Monografia - A NAÇÃO OYÓ EM ALEGRETE - UMA ETNOGRAFIA DO BATUQUE OYÓ

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CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES CURSO DE HISTÓRIA

BOLÍVAR SCHLOTTFELDT MARINI

A NAÇÃO OYÓ EM ALEGRETEUMA ETNOGRAFIA DO BATUQUE OYÓ

ALEGRETE 2012

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BOLÍVAR SCHLOTTFELDT MARINI

A NAÇÃO OYÓ EM ALEGRETEUMA ETNOGRAFIA DO BATUQUE OYÓ

Monografia apresentada à Banca Examinadora da Universidade da Região da Campanha, como requisito parcial para a obtenção do título de especialista em História e Geografia Regional.

Orientador: Prof. Ms. Luiz Felipe Schervenski Pereira

Alegrete 2012

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M339u Marini, Bolívar Schlottfeldt, 1990 A Nação Oyó Em Alegrete: uma etnografia do Batuque Oyó / Bolívar Schlottfeldt Marini. – 2012. 72 f. Orientador: Luiz Felipe Schervenski Pereira Monografia (Pós-graduação) - Universidade da Região da Campanha. Campus Alegrete, Curso de Especialização em História e Geografia Regionais, 2012. 1. Batuque. 2. Religião. 3. Afro-brasileira. 4. Orixá. I. Pereira, Luiz Felipe Schervenski. II. Universidade da Região da Campanha. Campus Alegrete. Curso de Especialização em História e Geografia Regionais. III. Título. CDU 299.6

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BOLÍVAR SCHLOTTFELDT MARINI

A NAÇÃO OYÓ EM ALEGRETEUMA ETNOGRAFIA DO BATUQUE OYÓ

Esta monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) Foi julgada adequada para a obtenção do título de Especialista em História e Geografia Regional

da

Universidade

da

Região

Campanha.

Alegrete

___________________________________________________ Orientador: Prof. Ms. Luiz Felipe Schervenski Pereira

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“Obà n'ille Ifon alabalase oba patapata n'ille iranje. O yo kelekele o ta mi l'ore. O gba a giri l'owo osika. O fi l'emi asoto l'owo. Oba igbo oluwaiye re e o ke bi owu La.” “Pai do paraíso eterno, dirigente das gerações. Gentilmente alivia o fardo de meus amigos. Dá-me o poder de manifestar a abundância. Revela o mistério da abundância. Pai do bosque sagrado, dono das benções, aumente minha sabedoria.”

(homenagem ao Orixá Oxalá em língua iorubá com tradução em português).

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RESUMO O Batuque é uma religião afro-brasileira cuja prática se observa no estado do Rio Grande do Sul. Esta religião se divide em grupos menores chamados de “nações”, referentes às tradições ancestrais as quais pertencem. Destas tradições, optou-se por pesquisar a tradição Oyó, uma nação religiosa das mais tradicionais do estado. O trabalho apresenta um caráter etnográfico, já que só foi possível mediante a inserção do pesquisador na comunidade estudada, além de que, por tratar-se de uma religião que tem suas orígens em um povo ágrafo, há uma carência de fontes documentais e bibliográficas. Reside também aí, a justificativa dessa pesquisa, que é estabelecer um registro dessa comunidade religiosa que, até então, perpetua sua tradição somente pela cultura oral. Dessa forma foi descortinada a história do Batuque Oyó no Rio Grande do Sul, além de aspectos simbólicos que sustentam a religião. O trabalho ainda usa da Geografia para entender como os adeptos do Batuque utilizam o espaço ao seu redor no desenvolvimento dos rituais.

PALAVRAS-CHAVE: Batuque – Religião – Afro-brasileira – Orixá.

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ABSTRACT Batuque is an afro-Brazilian religion, which is practiced in the state of Rio Grande do Sul. This religion is divided into smaller groups called "nations", acording to the ancient traditions they belong. About these traditions, we chose to research the Oyo's tradition, one of the most traditional religions of the state. The work shows an ethnographic form, because the research was only possible by inserting of the researcher in the investigated group, besides that, because that is a religion originary of a culture without written, there is a lack of documentary sources and bibliography. This also justify this research, which means to establish a recording of that religious community which, until then, only perpetuates its tradition by the orality. That way was showed the history of the Batuque Oyo in Rio Grande do Sul, and also symbolic aspects which support the religion. The work also uses geography to understand how Batuque's adepts use the space around they to develop the rituals.

KEY WORDS: Batuque – Religion – Afro-Brazilian – Orixa.

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LISTA DE FIGURAS FIGURA 1: Foto do “local de honra” do terreiro de Airton de Yemanjá. À esquerda, Mãe Doca de Yemanjá e à direita, Mãe Emilia da Oyá Ladjá. .................................. 24 FIGURA 2: Certificado da AFROBRAS de Mãe Lili do Xapanã. ................................ 25 FIGURA 3: Certificado da AFROBRAS de Airton de Yemanjá, filho de santo de Mãe Lili de Xapanã............................................................................................................ 25 FIGURA 4: Foto do “local de honra” do terreiro de Carlos de Oxum, filho de santo de Airton de Yemanjá. À esquerda, Mãe Emília de Oyá Ladjá; à direita, Mãe Doca de Yemanjá e ao centro Mãe Lili de Xapanã. Percebe-se a adição de mais uma foto no “local de honra” em comparação à figura anterior. .................................................... 26 FIGURA 5: Foto da procissão pela “Praia de Iemanjá .............................................. 65

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10

1 O BATUQUE: ORÍGENS E CONCEITO ................................................................ 16 1.1 A DIÁSPORA AFRICANA E A ESCRAVIDÃO NO RIO GRANDE DO SUL ........ 18 1.2 O OYÓ NO RIO GRANDE DO SUL .................................................................... 21 1.2.1 Expansão: tradição oyó em alegrete e na argentina ........................................ 22 2 A TRADIÇÃO OYÓ: ESTRUTURA DE UMA RELIGIÃO ...................................... 26 2.1 COSMOVISÃO YORUBANA: MITOS E ORIXÁS ................................................ 29 2.1.1 Bbará ................................................................................................................ 33 2.1.2 Ogum................................................................................................................ 34 2.1.3 Xapanã/Sapatá (Sanponnã) ............................................................................. 35 2.1.4 Ossanha .......................................................................................................... 37 2.1.5 Odé................................................................................................................... 38 2.1.6 Orunmilá ........................................................................................................... 39 2.1.7 Bocum .............................................................................................................. 39 2.1.8 Xangô agodô .................................................................................................... 40 2.1.9 Xangô aganju ................................................................................................... 41 2.1.10 Ibejis ............................................................................................................... 42 2.1.11 Oyá ................................................................................................................. 43 2.1.12 Obá................................................................................................................. 44 2.1.13 Otin ................................................................................................................. 45 2.1.14 Oxum .............................................................................................................. 46 2.1.15 Yemanjá ......................................................................................................... 48 2.1.16 Oxalá .............................................................................................................. 49 2.2 RITOS DE PASSAGEM ...................................................................................... 51

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2.2.1 Lavagem de Cabeça ........................................................................................ 52 2.2.2 Aribibó .............................................................................................................. 52 2.2.3 Bori ................................................................................................................... 53 2.2.4 Apronte ............................................................................................................. 53 2.2.5 Arissun ............................................................................................................. 54 2.3 CALENDÁRIO LITÚRGICO ................................................................................. 54 2.3.1 Festas Fixas ..................................................................................................... 55 2.3.1.1 Troca de Ano e Limpeza de Fim de Ano ....................................................... 55 2.3.1.2 Festas de Santos Católicos Sincretizadas no Calendário do Batuque .......... 55 2.3.1.3 Quaresma e o Ritual da Guerra..................................................................... 56 2.3.2 Festas Móveis (Quinzenas, Ebós, Iniciações) .................................................. 56 3 O ESPAÇO GEOGRÁFICO PARA O ADEPTO DO BATUQUE OYÓ .................. 57 3.1 OS CONFLITOS .................................................................................................. 65 3.1.1 A Questão do Sacrifício de Animais ................................................................. 66 3.1.2 A Questão Ambiental ........................................................................................ 66

CONCLUSÃO ........................................................................................................... 68

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 70

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INTRODUÇÃO

I

O presente trabalho trata-se de uma etnografia sobre uma religião afrobrasileira cultuada no Rio Grande do Sul chamada Batuque, mais especificamente, procura trabalhar sobre uma das tradições particulares ao Batuque, a tradição Oyó. Devido a aspectos de sua liturgia que impedem leigos de presenciarem boa parte dos seus rituais, a etnografia só foi possível por já haver uma iniciação por parte do etnógrafo no universo religioso em estudo. O estudo da religião dos escravos africanos se encaixa dentro do campo da Antropologia, por se tratar de um estudo sobre uma manifestação cultural de um povo. É mais lógico teorizar sobre estes povos dentro do campo antropológico, pois se abre a possibilidade de lidar com conceitos religiosos de uma cosmovisão surgida da estreita relação dos seres humanos com a natureza. Neste ponto temos a figura dos Orixás, deidades místicas que representam os elementos ou potencialidades da natureza. Os Orixás são, ao mesmo tempo, seres divinos e conflituosos, prova disso são as lendas dos Orixás, onde sempre há algum elemento de conflito. Os Orixás estão constantemente sobrepujando a natureza sob a sua vontade. Xangô, Orixá dos raios, tem o poder de destruir montanhas com o fogo que sai de sua boca. Odé, divindade da caça, suas flechas sempre encontram o alvo, desafiando qualquer probabilidade adversa. Ossanha, divindade das ervas medicinais que tem o poder de controlar as plantas com a simples flexão de sua voz. Ogum, ferreiro e senhor de exércitos, invicto nas batalhas e sem perder nenhum de seus soldados. Esses são claros exemplos de como as atribuições místicas dos Orixás os tornam objetos de culto. Partindo da premissa dedutiva de Lévi-Strauss (1978), de entender os povos antigos como sociedades que estão em uma constante luta contra as adversidades dos elementos, “lutando contra a fome”, constata-se que esses povos criaram um conceito de divindade capaz de moldar a natureza a seu favor, para que o culto a estes Orixás ajudasse os indivíduos a superar essas adversidades, uma vez que dentro da cosmovisão africana há a possibilidade de o Orixá “emprestar” suas energias (Axés) em troca de uma oferenda. Ainda dentro da delimitação dos campos da história a serem utilizados na pesquisa, vê-se que a história do Batuque não se restringe à sua ancestralidade

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tribal. Pois quando os escravos foram seqüestrados de suas tribos de origem na África e trazidos ao Novo Mundo, muitas tribos já tinham alçado um grau de elaboração social muito amplo, estabelecendo contato com outras culturas e dinamizando seu modelo social. Já nas terras de seus escravizadores, os escravos foram mergulhados num outro contexto e tiveram que adaptar seu ethos

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religioso

para que este pudesse seguir existindo na nova terra. Avaliando este outro contexto, o campo mais cabível para enquadrar essa porção da pesquisa seria a História cultural. Vê-se que se está lidando com um povo que já deixou um registro cultural, mesmo que não tenham o registrado em documentos ou livros, a não ser no tocante ao período da escravidão, onde únicos registros das atividades destes povos eram feitos pelos que lhes escravizavam. Agora, de que maneira conceituar a cultura? A definição de Geertz (1973), por exemplo, fala da cultura como uma teia de significados que os homens atribuem às suas ações e a si mesmos. Então nós temos uma sociedade de escravos, como um microcosmo inserido dentro outra sociedade, este microcosmos adaptou seu modo de viver à nova realidade, mas isso não esconde as suas origens, pelo contrário, a justaposição dessa cultura exótica às demais evidencia que seus padrões religiosos e sociais são outros. Não foi possível esconder as origens das estruturas culturais dos africanos, nem a sociedade escravista conseguiu abafá-la, nem o ato incendiário de Rui Barbosa 2, nem mesmo as próprias comunidades afro-descendentes, que por vezes tentaram mascarar seu passado em busca de uma aceitação social. O que há hoje é uma cultura afro-descendente bem definida e bastante heterogênea no Brasil, fruto da resistência de vários grupos, dentre estes, as comunidades religiosas.

II

Chega-se, neste ponto, aos domínios a serem estudados. Destaca-se a história da religião como domínio principal desta pesquisa. Focando no objeto de interesse histórico, vemos na história do Batuque a trajetória de um grupo humano,

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Síntese dos costumes de um povo. O modo de ser característico de um grupo sob o ponto de vista social e cultural. 2 Cf. BRAGA, 1998. Fato ocorrido após a instauração da república e fim da escravidão, momento em que Rui Barbosa reúne toda a documentação sobre o trafico de escravos de posse das repartições públicas e ordena que seja queimada. Estes documentos poderiam ajudar no estudo da procedência dos escravos, suas nações e distribuição.

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que encontra em sua religião um meio de resistência étnica a vários processos de aculturação e homogeneização cultural. Porém, o conceito de resistência não abarca tudo que a religião representa para um povo. A palavra religião vem do latim: religio, ou seja, “religar”. Sendo assim, a religião pode ser vista como um conjunto de crenças que busca restabelecer a ligação entre os seres humanos e o conceito de divino. Como é possível ver, as religiões afro-brasileiras não obedecem nenhum livro sagrado, os preceitos religiosos são sustentados pela tradição oral africana, dentro da qual existe um universo mitológico dos Orixás que dá sentido aos rituais. Lembrando que não existe uma linha narrativa mitológica absoluta, mas sim um mosaico de lendas, fruto da interação de africanos de tribos diferentes durante o período da escravidão. Porém, mesmo em lendas de tribos diferentes é possível ver traços de similaridade e coerência, essa característica é descrita por Lévi-Strauss, no seu livro “Mito e significado”, onde foi feita uma análise dos mitos de várias tribos ameríndias e se constatou essa coerência mitológica (LÉVI-STRAUSS, 1978). LéviStrauss atribui esta similaridade à hipótese de que o estado desconexo é o arcaico e que, ordenado sob uma coerência, origina uma espécie de saga com elementos comuns às culturas próximas. Assim o autor vê as lendas como aglomerados de impressões e tentativas desconexas de explicar a natureza e justificar os atos dos homens. Neste ponto é possível encaixar o questionamento de Lévi-Strauss: “onde termina a lenda e onde começa a História?” Com a análise das lendas, vemos que todas elas contam uma história. Tendo conhecimento dos elementos míticos de uma determinada cultura é possível destacar acontecimentos dentro dessas lendas, acontecimentos que foram descritos de forma fantástica, é claro, mas se for retirada da narrativa a linha de ação geral, chega-se a uma aproximação do que foi a história de um povo. Se eles eram originários de uma determinada região, se dominaram os povos vizinhos, se foram expulsos de onde viviam, todos esses elementos podem ser contados das formas mais abstratas, ficando a critério do pesquisador discernir entre o mito e a narrativa histórica. Algumas considerações acerca da abordagem ainda podem ser feitas. A pesquisa a ser realizada pode se enquadrar tanto na História Regional, quanto na Micro-história, isso dependerá do objeto específico que se for pesquisar. Para delinear as origens do Batuque no Rio Grande do Sul, é preciso levantar dados

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acerca da História Regional e da presença dos escravos africanos. Empreender em uma pesquisa documental nos arquivos das federações religiosas de Alegrete e Porto Alegre leva a abordagem para o lado da Micro-história, ao analisar um grupo social reduzido em um recorte histórico. Para obter dados específicos da comunidade batuqueira, o obturador histórico fecha-se nas particularidades de um grupo, porém sem esquecer que este grupo pertence a uma totalidade maior. O que há em mãos, é uma pesquisa acerca da cultura e da religião de um grupo humano, e da maneira como esse grupo expandiu sua área de influencia sobre Alegrete.

III

Quanto às fontes, o método etnográfico estabelecido para esta pesquisa fornece as informações a nível empírico, de uma forma em que a observação e a participação na pratica diária dos rituais estreita os laços do etnógrafo com o terreiro e permite que o mesmo possa presenciar outros rituais. Porém antes de se descrever o ritual, é preciso determinar a história do Batuque Oyó, para tanto foram utilizadas fontes que se dividem em: bibliográficas, orais e documentais. As fontes bibliográficas consistem de livros que ambientem o período da escravidão e a época em que surgiu o Batuque no Rio Grande do Sul, estabelecida por Corrêa (1992) no final do século XIX. Também foram consultados livros chamados “livros de fundamento”, que são escritos por religiosos a fim de explicarem os fundamentos religiosos do Batuque, além dos livros que dão o suporte teórico e metodológico, melhor descritos na sequência. Também se recorre às fontes do tipo oral e documental. A primeira é necessária para traçar a genealogia do terreiro, bem como a história mais recente da tradição Oyó. Enquanto que, as segundas são compostas pelos documentos e arquivos das federações de religião africana, como a AFROBRAS

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(com sede em

Porto Alegre) e a AURAFA 4, que são órgãos regulamentadores da religião. A partir das fontes documentais se obtém dados quantitativos do que foi descrito com o exercício etnográfico, dando substancial reforço à idoneidade das informações, esta que é uma preocupação recorrente ao longo da pesquisa.

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Federação da Religião Afro-brasileira. Associação de Umbanda e Religião Africana de Alegrete.

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IV

Estabelecer os critérios metodológicos da pesquisa e da coleta e tratamento destas fontes possibilita tirar um maior proveito das informações obtidas. Para nortear a metodologia de pesquisa foram escolhidas as obras “Os argonautas do pacifico ocidental” (MALINOWSKY, 1922) e “Antropologia Estrutural” (LÉVISTRAUSS, 1985). Espelhada no método de Malinowski, a etnografia deve iniciar com uma aproximação do etnógrafo com a comunidade estudada, isso só se torna capaz com a iniciação religiosa, já que o Batuque Oyó é bastante restrito, não permitindo que “leigos” presenciem os rituais. Dessa forma a inserção na rotina do terreiro possibilita o trabalho de observação. Posteriormente as fontes serão ponderadas para que se compreenda a função dos rituais e dos elementos materiais e espaciais que compõe a estrutura religiosa. Nesse ponto ocorre a mescla de ambas as teorias, a Antropologia Funcionalista de Malinowski e a Antropologia Estrutural de Lévi-Strauss, já que os elementos dos rituais cumprem uma função para a religião, mas a sua significação só faz sentido por estar atrelada a uma estrutura religiosa. Um

fato

prejudicial

à

composição

do

trabalho

é

a

restrição

ao

compartilhamento de informações sobre os rituais do Batuque Oyó. Uma vez que esta nação religiosa é muito tradicional e seu culto é de caráter fechado, sendo assim, é permitido ao etnógrafo que presencie e faça parte dos rituais e que explique as origens e funções das práticas dentro do corpo litúrgico, porém é permitido descrer como eles são feitos. É compreensível que a comunidade religiosa estabeleça medidas para evitar que suas tradições se banalizem ou se percam e isso é respeitado ao longo de todo o trabalho. A complexidade de fazer a historiografia de uma religião reside no fato de que, no produto final da análise, o objeto de interesse histórico se perca em divagações metafísicas sobre o universo religioso, Para que o trabalho não caia numa descrição mística e de interesse puramente religioso é preciso ser atento aos critérios metodológicos, norteando as narrativas dos rituais com a descrição de sua estrutura e a apuração de sua função.

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V

Por ser esta uma especialização em História e Geografia Regionais, se faz necessária a inclusão de dados geográficos acerca do Batuque. De início se percebe a carência de trabalhos nesta área, por isso recorreu-se à obra da Prof.ª Dr.ª Zeny Rosendahl, que trabalha conceitos de geografia cultural e religiosa. Os trabalhos da autora se mostram pertinentes, pois levantam conceitos de espaço e territorialidade, úteis ao mapeamento do território religioso das comunidades religiosas do Batuque. Foi feito uma observação do espaço utilizado pelos batuqueiros em suas práticas cotidianas. De posse desses dados foi possível mapear os espaços ocupados e dividi-los pela função que desempenham e a sua localização. Também foram problematizados os elementos de conflito existentes entre os batuqueiros e a comunidade geral, a fim de tornar mais amplo este estudo, estabelecendo, assim, uma geografia do Batuque Oyó.

VI

Com base no que foi dito, pode-se afirmar que o presente trabalho transita por várias áreas do conhecimento. Utiliza-se da Historiografia regional e da Microhistória para criar um plano de fundo ao trabalho, uma vez que muitas das estruturas religiosas do presente são frutos de seu passado ancestral. Por sua vez, o trabalho etnográfico é sustentado pela Antropologia, servindo-se das teorias Funcionalista e Estruturalista para abarcar o maior número de facetas possíveis do complexo religioso que é o Batuque. E ainda recorre à Geografia para diversificar a forma de expressar as informações coletadas, criando um trabalho multifacetado para ser lido tanto no meio acadêmico, quanto por adeptos do Batuque.

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1 O BATUQUE: ORÍGENS E CONCEITO Batuque 5 é o termo que se usa para referir-se à religião afro-brasileira típica do Rio Grande do Sul que presta culto aos Orixás, tratam-se das tradições religiosas de indivíduos trazidos da África ao Brasil e que foram adaptadas ao contexto em que foram inseridos. Conforme Corrêa (1992, p. 50), são cinco as nações que compõe o mosaico religioso do Batuque rio-grandense, são elas: Oyó, Ijexá, Jeje, Nagô, Cabinda e Oiá/Moçambique. Estes nomes advêm das denominações que os escravos recebiam nas feitorias. Visto que os escravos eram reunidos de várias localidades do interior do continente nos portos das feitorias africanas, para depois serem divididos por suas aptidões, supõe-se que algumas denominações de escravos africanos não condigam com o seu real local de origem, mas remetam a um gentílico genérico recebido nas cidades portuárias das quais eles eram enviados. Outro adendo a ser feito quanto às denominações das nações. Não se pode afirmar com certeza absoluta que as tradições hoje cultuadas pelos membros dessas nações sejam equivalentes exatos ao ritual praticado na áfrica, uma vez que as práticas das nações são fruto de um processo longo de adaptação e ressignificação. A exemplo, considerando as tradições religiosas trazidas pelos africanos como cultos de caráter animista 6, percebe-se que a natureza desempenha um importante papel dentro da tradição. Por terem sido inseridos em um meio exótico, não havia mais o vínculo com seu local de origem e com os marcos naturais que sustentavam suas crenças, levando-os a adaptar o ritual. Além dos empecilhos geográficos espaciais, haviam os de ordem social e política, já que a religião dos escravos era proibida durante o período do Império 7, pois o Catolicismo era a religião oficial do estado, oprimindo as demais manifestações religiosas. Soma-se isso com a 5

A palavra Batuque pode vir a parecer, inicialmente, um termo pejorativo. Chamar seus adeptos de batuqueiros também pode soar como desprestigio, porém estes termos são comumente empregados para se referir a esta religião Afro-brasileira inclusive pelos seus próprios adeptos, não havendo problemas com o uso desta nomenclatura. Porém há os que prefiram se referir a estas crenças pelo nome de Nação, já que estas tradições advêm de grupos de escravos pertencentes a distintas nações africanas, como será detalhado na sequência. 6 Manifestação religiosa que envolve de atributos sagrados os elementos do cosmos, a natureza, os animais e os fenômenos naturais. 7 A Constituição do Império, no artigo 5º, permitia a existência de outras religiões além da oficial. Exigia, contudo, que as mesmas se limitassem ao culto doméstico ou particular, em lugares apropriados, desde que não apresentassem a forma exterior de templos. Mesmo assim, a prática de outras religiões não era fácil, uma vez que o decreto 2.711, de 19 de dezembro de 1860, estabelecia quer toda sociedade, religiosa ou política, necessitava da aprovação das autoridades eclesiásticas para funcionar. Cf. MACHADO, 1997, p. 107; apud OLIVEIRA, 2008, p. 105.

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descontinuidade deixada pelos ancestrais africanos detentores do conhecimento religioso, que muitas vezes faleciam sem passar adiante o know how

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ritualístico,

nota-se que os percalços passados pelos escravos africanos na tentativa de restabelecer seu sistema de crenças levou à formatação atual do Batuque. Portanto, os nomes atribuídos às nações são na verdade o nome da nação que aparenta maior predominância na formulação do ritual. Ainda assim, é possível afirmar que as tradições que apresentam maior similaridade com sua matriz africana são as que apresentam predominância Iorubá

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(as nações de nome Nagô, Ijexá e

Oyó). Esta afirmação é fruto da pesquisa de observação, já todas as nações do Batuque prestam o culto aos Orixás, que são entidades pertencentes à tradição Iorubá. A que se atribui essa predominância? Acontece que no processo de ressignificação de suas práticas religiosas ancestrais, os escravos e seus descendentes nem sempre dispunham de substância cultural para refazer a tradição original. Perante isso foi necessária a assimilação de culturas semelhantes, o que deu origem a um novo tipo de tradição desenvolvida em território brasileiro, permeada das características regionais dos locais em que eram alojados. Este fenômeno não ocorreu apenas no Rio Grande do Sul, já que há em outras regiões do Brasil religiões “irmãs” do Batuque, não pela afinidade direta, mas pela semelhança quanto ao processo de reestruturação, e da proposta de recriar em terras brasileiras uma tradição ancestral africana. Dessas religiões podem ser citadas as mais conhecidas, como o Xambá (Pernambuco), o Xangô do Nordeste (Maranhão), o Omoloko (Rio de Janeiro) e o Candomblé (Bahia). A gênese do Batuque na sociedade rio-grandense carece de marcos fundacionais ou de nomes de lideranças precursoras, já que se trata de um fenômeno de caráter gradual e descentralizado. Para compreender o contexto em que se formulou o Batuque, é necessário antes conhecer como se deu a chegada dos africanos ao Rio Grande do Sul, no fenômeno conhecido como “diáspora africana”, para depois delinear os acontecimentos que tornaram possível a organização dos cultos africanos em diferentes nações.

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Do inglês: “saber como”. É o conhecimento processual de como executar uma tarefa. LOPES, 2004, p. 344: Povo da África Ocidental. Os Iorubás, que constituem um dos três maiores grupos étnicos da República da Nigéria, vivem no Oeste do país, onde se espraiam para dentro do território da República do Benin até o Togo, e no Sudoeste, até a cidade de Lagos. O etnônimo Iorubá originalmente designava apenas o grupo de Oyó, mas hoje ele nomeia vários subgrupos populacionais [...] 9

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1.1 A DIÁSPORA AFRICANA E A ESCRAVIDÃO NO RIO GRANDE DO SUL

Diáspora africana é o nome dado ao movimento de dispersão de indivíduos africanos para as Américas a partir do século XV, durando até meados do século XIX. Neste período, cerca de 10 milhões de nativos africanos foram transladados de seus locais de origem para servirem de mão-de-obra escrava para as nações mercantilistas da Europa em suas colônias (LOPES, 2004, p.236). Neste momento, vieram para terras brasileiras africanos de várias origens, das quais se podem destacar os bantos

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e sudaneses

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. Os escravos eram

selecionados pelas suas aptidões e enviados para locais específicos. Os bantos foram muito importantes numericamente nas lavouras e engenhos durante o ciclo da cana-de-açúcar (século XVI). Enquanto que os sudaneses, conhecidos por serem grandes ourives e possuírem boas habilidades manuais, mostraram-se mais expressivos no Brasil a partir do ciclo do ouro

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(final do século XVII), estes também

eram direcionados para o trabalho urbano. Quanto ao Rio Grande do Sul, Norton Corrêa menciona que a colonização do estado começa por duas vias distintas. A primeira e mais antiga pelo norte, na qual João de Magalhães (1725) se desloca do centro do país até Laguna (SC), aonde desembarca e avança a pé até o território atual do Rio Grande do Sul, da expedição de Magalhães 31 eram os membros encarregados do trabalho braçal, dentre pardos e escravos. E a segunda rota pelo sul, com a fundação da cidade de Rio Grande no ano de 1737 (CORRÊA, 1992, p. 40). No tocante à presença negra no Rio Grande do Sul, devido às características da escravidão nesta província, baseada nas charqueadas e no pastoreio, as maiores concentrações de escravos se registravam nas regiões de charqueadas, uma vez que no pastoreio predominava o trabalho assalariado mesclado à escravidão. Embora a mão de obra escrava não se restringe a estes locais, pois Correa menciona que na costa catarinense e rio-grandense haviam plantações de cana-de-açúcar aonde os escravos trabalhavam (CORRÊA, 1992, p. 10

Cf. LOPES, 2004, p. 98: [...] designa cada um dos membros da grande família etnolinguística à qual pertenciam, entre outros, os escravos no Brasil chamados de angolas, congos, cabindas, benguelas, moçambiques etc. 11 Como eram designados os escravos nagôs e jejes. Cf. LOPES, Nei, 2004, p. 634: Designação arbitrária dada aos povos africanos localizados a Oeste, entre o Saara e Camarões [...] 12 Cf. Renato da Silveira, disponível no documentário: Mojubá: a cor da cultura; parte 1 – as origens. Documentário da TV Escola. Realização: Canal Futura. Brasil, 2005.

19

42), a região das charqueadas ainda figura por ser o local de mais expressiva participação numérica do negro na população. As charqueadas eram áreas rurais aonde se produzia a carne seca (charque), que era um dos elementos da alimentação dos escravos. Elas começaram no Rio Grande do Sul por iniciativa dos portugueses e luso-brasileiros que vinham de São Paulo. Uma das entradas destes era o porto de Rio Grande, local também de intensa venda de escravos. Os escravos vendidos no porto de Rio Grande passavam primeiro pelo porto de Santos, uma medida da coroa para coibir o tráfico ilegal de escravos e garantir seus lucros (BRAGA, 1998, p. 25). Neste ponto, se fazem oportunas algumas observações acerca do conceito de “democracia racial” que pretensamente existia no Rio Grande do Sul segundo historiadores rio-grandenses da linha tradicional. Baseados nas crônicas de viagem do francês Saint‟Hilaire, historiadores comprometidos com o tradicionalismo como Moysés Vellinho e Walter Spaldin, mencionam em suas obras (1964 e 1957 respectivamente) que a presença de escravos na província era numericamente desprezível e que os escravos que aqui viviam eram bem tratados. Estes mesmos historiadores ignoram o fato de que, embora o número de escravos nas fazendas de pastoreio fosse realmente pequeno, o próprio Saint‟Hilaire menciona que “nas charqueadas, a coisa muda de figura” (SAINT‟HILAIRE, 1974, p. 47). Também deixam a desejar estes historiadores por não recorrem aos relatos de época num âmbito mais abrangente. Corrêa faz menção a outros relatos que mostram o contrário, como o relato do aventureiro Nicolau Dreys: “O Rio Grande do Sul é o Purgatório dos Negros”; além dos relatos do viajante Arsène Isabelle, que retratam a violência sofrida nas estâncias e as condenações em praça pública nas cidades (CORRÊA, 1992, p. 43). E quanto à parte numérica, Correa fala de uma população escrava correspondente a 30% da população da província, percentual que aumentava ao avaliar certas cidades individualmente, como Vacaria, 43%; Osório, 38% e Porto Alegre, 36% (Ibidem, idem, p. 44). Com base nisso percebe-se que a participação do negro em nossa sociedade foi bem mais expressiva. Pelotas, cidade expoente das charqueadas, e Rio Grande, porto pelo qual chegavam boa parte dos escravos em nosso estado, contavam com percentuais de escravos ainda maiores, 60% e 36% respectivamente, segundo Fernando Henrique Cardoso (1962, p. 43. Apud, CORRÊA, 1992, p. 45). Estas duas cidades são mencionadas por Corrêa e Braga como os berços do Batuque, porém torna-se difícil

20

precisar as datas de fundação das primeiras casas de nação, que os autores estimam ter ocorrido em meados do século XIX, ocorrendo em seguida o deslocamento de algumas casas para Porto Alegre. Quanto à tradição presente nessas casas, Correa e Braga falam de uma predominância dos sudaneses. Um fato curioso pelo motivo de que os Bantos vieram em número muito maior do que os sudaneses, além de deixarem contribuições mais expressivas em nossa língua e culinária. Ao que parece, as tradições sudanesas (com ênfase no lado nagô/ioruba), sobrepujaram as demais, como observa o professor Dante Laytano (1958, p. 33. Apud, BRAGA, 1998, p.27): Mas o que precisa ficar assinalado é que as culturas sudanesas se impuseram sobre as demais, ao ponto de elas desaparecerem do Rio Grande do Sul, pelo menos em Porto Alegre que todas as 71 casas de culto africano existentes acusaram, no sistema, o avassalador domínio sudanês através das culturas daomeanas e nagôs com oió que lhe pertence.

Essa predominância sudanesa também encontra um eco no trabalho de Roger Bastide (1959. Apud, BRAGA, 1998, p. 30), que reconhece no Batuque riograndense muitas similaridades com o Xangô de Recife na sua estrutura, sem estabelecer um parentesco, todavia. Braga ainda menciona que Bastide tenta estabelecer que o Batuque seja descendente dos Candomblés da Bahia, tornando o Candomblé um referencial de “pureza” frente às tradições africanas. Essa idéia não é sustentada por Braga, já Corrêa acredita numa complexidade maior, supondo que as primeiras casas foram fundadas em Rio Grande e Pelotas, em virtude da maior concentração de negros. Nessa linha de suposição, algumas casas se deslocam para Porto Alegre com o declínio das charqueadas em 1850 e a conseqüente desocupação de centros urbanos como Pelotas. Corrêa não desconsidera que talvez haja alguma participação de cultos afro da região nordeste nas raízes do Batuque, uma vez que menciona a vinda de Baianos e Pernambucanos para Porto Alegre em meados do século XIX. Essa teia de suposições leva a crer que o Batuque é uma mescla das tradições dos negros da região das charqueadas com as de negros que já tinham uma experimentação religiosa nos Candomblés da Bahia ou nos Xangôs pernambucanos. Como resultado dessa variedade cultural, surgiram os “lados” do

21

Batuque. Estes “lados”, como são chamados pelos adeptos, são as diferentes tradições ou nações que compõe este complexo religioso chamado Batuque (Oyó, Ijexá, Jeje, Nagô, Cabinda e Oiá/Moçambique). Salvo algumas particularidades de cada nação, todas possuem uma grande semelhança com o culto Ijexá, que é o mais numeroso no estado. Atualmente

as

tradições

têm

convergido

para

uma

espécie

de

homogeneidade em seus rituais, fruto da grande profusão das casas de nação, do enfraquecimento da autoridade dos Pais e Mães de Santo e das descontinuidades deixadas pela tradição oral que obrigam as casas a inserirem tradições alheias para preencher as lacunas no ritual. Uma das tradições que tenta sobreviver neste contexto é a nação Oyó, que apesar de pouco expressiva numericamente, apresenta um alto nível de fidelidade às tradições que lhe dão origem.

1.2 O OYÓ NO RIO GRANDE DO SUL

As informações acerca da antiguidade do culto do Oyó no Rio Grande do Sul foram obtidas em uma entrevista concedida pelo Babalorixá José Airton Barraganas no dia 25 de abril de 2012. Na cidade de Alegrete existem apenas três Ilês

13

da

tradição Oyó, a saber: O Ilê de Pai Airton de Yemanjá, o de Carlos de Oxum (filho de santo de Airton de Yemanjá) e o de Jarlei de Ogum (filha de santo de Carlos de Oxum). Como se vê, há apenas uma família de santo do Culto Oyó em Alegrete, com três casas de santo em funcionamento. Em contrapartida, segundo dados oficiais da AFROBRAS

14 15

, existe um total de 56 terreiros de religião afro-brasileira

em Alegrete (somente os dotados de alvará de funcionamento religioso da AFROBRAS). Nesta comparação, se percebe a pouca expressividade numérica desta nação religiosa, além do risco que estas tradições correm de se perder. Neste ponto se carece de dados estatísticos, mas é seguro afirmar que esta proporção numérica se repete no restante do Estado. Segundo nos conta Airton da Yemanjá, existem cerca de cinco famílias da tradição Oyó no estado, das quais ele se recorda 13

Cf. LOPES, 2004, p. 337: Elemento que significa “casa”, antecede a denominação de várias comunidades-terreiro dedicadas ao culto dos orixás, bem como, genericamente, diversos compartimentos de casas de culto. Do ioruba ilê, “casa”, “lar”. 14 Federação da Religião Afro-brasileira. Órgão que regulamenta o funcionamento das casas de Umbanda e Batuque. Localizada em: Rua Uruguai 91, sala 324/25, bairro centro, Porto Alegre-RS, CEP 90010-14. 15 Cf. consulta feita pelo telefone 0 (xx) 55 3225 2800 no dia vinte e oito de abril de 2012.

22

apenas de duas famílias, uma delas entrou no estado chegando primeiro em Santa Catarina, no porto de Laguna, e depois se deslocando para o Rio Grande do Sul em direção a Porto Alegre, tendo como precursor o Babalorixá chamado Antoninho Gululu de Yemanjá. A segunda família religiosa chegou pelo porto de Rio Grande, deslocando-se depois para Pelotas, local de nascimento de Mãe Emília de Oyá Ladjá (Emília Fontes de Araújo, nascida no século XIX e falecida na década de 30), a Mãe de Santo mais antiga que se tem notícia desta família. É sobre a tradição de Mãe Emilia e de seus descendentes religiosos que se ocupará este trabalho de pesquisa. Segundo constam as fontes orais, Mãe Emília era filha de escravos nascida sob a Lei do Ventre Livre

16

. Em sua cidade natal, ela era dona de um

estabelecimento conhecido por “casa de pasto”, local similar a uma casa de pensão aonde também se servia comida. Posteriormente, ela mudou-se para Porto Alegre, cidade em que fundou uma casa de santo localizada na Rua Visconde do Herval. A idéia desta mudança de Pelotas para a capital surgiu quando Mãe Emília foi convidada a uma festa de Batuque em Porto Alegre, tendo gostado bastante da cidade. Posterior a isso, diz-se que ela foi aconselhada pelas próprias entidades a deslocar-se para Porto Alegre e abrir uma casa de religião lá. Estima-se que estes fatos aconteceram num período situado entre o final do século XIX e o começo do século XX. Mãe Emília viveu neste local até o final de sua vida e acredita-se que seu legado em Porto Alegre tenha sido preservado pela Mãe Elvira de Oxum, a filha de santo mais próxima de Mãe Emilia. Na sequência genealógica do Batuque Oyó da cidade de Alegrete, está uma das filhas de Santo de Mãe Emília, Mãe Doca de Yemanjá (Palmira de Jesus), era originária de Gravataí e representa o elo seguinte na linhagem do Oyó de Alegrete. Mãe Doca, antes de se dedicar integralmente ao Batuque, trabalhava como lavadeira. Foi ela quem iniciou Mãe Lili de Xapanã, a introdutora do Batuque da Nação Oyó em Alegrete.

1.2.1 Expansão: Tradição Oyó em Alegrete e na Argentina Mãe Lili (Aleli Ferreira Bertola, 20/02/1930 – 07/02/2000), originária de Alegrete, iniciou-se no Batuque na época em que morava em Porto Alegre, em uma 16

Lei federal brasileira de 28 de setembro de 1871, que declarava livres os filhos de escravos nascidos a partir daquela data.

23

pensão ao lado do Ilê de Mãe Doca de Yemanjá na Avenida Praia de Belas, esquina com a Rua Rodolfo Gomes. Ela mudou-se para a capital com cerca de vinte anos de idade a procura de novas oportunidades. Na capital, fez serviços diversos, inclusive trabalhando como funcionária de limpeza em firmas, das quais não há registro. Seu ingresso no Batuque ocorreu na ocasião de uma festa religiosa na casa de Mãe Doca, Mãe Lili fora convidada a participar, mesmo não sendo iniciada no Batuque. Segundo conta Airton de Yemanjá, Mãe Lili sequer sabia que a festa em questão tratava-se de um ritual religioso de Batuque. Ao entrar no recinto, ela foi recebida por uma das filhas de santo de Mãe Doca, Mãe Paulina do Ogum, que lhe explicou o que estava se passando. Logo então, a entidade que estava manifestada no corpo de Mãe Doca, Yemanjá, anunciou aos presentes que no momento a casa havia ganhado mais uma integrante. Quando já era pronta no santo

17

, em meados da década de 60, Mãe Lili

transladava-se constantemente entre Alegrete, onde ficava na residência que pertencera a sua família (Rua Nossa Senhora do Carmo nº 270), e Porto Alegre, em virtude dos seus compromissos religiosos. Nos momentos em que passava em Alegrete, Mãe Lili cativou um grande número de pessoas para os quais jogava búzios

18

e cartas, além de outros que se tornaram seus filhos de santo. Segundo

relatou o profissional da construção civil Alfredo do Prado, em entrevista cedida em primeiro de maio de 2012, Mãe Lili era uma pessoa bastante carismática, dona de uma personalidade magnética. Foi com estes atributos que ela atraiu os seus primeiros filhos de santo. Estes seus primeiros filhos de santo foram iniciados em Porto Alegre, no Ilê de Mãe Doca, do qual Mãe Lili ainda era dependente. Isso se explica pelo fato de que a autonomia de um filho de santo não começa quando ele se torna pronto, mas sim quando seu pai de santo lhe permite. Além disso, os assentamentos (obrigação)

19

de Mãe Lili ainda se encontravam em Porto Alegre

nesta época. Ela só foi estabelecer-se de fato em Alegrete na década de 80, quando trouxe para a cidade os assentamentos de seus Orixás, passando a ter mais autonomia.

17

Termo usado para descrever a pessoa que já cumpriu todos os rituais iniciáticos do Batuque e já está apta a se tornar uma Mãe ou Pai de Santo. 18 Técnica divinatória iorubá também chamada de Ifá. São usados caroços de dendê ou pequenos búzios (conchas de moluscos), derivando destas o nome popular do oráculo. 19 Obrigação é o termo que designa o conjunto de “assentamentos” de Orixás que um indivíduo possui. Um assentamento é a materialização da energia do Orixá em um objeto simbólico.

24

É importante lembrar que, embora Mãe Lili tenha sido uma das primeiras pessoas a estabelecer casas de Batuque em Alegrete, na cidade já existiam casas de Batuque e de Umbanda20. Esta se estabeleceu na cidade em meados da década de 40, servindo como ponte para a fundação das primeiras casas de Batuque, o que ocorreu ao longo da década de 60. A título de informação, a umbandista mais antiga da cidade foi Araci Baez (1902 – 1977)

21

, que fez uma trajetória similar a de Mãe

Lili, trazendo de Porto Alegre uma nova tradição religiosa para o município. Dessa forma se percebe um pequeno padrão quanto à origem da religiosidade afrobrasileira em Alegrete, uma vez que não foram encontrados até então registros de uma religiosidade típica da cidade, mas sim de uma “importação” de tradições que já estavam estabelecidas na região de Porto Alegre. Isso descarta hipóteses de uma religiosidade africana nata, por mais tentadora que seja a idéia, visto que Alegrete possui um histórico de escravidão, inclusive contando com quilombos em seu território 22, como o quilombo do Angico.

Figura 1: Foto do “local de honra”

23

do terreiro de Airton de Yemanjá. À

esquerda, Mãe Doca de Yemanjá e à direita, Mãe Emilia da Oyá Ladjá.

20

Religião originária do estado do Rio de Janeiro, surgida de um desdobramento das doutrinas espíritas e que mescla elementos da religiosidade africana e indígena. 21 Cf. o advogado Prudêncio Almiron, em entrevista cedida em quatro de maio de 2012. 22 Cf. GRISA, José Ernesto Alves. Os efeitos da política pública RS/Rural na configuração da identidade de comunidade remanescente de quilombo do Angico, em AlegreteRS- um estudo do caso. Porto Alegre. 2006. 23 Espaço logo acima da porta do quarto de santo onde ficam as fotos dos ancestrais da família religiosa.

25

Figura 2: Certificado da AFROBRAS de Mãe Lili do Xapanã.

Figura 3: Certificado da AFROBRAS de Airton de Yemanjá, filho de santo de Mãe Lili de Xapanã.

26

F Figura 4: Foto do “local de honra” do terreiro de Carlos de Oxum, filho de santo de Airton de Yemanjá. À esquerda, Mãe Emília de Oyá Ladjá; à direita, Mãe Doca de Yemanjá e ao centro Mãe Lili de Xapanã. Percebe-se a adição de mais uma foto no “local de honra” em comparação à figura anterior.

Com o crescimento da fama de Mãe Lili, moradores de outras cidades vinham para Alegrete para vê-la, consultar-se com ela ou mesmo em busca de conhecimento. Dessa forma a casa passou a comportar pessoas de Uruguaiana e na capital Argentina, Buenos Aires, também. Estes últimos tomaram conhecimento da casa de Mãe Lili por intermédio de conhecidos (Ivo Cardoso da Silva, conhecido como Ivo do Ogun, da mesma família de santo de Mãe Lili) de Porto Alegre. Hoje há um ramo desta família religiosa que hoje se encontra em Buenos Aires, com cerca de dez casas de religião em funcionamento, além de filhos de santo de Airton de Yemanjá que ainda estão com suas obrigações no Ilê de seu Pai de Santo.

2 A TRADIÇÃO OYÓ: ESTRUTURA DE UMA RELIGIÃO

Para definir, mediante um trabalho de observação etnográfico o que é, como se manifesta e de que forma se estrutura a tradição da nação Oyó, é necessário fragmentar o produto dessas observações em tomos distintos, a fim de melhor construir a estrutura desta religião. Por se tratar de um universo místico, muitas

27

considerações podem ser feitas sobre religiosidade, a crença na manifestação das energias elementais dos Orixás, enfim, sobre a espiritualidade inerente ao batuqueiro. Contudo, este trabalho se dispõe a fazer uma análise antropológica, na qual não se tem a pretensão de provar a existência ou a validade de determinado sistema de crenças, mas sim a forma como “o mito fundamenta o rito”, como diz Pai Carlos de Oxum da nação Oyó. A análise das informações se submete à Antropologia Estrutural de Claude Lévi-Strauss, uma vez que o autor afirma que a ciência só possui duas formas de proceder, uma reducionista e uma estruturalista (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 17). Na reducionista a análise da observação reduz os fenômenos mais complexos a outros mais simples (o que compete às ciências exatas e às ciências da natureza). Já a estruturalista, considera que há fenômenos impossíveis de serem reduzidos, dada a complexidade e a variabilidade interna de conceitos e características. Nesta segunda forma se encaixa a Antropologia, uma vez que as teias de significado tecidas pelos seres humanos em seus complexos culturais só podem ser estudadas á luz de sua própria complexidade. É importante antes dizer que as informações obtidas na etnografia foram feitas entre meados finais do ano de 2009 até o momento presente, pois o Batuque é um aprendizado contínuo. Devido à proibição de se fazer registros in loco como anotações, fotografias e gravações, as informações coletadas eram anotadas em outros momentos, geralmente após o término dos rituais. Levando em conta que alguns rituais demoram dias para ser concluídos, e que alguns rituais são feitos concomitantes uns aos outros, não houve a possibilidade de criar um diário de observações, como seria o mais correto à vista de Malinowski (1922). Porém, dentro das limitações que o próprio objeto de observação impõe, conseguiu-se estruturar boa parte da religiosidade Oyó. Diz-se “boa parte”, pois, mesmo com a inserção e iniciação do etnógrafo na religião, alguns rituais só podem ser presenciados por pessoas de mais idade na religião e que cumpriram mais rituais de passagem. Algumas disposições gerais sobre o Oyó podem ser feitas antes que se adentre nas questões mitológicas e ritualísticas. A primeira impressão é que o terreiro de Oyó transpassa uma grande sobriedade e zelo com os rituais, além de ser extremamente fechado, não permitindo a participação de estrangeiros

24

Termo interno para designar pessoa de fora do Batuque.

24

e

28

restringindo o conhecimento inclusive para membros mais novos. Isso se salienta principalmente aos olhos de quem vem de uma vivência religiosa na Umbanda ou em outra nação de Batuque. Afirma-se isso, pois o etnógrafo passou por uma vivência religiosa na Umbanda anterior a esta do Batuque. Casos como este são comuns, inclusive de casas que mesclam Batuque com Umbanda, no Oyó isso não costuma ocorrer. Caso uma pessoa entre para o Oyó, vinda da Umbanda, ela não precisa renegar sua antiga crença nem suas entidades umbandistas. O procedimento feito é uma adaptação dessas entidades, em favorecimento das do Batuque. Uma explicação dada pelo Babalorixá Carlos de Oxum para esse caráter fechado do Batuque Oyó é o passado de perseguição que ele sofreu. Não só o Batuque, mas também a Umbanda e o Espiritismo foram alvo da perseguição estatal durante o governo de Getúlio Vargas, no período conhecido por Estado Novo. Em 1937 foi criada a Seção de Tóxicos e Mistificações

25

na 1ª Delegacia Auxiliar da

chefatura de polícia do Distrito Federal. Por conta disso muitos terreiros foram fechados e violados em sua sacralidade pela polícia. Para evitar tais abusos, era necessário tornar o culto o mais discreto possível. Neste ponto, nenhuma outra nação tomou medidas mais drásticas que o Oyó. Assentamentos na parte externa do terreiro foram movidos para dentro, como o assentamento do Bará Lodê (que será mais bem explicado na sequência). O próprio quarto de santo passou por mudanças drásticas, uma vez que nele se encontra o altar e neste, os assentamentos dos Orixás, os artefatos mais importantes do terreiro. Para evitar que algum assentamento fosse confiscado ou depredado, eles ficavam enterrados no pátio do terreiro. Só eram desenterrados poucas vezes no ano, na ocasião de uma festa religiosa ou para efetuar o omi-ossé

26

no final do

período da quaresma. Há também relatos de Mães e Pais de Santo que dissimulavam as festas religiosas como se fossem quermesses ou festas de aniversário. Em alguns destes casos, os instrumentos religiosos (atabaques e agês) tinham que ter o som abafado com uma camada de algodão, por exemplo, para evitar que alguém ouvisse e denunciasse a casa.

25

A Seção de Tóxicos e Mistificações tinha por finalidade investigar e reprimir o descumprimento dos artigos156, 157 e 158 do Código Penal de 1890, os quais proibiam a prática ilegal da medicina (curandeirismo), o espiritismo e a magia ou feitiçaria (charlatanismo). Cf. OLIVEIRA, 2007, p. 119. 26 Ritual de limpeza periódico dos assentamentos dos Orixás.

29

Hoje em dia não se enterram mais os assentamentos, mas outras características permaneceram, tal qual o isolamento dessa Nação, que temia a perseguição. Devido a isso, alguns rituais são vetados para estrangeiros, outros são vetados para pessoas de outras nações e outros, para membros mais novos da nação. Estas restrições, por vezes, impedem que se faça um estudo mais minucioso, também são parcialmente responsáveis pelo pouco número de adeptos, porém o maior mérito disso talvez seja a preservação de tradições da nação Oyó, já extintas em outras nações, como é possível observar no contato com outras casas de Batuque, onde o número de cerimônias é consideravelmente menor. Não afirma-se, contudo, que o Oyó seja melhor que as outras nações, mas que em decorrência de processos históricos houve uma maior preservação de suas raízes.

2.1 COSMOVISÃO YORUBANA: MITOS E ORIXÁS

O universo místico dos iorubás consiste na adoração dos Orixás

27

, que não

são deuses, mas sim potencialidades que manifestam distintos aspectos da natureza. Essa concepção se elabora no mito criacional dos iorubás. Este mito, como os mitos de outros povos, surge da necessidade filosófica inerente à espécie humana de querer explicar de onde viemos, qual o nosso objetivo neste mundo, para onde vamos após a morte etc. Segundo os iorubás, antes da existência do mundo, havia um espaço imaterial, o Orun

28

, a morada dos espíritos, que era

habitado por uma força chamada de Olodumaré ou Olorum espaço material chamado de Aiyê

29

. Além deste havia um

30

, que era uma réplica do Orun, porém inabitado,

pois era pantanoso e sem vida. Olodumaré é o que mais se aproxima do conceito de deus nesta visão. Mesmo assim, refere-se a Olodumaré mais como uma “força”, por este não ser uma personificação de uma entidade cósmica divina, mas sim de uma força de vontade eterna que criou tudo que existe.

27

Cf. LOPES, 2004, p. 499: “Na tradição iorubana, cada uma das entidades sobrenaturais, forças da natureza emanadas de Olorum ou Olofim, que guiam a consciência dos seres vivos e protegem as atividades de manutenção da comunidade [...]”. 28 Cf. LOPES, 2004, p. 500: “Na mitologia iorubana, compartimento do universo onde moram as divindades [...]”. 29 Dois nomes para definir o mesmo conceito. Olodumaré, do iorubá: ol (contração de oni), “senhor”; odu, “pleno” (algo vasto, profundo) e maré, “perfeito”. Enquanto que Olorum, do iorubá: ol (contração de oni), “senhor” e orum, “paraíso”, algo como “Senhor do Orum”. 30 Designa o mundo dos vivos que existe num espaço oposto ao Orun.

30

Segundo a lenda (itã), Olodumaré decidiu dar vida ao mundo material, para isso ele criou uma imensa massa d‟água que caiu pelo Orun, dessa água nasceram os Orixás Funfun

31

, os primeiros seres criados por Olodumaré e os únicos Orixás

com o dom de dar a vida às coisas sem vida. Mas ao mesmo tempo em que a água originou os Orixás Funfun, o movimento que ela fez no espaço deu origem ao Orixá Bará, dono do movimento e dos caminhos. Obatalá, o mais antigo dos Funfun, foi nomeado por Olodumaré para tornar o Aiyê habitável. Obatalá colocou dentro de um saco os materiais necessários para tanto, que eram uma concha cheia de terra seca e uma galinha d‟angola. Porém, Obatalá precisava percorrer um longo caminho até este local, e para tanto deveria fazer oferendas ao dono dos caminhos, Bará. Obatalá esqueceu-se das oferendas e Bará fez com que ele se perdesse. Olodumaré designa outro Funfun para desempenhar esta função, Oduduwa, que pegou o saco que Obatalá havia deixado e com a ajuda da galinha, ele espalhou a terra contida dentro da concha por todo o Aiyê, o que fez o pântano secar e surgirem os limites entre a terra seca e a água, os oceanos. Obatalá ficou envergonhado por ter fracassado na sua tarefa, mas Olodumaré o consolou dando-lhe uma nova ordem, a de criar seres com vida. Dessa forma Obatalá, durante um longo tempo, percorre toda a extensão do Aiyê, criando a flora e a fauna de cada lugar, usando os elementos primordiais, terra e água. À medida que os elementos foram sendo criados, foram ativadas as energias vitais destes elementos, os Orixás. Ele também criou os seres humanos, seres pensantes que poderiam povoar e viver da terra, além de render oferendas e agradecimento aos Orixás, já que estes são a manifestação dos elementos naturais que possibilitam a vida dos humanos. Dessa forma, os Orixás trazem consigo as características da natureza, local que habitam e controlam. Soma-se isso à idéia da dualidade Orun/Aiyê, onde tudo que há no Orun, também existe no Aiyê, de modo que os Orixás (seres divinos) refletem características dos humanos (seres mortais), conectando a natureza (oceanos, rios, florestas, montanhas, minérios) com as afetações humanas (amor, guerra, força, velhice, saúde, doença). Esses mitos lançam bases para os rituais. Na história narrada, Obatalá esqueceu-se de fazer as oferendas para Bará, antes de começar sua viagem, e fracassou no seu intento. Para evitar algo deste tipo. Bará é 31

Os primeiros Orixás a serem criados. Tem esse nome por vestirem-se de branco. Do iorubá funfun, “branco”.

31

o primeiro Orixá a receber oferendas, é o primeiro a quem se canta nas festas e recebe oferendas em todas as segundas-feiras do ano (primeiro dia útil da semana). Somando isso aos posteriores exemplos, percebe-se que o ethos batuqueiro é estruturado pela mitologia. Em correspondência, o ritual é a reconstrução terrena dos mitos. É através dele que se expressam os conhecimentos adquiridos com o estudo das lendas dos Orixás, como disse Geertz

32

: “É no ritual – isto é, no

comportamento consagrado – que se origina, de alguma forma, essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas são corretas”. Já que a tônica do Batuque consiste em reverenciar os Orixás, organizou-se um esquema dos dezesseis Orixás cultuados pela tradição Oyó, que abarcam apenas uma parcela dos Orixás originalmente cultuados pelos povos nagôs no continente africano, não há uma estimativa exata, mas sabe-se da existência de outros Orixás além dos que são cultuados hoje. Essa redução numérica se deve ao fato de que muitos dos Orixás cultuados na África deixaram de ser cultuados no Brasil em virtude da inviabilização de seus rituais. Tais inviabilidades decorrem de diferentes motivos, como a perda de informações que possibilitavam o culto (no caso dos Orixás Nanã e Ewá), a pouca expressividade do culto (no caso do Orixá Okô 33) ou mesmo a inviabilidade prática (como no caso do Ogum Avagã

34

).

Existe também uma diferenciação nos Orixás quanto a sua natureza, e isso infere na ordem em que eles aparecem no Irunmalé. Há dois tipos de Orixás, os de frente (também chamados de Orixás novos ou Orixás do dendê) e os de fundo (também chamados de Orixás velhos, Orixás do mel ou da praia). Os de frente são: Bará, Ogum, Xapanã, Ossanha, Odé, Xangô, Oyá, Obá e Otin. Enquanto que os de fundo são: Oxum Yemanjá e Oxalá (e por associação, Bocum e Orunmilá). O que define isso é a natureza de cada um, bem como os elementos que eles trazem consigo. Os Orixás velhos são associados à praia, pois a água foi o primeiro elemento a surgir na lenda da criação, e também por que a praia simboliza um portal

32

Ibidem, 1989, p. 128, apud; BRAGA, 1998, p. 21 Orixá ligado à agricultura. É compreensível que fosse pouco recorrido pelos escravos, uma vez que ele rege a agricultura e as oferendas feitas a ele iriam beneficiar em maior parte o senhor de escravos. Também é associado à “boa morte”, quem possuir um assentamento deste Orixá em seu terreiro terá uma passagem tranqüila para a outra vida. Hoje em dia seu culto foi mesclado ao de Oxalá, pois ambos vestem-se de branco e tem por símbolo um cajado. 34 Cf. LOPES, 2004, p. 490: “No Batuque gaúcho, orixá guardião do templo e relacionado ao que ocorre na rua”. 33

32

de passagem entre Aiyê e o Orun, por fazer este elo entre a água e a terra seca. Os demais Orixás representam aspectos mais dinâmicos da natureza e dos seres humanos (trovão, tempestade, caça, guerra), o que não quer dizer que Orixás tidos como velhos não tenham seu lado mais agressivo, como Yemanjá, Orixá do mar, que pode oscilar de um mar sereno de marolas para um maremoto, dependendo do seu humor. Duas disposições devem ser feitas sobre os Orixás, no tocante à possessão e as “qualidades” dos Orixás. A possessão consiste em um afastamento da consciência do indivíduo para que o Orixá possa se manifestar em seu corpo. No período em que o Orixá “ocupa” o corpo, ele pode dançar, falar, comer, manipular objetos, efetuar curas e ensinar fundamentos religiosos. Neste ponto, existe um grande tabu no Batuque, segundo o qual não se pode informar aos filhos de santo que eles recebem as entidades. Acredita-se que pela magnitude da energia de um Orixá, as pessoas poderiam sentir-se envaidecidas caso soubessem disso, e não é este o objetivo da possessão, mas sim estreitar os laços entre os adeptos do culto e as entidades. Esse fenômeno parece similar à possessão espiritual da Umbanda ou do Espiritismo, mas difere no ponto em que nestas duas religiões a possessão é estimulada por uma capacidade mediúnica

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inata aos adeptos, que a desenvolvem

ao longo de sua experiência religiosa, não havendo problemas quanto a saberem que elas próprias são capazes de manifestar tal fenômeno, além de que cada médium pode ser possuído por mais de uma entidade ao longo da vida. No Batuque cada filho de santo pode ocupar-se apenas de um Orixá, seu “Orixá de cabeça”, que existe numa condição similar a um “anjo da guarda”, uma entidade que acompanha todas as pessoas ao longo de suas vidas. Porém, a fenomenologia da possessão não tem um caráter central no Batuque, já que muitos Pais e Mães de Santo não se “ocupam” com seus Orixás, fato que não lhes tira o prestígio, tampouco lhes incapacita de terem filhos de santo que manifestam seus Orixás. Quanto às “qualidades” de um Orixá, é comum que neófitos e “estrangeiros” se questionem, por exemplo, quando vêem dois filhos de santo incorporarem o mesmo Orixá em uma mesma ocasião: Os Orixás não são um só? Qual dos dois é o verdadeiro? Em resposta: Sim, os Orixás são uma única energia e ambos são verdadeiros. Retomando o conceito de que os Orixás representam as forças da 35

Capacidade humana que permite a comunicação entre os seres vivos e os espíritos. Manifesta-se independente da religião e recebe denominações diferentes dependendo do meio cultural.

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natureza, percebe-se que elementos diferentes da natureza possuem vários aspectos. Como um rio, que pode ser um rio calmo ou turbulento, pode ter cachoeiras e talvez deságue em um lago ou no mar. Estes diferentes aspectos dos Orixás são chamados de “qualidades” e permitem que um Orixá possa se desdobrar em dezenas ou centenas de manifestações distintas. Antes de passar à listagem dos dezesseis Orixás atualmente cultuados pelo Oyó, há que se fazer? Algumas observações sobre as informações expressas. As saudações são expressões de tratamento usadas para se cumprimentar ou reverenciar um Orixá. Os animais sacrificais se dividem em dois tipos: os de quatro pés (cabritos, carneiros, porcos) e os de dois pés (galos, pombos, patos), porém o caramujo, oferecido apenas a Oxalá, Oxum Docô e à qualidade velha de Yemanjá, é uma especificidade destes Orixás e não se enquadra nos dois tipos citados. Ajuntós 36

são os Orixás que acompanham o Orixá de cabeça de uma pessoa, esse termo

emprega-se ao se definir os Orixás aos quais uma pessoa pertence. Dessa forma, todos possuem consigo um Orixá masculino e um Orixá feminino, caracterizando a dualidade da natureza presente nos seres humanos. O dia da semana de cada Orixá é o dia mais propício para ritualizá-lo e também o dia em que os filhos deste Orixá devem prestar reverência em frente ao altar do quarto de santo. O sincretismo refere-se ao santo católico associado ao Orixá. A característica humana refere-se em que aspecto da vida das pessoas o Orixá de manifesta, ou mesmo uma característica do Orixá que tem como base uma qualidade ou defeito humano, pois como os deuses gregos, os Orixás apresentam sentimentos humanos.

2.1.1 Bará

É o Orixá dono dos caminhos, estradas, encruzilhadas e do fogo. Também é quem abre os rituais, pois suas oferendas são sempre servidas antes dos demais Orixás. O equivalente dele no Candomblé é o Exu, porém assume este nome no Batuque para não ser confundido com o Exu da Umbanda, que pertence a outra concepção religiosa. Mas a título de função, ele exerce a mesma do Exu de Candomblé, abrindo e fechando os trabalhos. No Candomblé o Exu não pode ser Orixá de cabeça de ninguém, ele apenas serve de servo dos outros Orixás, já no 36

Ajuntó vem a ser a “iorubanização” da palavra portuguesa “junto”, para referir-se que determinado Orixá está junto ao Orixá de cabeça.

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Batuque o Bará tem filhos de santo, mas não deixa de desempenhar a função de servo dos Orixás. Os filhos deste Orixá não costumam ser insubordinados, não fixam residência num mesmo local por muito tempo, pois como o Bará, eles necessitam da sensação de liberdade, gostam de estar na rua e em constante movimento.

Símbolos: Chave, foice, falo, corrente de ferro ou de aço, moedas, tridente, búzios Cor: Vermelho (nas guias 37 e nos axós 38). Saudação: Alupo. Animais sacrificais: cabrito pequeno, galos vermelhos, galos d‟angola e pombos (Bará Ajelú) Comida: Padê, que é feito de milho (abadô), pipoca (dubá arô), balas de mel e opeté de batata inglesa (purê de batas ao qual se dá a forma simbólica do Orixá) e azeite de dendê. Ajuntós: Oyá, Obá, Oxum, Yemanjá. Qualidades: Lodê, Onã, Akessã, Bií, Adague, Lanã e Agelú Números: Um, três, sete e múltiplos de sete. Dia da semana: Segunda-feira. Sincretismo 39: Santo Antônio. Características: Rege o movimento, os caminhos, a trapaça, a liberdade de ir e vir e a curiosidade.

2.1.2 Ogum

Orixá guerreiro, relacionado com os minérios, as armas brancas e com o ofício de ferreiro, pois ele também é o ferreiro dos Orixás. Ogum é dono da faca com que se fazem os sacrifícios, do trabalho manual e da tecnologia. Ogum carrega uma energia bastante viril, por ser um Orixá de guerra. É muito recorrido para resolver 37

Colares de contas de vidro colorido que representam os Orixás e são usados pelos filhos de santo de um terreiro. 38 São as vestimentas usadas nas festas e em alguns rituais. Os filhos de santo costumam usar as cores de seus Orixás. 39 Atribuição ou permuta de significados entre duas concepções religiosas diferentes. O sincretismo entre Orixás e santos católicos ocorreu como uma estratégia para disfarçar a religião dos escravos durante a escravidão. O culto Oyó não utiliza o sincretismo com os santos católicos na representação dos Orixás.

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questões de emprego e para ajudar as pessoas a vencerem problemas em suas vidas. A ele estão associados os problemas de alcoolismo, já que em uma lenda ele era esposo de Oyá, que queria deixá-lo por este ser muito ciumento e por que ela já manifestava interesse por Xangô. Para fugir sem causar a ira de Ogum, Oyá usa do seu ponto fraco e o embebeda. Os filhos de Ogum são conhecidos por terem gênio explosivo e por serem hábeis com o trabalho manual. Também está associado à agricultura e as ferramentas de metal usadas para preparar a terra. Diferente dos outros Orixás que são assentados em pedras (ocutás), Ogum é assentado em uma serpente de aço espiralada, chamada de Dã.

Símbolos: Serpente de aço (Dã), armas brancas (Espada, lança, faca), ferramentas de ferreiro (bigorna, tesoura, martelo) e ferramentas de agricultura. Cor: Azul escuro (nas guias e nos axós). Saudação: Ogunhê. Animais sacrificais: Cabrito, galos e galos d‟angola. Comida: churrasco de costela bovina, laranjas e farofa e azeite de dendê e doces feitos com massa. Qualidades: Avagã, Onirê (ou Onira), Apiolá e Adiolá Ajuntós: Obá, Oyá, Oxum e Yemanjá. Números: Sete e múltiplos de sete. Dia da semana: Quinta-feira. Sincretismo: São Jorge. Características: É o guerreiro, representa a guerra, a vitória, a proteção, a impetuosidade. Problemas com álcool também são associados a ele.

2.1.3 Xapanã/Sapatá (Sanponnã)

Divindade das doenças de pele, dos ossos e das patologias contagiosas como a varíola, a catapora e o sarampo. É considerado o médico dos Orixás e também trata das doenças do espírito. É um Orixá ligado ao sacrifício pessoal, pois nas lendas ele possuía a pele desfigurada pela varíola, o que lhe causava uma estigmatização social perante os outros orixás. Conta-se que ele nascera de Nanã Buruku (antiga entidade da região do Daomé, cujo culto no batuque encontra-se

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mesclado ao da Yemanjá) e que possuía o físico deformado, por isso sua mãe o rejeitou, jogando-o no rio. O rio o conduziu ao mar, onde ele foi encontrado por Yemanjá, porém ele ficou com cicatrizes na pele causadas pelas pedras do rio e pelos caranguejos da praia. Um de seus nomes é Obaluaê, que do iorubá significa obá, “rei”; oluwô, “senhor” e aiyê, “terra”, que numa tradução livre seria algo como “O dono da terra”, pois ele representa terra que virá a cobrir a todos os seres vivos depois da morte, por isso costuma ser temido e respeitado pelos adeptos do Batuque. Ele é associado e cultuado no Oyó ao Vodun

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Jeje chamado Sapatá, seu

símbolo é a vassoura, chamada de Xaxará, com a qual ele varre as doenças e afasta os espíritos dos mortos. Os filhos deste orixá costumam ter marcas de nascença na pele e tendem a ter um temperamento ranzinza, porém são bastante prestativos.

Símbolos: Vassoura (chamada de Xaxará) e porongos. Cor: Nos axós: Vermelho com preto (Xapanã) e lilás (Sapatá). Nas guias somente vermelho com preto. Saudação: Abáu, Atotô, Ajubiró. Animais sacrificais: Carneiro, galos e galos d‟angola. Comida: Feijão, amendoim, pipoca, farinha de Xapanã, tiras de coco assadas, pedaços de carne assadas e carne crua (para trabalhos de saúde e nos opetés). Ajuntós: Obá, Oyá, Oxum e muito raramente com Yemanjá. Números: Sete e múltiplos de sete. Dia da semana: Quarta-feira. Sincretismo: São Lázaro, São Roque, Nosso Senhor dos Passos ou Cristo crucificado. Características: Rege as doenças, principalmente as de pele e dos ossos.

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Entidade da região do Daomé que equivale aos Orixás das nações nagôs e aos Inquices das nações banto.

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2.1.4 Ossanha

Orixá que habita as matas, a ele pertencem todo tipo de vegetação. Por causa disso ele tem suma importância no Batuque, pois sem as ervas sagradas dos Orixás não se pode proceder com os rituais. Cada Orixá tem sua erva votiva, porém somente Ossanha possui o segredo do uso de todas elas. Ossanha, às vezes chamado de Ossain, Osanyin ou Ossãe é representado por um homem sem uma das pernas e que caminha apoiado em uma muleta, por causa disso alguns dos filhos deste Orixá apresentam algum tipo de deformidade física, ou adquirem ao longo da vida. Também é conhecido como Orixá “médico” no Batuque, pois tem o conhecimento das ervas medicinais.

Símbolos: Opassaníyn (haste de ferro com sete pontas e com um pássaro sobre a do meio, representa uma árvore), porongo, muleta, bengala, folhas, moedas, instrumentos de cirurgião (bisturi, agulha, serrote), de agricultura e jardinagem. Cor: Verde (nas guias e nos axós). Saudação: Ewê ô. Animais sacrificais: Cabrito, galo arrepiado, galo d‟angola e cágado 41. Comida: Frutas (em especial os figos), farofa e opeté de batata inglesa e azeite de dendê. Ajuntós: Oyá (raramente), Obá, Otin, Oxum e Yemanjá Números: Sete e múltiplos de sete. Dia da semana: Quinta-feira. Sincretismo: São José ou São Cristóvão. Características: Ligado às folhas, chás e remédios, é o médico dos Orixás. É um orixá que possui uma deformidade, (falta de uma das pernas), por isso rege as pessoas que tem deformidades físicas.

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O cágado não se sacrifica mais à Ossanha devido ao fato de ser um animal protegido por lei.

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2.1.5 Odé

Odé tem similaridades com o Orixá Oxóssi do Candomblé, são divindades da caça. Ele habita as matas, mas não é dono delas, pois estas pertencem a Ossanha. Odé estende seu domínio sobre os animais que habitam o mato. Orixá relacionado ao ar, já que as flechas cruzam os ares até atingirem seus alvos. Os filhos deste Orixá têm a mente aguçada e o raciocínio rápido, como uma flecha, porém sofrem de problemas respiratórios, principalmente os de pulmão. Odé é um Orixá muito generoso, pois nas lendas ele caça os animais, mas se apieda deles, os dando como alimento à sua esposa Otin. Odé é um raro caso de Orixá que só se casa com um ajuntó específico, a Orixá Otin. São muito raros os casos de filhos deste santo que não possuem Otin como ajuntó, e mesmo nestes Otin se manifesta como um Orixá de passagem. É assentado em uma imagem esculpida em madeira e ornada com penas de galinha, da mesma forma que sua esposa Otin.

Símbolos: Arco e flecha e punhal. Cor: Azul com branco (nas guias e nos axós). Saudação: Okê arô, Okê bambo!. Animais sacrificais: Porco e galos d‟angola e galos. Comida: Chuleta de porco, minhã doce, feijão fradinho e azeite de dendê e frutas silvestres. Ajuntós: Otin, Oxum, Yemanjá e muito raramente com Oyá e Obá. Números: Sete e múltiplos de sete e onze. Dia da semana: Quinta-feira Sincretismo: São Sebastião Características: Orixá da caça, ele representa a generosidade. Também rege o ar, o amor relacionado a uma espécie de “cupido” africano, e os problemas respiratórios.

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2.1.6 Orunmilá

Orixá associado ao jogo de búzios. Ele não tem a função de iniciar filhos de santo, sendo recorrido no Batuque Oyó somente como entidade que sustenta o oráculo dos búzios. Mesmo assim, seu culto se associa ao de Oxalá em outras nações. Ele tem parte nas oferendas rituais e nas danças da roda de Batuque, mas só se sacrificam animais para Orunmilá na ocasião do apronte de um pai de santo, e só caso este for ganhar seu axé de búzios.

Símbolos: Olhos Cor: Branco com preto Animais sacrificais: Uma galinha preta Comida: Axoxó (milho cozido), ovos cozidos, canjica branca. Números: 16 Dia da semana:Sexta feira Sincretismo: Santa Luzia

2.1.7 Bocum

Outro Orixá que, dentro da tradição Oyó, não tem função de iniciar filhos de santo. Está associado a uma qualidade mais jovem de Oxalá. Da mesma forma que Orunmilá, ele é cantado na roda de Batuque, mas já não se fazem oferendas ou sacrifícios a Bocum.

Símbolos: Pomba, cajado, em alguns casos o Oxê (machado de madeira) Cor: Branco Saudação: Bokun oká! Números: 16 Dia da semana: Quarta-feira Sincretismo: Menino Jesus de Praga

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2.1.8 Xangô Agodô

Xangô é tido como rei da nação Oyó. Xangô Agodô e Xangô Aganju são dois Orixás ligados a uma mesma potencialidade da natureza, porém manifestam aspectos diferentes dela. Originalmente, seu culto era separado e o conceito genérico de Xangô correspondia à entidade hoje chamada de Xangô Agodô. Aganju, que na mitologia era sobrinho de Xangô, passou a corresponder a uma de suas qualidades. Orixá do fogo, do trovão, das montanhas, do equilíbrio, da justiça, da palavra falada e escrita (rege a atividade intelectual) e também de tudo que faz barulho (como tambores e chocalhos). Os movimentos da dança de Xangô representam o equilibro, na troca do ponto de apoio dos pés e do movimento das mãos, oscilando para cima e para baixo. No corpo humano, Xangô rege a língua (bem como todos os órgãos da fala) e os problemas de pressão. Mitologicamente, os raios eram interpretados como a flexão da voz de Xangô, convertida em fogo, que caía das alturas de seu palácio. Os filhos deste Orixá tendem a ser diplomáticos e a terem boa oratória.

Símbolos: Oxê duplo (Machado de madeira ou metal), balança, pilão, tambor e chocalho. Cor: Vermelho e branco (as guias alternam três contas brancas e três vermelhas, os axós são bicolores, listrados ou mesmo no estilo petit pois

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com

predominância de vermelho). Saudação: Kaô Kabecilê Animais sacrificais: Carneiro, galos d‟angola e galos brancos. Comida: Amalá (pirão de farinha de mandioca e milho, acompanhado de carne de peito bovino, mostarda e bananas). Ajuntós: Obá, Oyá, Oxum e Yemanjá Números: Doze e seus múltiplos. Dia da semana: Terça-feira Sincretismo: São Jerônimo ou São Judas Tadeu

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Tecido estampado com padrão de pontos. O nome vem do francês, que significa “pequenas ervilhas”, referência ao formato do padrão da estampa.

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Características: Também um Orixá da justiça com função de juiz de julgador das ações humanas, do equilíbrio, da fala e da escrita, rege questões relacionadas à intelectualidade e o saber.

2.1.9 Xangô Aganju

Cultuado como uma qualidade de Xangô, pertence à linhagem miológica do reino de Oyó, que fora fundado por seu pai, Oranian, filho de Oduduwa (Orixá relacionado à criação do mundo). Aganju representa o princípio explosivo da natureza. É o Orixá dos vulcões, das atividades sísmicas e da terra firme. Também se relaciona com o culto dos mortos, por ser uma entidade que transita entre todos os planos de existência e, juntamente com Oyá, leva as almas do Aiyê até o mundo dos espíritos. De certa forma ele completa o simbolismo de Xangô Agodô, estabelecendo o equilíbrio, pois Agodô representa os Raios (o fogo que desce do céu para a terra) e Aganju, os vulcões (o fogo que sobe da terra para o céu), fazendo uma clara alusão à balança (um de seus símbolos) e aos movimentos dançantes desses dois Xangôs. Há também um Xangô chamado de Olofina, cujo nome vem de Alaafin, título dos reis de Oyó, ao qual se faz uma menção nas oferendas como um prato diferenciado entre Aganju e Agodô, não possuindo outra função no ritual.

Símbolos: Oxê (machado) simples ou curvado como as aspas do carneiro, balança, pilão, tambor e chocalho. Cor: Vermelho e branco (as guias alternam uma conta branca e uma vermelha, os axós são listrados, estampados ou mesmo no estilo petit pois com predominância de vermelho). Saudação: Kaô Kabecilê. Animais sacrificais: Carneiro, galos d‟angola e galos brancos. Comida: Amalá (pirão de farinha de mandioca acompanhado de carne de peito bovino e mostarda), bananas e doces de massa. Em algumas casas se serve o obalá (refogado feito com camarão e quiabo) Ajuntó: Obá, Oyá, Oxum e Yemanjá Números: Seis e doze.

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Dia da semana: Terça-feira Sincretismo: São Miguel Arcanjo Características: Orixá da justiça e do equilíbrio, da fala e da escrita, rege questões relacionadas à justiça.

2.1.10 Ibejis Orixá duplo (do iorubá significa “gêmeos”, da raiz éji), representados por dois meninos gêmeos ainda crianças, como se fossem versões infantis de Xangô. São uma alusão à dualidade da natureza, à vida e a tudo que tudo que nasce, não apenas no sentido do nascimento de um ser humano, mas também no que nasce da natureza, como as nascentes de rios e as plantas que germinam. Mitologicamente existem muitas versões, são mencionados como filhos de Xangô e Oxum, ou mesmo filhos abandonados de Oyá, criados por Oxum. Algumas nações os representam como um menino e uma menina, mas no Oyó permanece a versão dos dois meninos. Uma das lendas mais contadas, e que lança bases para os rituais de adoração dos Ibejis, é a lenda de como os Ibejis venceram a morte: A morte, para os iorubás, é personificada na entidade Ikú. Nesta lenda, Ikú estava investindo sobre muitas aldeias e levando todos os seus habitantes, alheio a qualquer oferenda feita para aplacar sua ira. Nenhum Orixá ousava interferir frente a Ikú, temerosos de seu poder. Quando Ikú se dirigiu para a aldeia onde moravam os Ibejis, os dois meninos esconderam-se e uma gruta próxima a entrada da aldeia e levaram consigo um tambor. Quando Ikú apareceu, um dos meninos pôs-se na sua frente tocando tambor e aquele som encantou Ikú, que começou a dançar em frente ao menino. Quando ele se cansava, esperava Ikú girar em sua dança e trocava de lugar com seu irmão que estava escondido. O revezamento durou muitos dias, a ponto de que Ikú cansou-se ou mesmo esqueceu porque tinha vindo até ali, isso salvou a aldeia onde moravam os Ibejis. Essa lenda, ou itã, é uma alegoria da vida (Ibejis) vencendo a morte (Ikú). Por isso o ritual consagrado aos Ibejis, a mesa de Ibejis, está presente em vários momentos do calendário litúrgico do Batuque, como uma forma de afastar a energia negativa da morte, justapondo a esta a energia da vida, trazida pelos Ibejis. A lenda pode também representar a inocência vencendo desafios, na forma como o jeito lúdico e inocente com que uma criança vê o mundo pode resolver uma situação que

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a mente de um adulto não pode resolver. O costume das casas tradicionais de nação Oyó é que sejam assentados em vultos de madeira semelhante aos cultos de Odé e Otin. Seu culto está associado diretamente aos Orixás Oxum Pandá e Xangô Aganju.

Símbolos: Brinquedos, bonecas, chocalhos, tambores. Cor: Azul e rosa. Saudação: Ibeji máfia. Animais sacrificais: somente casal de pombos telhas Comida: Doces variados Ajuntós: Nenhum. Este Orixá não inicia filhos de santo. Números: Dois. Em algumas casas, os mesmos de Aganju. Dia da semana: Terças e Sábados. Sincretismo: São Cosme e São Damião. Características: Representam o nascimento, a vida e tudo que é duplo na natureza, a pureza, a saúde, a misericórdia e a inocência.

2.1.11 Oyá

Orixá feminino que controla o vento e as tempestades. Tida como esposa de Xangô e, portanto, rainha de Oyó. É relacionada com o prazer, a feminilidade e a sexualidade. É uma mulher guerreira e bastante temperamental, às vezes chamamna de Iansã, porém esse é apenas um dos títulos de Oyá, que do iorubá significa “Mãe dos nove”, Iyá mesan, numa alusão aos nove filhos que ela teve com o Orixá Ogum, antes de casar-se com Xangô. Ela também tem poder sobre os espíritos dos mortos, chamados de eguns

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, sendo convocada para resolver problemas desta

ordem que venham a se abater sobre o terreiro ou os filhos de santo. Algumas nações usam certas qualidades de Oyó como guardiãs do templo, junto do Bará Lodê e do Ogum Avagã. As características das qualidades de Oyá Dirã, Niqué e Timboá não são claramente reconhecidas em algumas casas de nação Oyó e não se distinguem em suas funções como atributos, por exemplo, da “Oyá do Buraco”, como acontece em outras nações, parece também não ter a função como 43

Do iorubá égun, “esqueleto”.

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Orixá guardiã de algumas casas, pois não existe assentamento junto ao Bará Lodê em nenhuma das casas em que o etnógrafo pesquisou.

Símbolos: Alfanje, chicote, taça, casa, esteira, peneira Cor: Nas guias e nas quartinhas

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, o marrom, mas os axós são em

branco e vermelho, estampados ou no estilo petit pois com predominância de branco. Saudação: Eparrei ô. Animais sacrificais: Cabrita, galinhas e galinhas d‟angola. Comida: Pipoca, maçã, batata doce frita em rodelas, opeté de batata doce e acarajé, canjica branca. Ajuntós:

Bará,

Ogum,

Xapanã,

Odé

(raramente),

Xangô

e

rarissimamente com Oxalá. Números: Oito (o nove é associado à Oyá Timboá e as outras Oyás ligadas aos eguns). Dia da semana: Terça-feira. Sincretismo: Santa Bárbara e Santa Joana D‟Arc. Características: Orixá do prazer e da sexualidade feminina.

2.1.12 Obá

Orixá feminino ligado às águas dos rios turbulentos. Representa uma mulher guerreira, mas que também sabia fiar, por isso o seu símbolo são a roca, a roda, a panela e demais objetos redondos. Foi uma das esposas de Xangô, porém nunca consumou o casamento. Por causa disso, Xangô casou-se com outra mulher, Oxum, que correspondia melhor aos sentimentos de Xangô. Enciumada, Obá pergunta à Oxum, exímia cozinheira e ardilosa, o seu segredo e ela lhe mente, dizendo que preparava para Xangô uma sopa com um pequeno pedaço de sua própria orelha para enfeitiçá-lo, como Oxum usava um pano de cabeça que lhe escondia as orelhas, Obá não desconfiou. Obá seguiu o conselho de Oxum e preparou uma sopa para Xangô com uma de suas orelhas, mas somente conseguiu causar-lhe repulsa

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Pequeno jarro de barro que contém a água sagrada de cada um dos Orixás assentados em um terreiro.

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com o repugnante prato apresentado. Neste momento, Oxum revela que Obá fora enganada, iniciando uma violenta briga entre ambas as esposas. Irritado com a situação, Xangô expulsa as duas de casa. Este Itã explica o porquê das divergências entre Obá e Oxum, pois nos rituais não se deve por as oferendas dessas duas entidades próximas umas das outras. Devido ao fato de Obá ter mantido sua virgindade e não ter consumado seu casamento com Xangô, segundo alguns Pais e Mães de Santo afirmam, ela só aceita sacrifícios de animais (cabritas, angolas e galinhas) virgens, sendo que as cabritas não podem ter aspas. É um Orixá relacionado ao sentimento de ciúmes e aos problemas auditivos. Na nação Oyó, possui culto diferenciado simbolizado pela “Roda de Alabaô”, com uma reza diferenciada das outras nações e que somente filhos de santo prontos podem participar. Segundo afirmam os Babalorixás Airton de Yemanjá e Carlos de Oxum, isto ocorre por se tratar de um Orixá muito delicado e difícil de ser cultuado.

Símbolos: Navalha, facão, escudo, panela e roda de fiar. Cor: Rosa (nas guias e nos axós). Saudação: Oin Exó. Animais sacrificais: Cabrita sem aspas, galinhas e galinhas d‟angola. Comida: Opeté de batata inglesa, abacaxi, canjica branca, axoxó, feijão miúdo e azeite de dendê. Ajuntós: Bará, Ogum, Xapanã e Xangô, raramente com Odé e Ossanha Números: Oito. Dia da semana: Terça-feira. Sincretismo: Santa Catarina. Características: Orixá ligado aos problemas auditivos, pois não possui uma orelha. É a dona da panela onde se faz comida, representando a fartura, mas também representa os ciúmes e o rancor.

2.1.13 Otin

Esposa de Odé, caso raro de Orixá que só casa com uma entidade específica. Odé e Otim formam o casal de caçadores do Batuque. Embora Odé

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possa fazer ajuntó com Oyá (em raras circunstâncias), Otin casa-se somente com ele. Na mitologia, Odé é um caçador que se apieda dos animais que caça, então os dá a sua esposa, que os come sozinha. Por causa disso, Otin é representada por uma mulher um tanto acima do peso. Raríssimos são os filhos de Otin, em algumas nações suscita-se que ela não possua filhos de santo, servindo apenas como ajuntó de Odé e raramente se manifesta nos seus filhos. Segundo Carlos de Oxum, existem mitos que afirmam que Otin seria um ser hermafrodita, se tratava de um jovem com ambivalência genital e características femininas. Inconformado e sentindo-se um ser diferenciado foge para a floresta e ao banhar-se se desnuda, encontrando Odé, o caçador, que o aceita e promete proteção sem julgamento. Otin corresponde ao Orixá Odé e os dois passam a ser vistos, desde então, eternamente juntos.

Símbolos: Cântaro de água, arco e flecha Cor: Azul e branco (nas guias e nos axós). Saudação: Okê bambo, Okê arô! Animais sacrificais: Porca, galinhas d‟angola e galinhas “perdizes”. Comida: Chuleta de porco, feijão fradinho torrado, minhã doce e frutas silvestres. Ajuntós: Odé. Números: Quatro, cinco e oito. Dia da semana: Quinta-feira. Sincretismo: Santa Ifigênia ou Santa Bernadete. Características: É esposa de Odé, representando os mesmos princípios que o seu marido. Segundo afirmava a saudosa Yalorixá Lili de Xapanã, corresponde ao ponto cardeal norte e às mulheres más.

2.1.14 Oxum

É uma Iyabá no Batuque, título dado à Yemanjá e Oxum, o que significa que é uma entidade ligada à água, a feminilidade e à maternidade. Rainha da nação Ijexá, Oxum é o Orixá dos rios e cachoeiras, também está associada ao ouro e à prosperidade. Por ser Orixá do ouro, Oxum é representada por uma mulher muito

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vaidosa, que passa horas de seu dia na beira dos rios com seu leque (abelê), polindo seus inúmeros adereços de ouro e olhando-se em seu espelho de cobre (abebê), devido ao seu grau de importância no panteão africano recebeu o título de Iyalodê, pois em algumas lendas ela foi mãe do Bará (do iorubá: Iyá, “mãe” e Lodê, uma qualidade de Bará). No corpo humano rege os órgãos sexuais femininos, pois é o Orixá do parto, possuindo uma estreita relação com os Ibejis, Orixás do nascimento. Divide-se em três principais manifestações: Docô, a velha e sábia; Demun, de meia idade e Pandá, a mais moça e que faz ajuntó com os Orixás guerreiros. Possui uma quizila

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, muito forte com Obá, devido à lenda que envolve

as duas. Oxum também é a Orixá do amor, uma vez que ela faz ajuntó com todos os Orixás masculinos. Simbolizada pela lua, já que possui fazes como as mulheres, os filhos de Oxum tem um temperamento bastante variável, porém preservam sempre um ar maternal. Existem afirmações contundentes de que haveria uma outra qualidade chamada Oxum Olobá que faria adjunto com Xapanã e em alguns casos com Xangô Agodô.

Símbolos: Leque, espelho, jóias, ouro, búzios, perfumes e todo o universo da vaidade feminina Cor: Amarelo (nas guias e nos axós). Os axós de Oxum Pandá são num tom claro de amarelo gema; Oxum Demun, num tom de amarelo acobreado e Oxum Docô, num tom de amarelo escuro. Saudação: Ore ieiê ô (expressão iorubana em que se invocam as bênçãos e benevolência da “Mãe” (Yeyê). Animais sacrificais: Cabrita, galinhas amarelas e galinhas d‟angola. Comida: canjica amarela, quindim, omilocun (feijão fradinho com carne desfiada de galinha), olelé e mel. Ajuntós: Bará, Ogum, Xapanã, Ossanha, Odé, Xangô e Oxalá Números:

Quatro,

oito

e

múltiplos

de

oito

(o

número

oito,

principalmente). Segundo outras afirmações o numero de Oxum seria dezesseis. Dia da semana: Sábado Sincretismo: Nossa senhora das graças (Oxum Pandá), Nossa Senhora da Conceição (Oxum Demun) ou Nossa senhora Aparecida (Oxum Docô) 45

Tabu ou proibição de natureza ritual. Do idioma quimbundo kizila, “proibição”, “jejum”, “castidade”.

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Características: Orixá da maternidade, ela rege o útero e os partos. Também é o Orixá da riqueza, da prosperidade e da vaidade e dos negócios e vendas fazendo divisão deste “axé” com o Bará e Oyá (Orixá responsável pelo movimento).

2.1.15 Yemanjá

Outra Iyabá, só que ligada às águas do mar. Também está associada à maternidade, do mesmo jeito que Oxum, porém mais no sentido da amamentação. Segundo a lenda, foi ela quem criou todos os Orixás, os que não eram seus filhos legítimos eram filhos de criação, por esse motivo ela possuía os seios muito dilatados, por amamentar tantos filhos. Ela representa as ondas e a superfície do mar, pois as profundezas do mar competem à sua mãe Olokun, um Orixá que não é cultuado no panteão oficial do Oyó. No corpo humano, rege os transtornos hídricos, como retenção hídrica ou problemas nos rins. Há uma entidade cujo culto está mesclado ao culto de Yemanjá, que é Nanã Buruku, entidade daomeana relacionada com os pântanos e com o lodo do fundo do mar, ela não está presente no panteão Oyó, pois os conhecimentos ancestrais de seu ritual já se perderam nesta região do Brasil. Dessa forma, ritualiza-se Nanã junto de Yemanjá, como se ela fosse um aspecto mais velho da entidade das águas do mar, quando alguém está destinado a ser filho de Nanã, relaciona-se a uma Yemanjá com qualidades de Orixá muito velho e que não se confundem com os aspectos do Orixá Daomeano Nanã Buruku, já que não possui culto no batuque do Rio Grande do Sul. O temperamento dos filhos desse Orixá oscila do afeto à severidade, da mesma forma que uma mãe ao lidar com os seus filhos.

Símbolos: Âncora, remo, timão, barco. Cor: Verde mar claro (só nos axós, pois as guias são transparentes) Saudação: Odô Iyá, Omi odô, Odô Fi Yabá. Animais sacrificais: Ovelha, galinhas e patos Comida: canjica branca, cocada, peixes e mel Ajuntós: Bará, Ogum, Odé, Xangô, Oxalá, e raramente com Ossanha e Xapanã.

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Números: Quatro, oito e múltiplos de oito. Dia da semana: Sexta-feira Sincretismo: Nossa Senhora dos Navegantes Características:

Orixá

da

maternidade e

da amamentação.

É

considerada a grande mãe estando identificada com os seios femininos. Na saúde rege problemas relacionados aos líquidos (retenção hídrica e afetações dos rins).

2.1.16 Oxalá

Mais velho e pai de todos os Orixás, associado com o mito da criação. Este Orixá habita o sol, as nuvens e o céu. Oxalá é representado por um homem muito idoso, curvado sobre um cajado (opaxorô). Sua energia trás os simbolismos da idade. Por ser muito velho, ele detém a sabedoria absoluta; a sua visão já é fraca, mas ele aprendeu a ver com sua alma, com a qual ele pode enxergar de dia e de noite; o caminhar lento denota a paciência e a parcimônia e o tom de voz frágil representa que se deve ter brandura para lidar mesmo com as situações mais difíceis. Oxalá tem dois animais votivos, a pomba branca, símbolo da paz, e um tipo de caramujo, chamado igbin (lê-se “Ebi”) da espécie Helix pomatia. O caramujo resume vários aspectos de Oxalá, anda de maneira vagarosa, o seu formato remete à visão de Obatalá (um dos nomes de Oxalá) carregando sua pesada sacola para cumprir a tarefa de Olodumaré e criar a vida no Aiyê, além de que seu sangue é esbranquiçado, quase transparente, igual ao de Oxalá. Por ser um Orixá muito velho, os filhos deste Orixá (e também os de Yemanjá e Oxum) não costumam fazer reverência

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a pessoas filhas de Orixás de frente (Orixás do dendê), principalmente

as de Bará. Isto não é visto como sinônimo de soberba por parte da pessoa, mas de que o Oxalá representa os princípios mais puros e elevados do cosmos, e que não é compatível que ele curve-se a Orixás menores, diga-se mais jovens (menores, mas não menos Importantes). Como as pessoas velhas, os filhos de Oxalá apresentam desde cedo problemas típicos da idade, como dores nas costas, reumatismos etc. Também costumam ser rabugentos, mandões e lentos, porém tudo que fazem possuiu grande profundidade.

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Especificamente o ato de “bater cabeça”. Uma reverência que consiste de curvar-se e encostar com a testa no chão.

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Símbolos: Cajado, pano branco, olhos, pombas, conchas de caramujo. Cor: Branco (nas guias e nos axós) Saudação: Epaô Babá Animais sacrificais: Cabrita, galinhas e caramujos. Comida: Canjica branca, merengue, acaçás e mel Ajuntós: Oxum e Yemanjá Números: Quatro, oito e múltiplos de oito (o número dezesseis, principalmente) possui o múltiplo trinta e dois como um numero mais simbólico. Dia da semana: Domingo Sincretismo: Jesus Cristo, Nosso Senhor do Bonfim Características humanas: Mais velho de todos os orixás, relacionado à visão, à velhice, à lentidão e à sabedoria. Também rege a cabeça e o intelecto.

Essa sequência é chamada de Irunmalé, nome dado ao panteão de Orixás. Também se usa essa ordem na roda do xirê

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durante as festas. Como visto, nesta

ordem apresentada estão primeiro os Orixás masculinos e depois os femininos, à exceção de Oxalá, mais velho de todos, que fica em último lugar. Entre os homens e as mulheres estão os Ibejis, Orixás crianças ligados ao nascimento e à infância, representando o elo entre o homem a e a mulher. Esta é a ordem utilizada atualmente no Oyó, que difere da ordem das demais tradições (Jeje e Ijexá), na qual os Orixás estão organizados da seguinte forma: Bará, Ogum, Oyá, Xangô, Ibejis, Odé (Otin concomitante a Odé) Ossanha, Obá, Xapanã, Oxum, Yemanjá e Oxalá. Segundo o Babalorixá Carlos da Oxum, talvez esta ordem atual do Oyó foi formulada nos tempos de Mãe Doca de Yemanjá, já que a ordem tradicional dos Orixás do Oyó é a seguinte: Bará, Ogun, Xapanã, Ossanha, Odé, Bocum, Orunmilá, Xangô, Ibejis, Obá, Otin, Yemanjá, Oxum, Oyá e Oxalá. O que se vê como padrão em todas as ordens é que elas começam com Bará (Orixá que abre os caminhos) e termina em Oxalá (Orixá mais velho). Na ordem do Oyó, em que os homens vêm primeiro, Xangô é o último dos homens e Oyá, a última das mulheres. Isso se explica pelo fato de que Xangô é o rei lendário do reino de Oyó na Nigéria e Oyá, sua rainha. Percebe-se que Mãe Doca pode ter dado um destaque maior à Yemanjá (sua Orixá de cabeça), colocando-a próxima ao Oxalá, ela também separou os 47

Do iorubá, “dança”. É a ordem dos cânticos entoados durante uma festa de batuque.

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Orixás de praia dos demais, colocando-os no final no Irunmalé. Quanto à Oyá, ela continua merecendo um local de destaque, por isso foi colocada próxima a Xangô, abrindo a sequência de Orixás femininos. Detalhes como estes contam uma história e representam a identidade de um grupo. São elementos que os identificam e diferem os adeptos do Batuque da Nação Oyó das outras tradições do Batuque. No estudo dos mitos, não se propõe uma leitura literal, ou mesmo que eles sirvam como um legitimizadores da veracidade de algo, mas sim que os mitos lançam as bases para a estrutura do Batuque enquanto religião. Segundo Lévi-Strauss (1978, p. 66): Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página é uma totalidade.

2.2 RITOS DE PASSAGEM

Na concepção da estrutura do Batuque, percebe-se que é uma religião que presta culto aos Orixás. Agora, de que forma se dão esses cultos? No Batuque, assim como em outras religiões, existem os adeptos do culto e os freqüentadores, também conhecidos por adeptos não praticantes. Estes últimos vêm ao Batuque procurando algum conforto espiritual, ou algo do tipo, e não precisam iniciar-se na religião. Mas caso quisessem se tornar adeptos seria preciso criar um vínculo mais duradouro com as entidades, ou seja, fazer um ritual de iniciação. Há uma idéia no imaginário popular de que quem entra para o Batuque não pode mais deixar a religião, sob pena de ser castigado pelas entidades. Isto não corresponde com a verdade, o que ocorre é que esta religião exige uma dedicação muito grande por parte dos adeptos, visto que alguns rituais exigem dias de trabalho para serem concretizados. Nem todas as pessoas adaptam-se a este ritmo e algumas deixam a religião, fazendo uso de seu livre-arbítrio da mesma forma que fizeram quando decidiram iniciarem-se no Batuque. Estas pessoas, se o fizeram em

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exercício de sua vontade e com consciência de que não estão ofendendo nenhum preceito da religião, não estão sujeitas a nenhum tipo de punição por parte das entidades, inclusive por que o Batuque não é uma religião que vê a si mesma como o único caminho de encontro com o conceito de divino. Este tipo de experiência é muito subjetiva e cada pessoa dará um sentido diferente a ela. Para melhor entender como se processam os rituais que marcam as etapas da vida religiosa de um iniciado, será esboçado um esquema destes rituais. No entanto, não é permitido que se narre como eles são feitos, pois residem neles os preceitos ancestrais que não podem ser ensinados para “estrangeiros”. Será explicada a função dos rituais na liturgia, citar-se-á algum material envolvido em sua elaboração e a ordem dos processos dos rituais mais longos.

2.2.1 Lavagem de Cabeça

É o primeiro passo da vida religiosa de alguém, consiste em lavar a cabeça com água de ervas. A água é o elemento primordial da criação, por isso está presente em todos os rituais de iniciação. Nas ervas há o “sangue verde”, chamado de eró, que é o alicerce da iniciação. Este ritual tem por função que o iniciado seja reconhecido pelo seu Orixá de cabeça. Crianças podem fazê-lo, já que este ritual não requer sacrifícios de animais. A lavagem de cabeça é um preparatório para o Aribibó e/ou o Bori.

2.2.2 Aribibó

Pode ser feito inclusive por pessoas não iniciadas, com o diferencial que não há a lavagem de cabeça antes. Para quem deseja se iniciar, esse ritual é feito após a lavagem de cabeça. Aribibó vem da expressão iorubana Ori bi bó (Ori = cabeça, bi = dois e bó = comida), ou seja, “dois que alimentam a cabeça”, pois este ritual consiste no sacrifico de um casal de pombos na cabeça. O aribibó trás fortalecimento e saúde à pessoa que o faz.

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2.2.3 Bori Do iorubá, Bó Ori, “dar de comer à cabeça”. Está relacionado ao Orixá Ori, que é o dono das cabeças e dos destinos das pessoas. Diferente do apronte, o Bori é um ritual consagrado à pessoa iniciada, não aos Orixás, serve para fortalecer o iniciado perante a vida, o ancorando com a energia de Oxalá, pai de todos os Orixás. No Bori são sacrificadas apenas as aves votivas dos dois Orixás do indivíduo, além do casal de pombos de Oxalá, que cobre o ritual. O bori é o elo entre a pessoa, o Orixá guardião das cabeças (Ori) e o Orixá pessoal. Uma vez que a Ori cabe definir o destino do iniciado e ao Orixá cabe orientá-lo e defendê-lo dentro dos desígnios deste destino. Após o Bori há um ritual chamado de “passeio”, que é uma parte do ritual iniciático onde o Pai de Santo apresenta o mundo novamente ao seu filho de santo, visitando locais específicos da cidade, como o mercado, a praia e a igreja.

2.2.4 Apronte Neste ritual os filhos de santo sagram-se “prontos no santo”, pois cumpriram todos os rituais iniciáticos e agora já são Pais ou Mães de Santo em potencial, digo “em potencial”, pois só o serão quando tiverem seus filhos de santo. Neste ritual se faz um Ebó (bó = comida), onde se dá oferendas e sacrifícios de animais aos Orixás. É também, neste ritual que os iniciados recebem de seus pais ou mães de santo os axés de búzios e de obé, que são permissões ritualísticas para se ler búzios e para se fazer sacrifícios, respectivamente. Diferente de outras nações que fazem estes rituais com a porta do templo aberta, no Oyó a porta é fechada, só permanecendo um restrito número de convidados, todos prontos no santo. A cronologia de um Ebó de apronte reúne a missa aos antepassados, presentes aos antepassados e Orixás, uma limpeza energética no Ilê, chamada de “segurança”, sacrifício para o Bará Lodê, limpeza nos filhos de santo do Ilê que forem trabalhar no Ebó, Limpeza dos elebós (pessoa que faz um Ebó), sacrifício de animais (de quarto e de dois pés

48

) e assentamento dos Orixás, primeira festa de

batuque (pessoas vestidas nas cores de seus Orixás), remoção das oferendas 48

Termos usados para dividir os animais sacrificados em animais de quatro pés (Quadrúpedes – cabras cabritos, carneiros, ovelhas e porcos) e de dois pés (aves).

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(chamada de levantação), remoção das cabeças dos animais que foram ofertadas (levantação das cabeças), sacrifício do peixe, ritual do saco (feito com as comidas de todos os Orixás e uma limpeza e é despachado na praia), quinzena de confirmação (sacrifício de aves). Mesa de Ibejis (pedindo misericórdia e atraindo boas energias), segunda e última festa de Batuque (todos vestidos de branco) na qual se entregam os axés.

2.2.5 Arissun

É o ritual fúnebre, que estipula um desligamento do ente falecido. É um rito de culto aos mortos, onde todos os assentamentos que compõe a obrigação do falecido devem ser despachados, juntamente com uma limpeza que se faz no Ilê e nos filhos de santo. O Orixá da pessoa falecida passa a ser “Orixá Balé”, pois pertencia ao falecido. Este Orixá permanece vinculado à casa, podendo se manifestar em jogos de búzios, o que é acompanhado de grande cautela por parte dos filhos de santo do Ilê. Como foi descrito nos rituais de passagem anteriores, vê-se que cada passo dado na religião serve para aumentar o vínculo das pessoas com seus Orixás e com o próprio terreiro. No Arissun o que se faz é o contrário, as obrigações e vínculos são desligadas, permitindo que o egun do ente falecido possa alçar seu caminho para o mundo espiritual. São estes eguns ancestrais que são homenageados no Ebó de apronte, para que abençoem o ritual.

2.3 CALENDÁRIO LITÚRGICO

No Batuque existem festas comemorativas dentro da liturgia que celebram diferentes aspectos da religião. Existem as festas de data fixa e as móveis, as quais os Pais e Mães de Santo alojam em datas mais convenientes do calendário. Essas festas envolvem todos os filhos de santo, e são momentos não só de adoração às entidades, mas de confraternização das pessoas. Segue um esquema das festas celebradas no Batuque Oyó.

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2.3.1 Festas Fixas

2.3.1.1 Troca de Ano e Limpeza de Fim de Ano

Acredita-se que cada ano é consagrado a um Orixá diferente. Por exemplo, 2010 foi ano de Yemanjá, 2011 foi ano de Oxum e 2012 está sendo o ano de Oxalá. Esta escolha do ano se dá pelo dia da semana em que cai o dia primeiro de janeiro, já que cada dia pertence a um Orixá, ou a Orixás. Acredita-se que na transição de um ano para o outro, o Orixá do ano dá passagem para o outro Orixá. No ritual de troca de ano se faz uma limpeza no Ilê e nos filhos de santo, além de servir oferendas a todos os Orixás. Neste ritual também são entregues as “seguranças”, fios de barbante com a cor dos Orixás do ano e dos que regem o Ilê que são amarrados no pulso ou nos tornozelos dos filhos de santo. As “seguranças” são removidas no fim do ano, quando for época de colocar novas.

2.3.1.2 Festas de Santos Católicos Sincretizadas no Calendário do Batuque

São datas emprestadas do calendário cristão para celebrar os Orixás que tem sincretismo com santos católicos. Nestas datas os Orixás recebem oferendas de comida e talvez algum sacrifício, caso sejam Orixás de destaque no terreiro (o Orixá do Pai de santo ou de algum familiar de santo destacado). Nem todos os Orixás possuem uma data no calendário católico, nem são todos que são celebrados. No terreiro estudado dá-se destaque ao dia da Nossa Imaculada Conceição (08/12), Orixá do Pai de Santo do terreiro, Carlos de Oxum; ao dia da Nossa Senhora dos Navegantes (02/02), Orixá de Airton de Yemanjá, pai de Carlos de Oxum; ao dia de São Jorge (23/04), Orixá da madrinha de santo de Carlos de Oxum, Maria Deloí de Ogum e as festas de Cosme e Damião (27/09), São Miguel Arcanjo (28/09) e São Jerônimo (30/09), sincretizados com os Ibejis, Xangô Aganju e Xangô Agodô, respectivamente. Xangô é muito venerado por ele ser considerado o Rei da nação Oyó.

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2.3.1.3 Quaresma e o Ritual da Guerra

Outro ritual sincretizado com o calendário cristão. Durante toda a quaresma os terreiros entram em recesso, raramente fazem trabalhos e não se pode fazer sacrifícios. Esse período culmina na Sexta-feira Santa, data em que os filhos de santo vão ao ilê em jejum, logo se inicia o ritual do lava pés, onde o Pai de Santo lava os pés dos seus filhos de santo, seguindo a ordem da geração mais nova para a mais antiga. Logo após todos bebem um chá de ervas amargas chamado de fel, pedindo a remissão dos pecados. Após isso há um grande almoço comunitário partilhado por todos com comidas típicas de cada região. No almoço, uma pessoa mais velha, de preferencia um filho (a) de Oxalá (que tem sincretismo com Jesus Cristo), oferece o pão e o vinho e diz as palavras: “Este e o corpo e o sangue de cristo”. O dia segue e os adeptos esperam a meia-noite, quando é feita a limpeza dos assentamentos dos Orixás (Omi-ossé), que costuma terminar tarde da madrugada. Essa é uma das funções principais deste ritual, efetuar a limpeza dos assentamentos, que por serem de tamanha preciosidade religiosa, precisam de uma data puntual para serem limpos. Para finalizar, as 10h da manhã os Orixás são convocados e há o ritual da guerra, recriação simbólica de uma lenda em que os Orixás foram à guerra para ajudar Xapanã que estava apanhando dos soldados. Nesta parte há um claro sincretismo com o martírio de Jesus Cristo, já que Xapanã é o Orixá que representa o sacrifício e é sincretizado com o Nosso Senhor dos Passos, imagem de Jesus carregando a cruz e sendo açoitado. Percebe-se que o Cristianismo está tão fortemente arraigado à sociedade brasileira que outras culturas se servem de sua liturgia para elaborar seus rituais.

2.3.2 Festas Móveis (Quinzenas, Ebós, Iniciações)

Quinzena é uma festa menor, marcada quando é preciso dar comida aos Orixás, mas não se pode fazer um sacrifício maior com animais de quatro pés. Sendo assim, a quinzena compreende um sacrifício de aves apenas (animais de dois pés), em que se sacrificam quinze animais para os Orixás, vindo daí o nome, diferente do que se acredita de início, que seja um ritual dado a cada quinze dias. Na quinzena, quatorze Orixás comem um galo ou uma galinha cada um, à exceção

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dos Ibejis, que comem um casal de pombos (fechando a conta dos quinze). Os Orixás que comem são: Bará Lodê, Bará de dentro, Ogum, Xapanã, Ossanha, Odé, Xangô (Agodô e Aganju juntos), Ibejis, Oyá, Obá, Otin, Oxum, Yemanjá e Oxalá. Além das quinzenas há os Ebós, onde se sacrificam animais de quatro pés (cabras, cabritos, ovelhas, carneiros e porcos), e que já foi detalhado no subtítulo sobre o apronte. Além as iniciações, que também já foram detalhadas e que se configuram como festas móveis no calendário do Batuque. 3 O ESPAÇO GEOGRÁFICO PARA O ADEPTO DO BATUQUE OYÓ

Percebe-se uma carência de publicações no campo da Geografia Religiosa, esse preterimento é explicado por Rosendahl como sendo um preconceito da escola positivista "o Positivismo caracteriza-se por um agnosticismo no qual nega à razão e à fé o poder de provar a existência de Deus [...] A existência de Deus constitui-se em uma questão metafísica, fora do âmbito da ciência positiva" (ROSENDAHL, 1996. Apud, JAQUES, 2005). Não há pretensão neste trabalho em provar a veracidade do que se pratica no Batuque, mas tratar do ethos da comunidade religiosa batuqueira usando teorias que abranjam as várias facetas da religião. Para estender este trabalho à proposta nominal deste curso de pósgraduação, é interessante coletar, analisar e detalhar noções geográficas pertinentes aos terreiros e aos adeptos do Batuque da nação Oyó. Partindo da idéia de que este grupo religioso precisa de um espaço físico para estabelecer suas casas de culto e para desenvolver seus rituais, levanto o conceito de território religioso definido por Rosendahl: Os espaços apropriados efetiva ou efetivamente são denominados territórios. Territorialidade, por sua vez, significa o conjunto de práticas desenvolvido por instituições ou grupos, no sentido de controlar um dado território. É nesta poderosa estratégia geográfica de controle de pessoas e coisas, ampliando muitas vezes o controle sobre espaços, que a religião se estrutura enquanto instituição, criando territórios seus.

49

Idem, ibidem.

49

58

No tocante a territorialidade dos batuqueiros, o elemento de maior relevância é o templo religioso, chamado comumente de terreiro ou Ilê. É um espaço significativo, pois norteia as ações dos adeptos da casa de culto e gera um sentimento de pertencimento, sendo assim um elemento formulador da identidade religiosa de um grupo, já que “o homem deseja situar-se num „centro‟, lá onde existe a possibilidade de comunicação com deuses” (ELIADE, 2008, p.141. Apud, JAQUES, 2005). Por isso é relevante identificar as características espaciais do Ilê, da mesma forma que dos espaços exteriores que foram apropriados pela comunidade religiosa, para melhor entender o modus operandi

50

dos rituais

desenvolvidos pelos adeptos do Batuque. O Ilê é uma residência que costuma ser de propriedade do Pai ou Mãe de Santo que ali reside, este é um dos espaços ocupados pela comunidade religiosa e o centro do culto de uma determinada casa. A parte interna do Ilê se divide em três espaços principais, aonde se desenvolvem atividades específicas: O quarto de santo (peji), o salão de santo e a cozinha de santo. Seguem suas descrições mais pormenorizadas:

Quarto de santo: este espaço abriga dois elementos do ritual, o altar onde estão os assentamentos das entidades e o roncó, espaço onde os filhos da casa ficam “de chão”

51

quando dos boris, ebós de apronte ou qualquer ritual que

imponha essa exigência. Também é no quarto de santo que se guardam os objetos de maior valor ritualístico, como as espadas pertencentes aos Orixás Ogum e Oyá, a talha aonde é servida a bebida atã

52

no batuque final de um apronte, os colares de

contas (guias de santo) dos filhos da casa, as casas dos Barás “de dentro” e os instrumentos musicais usados nas festas, que são o atabaque e os agês 53. É neste local que os filhos de santo prestam homenagem (fazem obrigação) aos seus orixás nos dias que lhes competem. No quarto só se pode entrar descalço e não se pode dar as costas para o altar ao sair; 50

Do latim, "modo de operação". Refere-se à maneira de executar uma atividade seguindo os mesmos procedimentos. 51 Referência ao fato de que nessas ocasiões os filhos de santo precisam dormir no ronco, em camas improvisadas rente ao chão. 52 Salada de frutas servida no final de uma festa de Batuque, tradicionalmente guardada em uma talha de barro. É servido em copos, como uma bebida, e simboliza o Orixá Ogum. 53 Instrumento musical que consiste de um porongo recoberto com uma teia de miçangas entrelaçadas e que emite um som similar ao chocalho. São usados como acompanhamento dos atabaques nas festas de Batuque. Em outros locais, se dá o nome de afoxê.

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Salão de santo: É o local aonde acontecem as festas, onde os filhos de santo do terreiro, juntamente com os convidados, celebram a roda do xirê

54

, na qual

dançam para os Orixás. Na ocasião das festas somente se pode entrar descalço no salão, exigência que não persiste nos dias em que não há festas; Cozinha de santo: Neste local se preparam as comidas dos Orixás e os pratos que são servidos aos convidados nas cerimônias, também se preparam alguns elementos ritualísticos que são feitos de gêneros alimentícios. Mais espaçosa que uma cozinha residencial, ela necessita preparar uma grande quantidade de alimentos na ocasião de grandes festas. Se o Quarto de santo é o centro nervoso de todo terreiro, a cozinha é o coração, pois o trabalho desenvolvido nela possibilita a concretização das oferendas para os orixás, assim como boa parte dos elementos utilizados na liturgia diária. Os Pais de Santo costumam dizer que o aprendizado de um filho de santo iniciado começa na cozinha, pois é lá que se ensina como se fazem as oferendas que sustentam o culto dos Orixás.

Estes são os locais aonde o ritual se desenvolve nas suas variadas etapas. Como observado nos terreiros

55

, era de costume haver uma divisão entre a casa

onde reside o Pai de Santo e as dependências em que se praticam os rituais, em decorrência de adaptações ao estilo de vida contemporâneo, essas peças acabaram se fundindo, podendo a própria cozinha do Pai de Santo ser a cozinha de santo e o salão de santo ser improvisado em sua sala de estar, por exemplo. O território de propriedade do terreiro ainda tem outras partes secundárias da sua configuração espacial, algumas destas podem ainda ajudar a identificar o Ilê, já que pela tradição estes templos não ornam nas suas fachadas nenhuma sinalização de que ali funciona um terreiro. Isso se deve em parte à estigmatização que sofrem os adeptos do culto e também para pregar a simplicidade e a humildade. Estes espaços aos quais se faz referência são:

Casa de assentamento do Bará Lodê: Facilmente reconhecível, são casas em miniatura localizadas na frente dos terreiros, lá é assentado um tipo de Bará chamado de Lodê, considerado o guardião do terreiro e, por esse motivo, é 54

Cf. LOPES, 2004, p. 689: [...] o conjunto ordenado de toques, cantigas, e danças com os quais os Orixás são invocados. 55 Nos Ilês dos Pais de Santo Carlos de Oxum e Airton de Yemanjá.

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assentado fora e em frente ao Ilê. Os Barás comumente desempenham a função de servos dos Orixás, já o Lodê ainda agrega a função de protetor do ilê. Este Bará pode, por vezes, dividir a sua “casa” com mais um Orixá, o Ogum Avagã, que se assenta junto ao Lodê por ser considerado um Orixá pertencente à rua, portanto não pode ser assentado dentro de casa; Assentamento da Yiá: É um assentamento externo para a Yiá, que representa algo como a fusão simbólica dos conceitos de todas as Orixás relacionadas à água e à maternidade, a exemplo: Obá, Oxum, Ewá, Nanã e Yemanjá (Yiá, do iorubá, “mãe”). Caracteriza-se como uma fonte de água ornada com uma sereia, fazendo uma alusão à Yemanjá. Yiá não é uma entidade, mas a fusão das simbologias dessas Orixás e que recebe um vulto físico para se direcionar o culto; Assentamento de Ossanha Tempo: Este assentamento é um exemplo claro de sincretismo intra-religioso. Tem sua origem no culto do Orixá Iroko, da nação Ketu. Este Orixá é simbolizado pela gameleira branca, a primeira árvore a ser plantada no mundo nas lendas dos Orixás, ele também é o Orixá relacionado à passagem do tempo, às mudanças eminentes e às quatro estações do ano. Ele costuma ser chamado de “Tempo” devido a uma corruptela do nome de um Nkisi da nação Angola chamado Kitembo, ou Kindembu. A palavra Kitembo tornou-se “Tempo”, devido uma associação do domínio simbólico deste Nkisi e a sonoridade de seu nome. A associação com Ossanha ocorre porque Iroko não é cultuado pela nação Oyó e ambos estes Orixás apresentam afinidades com as árvores e plantas. O Assentamento tem duas funções, uma prática e uma espiritual. A prática incide em coletar água da chuva para se encher as quartinhas, uma vez que esse assentamento é feito em uma grande talha de barro; já a espiritual está relacionada ao domínio simbólico de Iroko, o tempo, acredita-se que quem possuir este assentamento em seu Ilê terá longevidade, pois sentirá menos a passagem do tempo; Espaço em que se cultivarem ervas e árvores usadas em rituais: As ervas tem um grande

valor

ritualístico para

o

Batuque,

sendo

usadas

recorrentemente. Devido a isto, é mais em conta para os batuqueiros cultivarem as plantas de que necessitam (quando o espaço físico da casa as comporta). Um mamoeiro, uma mamoneira ou uma figueira são indispensáveis, já que as oferendas dos Orixás são servidas em vasilhas de barro (alguidares) cobertas com as folhas

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destas plantas. Uma muda de “quebra-tudo” também se faz necessária, já que os filhos de santo não podem entrar no quarto de santo caso tenham ingerido bebidas alcoólicas ou se praticaram relações sexuais no dia em questão, nestes casos os filhos devem tomar um banho de ervas feito com as folhas do “quebra-tudo” antes de entrar no peji. Outras plantas também podem vir a ser cultivadas, como as plantas usadas em banhos de ervas ou em outros rituais; Galinheiros e currais: O Batuque faz uso de animais em imolações, por isso é necessário que se destine um local para a criação destes, ou mesmo para alojá-los temporariamente nas vésperas de um ritual. Mesmo que criem galinhas e outros animais nos terreiros, a nação Oyó utiliza um grande número de animais nas feituras, o que faz necessária a compra de parte destes em criadouros próximos.

Afora estes, existem ainda os espaços externos, públicos ou particulares, que são apropriados pelos batuqueiros em determinados momentos. Antes deve-se conceituar espaço, que para Kant, não possui existência real: “é considerado como a condição de ocorrência de fenômenos, não como uma determinação dependente deles, e constitui uma representação a priori que serve de fundamento, de uma maneira necessária, aos fenômenos exteriores” (KANT, 1972. p.66. Apud JAQUES, 2005). Considerando estes fenômenos religiosos, os locais externos de uso ritualístico se enquadram no conceito kantiano. Estes espaços dos quais se fala são as encruzilhadas das ruas, as praias, as matas (a natureza como um todo), os mercados, as igrejas e os cemitérios. Chowbart de Lauwe (1952. Apud, JAQUES, 2005, p. 26) divide o espaço social em objetivo e subjetivo, define-se espaço social subjetivo como o “espaço tal como o percebem os membros de grupos humanos particulares”. Portanto, um mesmo espaço que é utilizado pela população leiga com outras finalidades ganha uma roupagem religiosa para os batuqueiros, como no caso do Mercado Público de Porto Alegre, palco de muitos rituais para os adeptos do Batuque e da Umbanda, mas que para os outros transeuntes é apenas mais um local para fazer suas compras. Diferente do espaço próprio do Ilê, aonde os adeptos podem modificar o espaço físico à sua vontade, os espaços externos são públicos ou pertencentes a outros, portanto o culto tem que adaptar suas práticas ao espaço que se dispõe. Paralela à apropriação temporária do espaço objetivo, há uma ressignificação do espaço subjetivo, onde este espaço até então profano ou laico torna-se o local da realização de um ritual e, portanto, um espaço sacro. Para uma

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melhor compreensão do que foi teorizado, segue uma descrição dos espaços externos usados durante alguns dos rituais, a começar pelos urbanos:

Encruzilhadas: A encruzilhada é o cruzamento entre duas vias de tráfego e carrega um forte simbolismo. São recorrentes os despachos feitos em encruzilhadas, fato perceptível em qualquer cidade em que se desenvolvam cultos afro-brasileiros. Por ser a união de dois caminhos, esse espaço urbano se identifica com o Orixá Bará, responsável pelos caminhos e pelo fluxo de pessoas, funcionando como um recadeiro entre os demais Orixás e os humanos. Como foi anteriormente explicada, a utilidade do despacho é devolver ao habitat do Orixá o que lhe foi ofertado em frente ao peji, dessa forma as oferendas destinadas a Bará são despachadas em encruzilhadas, neste local também respondem Ogum Avagã e Obá, o primeiro por ser uma qualidade do Ogum com forte afinidade com o Bará, e a segunda por ter como símbolo a roda, respondendo neste mesmo local. Nem todas as oferendas encontradas nas encruzilhadas pertencem aos Orixás citados, já que este espaço é ocupado por outras vertentes religiosas, como a Umbanda. Entidades da Umbanda chamadas de Exus (que desempenham funções similares ao Bará do Batuque, embora sem ter real conexão) também tem a encruzilhada como território, onde recebem os itens ofertados pelos adeptos. Um fato a se mencionar, estes espaços são tabus para os filhos de Orixás velhos, ou de praia (Oxalá, Yemanjá e Oxum), pois se considera que são orixás tão puros, tão próximos da matriz criadora que o fato de desempenhar rituais nestes locais mais mundanos causaria algum dano à feitura dos filhos destes Orixás, em caso de necessidade o batuqueiro em questão deve recorrer a outra pessoa de sua família de santo para desempenhar tais rituais; Mercados: Anteriormente citados quando se fez menção ao passeio feito após uma obrigação. São espaços muitas vezes particulares, mas dos quais os adeptos se apropriam como uma parada do itinerário do passeio. No caso do Mercado público de Porto Alegre, o geógrafo André Porto Jaques cita em sua monografia as reações adversas dos transeuntes do mercado, já que mesmo este espaço já seja visto como distinto território dos batuqueiros, ele não os pertence em substância, portanto os batuqueiros estão expostos às manifestações dos que por ali passam ou trabalham (JAQUES, 2005, p. 30). O autor citado é batuqueiro e pertence à nação Jeje-Ijexá, ele cita as oferendas feitas ao longo do trajeto no mercado,

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porém na nação Oyó a passagem pelo mercado é mais simples, consistindo na compra de alguns itens de interesse ritualístico pelos que estão fazendo uma iniciação, portanto não infere em uma ação muito invasiva. Já a bacia de Jaques exige que seja feita a deposição de grãos de milho e outros elementos durante o passeio no mercado. As reações são variam da indiferença, ao agrado e ao repúdio, há quem interprete o milho depositado como sujeira, poluição ou desperdício, mas também existem os que pedem que um pouco do milho seja depositado em seus comércios, a fim de atrair bons axés. Como se vê, na medida em que os territórios de um grupo se mesclam com os dos demais, há a possibilidade de ocorrerem conflitos. Estes pontos de agravo são marcas expressivas de toda a trajetória histórica do Batuque, quando as rotinas dos batuqueiros interferem no ambiente a sua volta, como será visto mais adiante no subtítulo que tratará dos conflitos do Batuque com a sociedade (em seu sentido amplo); Igrejas: São territórios religiosos pertencentes à outra religião, portanto há um forte elemento de conflito, por isso o ritual realizado em igrejas tende a ser discreto. As igrejas são visitadas durante o passeio, nesta ocasião os membros da nação Oyó vão fazer reverência ao altar, como uma demonstração da existência de um sincretismo entre o Catolicismo, presenciado em muitos momentos. Em caso de a Igreja a ser feita a visita estiver fechada, a reverência pode ser feita nas escadarias da igreja; Cemitérios: São espaços sagrados, mas também tabus para os Batuqueiros. São sagrados por serem os locais de sepultamento dos ancestrais e por trazerem uma relação simbólica com Xapanã (Orixá das doenças) e Oyá (Orixá vista como rainha dos eguns), mas é proibido transitar em frente aos cemitérios e funerárias quando se está indo fazer um despacho ou oferenda, quando do passeio da obrigação e em épocas de ebós ou quinzenas. Acredita-se que nestes locais habitam eguns, e que estes não trazem boas energias. A infração dessa exigência pode causar uma quizila com os orixás que inviabilizaria o ritual. Este espaço também é vetado em rituais para os filhos de Orixás de praia, pelos mesmos motivos das encruzilhadas.

Além dos espaços urbanos, existem os espaços naturais que pertencem ao território do Batuque, estes espaços são de vital importância, pois como já foi dito, o culto dos Orixás nada mais é do que o culto à natureza, eles são manifestações da

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natureza em forma divina. Muitos são os locais de apropriação territorial, já que os despachos e oferendas devem ser feitos no habitat de cada Orixá. Na tradição Oyó se utilizam os seguintes espaços.

Matas e pedreiras: São dois locais para finalidades distintas, mas que envolvem as mesmas questões espaciais. Muitos Orixás têm a mata como seu habitat, como é o caso de Ogum, Ossanha, Odé e Otim. Suas oferendas e despachos devem ser depositadas no meio do mato, preferivelmente em locais mais ermos. Os batuqueiros costumam depositar oferendas nos mesmos locais de mata, o que estabelece uma noção de territorialidade no espaço freqüentado. Quanto às pedreiras, estas são pertencentes a Xangô, para elas valem os mesmos critérios que as matas. Porém, a essência de uma oferenda ou despacho é depositar algo no meio natural, isso acarreta em uma questão de ética ambiental, já que estes podem vir a poluir a natureza. Há um comum consenso entre os batuqueiros e umbandistas nestes casos, que será mais bem detalhado no próximo capítulo deste trabalho; Praias: As praias, sejam elas de rios ou de mares, tem um significado simbólico para o batuque, pois são estes os habitats dos Orixás ditos velhos (Oxum, Yemanjá e Oxalá). Na concepção afro-religiosa, estes orixás estão mais próximos das energias sublimes do Orun e a água é algo como um elo entre o mundo visível e o Orun. Quanto a delimitação territorial das praias para uso de umbandistas e batuqueiros, sabe-se que pelo art.98 do Código Civil, são “bens de uso comum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas e praças”, portanto as praias são bens públicos mas elas podem carregar a identidade do público que as freqüenta. Em Alegrete houve uma tentativa por parte de um grupo de religiosos, posteriormente ligados à AURAFA, de batizar um trecho da praia do rio Ibirapuitã de “Praia de Iemanjá”, pretendida através da lei municipal 929/70 (conforme atesta a seguinte fotografia do acervo do Sr. Sylla Orguissa, presidente em exercício da AURAFA). Porém a Lei não foi aprovada, restando apenas a lembrança de uma tentativa de delimitação territorial.

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Figura 5: Foto da procissão pela “Praia de Iemanjá”

3.1 OS CONFLITOS

Recentes animosidades entre adeptos de religiões afro-brasileiras e membros de igrejas neopentecostais trazem à tona conflitos decorrentes do choque entre os espaços (sejam objetivos ou subjetivos) de duas concepções religiosas distintas. É de interesse da pesquisa que se faça uma análise racional deste movimento religioso, o Batuque, sem ter que desmerecer credo ou fé alguma, porém há situações que exigem um posicionamento claro, a fim de não permitir que maus julgamentos infamem os adeptos do Batuque. Menciona-se isso ao se tratar dos conflitos entre o Batuque e a sociedade, pois os dois subtítulos que seguem são a defesa dos adeptos do Batuque contra as críticas dirigidas por movimentos religiosos de outras ordens. Estas críticas foram citadas pelos Babalorixás entrevistados 56 e as alternativas por eles apresentadas estão descritas a seguir.

56

Cf. Carlos de Oxum e Airton de Yemanjá.

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3.1.1 A questão do Sacrifício de Animais

O sacrifício animal existe nos rituais como uma troca simbólica entre os Orixás. Devido aos nossos padrões sociais, este tema gera reações adversas, uma vez que cada vez mais são elaboradas leis e medidas que protejam e garantam um tratamento digno às espécies animais que compartilham com o ser humano o espaço em que vivem. Como defender tais práticas, então? Primeiramente devemos compreender a imolação animal no contexto em que ela está inserida na ritualística do Batuque, que ocorrem na ocasião de festas dedicadas aos Orixás. Nessas festas os animais são imolados para que seu sangue alimente os Orixás e sua carne alimente os filhos de santo, como em um pacto simbólico entre o divino e o terreno. Não são infligidas em momento algum, torturas aos animais, já que estes devem estar relaxados até o momento de seu sacrifício, onde o Babalorixá corta-lhe a carótida com presteza e agilidade para abreviar a dor. Este tipo de imolação se assemelha ao abate de animais para consumo que nossa sociedade pratica, tornando esta prática um pouco mais próxima da nossa realidade. Porém, em maio de 2003, foi criada a lei nº 11.915, instituindo o Código Estadual de Proteção aos Animais no Rio Grande do Sul. O que poderia representar uma grande vitória aos movimentos que prezam pelos direitos dos animais, mas o que se viu foi uma deturpação do sentido da lei em si e do valor simbólico e cultural dos rituais de imolação, pois a lei foi utilizada para restringir e proibir sacrifícios animais em terreiros do Rio Grande do Sul. Estas medidas vêm a violar a constituição de 1988, que diz: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias” (do Cap I, Art 5º, Inciso VI). Essas antigas rusgas se desenvolvem em um debate ainda sem resolução, onde setores diferentes da sociedade rio-grandense medem forças para fazer valer suas convicções. 3.1.2 A Questão Ambiental

Como foi dito, as oferendas e despachos devem ser postas no habitat de cada Orixá, o que faz necessária a deposição de materiais na natureza, fato que pode ocasionar poluição ambiental em dado local, caso este seja muito requisitado para este fim. São compreensíveis as reclamações das pessoas que vivem em

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locais próximos aos dos despachos, uma vez que a poluição pode causar problemas ambientais. O que não se avalia é que os batuqueiros não têm interesse de causar transtornos desta ordem, uma vez que cultuam uma religião que venera a natureza, mas as condições de vida de certas cidades não deixam muitas alternativas para as casas de religião. Parece não haver um interesse do estado em estabelecer um diálogo entre as lideranças religiosas para que se estabeleçam locais apropriados aos despachos, ou mesmo uma política ambiental por parte dos terreiros, para que estes se responsabilizem em manter o asseio dos espaços por eles utilizados. Esta questão não pode ser tratada com a mesma falta de diálogo com que foi tratada a questão do sacrifício animal. É um anseio da comunidade religiosa que se possa dar continuidade às liturgias ancestrais sem ferir os padrões da sociedade atual, porém qualquer adaptação a ser estabelecida na forma de se cultuar as entidades deve ser feita com diálogo e respeito à cultura e à ancestralidade de um povo, uma vez que não se pode resolver um problema causando outro, ocasionando um desserviço à diversidade cultural existente.

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CONCLUSÃO

Na culminância dos trabalhos de observação, levantamento de dados, análise e escrita, chegou-se à conclusão de que a tradição religiosa do Batuque da nação Oyó engloba rituais de cunho ancestral, elaborados ainda no continente africano, com adaptações e ressignificações de suas práticas á realidade do Local em que os escravos africanos eram alojados. Referente a isto, ressalva-se a importância do Batuque para as comunidades afro-descendentes nos primórdios de sua elaboração em terras brasileiras, uma vez que o culto desta religião implicava em uma série de punições aos praticantes, punições estas que se mostraram menores mediante a grandeza das tradições por eles cultivadas. Quanto ao universo simbólico, viu-se que o Batuque cultua a natureza e suas diversas manifestações. Os elementos da natureza revestem-se de um caráter místico e sagrado, manifestando-se entre as pessoas sob a forma de Orixás. Estes que são entidades protetoras, peculiares a cada um, mas que encerram em si as energias da natureza. O culto dos Orixás é a tônica do Batuque, todos os rituais descritos nada mais são do que formas diferentes de se celebrar os Orixás, ou ainda configuram trocas simbólicas, nas quais as pessoas prestam oferendas às entidades, que em troca lhes “emprestam” um pouco de sua energia, de seu axé, para que se use nos mais diversos fins. Contudo, o aprofundamento dessa experiência com os Orixás só é possível mediante uma iniciação religiosa, como foi visto no trabalho. Mediante observações, constatou-se que os diversos graus de iniciação representam graus de proximidade com a energia dos Orixás. Em todo momento nos rituais são observadas as peculiaridades da Nação Oyó em comparação as outras nações, devido ao caráter fechado e discreto com que se realizam os ritos, reflexo de sua ancestralidade, reelaborada no Brasil em uma época em que não havia liberdade religiosa. Estes e outros detalhes observados fazem emergir a história da tradição Oyó em cada ritual, em cada maneira de se cultuar as entidades que difere do modelo estabelecido em outras casas de religião. Contudo, não se quer afirmar que o Oyó tenha uma pureza ou uma qualidade maior que outras nações de Batuque, mas sim que a nação Oyó preservou mais adequadamente seus rituais quando optou por se tornar um culto recluso, a fim de evitar a banalização da religião e a diluição da autoridade hierárquica no terreiro, elementos cruciais em todos os rituais.

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Também foram observadas as maneiras como os adeptos do Oyó transformam o ambiente ao seu redor. Neste ponto, servindo-se da perspectiva geográfica, detalhou-se os espaços utilizados no terreiro como uma modificação do espaço geográfico para uma finalidade religiosa. Não só na esfera particular, mas também na pública, pois o batuqueiro cultua a natureza, e para isso precisa utilizar de espaços públicos (ruas, matas, praias etc.) para realizar muitos dos rituais. A descrição dos rituais ajuda a entender como é a perspectiva de espaço do batuqueiro, o diferenciando do público leigo no Batuque. Ainda se relevou os conflitos existentes entre os adeptos do Batuque e a comunidade geral, uma vez que a justaposição de culturas diferentes pode agravar disparidades que acabam gerando conflitos. Analisou-se a questão do sacrifício animal e a questão ambiental, chegando à conclusão de que os conflitos não partem da comunidade batuqueira, uma vez que se encontram sempre abertos ao diálogo, mas sim de pessoas que, motivadas pelo preconceito, julgam os hábitos dos batuqueiros sem antes conhecer o contexto em que eles se encontram. Como perspectiva de melhora, conclui-se que o diálogo deve ser a solução dessas e de outras disparidades. Por fim, compreende-se o Batuque da nação Oyó como um culto da natureza, que preserva suas tradições africanas mescladas com o sincretismo e com adaptações ao meio em que existe. Essas adaptações não chegam a descaracterizar o culto, ao contrário, o encobrem com uma roupagem de significações que conta a história da escravidão, das tradições africanas e os meios sagazes utilizados para fazer sobreviver uma prática de raízes ancestrais.

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