavo as mãos. As críticas àquela situação de exploração que pode dar-se a partir de uma proposta como a Oficina pelos saberes psi é enorme – cada vez compreendo mais o “passarinhismo” de Z. Do ponto de vista vivencial dos internos, a Oficina é um lugar de extrema importância, não está entre as obrigações que a vida no Hospital impõe (ainda que isso seja discutível) – os que ali estão, estão por que o querem. Nesse sentido, na Oficina, é possível exercitar um ludismo, manipular a matéria, corporificar afetos e perceptos, experimentar a si mesmo. Ainda que esteja na lógica da instituição total: momentos de lazer também centrados no mesmo local de asilo e internamento (Goffman), a Oficina aparece como possibilidade de subjetivações que se dão por desvios e elementos diversos daqueles que estão nas unidades, por exemplo. No entanto, essa importância para o mundo do interno converge com o fato de estarem colocados num espaço que prevê ações mais liberadas de repressões dos movimentos, das falas, etc: um lugar onde estão dispostos corpos acessíveis – exploráveis por aqueles que querem confirmar, “fazer falar” a realidade de acordo com seus postulados. Também aqui, exame. Nesse sentido, a Oficina pode aparecer como uma experiência controlável de relação com a “loucura”, através da arte. É uma situação muito ambígua, que carrega uma série de pressupostos que podem sofrer apropriações por diversos ângulos... Volto ao salão da Oficina. Ali, a interna que entrou para pegar revistas, está em negociação com uma das moças do staff – chegaram a um acordo: ela levará apenas duas: assim, não precisará enfrentar as restrições colocadas anteriormente. Participo um pouco dessa relação, tento me inserir ali, mostrar revistas cujas imagens me chamam atenção. Se vai a interna, depois de escolher as tais revistas. Quando ela se vai, estou novamente sentado à mesa de M.: o interno, de novo ali, está agora folheando uma revista, me mostra a imagem de um

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108 show de rock. Também ele, depois de algum tempo se vai. A oficina fica praticamente vazia. Converso com uma de minhas colegas, pergunto – que era toda aquela gente? apresento minhas inquietações a respeito daquilo tudo, passamos um longo tempo conversando – identificamo-nos em nossas posturas críticas: na aversão aos procedimentos objetivadores e não vivenciais, aversão à forma de articulação dos saberes psi, aversão ao diagnóstico. Falamos sobre meu trabalho, ela se interessa, cogitamos a possibilidade uma entrevista mais formal, numa outra ocasião. G. pinta-desenha em uma mesa distanciada. Troco algumas palavras com ele, renovo a intenção de conversar com ele mais calmamente, ir no clube da amizade. Ele também deve ir: hora do almoço – o regramento dos tempos organizados pela instituição são os que falam mais alto na organização do cotidiano no Hospital. Me vou. Fim de relato.

Sexto relato Hoje farei meu relato de maneira abreviada. Chego na Oficina tarde. Alguns internos estão lá, J., aquele que desenha suas “armas” maquínicas, orgânicas, o sr. C., hoje utilizando “as cores do colorado”, pintando com a mesma velocidade constante: parece querer fazer o número de trabalhos suficientes para preencher todas as “prateleiras” do secador – fica apreensivo quando deposito ali os trabalhos de M., minha interação mais estável em termos de freqüência nas visitas... Nesse relato gostaria de enfatizar duas interações em especial: a com V., que me fez compreender a forma como ela se relaciona com as imagens – empreendendo uma compreensão mais ampla da natureza, ou melhor, dos modos de ser, da agência 83 dessas

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Esse conceito é aqui entendido como o não-monopólio da fonte ou origem da ação ou possibilidade de afetar por uma instância humana ou por “sujeitos” humanos. Ainda a esse respeito, adota-se a forma como a noção é apresentada por Bruno Latour (2002). Além disso, trata-se de uma autonomização de instâncias produzidas e que passam a ser produtoras (no caso, as imagens). A noção vem utilizada no sentido de multiplicar agentes no mundo, o que parece estar presente desde Tarde. Também as observações de Haar (2000) podem nos levar a pensar as imagens artísticas como corpos e as produções como fontes de ação sobre outros corpos. Essa idéia encontra, remotamente, ressonância em Valéry (1999), este, no entanto, se

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109 imagens; e a com L., uma externa do interior, que, no entanto, escreveu um livro na Oficina. Nunca, em visitas anteriores, mantive uma interação durante um período maior com V.. Ela, diferentemente de M., não cria muitos vetores comunicativos, pelo menos de maneira perceptível a mim na minha condição de externo. Sempre chora, aponta para partes do corpo nas quais sente dor; olha para o alto, para algum ponto mais distante, gesticula. Para mim, ela sempre aparece como alteridade radical no sentido de insondável: não consigo compreendê-la na maioria das vezes – seus gestos são menos convencionais, talvez, que os de M., e a sua condição que transmite um intenso sofrimento através do choro, do gemer, me afasta um pouco da interação. Na maioria das vezes não sei como agir. Ela costuma levar a minha mão até sua barriga, como se sentisse dor e como se esse gesto apresentasse uma eficácia simbólica em relação a essa afecção. Em minha primeira visita à Oficina, em outra ocasião, ela foi a que me transmitiu a sensação de um diferir intenso. Um grande choque com esse deferir, uma certa impotência em relação ao seu sofrimento, se colocou para mim desde então. Costuma desenhar formas circulares concêntricas, outros pequenos círculos ao redor – até então só a vi utilizar o giz de cera. Pega o giz com lentidão, como se também ele sofresse da sua dor e fosse atravessado pelas imagens que lhe atravessam. Estou certo de que as entidades que povoam seu mundo, seu espaço, são diversas das minhas: também sua relação com as imagens, seu olhar vaga – me mostra a minha privação desse ver. Todos os movimentos dela parecem carregados de uma intensidade afetiva, porém séria, doída. Meus contatos com ela sempre, até então, talvez por receio, impotência e medo meus, são curtos. Soube, há tempo que “perdeu um filho” e que isso foi traumático. Passados míticos. Não sei se de fato assim foi, mas isso com certeza teve uma participação ativa na imagem que acabei por formar de V. Ora, primeiro uma crítica da construção de personagens, e eis que construo uma personagem... Mas essa personagem povoa esse texto e não o real, e assim deve ser visto, nas possibilidades que adquire no texto. Nessa manhã, V. é uma das poucas na Oficina. Transito, perco a oportunidade de conversar com alguns internos que se vão. Talvez seja relativamente tarde, não sei: noto

referindo às obras-produtos do processo poético, mas que iniciam um movimento e ações sobre aqueles que seriam seus consumidores, sendo, para estes, origem de atividade.

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110 que não trouxe o relógio comigo nas últimas visitas. Isso me leva a pensar a minha relação com o tempo na Oficina. Enfim, sento-me ao lado de V.. Ela chora, ou ri. O som é muito parecido. Sei que chora, aponta suas dores, leva minha mão às suas costas. Levanta. Continuo ali, lhe entrego papel, giz. Tento compreender seus gestos. Não sei se consigo... Olho para onde olha ou aponta, tento traduzir. Apercebo-me do reducionismo dessa tradução. Tento parar. Pega uma caneca plástica – entendo o gesto, pede que eu sirva com água. Dia quente. Sirvo. Volto. Desaprendi a narrar. V. me pede para guardar seus desenhos na pasta. Guardo. Me pede tintas, acho, em meio às suas dores que não me arrisco à compreender. Pego a paleta deixada por uma interna que pintou bonitas flores. Entrego a V., com algumas folhas. Ela começa a pintar, se levanta, dança ao escutar uma música que a agrada vinda do rádio, volta à sua pintura. Nunca tinha visto, da parte dela, utilização das tintas. Mesmo não utilizando a caixa com giz, ela me faz um gesto como que “leva isso embora”. O que V. vive é um confronto com uma nova matéria de expressão, com a qual não possui familiaridade, entrando num jogo de relações com o pincel e as tintas, não só um aprendizado, mas um outro experimentar da matéria e de seus próprios movimentos: às vezes ri por ultrapassar os limites da folha com as pinceladas e pintar a mesa, às vezes reclama. Essa nova forma de expressão é um novo elemento possível no vir a ser de um acontecimento, de uma vivência de produção de sentido, de re-singularização de si. Ela está muito focada na pintura. De fato, se reexperimenta enquanto algo cujo modo de ser se equipara ao da imagem: desenha suas formas circulares costumeiras, mas dessa vez não pára nisso: segue o jogo do fe(i)tiche – aquilo que ela mesma pintou como que adquire uma realidade própria: ela como que pega aquilo que pintou e faz gestos relacionados ao próprio corpo, investindo-o com aquelas realidades pintadas – que ela produziu mas que a ultrapassam (LATOUR, 2002). Aquelas imagens do papel passam ao seu corpo através de uma forma de postar-se em relação a essas imagens, uma forma de ser imagens com elas, de compor-se com elas 84 . Seus gestos: um circunda o pescoço – um colar! Outro, o pulso: uma pulseira; depois, um brinco. As formas concêntricas de V. se apresentam, através da ação com a tinta, uma entificação, passam a ter um sentido, passam a ser objetos. Talvez a tinta as tenha

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Imagem incorporada não pode ser entendido somente como algo materializado do ponto de vista da visualidade.

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111 realizado de maneira singular – singular é forma como V. se relaciona com elas, nesse cuidar de si. Essas imagens têm uma existência não meramente no papel, mas no processo de criação e vivência delas, “Não se trata de uma imagem passivamente representativa, mas de um vetor de subjetivação” (GUATTARI, 1992, p.38). V. me mostra que “existem imagens” e que “as coisas mesmas são imagens, porque as imagens não estão na cabeça, no cérebro. Ao contrário, é o cérebro que é uma imagem entre outras” (DELEUZE, 1992, p.57). V. experimenta essas imagens, se experimenta através delas, se experimenta como imagem – “As imagens não cessam de agir e de reagir entre si, de produzir e de consumir. Não há diferença alguma entre as imagens, as coisas e o movimento” (idem, p.57). Acontece que V. é uma imagem que tem um dentro, é sujeito, produz-se enquanto tal. Conforme Deleuze, “há (...) uma defasagem entre a ação sofrida por essas imagens e a reação executada. É essa defasagem que lhes dá o poder de estocar outras imagens, isto é, de perceber” (1992, p.57). O que é possível extrair daí é o poder de agência das imagens 85 como formas de produção de si, no sentido da experiência de si num processo. Imagens que investem o corpo, o enfeitam, o remetem a um passado, o produzem a ele mesmo enquanto imagem: realizam o corpo e são realizadas por ele. O gesto de V. de levar seus colares, pulseiras e brincos até si é um gesto realizador – a agência não está somente em V., a origem da ação, se pensarmos com Latour (2002) está também na autonomização dessas produções com as tintas e seu transcender essa produção enquanto fe(i)tiches. Assim, um corpo simbólico singularizado é engendrado pela relação entre imagens (no sentido de Deleuze), sendo que nessa relação imagens sujeito e imagens objeto intercambiam a origem da ação, não estando essa sob monopólio – essas imagens são “coisas”, adornos, 85

A partir do que foi dito até agora, cabe acrescentar àquilo que se busca fazer ver com “agência” das imagens, repetindo a citação de Deleuze: “As imagens não cessam de agir e de reagir entre si, de produzir e de consumir. Não há diferença alguma entre as imagens, as coisas e o movimento” (idem, p.57). As imagens não representam, mas são vetores que podem confluir para a emergência de um processo de subjetivação. As imagens agem e reagem entre si – seja as relações das formas circulares de V. entre si, seja a relação dessas coisas-imagens com V.-imagem. Assim, inaugura-se um movimento que é imanente às próprias imagens e que as coloca todas como fontes de ação e movimento (tanto V. quando suas imagens produzidas). V. se experimentando enqanto imagem que pode acolher outras imagens em sua superfície, produz imagens (desenhos) que são coisas na medida em que são movimentos: adornar-se, vestir-se, realizar-se imageticamente. Essas imagens não são mais aquelas materiais e visíveis, desenhadas sobre o papel liso, mas aquelas que se instauram, acontecem e insistem na superfície rugosa da pele, como sentido e singularidade ou singularização. No jogo com essas imagens, ou de imagens com imagens, tudo é devir e superfície: as fontes de ação e paixão se confundem e se tornam ilocalizáveis e a imagem-humana não é mais que a imagem-desenho nessa relação.

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112 brincos, colares, são “movimentos”, possuem ação, são vestidas, são pintadas, se relacionam 86 . Sem dúvida, a experiência de V. com seus adornos 87 torna possível também pensar o processo de criação/produção artística na Oficina, novamente, em seu caráter de irreprodutibilidade, isto é, em seu caráter único de acontecimento singularizante: ou seja, o sentido processual da arte, não importando seus produtos circuláveis. Os adornos de V. não circulam. O que temos aqui, a partir das tintas, do papel, e desse jogo de agências é uma arte vivida, não-capitalísitica, não institucionalizada num campo artístico. O que temos aqui é a arte enquanto possibilidade de experiência, de diferir, de ser outro num sentido mais radical e profundo. E nesse caráter de processo, de devir: um modo de agir o tempo, de temporar. V. volta a sentir suas dores, disponho seus trabalhos para secar. Ela se vai. * Minha próxima vivência nesse dia é uma experiência musical com o interno que, em minhas primeiras visitas relativas à realização dessa etapa da pesquisa (2008), encontrei enquanto caminhava na avenida, na cerca externa do Hospital. Ele entra na Oficina. Pergunto-lhe de sua gaita, ele diz que estragou. Aliás, não “diz”, me faz entender que estragou – quer um acordeão, uma gaita grande, não uma gaita de boca. Peço para ver sua gaita de boca, ele me mostra: realmente está estragada, caiu uma de suas superfícies. Isso, no entanto, não impede que se tire um som dela. Peço que toque. Uma outra estagiária pede o mesmo, novamente sua timidez. Pego um violão. Em um momento, estamos tocando juntos, uma melodia calma e tranqüila. Aplausos. Ele gosta

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E mais: imagens-sujeito e imagens-objeto se constituem em reciprocidade e em reversibilidade de relação sujeito-objeto. O que nos remete à noção de embodiment que aparece no comentário de Eric Alliez (1995). 87 A relação com esses adornos deve ser colocada como relação com alteridades, que circulam nas relações fluidas entre objetos-corpos. Os adornos de V. são eles mesmos processos imateriais e potencias que atuam sobre o corpo, não somente no sentido do ‘enfeite’. Enfeitar aqui é investir-se potências de devir outro, de diferir. É inaugurar um corpo que pode diferir do corpo esquadrinhado, dócil, visível, disponível ao exame, à produção de informação e saber no Hospital. Se trata justamente de inaugurar, de instaurar um presente, que é o presente das imagens que arrancam o corpo das mistificações de um passado-trauma e o colocam na possibilidade de devir e de porvir, através dessas imagens que atribuem sentido a esse corpo e o transformam. Um corpo-sociedade no qual se relacionam múltiplos agentes. Esse corpo é político e resiste. O sentido do adorno é político-estético.

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113 da música. Continuo tocando enquanto ele pinta, a partir disso vivemos uma série de interações e negociações leves, com momentos de comicidade... * Uma senhora, para mim desconhecida, observava, tocada a cena, parecia vivenciar profundamente aqueles sons vindos de nossa composição instantânea. Não tenho certeza se ela é interna ou externa, ou a que fora o que dentro ela pertence, transita ou remete. Ouço um “lembra de mim?” dela para outro interno. Quem seria? Não sei, trocamos alguns sorrisos, é uma senhora de idade avançada, parece como que revistando cenas de seu passado, escreve um verso numa das pinturas exposta na Oficina. Levanto-me, depois de tocar o violão por um bom tempo, para devolver o instrumento à sua posição original. Quando me virou escuto a voz dela “já parou?”. A senhora me pergunta sobre algumas músicas antigas, me narra alguns fatos aos quais essas músicas se associam, segundo ela, lembranças bonitas da vida, que a música traz... São exatamente esses fluxos da memória que preenchem de significado sua experiência das músicas e das melodias que eu tocava. Não conheço, no entanto, a maioria das músicas de que fala. Prometo a ela, escutá-las, para que possa tocá-las. Ela pede para que eu toque na próxima visita em que nos encontremos. Interessante esse rosto tão velho e tão novo. Como que me despeço dela guardando o violão. Transito pela Oficina, assino minha presença na lista. Estou pronto para ir. A senhora no entanto, senta na mesa em que antes eu e C., o interno que toca gaita, estávamos a tocar. Ela abre um caderno. Seus ritmos me chamam tanto atenção. Ela parece estetizar todos esses processos. Isso me toca, me faz direcionar para ela as atenções. Esse sentar, abrir o caderno, contemplar, vagar, é carregado de toda uma temporalidade, de toda uma singularidade de afetos. Passo por ela rumo à porta de saída – “Eu escrevi um livro aqui, sabia?”. Paro e volto. Ela, L. (eu escutaria seu nome depois), me conta que havia escrito um livro de sua vida, na Oficina, com as suas memórias – com a vontade de compartilhá-las. Não podemos conversar por muito tempo. Ela me fala que foram impressos exemplares e vendidos. Escrevia outro livro, dessa vez um mosaico com as histórias de vida daqueles que

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114 conhecia. Uma descoberta, L., quer conversar comigo: “sentei aqui e não escrevi nada” – eu atrapalhei, me desculpo – “eu quis falar contigo, foi bom”. Ela tem toda uma expressividade, um carinho pelas pessoas da Oficina. Minha curiosidade cresce em relação a essa escritura que coloca em perspectiva a escritura que eu mesmo me coloco como tarefa. Um mosaico heterogêneo, também nele intensidades, umas vidas vibrando, se re-fazendo, insistindo, contra o mundo, contra a efetividade perversa das sujeições. Umas vidas, em suas incomensurabilidades e radicalidades. Também Ela cartografa. Que livro-mosaico é esse que agita umas vidas e as realiza como novas? Que calma de movimentos, que leveza poética é essa que Ela consegue realizar na oficina vazia? Há aqui um segredo, segredo que não é edipiano, passado, fantasma, trauma, recalque, patologia, pecado, consciência, interior, complexos. Segredo político, polEitico. Antes, a vida. Diferença insondável. Uma vida é um segredo, guardado nas dobras de uma superfície vasta. Caminho. Fim de relato.

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